OBSERVARE

Universidade Autónoma de Lisboa

ISSN: 1647-7251

Vol. 1, n.º 1 (Outono 2010), pp. 1-11

ECOLOGIA VERSUS DIREITOS DE PROPRIEDADE:

A TERRA NA ECONOMIA-MUNDO CAPITALISTA1

Immanuel Wallerstein

Director do Fernand Braudel Center for the Study of Economies, Historical Systems, and Civilizations e investigador principal na Universidade de Yale.

Foi Presidente da Associação Internacional de Sociologia e Director de Estudos Associados da École de Hautes Études en Sciences Sociales. É membro da World Association for International Relations. Entre outras distinções, é Doutor Honoris Causa pela Universidade de Coimbra.

Resumo

O acesso, a propriedade e o uso da terra, para fins tanto agrícolas como habitacionais, sofreram alterações significativas ao longo do tempo, sendo particularmente transformados com a emergência da Economia-Mundo capitalista.

Neste texto propõe-se uma reflexão sobre os pressupostos do direito de propriedade da terra, bem como das formas de obtenção desse direito, desde a apropriação à autorização legal, por conquista ou por “desenvolvimento da terra”. No contexto da Economia-Mundo capitalista, o processo de legitimação pela via do direito de propriedade legal é um processo basilar. Contudo, emergem movimentos sociais, libertários e de resistência, em relação aos direitos restritivos de propriedade de terra, que revestem contornos culturais e políticos, além de económicos, com efeitos ecológicos de relevo.

No decurso da reflexão, são apresentados exemplos, com destaque para os movimentos sociais que têm adquirido grande importância em países do Sul e para os recursos naturais que sofrem um maior impacto.

Palavras-chave

Terra; Economia-Mundo Capitalista; Direito de Propriedade; Ecologia

Como citar este artigo

Wallerstein, Immanuel (2010). "Ecologia versus Direitos de Propriedade. A terra na

economia-mundo capitalista". JANUS.NET e-journal of International Relations, N.º 1, Outono

2010. Consultado [online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol1_n1_art1

Artigo recebido em Abril de 2010 e aceite para publicação em Setembro de 2010

1Palestra inaugural proferida na 34ª conferência Political Economy of the World-System, "Land Rights in the World-System", Florida Atlantic University, 22 de Abril de 2010.

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Ecologia versus Direitos de Propriedade: a terra na economia-mundo capitalista

Immanuel Wallerstein

ECOLOGIA VERSUS DIREITOS DE PROPRIEDADE:

A TERRA NA ECONOMIA-MUNDO CAPITALISTA

Immanuel Wallerstein

A terra já existia antes do aparecimento da economia-mundo capitalista, e as pessoas viviam na terra, e da terra. A relação que os diferentes povos mantinham com a terra, que utilizavam de formas distintas, variava consideravelmente. Havia várias regras costumeiras sobre os direitos de utilização da terra, mas o mais importante é que só muito raramente estavam escritas.

Alguns povos eram essencialmente nómadas, o que significa que se deslocavam periodicamente de um lugar para outro, apesar de a variedade de locais poder ser limitada por acordos costumeiros. Outros povos dedicavam-se à agricultura sedentária, o que normalmente lhes conferia alguns direitos à utilização da terra, e a possibilidade de herança desses mesmos direitos. Havia muitos casos de pessoas que não utilizavam a terra para a cultivar, mas que exigiam aos utilizadores directos o direito de transferência do seu usufruto. De uma forma geral, podemos chamar-lhes suseranos, os quais frequentemente retribuíam estas transferências concedendo alguma protecção aos produtores directos. Raramente estes indivíduos, fossem utilizadores directos ou suseranos, possuíam direito de propriedade sobre a terra que legitimasse a venda dos seus direitos a terceiros.

Oaparecimento da economia-mundo capitalista veio alterar profundamente esta situação, criando novos entraves à utilização da terra para fins agrícolas. São estes obstáculos que me proponho analisar neste artigo, que suscita mais questões do que oferece soluções, com a série de proposições analíticas que avança sobre os direitos de propriedade da terra no sistema-mundo.

1. Direito de Propriedade da Terra

Aalteração mais importante imposta pelo sistema-mundo moderno foi o estabelecimento de uma base legal sistemática para o chamado direito de propriedade da terra. Por outras palavras, criaram-se regras que determinavam que uma pessoa ou entidade empresarial podia “possuir” terra directamente. A posse de terra – ou seja, os direitos de propriedade – significava que se podia utilizar a terra da forma que se quisesse, e que só se estava obrigado às limitações específicas impostas pelas leis do Estado soberano dentro do qual esta unidade de terra se situava. A terra sobre a qual uma pessoa tinha direito de propriedade, era terra que podia legar aos seus herdeiros ou vender a terceiros ou entidades empresariais.

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De que forma é que uma pessoa obtinha direito de propriedade da terra que, neste sentido legal específico, previamente não era propriedade de ninguém? O que normalmente acontecia era uma pessoa apropriar-se dessa terra e simplesmente autoproclamar-se seu proprietário. Isto por vezes era feito com a autorização legal de um grande suserano (como um rei). Outras vezes, resultava da conquista de uma região por parte de um Estado, que então autorizava esse tipo de apropriações. Habitualmente, o Estado conquistador começava por conceder autorizações de apropriação aos participantes na conquista. Posteriormente, esta autorização poderia ser alargada a todos aqueles que o Estado conquistador em causa permitisse apropriarem-se das terras.

Normalmente, a esta situação dava-se o nome de “desenvolvimento” da terra – ou, para usar a maravilhosa expressão francesa, "mise en valeur."

Analisemos um pouco a expressão francesa – amplamente utilizada até, pelo menos, 1945. Literalmente, a palavra "valeur" significa "valor." Assim, quando atribuímos (mise) valor a alguma coisa, significa que adquiriu valor dentro de um sistema económico capitalista. Presumivelmente, antes da "mise en valeur," não tinha esse valor; posteriormente, já o tinha.

Éclaro que, na grande maioria dos casos, esta terra já tinha sido “utilizada” previamente por alguém para algum fim específico. Contudo, uma vez concedido o direito de propriedade a quem se apropriava da terra, a pessoa ou grupo que tivesse “utilizado” a terra anteriormente perdia todos os direitos costumeiros que detivera, ou pensava que tinha detido, sobre a terra, sendo muitas vezes, literalmente, expulso da terra. Quando isso não acontecia, eram autorizados a permanecer na terra como subordinados, e essa subordinação era definida pela pessoa que agora detinha o direito de propriedade sobre a terra.

Este tipo de apropriação de terras sobre as quais não existiam direitos de propriedade prévios tem vindo a realizar-se nos últimos cinco séculos, e actualmente prossegue nas áreas que, por alguma razão, ainda se encontram fora dos territórios sobre os quais existem direitos de propriedade legais.

As terras apropriadas podem, em certas condições políticas, ser reapropriadas por pessoas que não têm direitos de propriedade legais sobre as mesmas. Isto é sobretudo feito através do que designamos "ocupação ilegal" de terras. Existem actualmente movimentos sociais organizados que proclamam o direito moral e político de ocupação, especialmente se a terra em questão não está a ser activamente usada, ou se o dono legal é um senhorio que vive a grande distância. Em muitos casos, os ocupantes são agricultores que, apesar disso, não detêm direito de propriedade legal sobre a terra que trabalham. Por exemplo, o Movimento dos Trabalhadores Sem Terra (MST) é um poderoso movimento social no Brasil, que tem como objectivo conseguir que a reapropriação de terras seja autorizada. Procuram ainda, sem grande sucesso até à data, convencer o governo brasileiro a legitimar estas reapropriações. A ocupação ilegal de edifícios desabitados também acontece em áreas urbanas.

Éclaro que o próprio governo pode reapropriar terras recorrendo a um mecanismo legal chamado domínio eminente. Este processo tem sido utilizado frequentemente em várias partes do mundo. Normalmente, para poder evocar o direito de domínio eminente, os governos têm que avançar razões de ordem social do Estado para justificar o seu direito de preferência sobre a utilização da terra. Poderão confiscar os

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terrenos de pequenos proprietários e entregarem-nos a proprietários detentores de terrenos maiores para que os “desenvolvam” de forma mais produtiva.

Contudo, os governos podem igualmente fazê-lo por motivos políticos, e confiscar terras a pessoas consideradas de fora/colonos estrangeiros e “devolvê-las” aos autóctones desse Estado.

Tanto a apropriação para fins de “desenvolvimento” como a ocupação ilegal podem ocorrer, e efectivamente ocorrem, não só em zonas rurais, onde a terra é utilizada para fins agrícolas, mas também em áreas urbanas, onde a terra é usada sobretudo para fins habitacionais.

As apropriações governamentais a favor de imobiliárias acontecem com alguma frequência. Contudo, a apropriação pela via da ocupação ilegal também é frequente. Actualmente, extensas áreas urbanas, particularmente no Sul global, têm vastas zonas de ocupação (tais como bidonvilles, favelas, etc.) onde se verifica esse tipo de ocupação ilegal – que por vezes é efectivamente tolerada pelas autoridades, outras vezes é reprimida, desde que o Estado em causa disponha dos meios suficientes para o efeito.

A questão essencial é que o direito de propriedade sobre a terra é basicamente uma questão política encapotada por uma camada de verniz legal. O direito de propriedade da terra poderá ou não ser autorizado pelas autoridades legais, que estão assim a tomar uma decisão política. Neste aspecto, a famosa máxima de Proudhon “a propriedade é um roubo” é sem dúvida a descrição mais apropriada do direito de propriedade de terra.

A principal questão legal e política que se coloca actualmente é o que acontece após a apropriação inicial. Se um bem é adquirido por meio de roubo, e é posteriormente transmitido aos descendentes nas várias gerações futuras, ou vendido a terceiros, será que a continuidade da posse legal efectiva confere direitos morais ou legais sobre a terra? Esta é a questão colocada actualmente pelos movimentos de povos indígenas, que reclamam ou a recuperação da terra (propriedade plena) ou, no mínimo, uma indemnização financeira pela terra apropriada, em muitos casos, séculos antes.

A quase totalidade da terra nas ditas áreas colonizadas foi originalmente apropriada desta forma. Isto aplica-se particularmente às áreas ultramarinas colonizadas pelos Europeus – América do Norte, Australásia, o cone sul da América Latina, África do Sul e Israel. Contudo, aplica-se igualmente às áreas de exclusiva expansão territorial europeia, como o alargamento da Rússia à Sibéria e ao Cáucaso.

Com efeito, encontramos o mesmo processo na expansão em áreas onde grupos fortes não europeus se deslocam para áreas adjacentes politicamente mais fracas. Isto foi o que aconteceu, do ponto de vista histórico, na China, na Índia e em muitas zonas de África, onde os colonos brancos não se fixaram.

A questão principal é que o processo de legitimação da propriedade pela via do direito de propriedade legal é um processo basilar na economia-mundo capitalista. E a sua origem reside quase sempre na apropriação pela força. Contudo, como tem sido um procedimento praticamente universal, contrariar este processo equivale à tentativa de nivelar os Himalaias ou os Alpes. Suponho que tecnicamente seja possível, mas é politicamente impossível. Isto não significa que não se possam fazer reajustes como resultado da pressão exercida pelos movimentos sociais. Mas quaisquer reajustes que

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se façam implicariam necessariamente compromissos assentes em declarações sobre direitos morais e legais mutuamente incompatíveis.

Por que razão é que as pessoas se apoderam da terra? A primeira resposta óbvia é porque é economicamente vantajoso. Poderá ser economicamente vantajoso porque a terra oferece boas possibilidades de produção agrícola para o mercado. Mas poderá igualmente trazer vantagens indirectas, já que empurra as pessoas para fora da terra, o que significa que terão de procurar emprego remunerado noutro local, e assim satisfazer as necessidades dos produtores capitalistas noutro sítio.

Éclaro que algumas terras apropriadas poderão não oferecer grandes oportunidades de produção lucrativa. As terras poderão ter sido apropriadas por razões "estratégicas" – para defender o colectivo dos proprietários de contra-pressões ou contra-movimentos; para garantir a possibilidade de transporte de longo curso de mercadorias; ou simplesmente para negar o uso da terra a outros Estados ou aos cidadãos destes últimos.

2. Espaço

A quantidade de terra sobre a qual recaem direitos de propriedade não ocupa, mesmo actualmente, 100% da superfície terrestre global. Contudo, a percentagem que ocupa da superfície terrestre global tem vindo a aumentar ao longo da história do sistema- mundo moderno. Algumas pessoas sempre lutaram, resistindo à obrigação de atribuir direitos de propriedade às terras que sempre tradicionalmente usaram. E algumas pessoas escaparam às consequências da apropriação das suas terras fugindo para outras regiões mais afastadas das pessoas que estavam a fazer as apropriações. A isto James Scott chamou "a arte de não ser governado", e explica o aparecimento de zonas, por exemplo, em terras altas montanhosas, consideradas tanto “tradicionais” como “primitivas” pelos detentores dos direitos de propriedade. Contudo, essas mesmas zonas são consideradas locais de resistência libertária pelos que assim escaparam. Essas regiões são tão duvidosamente “tradicionais” (isto é, pré-modernas) quanto todos os outros fenómenos que gostamos de rotular negativamente como sendo tradicionais.

A pressão principal que tem sido exercida sobre todos os que procuraram escapar ao processo de afirmação de direitos restritivos de propriedade de terra prende-se com o crescimento populacional. Sabemos que a população mundial tem vindo a aumentar de forma constante nos últimos 500 anos. Salvo algumas excepções marginais – resultantes de aterros – a área do globo onde as pessoas podem viver permanece a mesma. Assim, à escala global, há um número cada vez maior de pessoas por quilómetro quadrado.

O crescimento populacional causou dois tipos de expansão: o crescimento em extensão, através do qual um número crescente de terras é enquadrado no sistema de direito de propriedade, e o crescimento intensivo, que conduziu a uma enorme concentração da população mundial em áreas de contacto próximo. A isto chamamos urbanização, um processo do qual ninguém duvida e que, nos últimos cinquenta anos, tem acelerado a um ritmo impressionante, levando-nos a um mundo de múltiplas megalópoles, havendo ainda a possibilidade de surgirem mais e maiores nas próximas décadas.

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Os dois processos juntos – a ocupação em extensão e intensiva de territórios regidos pelos sistemas jurídicos do sistema-mundo – criaram todo um conjunto de obstáculos adicionais que dificultam o funcionamento da economia-mundo capitalista. É elementar constatarmos que um maior número de pessoas sobre a mesma quantidade de terra exerce pressão sobre todos os tipos de recursos que os seres humanos necessitam para sobreviver. Parece-me igualmente básico afirmar que, caso os seres humanos se apropriem de mais terra, terão inevitavelmente que eliminar utilizadores concorrentes

– na sua maioria fauna, mas também flora.

Se bem que estes processos tenham ocorrido ao longo de toda a história da economia- mundo capitalista, assumiram contornos culturais e políticos, especialmente nos últimos cinquenta anos, já que os efeitos ecológicos do sistema-mundo moderno se têm tornado cada vez mais óbvios, e os seus aspectos negativos cada vez mais flagrantes.

O primeiro problema é a água. A água é essencial aos processos vitais. A quantidade de água potável no mundo não é ilimitada. Um dos aspectos controversos do direito de propriedade da terra é determinar até que ponto esse direito requer controlo total dos recursos hídricos aos quais se tem acesso na propriedade privada em questão. Os conflitos sobre recursos hídricos entre agricultores e fazendeiros são tão centrais ao mundo moderno que muita da literatura de ficção actual tem debatido o tema. O conflito entre utilizadores rurais e consumidores urbanos é igualmente bem conhecido.

E quais são as consequências? Os governos decidem sobre as atribuições, implementando-as através de várias alterações na superfície da terra, para assegurar que grupos específicos têm acesso preferencial a certos cursos de água. A construção de barragens é uma técnica comprovada e real de fazê-lo. Quando as barragens alteram o curso da água e o acesso à mesma, claro que estão imediatamente a prejudicar os direitos de propriedade de terra de proprietários ou utilizadores que estejam no percurso, ou perto dele, dos rios que são represados.

Contudo, existe um outro efeito a longo prazo. O processo de alteração dos cursos de água e de acessos, com o passar do tempo faz com que haja uma maior utilização da água disponível e, eventualmente, conduz à desertificação. Teremos assim uma redução do fornecimento de água, ao mesmo tempo que aumenta o número de pessoas no mundo que procuram água.

Além disso, esta é uma questão que ultrapassa a utilização da água nos rios, lagos e lençóis freáticos sob a terra. A procura de comida leva a uma utilização cada vez maior e mais intensa de áreas marítimas como fontes de alimento. Os Estados têm aumentado as suas reivindicações pelo direito às zonas marítimas. A pretensão histórica de que uma zona de três milhas situada na orla das fronteiras terrestres se encontra sob a soberania de um Estado deu lugar, nas últimas décadas, a reivindicações por uma zona de 200 milhas. No futuro, seguramente reclamar-se-ão zonas ainda mais extensas.

A mercantilização da água – por parte de indivíduos, empresas e Estados – aumentou imenso, à medida que a escassez de água se tornou mais evidente. É claro que a mercantilização de um recurso vital significa uma crescente desigualdade na atribuição do mesmo. Os conflitos pela água tornaram-se assim o cerne da luta de classes a nível mundial.

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O que é verdade para a água é igualmente verdade para os recursos alimentares e energéticos. Um maior número de pessoas no mundo significa que, globalmente, são necessários mais recursos alimentares. Já que a apropriação da terra para utilização humana é um fenómeno crescente, há menos espaço para os animais que pastam. Assim, o mundo voltou-se para a produção de recursos animais, concentrando a sua localização em pequenas áreas cercadas controladas por empresas cada vez maiores. Este fenómeno não apenas polariza a distribuição, como tem importantes consequências negativas para a saúde, tanto para seres humanos como para animais.

Os conflitos entre Estados sobre o acesso a fontes de energia tornaram-se notícia corrente nos meios de comunicação social. Um tópico também muito discutido actualmente é o dos perigos ecológicos causados pelos tipos de energia utilizados, e subsequente impacto nas condições climáticas do mundo. Por sua vez, isto conduz a uma das últimas, mas não menor, das mercantilizações, que é o ar que respiramos. No início, o direito de propriedade de terra significava direito ao que se encontrava à superfície da terra. Contudo, o seu significado alargou-se rapidamente, passando a incluir tudo o que está debaixo da superfície da terra, e, mais recentemente, o que se encontra nos oceanos. Actualmente, assistimos a pretensões ao espaço aéreo acima da superfície terrestre.

Àmedida que, à escala mundial, um número crescente de bens de consumo é produzido numa superfície cada vez mais restrita por habitante, a questão da eliminação de resíduos tóxicos tornou-se cada vez mais premente. Num sistema onde existe o direito de propriedade da terra, quem é que detém os direitos sobre os resíduos tóxicos, e onde é que estes podem ser depositados? Sabemos o que está a acontecer. Quanto maior é o nosso conhecimento dos perigos que os resíduos tóxicos acarretam para a saúde humana, torna-se cada vez menos legítimo depositá-los em áreas públicas. Isto não significa que estes depósitos tenham deixado de ser efectuados

– antes pelo contrário – mas como se tornou menos aceitável, os que o fazem agem com maior secretismo.

A alternativa ao depósito em áreas públicas é o depósito, mediante acesso pago, em zonas terrestres (ou aquáticas) que sejam propriedade de outrem. Os locais onde isto se verifica estão directamente relacionados com a força relativa das regiões no sistema-mundo. Nas zonas mais ricas, a resistência política à compra de aterros sanitários é robusta e relativamente eficaz. A isto chamamos o fenómeno NIMBY (Not in My Backyard/Não No Meu Quintal). Desta forma, a compra de direitos traduz-se, efectivamente, num aumento das aquisições no Sul global, o que polariza ainda mais o sistema-mundo.

Mais uma vez, esta situação afecta os direitos de propriedade da terra dos que se encontram mais perto dos aterros. Contudo, afecta igualmente a luta de classes a longo prazo – neste caso não no que diz respeito ao acesso, mas à falta de acesso. A questão fundamental resume-se rapidamente. Um maior número de pessoas é sinónimo de maior necessidade de recursos. A partir do momento em que os recursos são atribuídos no seio de um sistema de direito de propriedade da terra, o resultado é menos recursos por pessoa, mais mercantilização, danos ecológicos acrescidos e uma luta de classes mais acentuada em todo o mundo.

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3. Pessoas e Povos

Após os últimos 500 anos de funcionamento da economia-mundo capitalista, onde é que nos situamos hoje, em termos de pessoas e povos? Ou seja, qual tem sido o seu impacto nas pessoas? E qual o seu impacto na vida dos grupos? E, talvez ainda mais importante, o que é que as pessoas enquanto indivíduos ou parte de grupos podem fazer relativamente a este impacto? O que é que estão a fazer em relação a este assunto?

Se começarmos por analisar as pessoas enquanto seres individuais ou grupos de dimensão reduzida, é bastante óbvio que as suas opções e liberdade de acção estão limitadas de várias formas muito importantes, resultantes da criação de um sistema no qual a utilização da terra se rege pelo vulgarmente intitulado direito de propriedade, ou seja, pelas relações de propriedade.

Parece-me ser de alguma importância examinarmos com atenção o conceito de liberdade de acção. A um nível superficial, o direito de propriedade da terra parece ampliar os direitos das pessoas enquanto indivíduos. O proprietário pode dispor do que

éseu da forma como bem entende, sujeito a um número reduzido de restrições legais. O argumento habitual é que o proprietário beneficia directamente do trabalho que executa na sua propriedade, colhendo os benefícios do seu investimento pela melhoria dos seus bens.

Não há dúvida que esta ideia é relativamente correcta. Contudo, não considera a hipótese da desigualdade de forças entre vários proprietários, que permite aos proprietários mais fortes e com propriedades mais extensas esmagar os mais fracos e, efectivamente, forçá-los a transferir a propriedade. A isto chamamos concentração de capital.

Podemos ilustrar o que acabámos de afirmar com um pequeno exemplo óbvio. Tomemos duas situações onde existia propriedade colectiva sem direitos individuais de propriedade, onde uma pequena parte da propriedade colectiva foi posteriormente transformada em direitos individuais. Uma era uma zona rural no Sul global, que até então tinha estado fora do sistema de direitos de propriedade da terra. A outra, uma zona enquadrada no sistema de propriedade colectiva nos antigos Estados comunistas no período após 1989. Em ambos os casos, a privatização obrigatória da terra gerou múltiplos donos de pequena dimensão incapazes de manter a propriedade numa situação de mercado. Daí venderem os seus direitos a um empresário mais poderoso. No final deste processo, tinham perdido todos os direitos que detinham no seio da propriedade colectiva anterior e, do ponto de vista económico, estavam provavelmente pior do que antes.

Como podemos verificar, esta é apenas uma pequena parte da história. Se considerarmos as consequências demográficas e ecológicas do sistema nos últimos 500 anos, verificamos uma crescente e substancial polarização do sistema-mundo, o qual, a título individual, se traduziu numa vasta população em crescimento que vive abaixo do chamado “limiar de pobreza”. Este facto é frequentemente disfarçado pela considerável melhoria da situação económica de cerca de 15-20% da população mundial.

O que se passou com as pessoas enquanto indivíduos é talvez menos dramático do que aconteceu aos povos. Todos os grupos de pessoas – povos – gostam de afirmar a sua existência externa e o seu eterno direito moral à existência e à sobrevivência. É claro

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que isto é pura mitologia. Os grupos aparecem e desaparecem ao longo de tempo, e sempre assim foi.

Haverá alguma coisa de diferente neste processo no sistema-mundo moderno? A resposta é simultaneamente sim e não. É não, se enfatizarmos o facto de os grupos terem vidas, e que estão em permanente mudança em termos estruturais e de composição, a nível de valores e limitações, tamanho e importância.

Contudo, a resposta será afirmativa se olharmos para a forma como estes grupos aparecem e desaparecem no sistema-mundo moderno, e compararmos com a forma como o faziam antes. Tem muito a ver com os direitos de propriedade da terra. O sistema-mundo moderno possibilitou, graças aos avanços tecnológicos, o aparecimento de maiores e mais rápidos movimentos de povos, os quais pusemos no mesmo saco e a que atribuímos um rótulo vago chamado migração. Mas este movimento, ampliado e facilitado pelos avanços tecnológicos, ocorreu em simultâneo com a criação de um sistema histórico, composto pelos ditos Estados soberanos no seio de um sistema inter- estatal. Estes Estados têm fronteiras (apesar de em mudança). E, por definição sistémica, não há zonas fora desta divisão do mundo em Estados soberanos (excepto, marginalmente e provavelmente não por muito mais tempo, a zona previamente quase totalmente desocupada da Antárctida).

A grande maioria dos Estados soberanos procuraram tornar-se aquilo a que vulgarmente chamamos Estados-nação, como mecanismo de sobrevivência enquanto instituições. Ou seja, todos (ou quase todos) adoptaram uma ideologia subjacente de integração jacobina. Têm insistido para que os vários povos que habitam dentro das suas fronteiras integrem o povo que se afirma representante legítimo na comunidade do Estado. Para além disso, os que imigram para um Estado são regularmente obrigados a prescindir das suas entidades culturais anteriores e a adoptar a entidade cultural dominante do suposto Estado-nação.

Contudo, mais uma vez esta é essencialmente uma questão política. Na última metade do século passado, registaram-se importantes movimentos de resistência a este processo. Em primeiro lugar, a resistência foi levada a cabo por grupos que, de alguma forma, se consideram mais autóctones numa região do que outros – por exemplo, nos Estados colonizados. Temos igualmente o caso da resistência por parte de grupos conquistados por vizinhos mais fortes e que procuram “reavivar” a sua língua ou as suas instituições autónomas. Actualmente, as forças centrífugas encontram-se pelo menos ao nível das forças centrípetas nas vidas político-culturais dos Estados do mundo. As virtudes de se ser um Estado plurinacional ou multicultural são actualmente proclamadas por alguns países.

A verdade nua e crua é que não existe nenhuma possibilidade real de criar Estados verdadeiramente multinacionais com políticas distintas em áreas diferentes no que respeita aos direitos de propriedade da terra, a menos que, talvez, as ditas populações autóctones representem a maioria absoluta da população, como no caso da Bolívia. O exemplo mais evidente desta impossibilidade está actualmente em curso no Equador.

Segundo os padrões mundiais, o Equador é considerado um Estado governado por forças de esquerda e, de um ponto de vista político, um dos mais radicais da América Latina. O presidente em exercício, Rafael Correa, foi eleito com o apoio forte da Confederação de Nacionalidades Indígenas do Equador (CONAIE). Presentemente, Correa trava um conflito grave com a CONAIE. O que é que se passou?

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As políticas que conferem a Correa a imagem de um político radical no mundo actual advêm, em primeiro lugar, da sua grande distância geopolítica dos Estados Unidos da América. Em segundo lugar, resultam da sua posição face às companhias mineiras estrangeiras detentoras de vários tipos de concessões num país rico em minério como o Equador. Ele ordenou a revogação de muitas destas concessões como forma de obrigar as empresas mineiras a renegociar os termos dos seus acordos. Fê-lo para obter receitas muito avultadas para o governo equatoriano, e que lhe permitisse “desenvolver” o país em várias vertentes. Estas tentativas de redução dos benefícios das companhias estrangeiras a favor de receitas mais elevadas para os Estados onde estas companhias operam têm sido prática corrente na política mundial, pelo menos nos últimos 50 anos, e são normalmente encaradas como um sinal de um posicionamento de esquerda na política mundial.

A CONAIE não se opõe à redução do poder e das vantagens de que as empresas mineiras estrangeiras gozam. Mas a Federação representa grandes partes da população que, na sua maioria, ainda vive em terras sobre as quais não existem direitos de propriedade. Os grupos representados também estão desproporcionalmente localizados em regiões onde a mineração já foi, ou será iniciada. Consequentemente, eles são os que, a curto prazo, se encontram mais expostos às consequências ecológicas negativas desse tipo de operações, assim como às consequências da deslocação de terras, já realizadas ou a realizar no futuro.

A posição da CONAIE é que o Equador deveria mudar a sua constituição e autoproclamar-se um Estado plurinacional. Para além disso, exige que as comunidades indígenas tenham direito a dar o seu consentimento prévio antes que os projectos de extracção mineira se realizem na sua região. Em parte, têm a intenção de negar esses direitos, apesar de ser igualmente possível que, por outro lado, simplesmente exijam controlo sobre as receitas que advêm desse consentimento, controle esse que, caso contrário, iria parar às mãos do Estado Equatoriano. Correa e a CONAIE também se encontram em conflito por causa da água. O governo pretendia controlar também o acesso aos recursos hídricos, incluindo a possibilidade da sua privatização. A CONAIE insistiu no controlo absoluto público e comunitário dos recursos hídricos.

Por último, havia uma disputa sobre a prospecção petrolífera numa área de um Parque Nacional chamado Yasuni. Correa assumiu a posição de que o governo poderia renunciar à prospecção se os países do Norte o compensassem pela perda de receitas, proposta essa que nunca foi muito longe. Correa reservou-se o direito de prosseguir com a prospecção, no que foi fortemente apoiado pela corporação nacional de petróleo, a Petroecuador.

Esta descrição de eventos recentes no Equador ilustra o dilema fundamental da esquerda mundial. Por um lado, a esquerda mundial, especialmente no Sul global, tem tomado medidas capazes de reduzir a grande distância que os separa do Norte global. Correa está simplesmente a perseguir este objectivo. Por outro lado, a esquerda mundial (ou pelo menos uma proporção crescente da mesma) opõe-se à continuação da mercantilização dos direitos de propriedade da terra e da degradação ecológica do mundo. A CONAIE está simplesmente a lutar por este objectivo.

As duas estratégias são contraditórias e incompatíveis. Os direitos de propriedade da terra constituem o ponto decisivo. Actualmente, o caminho que a esquerda mundial, enquanto movimento social, pretende seguir não é de todo claro. Neste momento, e

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enquanto movimento colectivo, aparenta estar a seguir por ambas as direcções ao mesmo tempo. Isto cria dificuldades, e é provavelmente impossível de conseguir. Os conflitos no seio da esquerda mundial quanto à sua estratégica basilar de mudança global correm o risco de anular qualquer hipótese de um desfecho com êxito na luta incessante sobre o sistema de sucessão de uma economia-mundo capitalista afectada por uma crise estrutural.

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