OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 1, n.º 1 (Outono 2010), pp. 65-75

OS GRANDES GRUPOS DE INFORMAÇÃO

E DE COMUNICAÇÃO NO MUNDO

José Rebelo

Doutorado e agregado em Sociologia. Professor do ISCTE-Instituto Universitário de Lisboa. Enviado especial e correspondente permanente em Portugal do jornal «Le Monde», de 1975 a 1991. Comendador da Ordem da Liberdade

Resumo

Aborda-se a lógica de funcionamento dos grandes grupos mundiais de informação e de comunicação baseada em estratégias de verticalização das actividades, abrangendo os diversos segmentos do campo dos media - jornais e revistas, televisão e rádio – e alargando-se às novas tecnologias, nomeadamente telecomunicações e serviços de acesso à Internet. Verticalizados, esses grupos dispõem-se em rede através da celebração de acordos de associação ou fusão, do aprofundamento de relações comerciais, da prática de conexões inter-pessoais. Os respectivos capitais tendem a dispersar-se e a sua repartição a alterar-se constantemente, sobretudo pelo envolvimento de fundos de pensões que não descuram a ocasião de alienar património sempre que as mais valias, assim conseguidas, o justifique.

Directamente, pela força dos seus próprios produtos - os “produtos globais” que inundam o mercado mundial - e indirectamente, através da influência que exercem em seu redor, os grandes grupos de informação e comunicação constituem factor decisivo para a aceleração de processos de naturalização, a fixação de estereótipos e o agendamento de temas que irão cruzar o espaço público. É certo que o advento e a massificação de novas tecnologias ameaça, seriamente, a homogeneização, a uniformização mediática prosseguida pelos grandes grupos. Mas subsistem questões que apelam para a moderação na análise desta questão. Em, primeiro lugar, o poder que as instâncias políticas mantêm, sobretudo nos países não democráticos, de interromper a circulação de conteúdos. Em segundo lugar, a ofensiva desencadeada pelos grandes grupos de informação e de comunicação no sentido de ocuparem, eles próprios, o espaço on-line. Em terceiro lugar o excesso de informação circulante e, logo, a dificuldade ligada à necessidade de selecção e de verificação.

Palavras-chave

Rede; Transnacionalização; Naturalização; Uniformização; Digitalização

Como citar este artigo

Rebelo, José (2010) "Os grandes Grupos de Informação e de Comunicação no Mundo". JANUS.NET e-journal of International Relations, N.º 1, Outono 2010. Consultado [online] em

datadaúltimaconsulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol1_n1_art5

Artigo recebido em Setembro de 2010 e aceite para publicação em Setembro de 2010

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Os grandes Grupos de Informação e de Comunicação no Mundo

José Rebelo

OS GRANDES GRUPOS DE INFORMAÇÃO

E DE COMUNICAÇÃO NO MUNDO

José Rebelo

A globalização económica, financeira e política, que marcou o virar de século, teve uma dupla incidência, ao nível dos consumos e ao nível do funcionamento do aparelho produtivo. Ao nível dos consumos, padronizando, homogeneizando vontades e estilos de vida: da grande cidade à minúscula aldeia. Ao nível do aparelho produtivo, deslocalizando as unidades fabris: tudo poderia ser produzido e tudo poderia ser comercializado em qualquer ponto do globo.

Importava, para o eficaz funcionamento do sistema, superar os constrangimentos associados à existência do Estado-Nação. Importava, por outro lado, fazer rodar uma nova estrutura empresarial baseada na concentração da instância de decisão e na dispersão geográfica de antenas ou filiais dessa instância concentrada. Gradualmente, verificou-se a “deslocação do poder e tomada de decisões para locais cada vez mais distantes daqueles onde os efeitos dessas decisões se fazem sentir” (Klein, 2002: 492).

Os media iriam constituir factores decisivos para a imposição/aceitação dessa nova ordem. Para tal, deveriam, eles próprios, adaptar-se aos novos contextos. Adaptaram- se, através de lógicas de concentração segundo etapas bem diferenciadas. Em primeiro lugar, pela formação de grupos multimédia essencialmente nacionais. Depois, pela transnacionalização dos capitais investidos. Diluíram-se, assim, as fronteiras. Distanciaram-se os lugares do trabalho e da decisão. Finalmente, pela transsectorização dos capitais transnacionalizados. Ao lado, ou melhor, em relação de simbiose com os grupos multimédia, surgiram sociedades prosseguindo os mais variados interesses: do turismo à especulação imobiliária, da comercialização de produtos alimentares à indústria de armamento, da comercialização de dados à gestão financeira (Rebelo, 2002: 162). Nessa malha, aparentemente desmaterializada, caberia aos media a tarefa de contribuir para a ampliação da procura1. Mas caber-lhes-ia, também, contribuir para a formação de correntes de opinião, geradoras de novas oportunidades negociais. E caber-lhes-ia, ainda, servir de moeda de troca quando as estratégias empresariais estivessem pendentes de uma decisão política.

1“O papel da TF1, consiste em ajudar a Coca-Cola a vender o seu produto” confessava Patrick Le Lay, antigo presidente daquele canal de televisão francês, citado pela Agência noticiosa France Presse, num serviço datado de 9 de Julho de 2004. E o mesmo dirigente acrescentava: “Mas, para que uma mensagem seja captada, é preciso que o cérebro do telespectador esteja disponível. As nossas emissões têm por vocação torná-lo disponível, divertindo-o, repousando-o. O que vendemos à Coca-Cola é o tempo do cérebro humano disponível”.

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Estratégias

1. Gestão vertical

Na actualidade, os grandes grupos multimédia privilegiam uma gestão vertical, estando presentes e, frequentemente, em posição hegemónica, nos mais diversos sectores ligados à informação e à comunicação. O grupo francês Bouygues, por exemplo, detém a maioria do capital do primeiro canal, em audiência, da televisão generalista francesa, a TF1. Em 1989, abriu um canal de notícias, a LCI. Seis anos mais tarde adquiriu uma importante empresa produtora de programas televisivos de divertimento, a Glen. Em 1996 lançou a TMC vocacionada para a aquisição e exploração de direitos de transmissão de programas audiovisuais. Quatro anos depois, constituiu, com a Miramax, filial da Disney, um grupo de interesses económicos que lhe permitiu entrar no negócio da distribuição de produtos cinematográficos. Em 2003, celebrou um acordo com a Warner reforçando, assim, a sua posição neste último sector. O grupo Bertelsmann, de capitais maioritariamente alemães, lidera o mercado europeu da comunicação. Através da multiplicação de filiais assegura posições importantes no domínio da imprensa (Gruner & Jahr), da edição de livros (Randon House), da indústria gráfica (Arvato), da discografia (Gabszewicz e Sonnac, 2006: 57-61).

2. Organização em rede

A prática de uma economia vertical, susceptível de garantir a omnipresença do grupo no campo dos media, implica uma organização em rede, concretizada na detenção de partes do capital noutras empresas de media, na criação de sociedades comuns, no reforço de relações comerciais, na conexão entre pessoas. Daí que a ideia de concorrência, tal como tradicionalmente é entendida, se afaste cada vez mais daquilo que, efectivamente se observa neste domínio. Acresce, o custo cada vez maior da visibilidade inerente à criação de um novo jornal ou revista, de uma nova estação de rádio ou de um novo canal de televisão. Custo incomportável para uma iniciativa independente. Quando o grupo Bertelsmann lançou, em França, a revista Télé Deux Semaines, um terço da publicidade do lançamento foi feito no canal M6, propriedade do grupo. Os restantes dois terços passaram na TF1, do grupo Bouygues, com o qual Bertelsmann tem parcerias

Prevalece, pois, uma espécie de entendimento funcional entre grandes.

Os grupos Bouygues, Berlusconi e Murdoch associaram-se para fundar um canal de televisão, a TV Breizh, que difunde para a região da Bretanha. Dassault e Lagardère associaram-se no âmbito de uma empresa destinada à publicação de jornais gratuitos (Marseille Plus, Lyon Plus, Lille Plus). Lagardère e Socpresse (filial de Dassault) editam, em conjunto, a revista Version Femina com uma tiragem superior a três milhões de exemplares. Estas mesmas empresas criaram um grupo de interesses económicos cujo objectivo consiste em adquirir, em conjunto, todo o papel necessário para as publicações que editam, baixando, deste modo, o respectivo preço. Associaram-se, ainda, para dar origem a uma empresa vocacionada para a angariação e colocação de publicidade ao nível local. Bouygues e Bertelsman subscrevem uma larga maioria do capital social da TPS, empresa de televisão digital, com mais de 200 canais e um milhão e seiscentos mil assinantes.

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Um programa de análise política muito conhecido em França, intitulado «Le Grand Jury», é animado por três jornalistas: um do jornal diário Le Figaro que pertence ao grupo Dassault; outro da LCI, canal de televisão do grupo Bouygues; outro, ainda, da RTL, cadeia de estações de rádio propriedade de Bertelsmann. Esse programa passa em directo na RTL e na LCI e o essencial do respectivo conteúdo é publicado, no dia seguinte, no Le Figaro.

Quanto à conexão entre pessoas. Bernard Arnault, “o homem mais rico de França” como proclamam as revistas de sociedade, é CEO do grupo LVMH, iniciais das três grandes empresas que se reuniram para dar origem a um grupo gigante no sector da comercialização de artigos de luxo: Louis Vuitton, Moët e Hennessy. No palmarés do grupo existem afamadas marcas de bebidas, de roupa e de produtos de beleza como Moët & Chandon, Veuve Cliquot, Dom Pérignon, Louis Vuitton, Givenchy, Kenzo, Christian Dior, Guerlain. Mas o grupo LVMH é, igualmente, proprietário do jornal diário de informação económica, Les Echos, e de um vasto leque de publicações periódicas, da economia à cultura: La Tribune, Investir, Défis, Connaissance des Arts e Le Monde de la Musique. Ora, Bernard Arnault é membro do Conselho Fiscal do grupo Lagardère. Por sua vez, Arnaud Lagardère, é membro do Conselho de Administração de LVMH.

3. Transnacionalização

Assiste-se, à escala planetária, a uma autêntica partilha de zonas de influência, onde cada um dos principais grupos multimédia beneficia de posições hegemónicas.

A News Corporation, de Rupert Murdoch, líder da edição de jornais diários em língua inglesa, dissemina os seus produtos pelo Reino Unido e pelos Estados Unidos da América, assim como pelos continentes asiático e australiano. O grupo Vivendi, proprietário a 100% do Canal Plus, canal francês codificado com mais de doze milhões de assinantes, é detentor de 53% do capital social da principal empresa marroquina de telecomunicações, a Maroc Telecom, e, através desta, controla o capital de empresas similares no Burkina Faso, no Gabão, na Mauritânia, no Mali.

Associado ao trust norte-americano AOL, e ao banco Itaú, do Brasil, o grupo venezuelano Cisneros, um dos mais importantes de toda a América Latina, constituiu, em 1999, a AOL Latin América da qual viriam a emergir a AOL Brasil, AOL México, AOL Argentina, AOL Porto Rico. A iniciativa não correspondeu, no entanto, aos objectivos esperados pelo que, alguns anos mais tarde, Cisneros e associados deram-na por terminada, vendendo os respectivos bens patrimoniais a preços simbólicos. Em 2008, a AOL Latin América iniciou uma nova tentativa de implantação no continente sul americano, agora na Argentina, no Chile, na Colômbia e na Venezuela, propondo uma série de serviços ligados à Internet. Mas as investidas do grupo Cisneros, no sector da informação e da comunicação, não ficam por aqui. Associado à General Motors, criou a DIRECTV Latin América que agrupa 150 cadeias de televisão implantadas em 28 países, com uma gama de serviços que vai da telefonia ao comércio electrónico e à transmissão de dados (Rebelo, 2009: 181).

A RTL, do grupo Bertelsmann, tem participação, quase sempre maioritária, no capital social de 23 canais de televisão generalista e temática, na Alemanha, Bélgica, Luxemburgo e Hungria. Participa, igualmente, no capital de 24 estações de rádio, distribuídas por nove países europeus. O grupo Lagardère, através da sua filial

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Hachette Filipacchi Médias, é o primeiro editor mundial de newsmagazines, com 263 revistas em 39 países. Enfim, mais de metade dos 113.000 assalariados do grupo de comunicação Bouygues, trabalha fora de França.

4. Transsectorização

Uma malha fluida, difusa, de interesses imbricados, onde empresas multimédia se entrelaçam, se combinam, de forma explícita ou implícita, com outras de outra natureza, levaria o filósofo Michel Serres a reconhecer, num texto que publicou em 1988: “Constato a existência de um poder como nunca se viu em nenhuma outra sociedade […]. Mas, não sendo esse poder de natureza tipicamente material, não consigo imaginar que contrapoder se poderá levantar contra ele” (in Lefebvre, 1989).

E os exemplos multiplicam-se.

O grupo Lagardère possui 33% do capital da Aérospatiale-Matra, quinta potência mundial na indústria militar e na aeronáutica. O grupo Bouygues, investe no sector da construção civil e obras públicas assim como nas redes de captação e distribuição de água potável. No Conselho de Administração da News Corporation, de Rupert Murdoch, figuram representantes de empresas como Boeing, Nike, Apple, British Airways. O grupo Cisneros é parte interessada em empresas como Procafe (indústria de torrefacção), Pizza Hut (restauração), Spalding (equipamentos desportivos), Panamco (bebidas alcoólicas), e está na origem da Gengold, segunda companhia de extracção de ouro no mundo. Um dos principais canais de televisão da Rússia, a NTV, pertence à Gazprom, empresa proprietária de quintas, de fábricas de produtos agro-alimentares, de centros de saúde, de hotéis de luxo, de clubes privados e de bancos. Particularmente activa na indústria mineira e das águas medicinais, a Gazprom controla cerca de um quinto das reservas mundiais de gás natural e assegura um quarto da produção do planeta. A Fininvest, de Sílvio Berlusconi, tem ligações a empresas de capital financeiro italianas, britânicas e sauditas. Na trajectória profissional de alguns dos principais accionistas do grupo Bertelsmann, como Albert Frère, ocupam lugar de destaque responsabilidades nos sectores da banca e do petróleo (Rebelo, 2009: 180). Consultando a página Internet de Vivendi, verifica-se que, no capital social do grupo, aparecem, a par de instituições financeiras francesas como o Crédit Agricole, a Banque Nationale de Paris/Paribas e a Société Générale, subscritores de outros países e regiões: Emirates International Investment Company, Abu Dhabi Investment Authority, Bank of America, Crédit Suisse, Caisse de Dépôts et de Gestion de Marrocos.

Em Manufacturing Consent. The Political Economy of the Mass Media, Noam Chomsky e Edward Herman analisaram a composição dos conselhos de administração dos dez principais grupos de comunicação nos Estados Unidos: Dow Jones, Washington Post, New York Times, Time, CBS, Times-Mirror, Capital Cities, General Electric, Gannett, Knight-Ridder. E concluíram: 41,1% dos administradores eram directores executivos de multinacionais; 8,4% banqueiros; 13,7% antigos industriais e capitalistas reformados; 8,4% juristas; 4,2% consultores de empresas privadas. O dobrar do milénio, veio confirmar, senão acentuar, tal preponderância.

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5. Pulverização do capital

Os grandes grupos multimédia são geralmente identificados pelo nome do seu fundador ou principal accionista. É assim que falamos do grupo Dassault, do grupo Lagardère, do grupo Bouygues, do grupo Murdoch, do grupo Bertelsmann, do grupo Berlusconi, etc. Trata-se de antonomásias que, no entanto, não nos devem ocultar um aspecto fundamental: é que, grande parte do capital desses grupos está pulverizado, acabando por não se conhecer, com exactidão, os seus autênticos titulares. Em primeiro lugar, pelo desenvolvimento das estratégias de transsectorização às quais já fizemos referência. Em segundo lugar, pela importância crescente que fundos de investimento como Cinven, Carlyle e Apax-partners, têm vindo a assumir no capital dos referidos grupos. Segundo um estudo publicado na edição de 1 de Março de 2005 do jornal francês Les Echos, fundos de investimento controlam 22% do capital de Bouygues, 37% do capital de Lagardère e 45% do capital de Vivendi Universal. O objectivo desses fundos consiste em revender rapidamente o capital adquirido realizando, em cada operação, elevadas mais valias. Daí que os capitais circulem incessantemente e quase que imperceptivelmente. Até porque, e eis a terceira razão que explica a pulverização do capital dos grupos multimédia de dimensão planetária, estes estão cotados na Bolsa. Ora, é suposto que uma empresa cotada na Bolsa apresente benefícios e atinja níveis de rentabilidade comparáveis, no mínimo, aos de outros sectores de actividade. A não ser assim, os fundos de investimento e outros detentores de capital transaccionam, de imediato, as suas acções precipitando a respectiva desvalorização e, por conseguinte, a descapitalização das respectivas empresas.

E tudo concorre para que os media sejam considerados como uma mera mercadoria, sujeita a um vai-e-vem que é fruto de interesses comerciais, para além de outros bem mais obscuros.

Uniformização dos conteúdos / Naturalização do real

O quotidiano é feito de um eterno trilhar, em ziguezague, por entre problemas. Desemprego. Saúde. Habitação. Problemas que são e não são nossos problemas. São nossos problemas na medida em que nos afectam directamente, em que, deles, somos vítimas. Não são nossos problemas, na medida em que a sua génese nos é exterior. Trata-se de problemas que conheceram um processo de naturalização. E é, justamente, esse processo de naturalização que nos faz perder a ideia de exterioridade. Que faz com que não tenhamos consciência plena da construção de um itinerário que, se não nos é imposto, nos é insinuado. Que faz com que se estabeleça uma espécie de cumplicidade entre dominante e dominado, através da qual o dominado, negligenciando a sua condição de dominado, ou nem sequer dela se apercebendo, reconhece, e ao reconhecer legitima, fundamenta o estatuto do dominante. Ou, citando Bourdieu, que faz com que o dominado “se esqueça de si e se ignore, submetendo-se [ao dominante] da mesma maneira que contribui, ao reconhecê-lo, para fundá-lo” (1982: 119). Naturalização pela qual se fabricam adesões. Se forjam consensos. Não os “consensos comuns” de inspiração Kantiana mas os que ocultam estratégias que Gramsci designaria por “hegemónicas”.

Os grandes meios de comunicação social funcionaram, desde sempre, como motores desses processos de naturalização. Inscrevem-se, a montante, num “espaço social”, no entendimento que Pierre Bourdieu dá ao conceito (1979), que é o lugar de tudo aquilo

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que nos distingue, o lugar onde se manifestam contradições e lutas sociais. Mergulhando nesse “espaço social”, onde vão buscar personagens e objectos que se propõem mediatizar, os órgãos de comunicação social funcionam como transportadores/aceleradores de hierarquias ou de normas que são as hierarquias ou as normas deste ou daquele grupo social e respectivos interesses.

Valem-se, para o conseguir, de três dispositivos: o dispositivo de institucionalização, o dispositivo de explicação e o dispositivo de repetição.

Dispositivo de institucionalização, consubstanciado nas operações de classificação, de ordenação e de tipificação das experiências que perdem, assim, a sua originalidade, a sua singularidade para se diluírem no interior de paradigmas exteriores aos sujeitos.

Dispositivo de explicação que inclui uma dimensão de racionalidade e uma dimensão de racionalização. Enquanto esforço racional de interpretação, sublinha Esquenazi (2002: 78), a explicação propõe argumentos passíveis de serem expostos e, portanto, refutáveis. Enquanto tentativa racionalizante, ela está ligada a um modo de vida particular e representa uma visão normativa, uma tentativa de imposição de uma ordem social específica.

Dispositivo de repetição já que, insaciavelmente repetidos nos media, “numa espécie de encantação ritual, forma esconjuratória, litania jornalística, refrão retórico” (Derrida, 2004: 134) os acontecimentos impõem-se-nos. Inscrevem-se no nosso discurso ordinário. Incorporam o nosso exército de pré-conceitos (Gadamer, 1995: 110). “Pela repetição”, assinala Moscovici, “a ideia dissocia-se do seu autor; transforma-se numa evidência independentemente do tempo, do lugar e da pessoa; deixa de ser a expressão de quem fala e passa a ser a expressão da coisa de que se fala” (1981: 198- 199). É por isso que a evocação do ”11 de Setembro” remete automaticamente para o acto terrorista contra as torres gémeas de Nova Iorque. Mas foi também a 11 de Setembro que Salvador Allende caiu, vítima de balas assassinas. O “11 de Setembro”, de Nova Iorque, foi objecto de um processo de datação. O “11 de Setembro”, de Santiago do Chile, não foi.

Estrategicamente organizados segundo um modelo de gestão vertical; dispostos em rede, através de alianças, de protocolos de colaboração, de intercâmbios pessoais; demarcando zonas de implantação à escala planetária; inscrevendo-se em conjuntos cada vez mais alargados e mais complexos de empresas ou grupos com os mais diversificados objectivos comerciais, económicos e financeiros; anonimizando o seu capital: os grupos multimédia contribuem, assim, para o acelerar dos processos de naturalização, para a fixação de estereótipos, para o agendamento dos temas que irão cruzar o espaço público.

Contribuem pelo que dizem ou escrevem. E contribuem pelo que não dizem ou não escrevem. “Os media eliminam ‘naturalmente’ do espaço público certo tipo de factos e escolhem outros aos quais dão visibilidade”, nota Jean-Pierre Esquenazi. “Uma crítica coerente dos media, prossegue este sociólogo, não pode contentar-se em analisar o discurso mediático efectivamente produzido. Deve ter também em conta o não-discurso mediático. Determinar quais são os factos sociais que não são, ou nunca são, mediatizados é uma maneira de apreender as escolhas operadas” (2002: 70).

E fazem-no directa e indirectamente.

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Fazem-no, directamente, através da força decisiva dos seus próprios produtos: os chamados “produtos globais”, como o concurso televisivo A roda da fortuna que integrou a grelha de programação de televisões do mundo inteiro. Ou beneficiando de regimes de quase monopólio em vastos sectores do mercado. As revistas do grupo Lagardère, como Elle e Paris Match, venderam, em 2004, mais de mil milhões de exemplares. A Vivendi Universal e o grupo Bertelsmann, este em associação com a Sony BMG, são responsáveis pela edição de metade dos discos produzidos em todo o mundo. A mesma Vivendi Universal que, segundo o IDATE (empresa de investigação e consultoria, sediada em Montpellier), possui um catálogo com mais de 10.000 filmes e mais de 40.000 horas de programas de televisão. E que dizer da importância, na informação circulante, de jornais como The Times, Wall Street Journal, Le Figaro, Libération, todos eles pertencentes a grandes grupos?

Mesmo o Le Monde que, desde a sua fundação, em 1945, era exemplo único de empresa controlada pelos respectivos trabalhadores - jornalistas, empregados e quadros administrativos – acabou nas mãos de três importantes homens de negócios franceses que, em Junho de 2010, se dispuseram a pagar uma dívida que ascendia, já, aos 150 milhões de euros. São eles: Pierre Bergé, industrial de confecções de luxo, muito próximo do costureiro Yves Saint Lauren; Matthieu Pigasse, Vice CEO do Banco Lazard e Xavier Niel, CEO do grupo de telecomunicações francês Iliad. Assumindo o poder num jornal com o prestígio do Le Monde, coroaram, assim, projectos de entrada no campo da informação e da comunicação. Com efeito, na altura em que se dispuseram a investir no Le Monde, Pierre Bergé era já proprietário do magazine Têtu e Mattieu Pigasse do semanário Les Inrockuptibles, revista que se distingue pela irreverência com que aborda questões ligadas ao universo da música, do cinema, da literatura e da televisão. Xavier Niel, por seu lado, criara a Fundação Free oficialmente destinada a dotar todos os lares franceses de uma linha de telefónica gratuita, de um acesso gratuito à Internet, e de um serviço de antena permitindo a captação de todos os canais não codificados da televisão digital terrestre.

Fazem-no, indirectamente, através desse imaginário social que constroem e que se vai repercutir, em cascata, nas opções editoriais de outros órgãos de comunicação social. É o “efeito mimético”, trabalhado por Pierre Bourdieu (1997). É a teoria de Baudrillard sobre “a mais pequena diferença marginal” (1983) que baseia a identidade de um jornal num duplo pressuposto: trazer algo que os outros não trazem e trazer tudo quanto os outros trazem.

É, em suma, o efeito de uniformização de temas e de abordagens que transborda dos grandes grupos para contaminar todo o campo dos media.

As reacções provocadas pela tentativa de construção de uma mesquita em Lodi, população situada a uma trintena de quilómetros de Milão, são elucidativas a este respeito. A iniciativa, de um núcleo de imigrantes árabes, provocou a reacção imediata de representantes da Igreja católica e de formações políticas de direita. Um cardeal, arcebispo de Bolonha, apelou à redefinição da política imigratória italiana, de maneira a favorecer os imigrantes católicos em detrimento dos muçulmanos, considerados incompatíveis com um país historicamente votado a Cristo. Insistiu na aplicação do princípio de “reciprocidade” – “devemos receber os muçulmanos da mesma maneira que eles nos recebem a nós, cristãos” – e alertou para a “invasão” muçulmana que constituiria uma ameaça para a “identidade italiana”. A Liga do Norte, declaradamente xenófoba, baseou as suas intervenções públicas na dicotomia natural/artificial. Seria

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“natural” o comportamento “são”: a família tradicional, a religião maioritária e os bons costumes “que nos caracterizam”. Seria “artificial” o comportamento daqueles que a Liga do Norte rapidamente identificou como “comunistas” e “terroristas”. Um ministro de Berlusconi insurgiu-se, sempre a propósito do projecto de construção da mesquita, contra os “inimigos” que, antes, constituiriam uma ameaça exterior e que, agora, se agrupavam, no interior das próprias fronteiras italianas. O governador do Banco de Itália referiu-se, negligente, àqueles que não são mais do que uma “força de trabalho”, logo, incapazes de constituir uma fonte de diversidade e de renovação cultural.

Este o quadro referencial que serviu de ponto de partida para as diversas coberturas mediáticas. Diversas, porque protagonizadas por variados meios de informação. Mas muito semelhantes nos seus pressupostos e nos seus argumentos.

Segundo uma investigação levada a cabo pela própria rede nacional de televisão RAI, a respectiva cobertura televisiva havia privilegiado a palavra dos autóctones, ensurdecendo as razões invocadas pelos imigrantes árabes. Da mesma forma, uma análise de conteúdo às notícias e comentários publicados na ocasião por dois jornais politicamente diferenciados, o Corriere de la Sera, de direita, e o Repubblica, da esquerda moderada, revelou que, na sequência das manifestações contra o projecto de construção da Mesquita, nos primeiros dias de Outubro de 2000, o Corriere intitulou em grandes parangonas: “Missa contra a Mesquita”, “Tensão em Lodi”. Os seus textos insistiam no paradigma da “família italiana” e no “perigo do Islão”. Já o Repubblica, embora concedendo a palavra a dirigentes como Romano Prodi, defensor da laicidade do Estado e da coabitação pacífica, não deixava de referir posições como as assumidas pelo arcebispo de Bolonha.

Tirando conclusões da mediatização do acontecimento e da sua repercussão pública, Fábio Perocco, que partiu deste tema para o capítulo que assinou num livro sobre o papel das religiões na formação identitária europeia, sublinhou a confusão estabelecida entre o Islão, como religião, e o mundo muçulmano, no seu todo. Confusão que é pasto para interpretações simplistas, validando estereótipos erguidos sobre ocorrências constantemente evocadas (o caso Rushdie, o porte do tchador e a condição feminina, os rituais envolvendo sacrifício de animais, etc.). Na sua opinião, o Islão, apresentado como uma ameaça, teria funcionado como espelho onde se reflectiriam todas as questões não resolvidas da história e da política italianas, nomeadamente as questões da unidade nacional (Perocco, 2008: 153). Idêntica reflexão foi desenvolvida por Joseph Maïla que, em vésperas do debate sobre a Carta Constitucional europeia, declarou, num artigo publicado na revista Esprit: “A não-Europa foi o revelador da Europa”.

O desafio das novas tecnologias

Éverdade que a Internet e o telemóvel revolucionaram o mundo da informação e da comunicação. É verdade que qualquer um de nós pode, através dos novos media, emitir e receber conteúdos. É verdade que os ecrãs do computador e do telemóvel se enchem de petições, de convocações, de mensagens. Em La Culture-monde, réponse à une société désorientée, Gilles Lipovetsky e Jean Serroy constatam: “A partir de uma nova linguagem planetária – a digital – desenvolve-se uma tecnologia cuja inacreditável e inelutável progressão o século XXI vai descobrindo, ano após ano, mês após mês. Actualmente, os ecrãs estão em todo o lado: dos ecrãs de bolso aos ecrãs

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gigantes, do GPS ao BleckBerry, da consola de jogos ao ecrã atmosférico, do ecrã de vigilância ao ecrã médico, da moldura digital ao telemóvel que se torna, ele próprio, um ecrã multifunções dando acesso não só à Internet como ao visionamento de filmes, ao GPS como à agenda digital. Um mundo de ecrãs transformado em Web-mundo […] Nada se consegue fazer, da tarefa mais complicada à mais insignificante, sem passar por um computador. O homo sapiens deu lugar ao homo ecranis” (2008: 82, 83).

Mas também é verdade que os grandes grupos incluem na sua área de negócios, empresas de telecomunicações, serviços de acesso à Internet. Também é verdade que preenchem, cada vez mais, os ecrãs dos telemóveis com os seus próprios programas – desportivos, de ficção, etc. – e que, na Internet, se sucedem as edições on-line dos seus próprios jornais e revistas. E é ainda verdade que, por decisão política, o fluxo de mensagens pode ser interrompido. Veja-se o que se passou na China e, mais recentemente, durante as manifestações populares que agitaram a capital de Moçambique.

Éum duplo problema que se coloca. Por um lado, é um problema político e, a este nível, é de um combate que se trata no qual, as partes envolvidas, não dispõem, pelo menos por enquanto, de armas iguais. Por outro, é um problema ligado ao excesso, selecção e verificação da informação. Recorrendo, de novo, a Lipovetsky e a Serroy: “No Ocidente, a liberdade não está ameaçada pelo défice, pela censura, pela limitação, mas pela sobreinformação, a overdose, o caos. Não é a informação que falta: estamos cheios dela; o que falta é o método para que cada um se possa orientar nesta sobreabundância indiferenciada, possa alcançar um distanciamento analítico e crítico, condição indispensável à criação de sentido” (2008: 87).

Resta a questão da televisão digital terrestre, tecnologia que se deve generalizar em Portugal até ao ano de 2012. Permitirá ela a afluência de novos operadores e a produção de conteúdos inovadores? O exemplo da França não constitui bom prenúncio. Como salienta Janine Brémond (2005: 48, 49), mais de dois terços dos canais de televisão digital terrestre foram distribuídos a grupos dominantes: cinco ao grupo Vivendi (Canal Plus); seis ao grupo Bouygues (TF1); cinco ao grupo Bertelsmann (M6); três ao grupo Lagardère. Dos seis canais atribuídos a recém-chegados ao mercado, três foram para o grupo AB (sigla formada a partir das iniciais dos apelidos dos fundadores Jean-Luc Azoulay e Claude Berda). Auto-intitulado “independente”, o grupo AB está estreitamente ligado à TF1 e a captação da publicidade que veicula nos seus produtos está a cargo do grupo Lagardère. Com muito poucos assalariados, nomeadamente jornalistas, AB é já conhecido como expressão do fast-food televisivo. Segue uma lógica low-cost baseada na programação de enlatados.

E nada impede que o modelo prolifere.

Bibliografia Citada

Baudrillard, Jean (1983). La société de consommation – ses mythes, ses structures, Paris: Gallimard

Bourdieu, Pierre (1979). Le Sens pratique, Paris: Éditions de Minuit

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JANUS.NET, e-journal of International Relations

ISSN: 1647-7251

Vol. 1, n.º 1 (Outono 2010), pp. 65-75

Os grandes Grupos de Informação e de Comunicação no Mundo

José Rebelo

Bourdieu, Pierre (1997). Sobre a televisão, Oeiras: Celta

Brémond, Janine (2005). “Alliances et partenariats dans la télévision privée”, in Sur la concentration des medias, Paris: Liris

Chomsky, Noam e Herman, Edward (1994). Manufacturing Consent. The Political Economy of the Mass media, Londres: Vintage

Derrida, Jacques e Habermas, Jürgen (2004). Le «concept» du 11 septembre, Dialogues à New York (octobre-décembre 2001) avec Giovanna Borradori, Paris, Galilée

Esquenazi, Jean-Pierre (2002). L’Écriture de l’Actualité, Pour une sociologie du discours médiatique, Grenoble: PUG

Gabszewicz, Jean, Sonnac, Nathalie (2006). L’Industrie des medias, Paris: La Découverte

Gadamer, Hans-Georg (1995). Langage et Vérité, Paris: Gallimard

Geuens, Geoffrey (2003). Tous Pouvoirs Confondus – Etat, Capital et Médias à l’ère de la mondialisation, Antuérpia: Editions EPO

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Lipovetsky, Gilles, SERROY, Jean (2008). La Culture-monde, Réponse à une société désorientée, Paris: Odile Jacob

Mignot-Lefebvre, Yvonne, LEFEBVRE, Michel (1989). La société combinatoire – réseaux et pouvoirs dans une économie en mutation, Paris: l’Harmattan

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Rebelo, José (2009). “O lugar do ‘outro’ e do ‘diferente’ nos media”, in Janus 2009, Portugal no Mundo, Lisboa: UAL/Público

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