OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 1, n.º 1 (Outono 2010), pp. 76-86

A GOVERNAÇÃO DA INTERNET

Pedro Veiga

Professor Catedrático da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e Presidente da Fundação para a Computação Científica Nacional (FCCN). Foi Presidente do Colégio de Informática da Ordem dos Engenheiros. Foi Gestor do Programa Operacional Sociedade da Informação e Membro da Equipa de Missão para a Sociedade da Informação

Marta Dias

Jurista e responsável pela área de Comunicação&Imagem da Fundação para a Computação Científica Nacional (FCCN). Pós-graduada em Ciências Jurídico Administrativas. Trabalhou nos departamentos administrativo, financeiro e jurídico da Inspecção-Geral da Educação e da Direcção-Geral das Autarquias Locais.

Resumo

Éhoje claro que a Internet veio trazer mudanças na nossa sociedade e uma ruptura no modo como vivíamos antes do seu aparecimento. Ainda é cedo para fazermos um balanço do impacto para a sociedade dos novos serviços a que temos acesso, como a capacidade de comunicar à escala global de modo rápido e económico, ter acesso a informação e, talvez mais importante, ter a capacidade de produzir e divulgar informação de um modo acessível a todos. Mas é claro que o advento da Sociedade da Informação está a implicar mudanças na nossa sociedade que representam um ponto de não retorno. Mas ao contrário da entrada na Era Industrial, iniciada há cerca de três séculos, em que o processo de mudança foi lento e liderado pelos indivíduos mais velhos, a entrada na Sociedade da Informação está a ser rápida e os jovens são actores decisivos.

O carácter global da Internet, a possibilidade de produzir e distribuir qualquer tipo de conteúdos sob a forma digital e a custos quase nulos, bem como o enorme número de pessoas que usam a rede, veio realçar a necessidade de novas formas de intervenção num sector em que há muitos tipos de intervenientes. É neste contexto que o problema da Governação da Internet é de grande actualidade, na medida em que se sente a necessidade de procurar garantir uma diversidade de direitos e deveres que podem parecer difíceis de compatibilizar.

Neste artigo faz-se uma breve apresentação dos principais actores e iniciativas que, na área da Governação da Internet, tem procurado contribuir para que esta rede seja um factor de desenvolvimento social e de democraticidade à escala mundial.

Palavras-chave

Governação; Internet; Segurança; Sociedade da Informação; Privacidade

Como citar este artigo

Veiga, Pedro; Dias, Marta (2010) "A governação da Internet". JANUS.NET e-journal of International Relations, N.º 1, Outono 2010. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol1_n1_art6

Artigo recebido em Julho de 2010 e aceite para publicação em Setembro de 2010

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A governação da Internet

Pedro Veiga e Marta Dias

A GOVERNAÇÃO DA INTERNET

Pedro Veiga e Marta Dias

1. Introdução

A governação da Internet pode ser definida como o desenvolvimento e aplicação pelos governos, sector privado e sociedade civil, no âmbito das respectivas competências e atribuições, de princípios, normas, regras, processos decisionais e programas comuns, que regulam a evolução e utilização da Internet1.

Quando se fala da governação da Internet não se pode ficar alheio ao papel fundamental de um conjunto de organizações2 que, à escala nacional, europeia e mundial, têm trabalhado no sentido de lidar com as matérias e problemas que daí advém. Merecem-nos aqui especial destaque o ICANN, o IGF, o ITU, o ISOC, a Comissão Europeia e, a nível nacional, as entidades responsáveis pela gestão dos ccTLD’s3.

Porém, não se pode compreender o que é a governação da Internet, ou melhor, aquilo em que assenta o princípio de que a Internet deve ser governada, se primeiro não clarificarmos como é que esta surgiu, como evoluiu até aos dias de hoje e o muito que tem de bom, que, na nossa perspectiva, continua a sobrepor-se ao que tem de menos bom.

Depois, cumpre-nos tentar esclarecer que a governação da Internet, não tem subjacentes actuações e políticas mandatórias e impositivas, parte antes de um modelo multiparticipado, onde todos os intervenientes contam. O fiel da balança será o meio- termo que está, por um lado, no imperativo de segurança e privacidade de cada um e, por outro, numa Internet livre e aberta.

2. A invenção técnica da INTERNET

As ideias que conduziram à concepção da Internet, resultaram de um projecto de

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Definição original dada na Agenda de Tunis para a Sociedade da Informação em: http://www.itu.int/wsis/docs2/tunis/off/6rev1.pdf

A UMIC – Agência para a Sociedade do Conhecimento, IP assegura, através do seu Presidente, a representação de Portugal no GAC – Governmental Advisory Committee da ICANN – Internet Corporation for Assigned Names and Numbers e também no IGF – Internet Government Forum da ONU – Organização das Nações Unidas, assim como, no âmbito da União Europeia, no HLIG – High Level Group on Internet Governance.

Em Portugal o ccTLD .pt é gerido pela FCCN na sequência da delegação técnica da IANA Internet Assigned Numbers Authority (RFC 1032/3/4 e 159).

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investigação aplicada, iniciado na década de 60, e cujo objectivo era ligar vários computadores das forças armadas dos EUA de modo a que a rede criada tivesse uma alta tolerância a falhas. Este requisito foi motivado pelo ambiente político da Guerra- Fria e tinha como finalidade garantir que mesmo depois de uma potencial guerra em que muitos meios de comunicação e computadores desta rede fossem destruídos mesmo assim os sistemas restantes pudessem continuar a comunicar e a desempenhar as suas funções de apoio às operações logísticas militares, não obstante alguma degradação das suas funcionalidades.

Atendendo à fraca capacidade de comunicação das redes de telecomunicações que na altura existiam, a tecnologia que veio a ser desenvolvida também devia funcionar bem em ligações de baixa velocidade (à escala actual) e com uma multiplicidade de meios de comunicação como circuitos terrestres de vários tipos e ligações satélite.

Estes objectivos vieram a ser os aspectos decisivos na concepção da tecnologia que se tornou a solução central para a ligação dos principais sistemas de informação e, também, a tecnologia de comunicação que é a base da sociedade da informação neste início do século XXI.

No entanto foi, sem dúvida, a invenção da World Wide Web que veio trazer à Internet a capacidade de apresentação de informação num modo que contribuiu para a sua massificação. Veio a ser possível uma globalização no acesso à informação, que passou a estar cada vez mais sob a forma digital e que obrigou à mudança da forma como as pessoas e os agentes económicos interagem entre si e com a administração pública.

3. O ano de 1995 e a INTERNET para o grande público

O ano de 1995 marcou o início do crescimento da Internet junto do público em geral. Este crescimento, não se verificou uniformemente em todos os países, havendo um crescendo de uso que teve início nos EUA e no Norte da Europa e que veio a estender- se de forma, pode dizer-se generalizada, às outras regiões do globo.

Desde logo houve a percepção de que a Internet poderia vir a ser muito importante como instrumento de desenvolvimento e começou a verificar-se uma preocupação sobre “quem controla a Internet”? Em especial existiam dois tipos de recursos que se tornaram ponto central de preocupação: os nomes dos domínios (domain names) e os endereços IP (numbers) usados pelos computadores da Internet.

Em relação aos nomes de domínios (como http://www.parlamento.pt ou http://www.cnn.com) verificava-se uma situação peculiar. Se os domínios terminados com duas letras eram da responsabilidade de cada país, correspondendo já aos códigos ISO de cada país, já os domínios globais (.com, org, .net, edu) eram geridos e comercializados em regime de monopólio, conferido via contrato, por uma empresa americana, a NSI – Network Solutions International. O modo como os domínios e outros aspectos técnicos da Internet eram geridos trazia diversos problemas, dos quais realçamos os mais notórios: i) a necessidade de surgimento de mais domínios globais

egenéricos, os gTLDs (Generic Top-Level Domains); ii) o Cybersquatting, apropriação abusiva de nomes de domínios e a enorme dificuldade de gerir este tipo de abuso à escala mundial; iii) a falta de competitividade mundial na comercialização dos gTLDs existentes; iv) o facto da Internet ser dominada pela língua inglesa, renamescência técnica do código ASCII de 7 bits que inclusive não permitia a representação de todos

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os caracteres da língua portuguesa, mas que era muito mais grave para línguas não latinas; v) o sistema estável de distribuição dos endereços dos protocolos da Internet (endereços IP e de outros protocolos); vi) a estabilidade técnica e a segurança da infra- estrutura de suporte à resolução de nomes de domínios.

A União Europeia teve a percepção da importância económica e social da Internet e encetou contactos e negociações com o Governos dos EUA que vieram, durante a Administração Clinton, a desencadear uma série de movimentações políticas visando a criação de uma nova era no modo como a Internet vinha sendo gerida. Às preocupações iniciais, eminentemente técnicas, sucederam-se logo novas frentes de intervenção que analisamos de seguida.

4. A criação do ICANN

Após algumas tentativas falhadas para criar mecanismos adequados ao crescimento da Internet, suportado em recursos que assegurassem uma diversidade geográfica e cultural, a sua democraticidade, a sua estabilidade técnica e independência de interesses económicos, veio a ser criada a ICANN4 (Internet Corporation for Assigned Names and Numbers).

Em 25 de Novembro de 1998, o Departamento de Comércio dos Estados Unidos, em representação do Governo dos Estados Unidos (USG), celebrou um Memorando de Entendimento (MoU, Memorandum of Understanding) com a então criada ICANN. Em termos gerais, este MoU encerrava um objectivo fundamental, o de efectivar a transferência da gestão do Sistema de Nomes de Domínio (DNS Domain Names System) para o sector privado, leia-se entidade sem fins lucrativos, libertando-o das supostas amarras do Governo dos EUA.

Depois de uma série de adendas a este MoU, só em 2006 foi assinado o Joint Project Agreement (JPA), que na prática reafirmava o conjunto de responsabilidades do ICANN no que concerne às metas inicialmente traçadas, onde se destaca o desenvolvimento de esforços no sentido de estabelecer a concorrência nos serviços de registo de nomes de domínio para gTLDS (Generic Top Level Domain System), incluindo a implementação de novos TLDs (Top Level Domains – Domínios de Alto Nível); a implementação de uma política para Resolução de Disputas e litígios no âmbito do processo de registo de TLD’s (Uniform Domain Name Dispute Resolution Policy), o estabelecimento de acordos formais com as entidades responsáveis pela gestão dos diferentes TLD’s; a implementação de uma estratégia financeira capaz de garantir a sustentabilidade da própria organização, e, com especial enfoque, a gestão técnica do DNS, onde o ICANN opera em conjunto com a IANA (Internet Assigned Numbers Autorithy).

Em Junho de 20095 Viviane Reding, então Comissária Europeia para a Sociedade da Informação e os Media, afirmou: "A Internet Corporation for Assigned Names and Numbers está a chegar a um marco histórico no seu desenvolvimento. Irá tornar-se uma organização plenamente independente e responsável perante a comunidade

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http://www.icann.org/

http://europa.eu/rapid/pressReleasesAction.do?reference=IP/09/951&format=HTML&aged=0&language=

PT&guiLanguage=en

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mundial da Internet? É o que os europeus esperam e é o que vamos defender. Convido os Estados Unidos a trabalharem em conjunto com a União Europeia nesse sentido".

Volvidos onze anos sobre o início do processo, é assinado, a 30 de Setembro de 2009, o Affirmation of Commitments (AoC). Nesta data, tida como histórica no âmbito da governação da Internet, são formalizados vários princípios: a gestão da Internet deve caber a uma entidade privada sem fins lucrativos, seguindo o modelo “bottom up”, a estrutura multistakeholder, aberta, transparente e independente. Este conjunto de prerrogativas foi deixado de forma explícita e indubitável à ICANN.

Hoje a ICANN afirma-se como uma instituição virada para o futuro e capaz de abraçar os desafios formalizados no AoC, nela estando representadas entidades públicas e privadas, governos e agências governamentais, empresas, comunidade técnica da Internet, fornecedores de serviços de Internet, registrars, registries, registrants, e a própria sociedade civil.

A ICANN assenta pois num modelo de governação global e aberta em rede que procura um equilíbrio entre os vários interesses para a gestão de diversos aspectos técnicos ligados à gestão da Internet.

Em termos de estrutura orgânica, e numa perspectiva macro, a ICANN está organizada da seguinte forma: o Board e o seu Presidente, diversas organizações de suporte (SO Supporting Organizations) e a estrutura operacional dirigida por um CEO. O Board tem os seus elementos eleitos por regiões geográficas e com base em mandatos com duração de um, dois e três anos com a finalidade de assegurar a maior representatividade e diversidade possível. As regiões geográficas são: África, América do Norte, América latina e Caraíbas, Ásia e Europa.

Se bem que se reconheça que muitos dos aspectos da Internet são do interesse público, o papel dos governos é tratado pela ICANN de um modo particular e inovador, com todos os aspectos polémicos a isso associados. Há um órgão de aconselhamento, o GAC (Government Advisory Committee) que prepara as linhas de orientação e os pareceres que são levados em consideração pelo Board no seu processo de tomada de decisão. Estes pareceres são elaborados por iniciativa própria ou a pedido do Presidente do ICANN. Refira-se que no AoC foi claramente reforçado o papel do GAC no processo decisional, não só a nível politico e estratégico como também na própria coordenação técnica do DNS.

Relativamente às organizações de suporte destacamos: o ccNSO (Country Code Name Supporting Organization), o GNSO (Global Names Supporting Organization), o ASO (Address Supporting Organziation) e a At-Large. At-Large é a designação atribuída àqueles que procuram representar os utilizadores individuais da Internet à escala global e que procuram dar o seu contributo na formulação das linhas políticas da ICANN.

A agenda do ICANN, materializada com as contribuições das suas diferentes organizações de suporte, centra-se neste momento na segurança e estabilidade da Internet DNSSEC e eCrime -, no lançamento dos novos gTLD’s; nos IDN’s para os ccTLD’s e gTLD’s; na transição do IPv4 para o IPv6 e nas questões relativas ao sistema

WHOIS.

Como se disse, a actuação da ICANN tem sido diversa embora sempre orientada em linhas de intervenção mais fortes, das quais destacamos: internacionalização da gestão e operação técnica da Internet, equidade de representação das várias zonas

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geográficas e a segurança e estabilidade da infra-estrutura central da Internet.

5. Os desafios globais

Os anos de 1995 a 2000 vieram a confirmar a relevância da Internet como instrumento de desenvolvimento. Também houve a percepção de que havia muitos assuntos a discutir para além dos aspectos técnicos globais que o ICANN tinha começado a tratar e muitos desafios para um mundo que se estava a tornar cada vez mais global.

A WSIS World Summit on the Information Society é uma iniciativa das Nações Unidas, organizada em torno de duas conferências que tiveram lugar em 2003 (Genebra) e 2005 (Tunis) com o objectivo central de ultrapassar o fosso digital entre países ricos e países pobres, e ver como a sociedade da informação pode ser um instrumento central de desenvolvimento, melhoria da qualidade de vida e desenvolvimento sustentável.

A Declaração de Princípios de Genebra e o Plano de Acção (site ITU) foram os primeiros documentos que permitiram identificar as linhas mestras que a comunidade mundial identificou como relevantes. Os documentos que vieram a ser aprovados em Tunis, O Compromisso de Tunis e, em especial, A Agenda de Tunis para a Sociedade da Informação, vieram definir uma série de objectivos e caminhos para os atingir. Não é possível, no contexto deste documento, descrever a diversidade e abrangência dos objectivos identificados, até porque face à natureza e diversidade cultural das comunidades envolvidas, alguns deles acabam por ser mais declarações de boas intenções do que medidas concretas que possam ser acompanhadas à escala global.

Queremos salientar, todavia, que há um reconhecimento geral de que se entrou na era da Sociedade da Informação e que este facto traz oportunidades enormes, em especial para os países em desenvolvimento. Mas traz para primeiro plano uma série de desafios já antigos que é preciso ultrapassar, em especial os relacionados com as infraestruturas de comunicações e com a formação das pessoas, para contrariar o fosso digital. É dada especial ênfase ao esforço que deve ser feito para integrar grupos que tradicionalmente tem sido excluídos quando há rupturas de paradigma como as mulheres, os idosos, os migrantes, os portadores de deficiência, até porque há a convicção que estes grupos podem ser os que mais podem beneficiar com a Sociedade da Informação.

Nos Princípios Chave da Agenda de Tunis podemos salientar o seguinte: aposta num modelo multi-stakeholder para o desenvolvimento da Sociedade da Informação, pelo reconhecimento do papel crucial do sector privado na disponibilização das infra- estruturas, no papel dos media numa sociedade baseada no conhecimento, na necessidade de uma maior cooperação entre entidades públicas e privadas para defrontar o facto de os problemas de segurança serem globais e críticos para que os utilizadores tenham confiança no uso da Internet e nas tecnologias da informação.

Este modelo multi-stakeholder preconiza uma colaboração, intervenção e partilha de responsabilidades entre governos, o sector privado nas suas várias dimensões, a sociedade civil onde as ONG tem um papel chave e os cidadãos.

O acesso à informação e ao conhecimento, a capacitação das pessoas para a sociedade da informação, a criação de ambientes seguros e confiáveis, a protecção dos direitos de

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propriedade intelectual, a necessidade de investir da investigação e desenvolvimento, a possibilidade de uso das TIC em novos sectores como o da saúde mesmo praticada à distância, a preservação da multi-culturalidade da Internet, o seu uso para a preservação do património cultural, são alguns dos muitos exemplos que são referidos na Agenda de Tunis como podendo contribuir para o desenvolvimento.

Após 2005 a Agenda de Tunis tem sido acompanhada, numa base anual através um encontro, o IGF6 (Internet Governance Forum) que, até agora, teve reuniões anuais em Atenas (2006), Rio de Janeiro (2007), Hyderabad (2008) e Sharm-el-Sheik (2009) e Vilnius (2010). O IGF, cujo mandato acaba já este ano, poderá prosseguir a sua agenda até 2015, esta será uma decisão da UN General Assembly aguardada para o final de 2010. No entanto, cumpre destacar os trabalhos e reflexões já realizados no âmbito, por exemplo, do cibercrime, da privacidade, da liberdade de expressão, dos recursos mais críticos da Internet. Um outro aspecto crucial, para muitas regiões do globo, é o do acesso à sociedade da informação. Quer pelo custo ou pela escassez de infraestruturas, nota-se que há milhões de pessoas no Mundo que estão privadas do acesso à sociedade da informação. Assim uma das linhas de maior esforço, mas também das mais complicadas de resolver é o do acesso à infraestrutura de comunicações, que está intimamente ligado aos passos seguintes que são o acesso aos equipamentos (computadores ou dispositivos análogos) e o da literacia para o mundo digital.

A nível da Europa também existe, de igual modo, uma crescente atenção para os problemas na área da governação da Internet. A Europa será, quiçá, a região do globo onde há uma maior estruturação do pensamento nesta área. Foi criado um fórum de discussão destes temas, o EuroDIG7 (European Dialogue on Internet Governance), onde se estudam e discutem os desafios presentes e futuros que a Internet está a trazer para a agenda da sociedade europeia.

6. Alguns aspectos legais da rede global

A constatação do poder e do crescimento da Internet levou à suposta necessidade da sua governação. Quando se fala de governação, a Lei é de imediato chamada à colação, seguem-se os órgãos de polícia criminal e, em última instância, os Tribunais. Nesta matéria identificam-se duas posições opostas, por um lado a que defende que a governação da Internet é um imperativo de segurança, sendo que esta só existe se houver regulação e se houver controlo sancionatório. Por outro lado, a posição que defende que a governação é contranatura assumindo-se mesmo, na vertente mais radical, como um meio de censura à própria Internet. Entre nós a posição dominante é hoje a da governação mínima que concilie a liberdade de cada um com a necessária privacidade, segurança e respeito pelos direitos, liberdades e garantias de cada um e de terceiros.

A protecção dos dados pessoais, a defesa dos direitos de propriedade intelectual e direitos conexos, a luta contra a cibercriminalidade, a protecção dos menores a quem é reconhecida especial debilidade no âmbito da utilização diária dos recursos da Rede, em particular as redes sociais, os direitos dos consumidores em geral, os eventuais

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http://www.intgovforum.org/cms/

http://www.eurodig.org

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constrangimentos no acesso comercial aos serviços Internet e a respectiva regulação pelas autoridades competentes em cada país, são algumas das pedras de toque quando se aborda os aspectos legais da Internet.

No domínio da Internet as fronteiras esbatem-se ou simplesmente desaparecem, e nem sempre o direito internacional tem respostas para as questões que se levantam. Acresce o facto de a nível nacional não haver lei específica ou havendo-a, poderem levantar-se dúvidas sobre a sua aplicação.

Ao nível da protecção dos dados pessoais8, a Comissão Nacional de Protecção de Dados, enquanto entidade nacional de controlo dos dados pessoais, tem lançado várias campanhas de sensibilização tendo em vista alertar o público em geral para o perigo da circulação de dados pessoais na Internet. O regime jurídico aplicável nesta sede limita a possibilidade de tratamento de dados a duas situações concretas: as que resultam da lei e aquelas que advêm do consentimento livre, informado e expresso de cada um. Fora destas situações ficamos num terreno lodoso que merece e se espera ter tutela jurídica. Ora, aqui a indefinição surge quando, por exemplo, o sistema jurídico aplicável

éo de um país onde pode simplesmente não haver lei que regule o tratamento de dados pessoais, veja-se o caso dos Estados Unidos da América onde prevalece um puro modelo de mera “accountability” em detrimento da protecção dos dados pessoais, como a temos hoje em países como Portugal e como a Alemanha.

Em 1991, através da Lei n.º 109/91, de 17 de Agosto, foi publicada a Lei da Criminalidade Informática (LCI), esta lei inspirou-se na Recomendação 89/9 do Conselho Europeu, tendo adoptado a lista facultativa dos tipos criminais constantes daquela Recomendação, a título de exemplo: falsidade informática; dano relativo a dados ou programas informáticos; sabotagem informática; acesso ilegítimo; intercepção ilegítima e reprodução ilegítima de programa protegido. As molduras penais dos crimes de base iam entre pena de multa a pena de prisão até três anos, com excepção dos casos em que os crimes eram qualificados podendo a pena ir até 10 anos (na sabotagem informática). A Lei da Criminalidade Informática previa ainda a responsabilidade criminal das pessoas colectivas que pratiquem estes crimes (e diversas penas acessórias), isto é, pelos crimes respondem os administradores das empresas, mas também as próprias empresas. Mas a lei nacional não se ficava por aqui e o Código Penal fixava o regime jurídico da burla informática, onde, diga-se, ao contrário da LCI não há a responsabilidade da pessoa colectiva.

Entretanto, a 23 de Novembro de 2001 Portugal aderiu à Convenção do Cibercrime, a qual tinha como principal meta a harmonização das legislações nacionais dos Estados- membros da União Europeia em matéria de criminalidade cometida por estes meios, bem como facilitar a cooperação internacional e as investigações de natureza criminal.

A 15 de Setembro de 2009 foi publicada a Lei nº 109/2009, também denominada como Lei do Cibercrime. Esta nova Lei estabelece as disposições penais materiais e processuais, bem como as disposições relativas à cooperação internacional em matéria penal, relativas ao domínio do cibercrime e da recolha de prova em suporte electrónico,

8A Lei nº. 67/98,de 26 de Outubro – Lei de Protecção de dados pessoais – define os dados pessoais como: qualquer informação, de qualquer natureza e independentemente do respectivo suporte, incluindo som e imagem, relativa a uma pessoa singular identificada ou identificável («titular dos dados»); é considerada identificável a pessoa que possa ser identificada directa ou indirectamente, designadamente por referência a um número de identificação ou a um ou mais elementos específicos da sua identidade física, fisiológica, psíquica, económica, cultural ou social;

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transpondo para a ordem jurídica interna a Decisão Quadro n.º 2005/222/JAI, do Conselho, de 24 de Fevereiro, relativa a ataques contra sistemas de informação, e adaptando o direito interno à Convenção sobre Cibercrime do Conselho da Europa. É pois revogada a Lei da Criminalidade Informática que já tinha atingido a maioridade. Simultaneamente com a publicação da Lei do Cibercrime, foram no mesmo dia aprovadas e ratificadas a Convenção sobre o Cibercrime (passados oito anos) e o Protocolo Adicional à Convenção sobre o Cibercrime relativo à Incriminação de Actos de Natureza Racista e Xenófoba Praticados através de Sistemas Informáticos, adoptado em Estrasburgo em 28 de Janeiro de 2003. Esta lei concretiza aquilo a que Portugal se obrigou no âmbito da Convenção do Cibercrime. Trata-se de um instrumento de cooperação internacional, já que se prevê que mais de 40 países possam adoptar um regime legal similar no domínio do cibercrime e da recolha de prova em suporte electrónico, em matéria relativa a ataques contra sistemas de informação.

O que esta lei trás de novo é, nomeadamente, a tipificação de novos crimes que visam fazer face a novos paradigmas como a Internet, por exemplo, o crime de “phishing”; o facto da mera propagação de vírus informáticos passar a ser punida mesmo sem haver danos informáticos; a possibilidade de o tribunal decretar a perda a favor do Estado dos objectos, equipamentos ou dispositivos que tiverem servido para a prática dos crimes nela tipificados. Trata-se de uma lei aplicável aos crimes informáticos, àqueles que sejam cometidos electronicamente e, ainda, aos ilícitos cuja prova esteja guardada em suporte digital. Mas, reforçando tudo aquilo que já tivemos oportunidade de expor acima, esta lei vem de forma expressa e inequívoca salientar e formalizar o papel da cooperação internacional. Fá-lo ao longo de seis artigos onde são estabelecidas as formas e meios com as quais as autoridades nacionais competentes cooperam com as suas congéneres internacionais. Mais ainda, prevê-se a preservação e revelação expedita de dados informáticos para efeitos de investigação criminal, fixando-se prazos rigorosos para a salvaguarda dos mesmos. Neste campo a cooperação vai assim para além dos operadores da justiça abrangendo os prestadores de serviços de comunicações electrónicas. Por fim, a título de regime geral aplicável prevê-se que em tudo o que não contrarie o disposto na Lei da Cibercriminalidade, aplicam-se aos crimes, medidas processuais e cooperação, as disposições do Código Penal, do Código do Processo Penal e da Lei n.º 144/99, de 31 de Agosto. Reforça-se por fim o facto do tratamento de dados pessoais, a que acima já fizemos menção, se dever regular pelos termos do disposto na Lei n.º 67/98, de 26 de Outubro.

Em suma, dizer que hoje o legislador está de costas voltadas para a Internet é fazer letra morta do quadro legal vigente. Resta a questão da morosidade na aplicação da justiça, essa sim continua a ser incontornável.

Não sendo possível aqui explorar exaustivamente todo o referido quadro legal, não podemos ainda deixar de fazer menção a algumas das disposições da Lei fundamental: a Constituição da Republica Portuguesa. Ao longo de todo o seu articulado encontramos disposições como o artigo 35.º e o artigo 37.º O n.º 6 do artigo 35.º dispõe que “A todos é garantido livre acesso às redes informáticas de uso público (…)”, o artigo 37.º estabelece na sua epígrafe a liberdade de expressão e informação, e concretiza na sua redacção que todos têm o direito de exprimir e divulgar livremente o seu pensamento, por qualquer meio, sem impedimentos nem discriminações. Sabendo nós que, como regra, as normas legais não podem prevalecer sobre os princípios fundamentais do Estado de Direito democrático protegidos pela Constituição, facilmente entendemos a

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dicotomia segurança/liberdade e a necessidade de balancear estes valores quando falamos em governação da Internet.

Já tivemos oportunidade de identificar o papel que determinadas entidades têm em matéria de governação da Internet, destacámos oportunamente a intervenção dos registries nacionais a quem cabe a responsabilidade pela gestão do ccTLD de cada país. Assim sendo, cumpre-nos fazer uma breve análise do que em Portugal se tem feito a este propósito.

De 1991 a 1996 o registo de nomes de domínio sob .PT baseava-se numa análise meramente técnica. Com a evolução do número de registos, surgem em 1996 as primeiras regras para registo de domínios sob .PT, ainda muito incipientes e adaptadas às necessidades da época, cuja principal preocupação era o combate ao cybersquating.

A Resolução do Conselho de Ministros n.º 69/97, de 5 de Maio, veio clarificar, na ordem jurídica portuguesa, os termos e abrangência da responsabilidade e papel da FCCN e remeteu para o Ministro da Ciência e da Tecnologia a competência para “dirimir todas as divergências que possam vir a existir entre a FCCN e os requerentes ou beneficiários dos domínios ou subdomínios Internet específicos de Portugal.”

Éentão criado o Conselho Consultivo do DNS de .PT, órgão com funções de consulta composto por entidades de reconhecido mérito na área da Internet, da propriedade intelectual e industrial e das telecomunicações e que são sempre chamados a propor e dar parecer sobre alterações ao regulamento aplicável. Este órgão, acaba por ser o exemplo do modelo hoje entendido como sendo a base de uma “boa” governação da Internet, já que tem uma composição multistakeholder onde estão representadas entidades como o INPI Instituto Nacional da Propriedade Industrial, a Associação Portuguesa para a Defesa do Consumidor DECO; a ANACOM Autoridade Nacional de Comunicações, a Direcção Geral do consumidor, a APREGI Associação de Prestadores de Registos de Domínios e Alojamento, assim como entidades de reconhecido mérito na área da Internet.

Com a consciencialização do impacto da Internet e do valor jurídico e económico dos nomes de domínio nos finais dos anos 90, a FCCN, enquanto Registry de .PT, publica um novo regulamento com o objectivo de facilitar e acomodar os registos sob .pt consoante a actividade e público alvo dos mesmos, sendo então criados os seguintes classificadores: .org.pt, .publ.pt, .gov.pt, .net.pt, .nome.pt, .int.pt, .edu.pt, .com.pt (este último sem restrições ao registo, flexibilizando assim o acesso ao registo de nomes de domínio, o que veio a verificar-se, tornando este classificador como a primeira escolha logo abaixo do registo directamente sob .PT).

Em 2003 são de novo revistas as regras de registo de nomes de domínio de .PT, destacando-se então a introdução de um sistema de arbitragem na resolução de litígios no âmbito dos nomes de domínio, a abolição de algumas proibições e a redução do preço de submissão e manutenção de domínios, medidas que favoreceram o aumento do número de registos sob o TLD .PT. Nova alteração em 2006, que acaba por consolidar um conjunto de princípios: A prossecução de uma política que visa evitar o registo especulativo e abusivo de nomes de domínios sob .PT, conforme com as melhores práticas, incluindo as recomendações da Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI); A utilização de uma política de resolução extrajudicial de litígios – processo de arbitragem; A possibilidade de registo de nomes de domínios/subdomínios com caracteres especiais do alfabeto português; A correcta configuração e operação do

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JANUS.NET, e-journal of International Relations

ISSN: 1647-7251

Vol. 1, n.º 1 (Outono 2010), pp. 76-86

A governação da Internet

Pedro Veiga e Marta Dias

servidor primário da zona DNS PT, e a assunção prioritária da segurança nessa operação com a implementação das extensões DNSSEC. Desde o dia 1 de Julho de 2010, encontra-se em vigor o novo regulamento de registo de domínios de .pt marcado pela maior flexibilização dos subdomínios .com.pt e .org.pt, mais segurança para o .pt e adopção formal do centro de arbitragem ARBITRARE9 para a resolução de conflitos nessa área.

Notas Finais

A promoção da sociedade digital é uma das bandeiras da Estratégia Europa 2020, lançada no passado mês de Março pela Comissão Europeia (CE). Nesse seguimento, foi publicada pela CE, no passado dia 19 de Maio, a Agenda Digital que no seu todo prevê 100 medidas, com um calendário de aplicação que vai até 2015. A Agenda está dividida em sete domínios prioritários que passam pela criação de um mercado único digital, maior interoperabilidade, reforço da confiança na Internet e da sua segurança e o acesso muito mais rápido à Internet para todos os cidadãos.

O papel crescente que a Internet tem na nossa sociedade tem levado a um maior envolvimento dos governos nos diversos aspectos desta rede. Se alguns governos se preocupam sobre o impacto económico e social da rede, do seu uso como instrumento de desenvolvimento e democraticidade, outros procuram controlar a rede para evitar que esta seja usado para fins políticos contrários aos seus interesses. É neste Mundo de enorme diversidade que o problema da Governação da Internet se move, procurando seguir abordagens inovadoras e que garantam um crescente uso da rede com segurança, estabilidade e abrangência universal.

Lista de Acrónimos

ICANN – Internet Corporation for Assigned Names and Numbers

gTLD – Generic Top-Level Domain

ccTLD – Country Code Top-Level Domain

ITU – International Telecommunications Union

ISOC – Internet Society

IGF – Internet Governance Forum

EuroDIG – European Dialogue on Internet Governance

IPv4 - Internet Protocol Version 4

IPv6 – Internet Protocol Version 6

9www.arbitrare.pt. O ARBITRARE é um centro de arbitragem de carácter institucionalizado, com competência para resolver litígios sobre propriedade industrial, firmas e denominações e nomes de domínios de .pt.

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