OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015)
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Artigos
Ana Paula Brandão - O Nexo Interno-Externo na Narrativa Securitária da União Europeia -
pp 1-20
António Horta Fernandes - Os Dois Conflitos Mundiais como Ilustração da Ausência de
Anarquia Internacional - pp 21-32
Luís Moita - Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos - pp 33-55
Jaime Ferreira da Silva - O interesse nacional português no contexto das políticas de
segurança e defesa e dos assuntos do mar. Algumas considerações teóricas no âmbito do
relacionamento entre Portugal e a União Europeia - pp 56-73
Virginia'Delisante'Morató - Problemas sociales: la urgencia demográfica en Uruguay - pp
74-92
Lino Santos - Regulação do ciberespaço: cesuristas e tradicionalistas - pp 93-107
Natalia Ceppi - La energía en la agenda pública: câmbios en Bolívia con «proyeccióen el
contexto contíguo - pp 108-124
Luís Tomé - "Estado Islâmico" percurso e alcance um ano depois da auto-proclamação do
"Califado" - pp 125-149
Notas e Reflexões
Almiro Rodrigues - O Procurador como magistrado internacional - pp 150-168
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O NEXO INTERNO-EXTERNO NA NARRATIVA SECURITÁRIA
DA UNIÃO EUROPEIA
Ana Paula Brandão
abrandao@eeg.uminho.pt
Professora de Relações Internacionais da Escola de Economia e Gestão da Universidade do Minho
e investigadora do Centro de Investigação em Ciência Política (CICP). Doutorada em Ciência
Política e Relações Internacionais, mestre em Estudos Europeus e licenciada em Relações
Internacionais. Diretora do Programa de Doutoramento em Ciência Política e Relações
Internacionais e do Mestrado em Políticas Comunitárias e Cooperação Territorial.
Interesses de investigação: teorias da segurança, segurança europeia, segurança humana,
sistema político da União Europeia.
Resumo
A construção da actorness da União Europeia no domínio da segurança tem sido
acompanhada por uma narrativa de nexos securitários (interno-externo, segurança-
desenvolvimento, civil-militar, público-privado) associados à designada comprehensive
approach. O fim da Guerra Fria criou a oportunidade para a explicitação da security
actorness europeia. O pós-11/09 favoreceu o reforço de tendências (ameaças
transnacionais, externalização da ‘segurança interna’, interpilarização) e a introdução de
inovações (comprehensive approach, internalização da Política Comum de Segurança e
Defesa, interconexão de nexos securitizadores). O presente artigo incide sobre o nexo entre
“os aspetos internos e externos da segurança” declarado pela UE no pós-Guerra Fria,
propondo-se refletir sobre o racional e as implicações da narrativa e das práticas europeias
para a configuração de um ator de segurança pós-vestefaliano. Com base na análise de três
expressões do nexo, argumenta-se que este traduz um securitising move do ator europeu
explicado pela convergência de oportunidade (redefinição da segurança, prioritarização das
ameaças transnacionais num mundo globalizado, valorização do soft power no pós-Guerra
Fria), capacidade (legal, orgânica e operacional no domínio da segurança, após a entrada
em vigor do Tratado da União Europeia) e (ambição de) presença. A abordagem holística,
subjacente à lógica dos nexos, resulta de uma adequação co-constitutiva: apropriação de
políticas e instrumentos de um ator multifuncional para fins securitários (segurança da UE e
dos cidadãos europeus); securitização dos assuntos com vista à projeção das políticas e do
ator.
Palavras chave:
União Europeia; segurança interna; PCSD; nexos securitários; securitização
Como citar este artigo
Brandão, Ana Paula (2015). "O nexo interno-externo na narrativa securitária da União
Europeia". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 6, N.º 1, Maio-Outubro
2015. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol6_n1_art1
Artigo recebido em 13 de Novembro de 2014 e aceite para publicação em 10 de Abril de
2015
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O nexo interno-externo na narrativa securitária da União Europeia
Ana Paula Brandão
2
O NEXO INTERNO-EXTERNO NA NARRATIVA SECURITÁRIA
DA UNIÃO EUROPEIA
Ana Paula Brandão
A especialização económica inicial do processo de integração europeia e o fracasso, nos
anos cinquenta, do projeto da Comunidade Europeia de Defesa (CED), associados à
natureza da ameaça e à garantia das necessidades de segurança pelos Estados Unidos
e pela Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN), durante o período da Guerra
Fria, contribuíram para o adiamento da incorporação da área da segurança nos tratados
comunitários. Apesar dessa omissão, o racional securirio esteve presente quer na
motivação catalisadora do processo (prevenção da conflitualidade interestadual
europeia) quer no resultado (criação, consolidação e expansão da comunidade de
segurança europeia).
As alterações ocorridas no pós-Guerra Fria criaram a oportunidade para uma nova
etapa, favorecendo a explicitação do ator de segurança europeu. O Tratado de
Maastricht, assinado em 1992, consagrou competências no domínio da segurança quer
externa, no âmbito da Política Externa e de Segurança Comum (PESC), quer interna no
quadro da cooperão policial e judiciária em matéria penal (no contexto mais amplo
da cooperação no domínio da justiça e assuntos internos
1
). A formalização da dinâmica
cooperativa no domínio da segurança obedeceu a traços específicos: natureza
intergovernamental garantida pela criação de dois pilares (segundo e terceiro pilares)
diferenciados, plasmados no Tratado da União Europeia, embora sob um quadro
institucional único; coordenão de políticas nacionais no âmbito de uma União
Europeia (e não da Comunidade Europeia) despojada de personalidade jurídica;
reprodução do modelo estadual de separação entre as dimensões externa (segundo
pilar da UE) e interna (terceiro pilar da UE) da segurança; cooperação abrangendo
“todas as questões relativas à segurança na União Europeia
2
, embora sujeita a uma
definição a prazo na área da defesa. A institucionalização da (então designada) Política
Europeia de Segurança e Defesa (PESD), pelo Tratado de Amesterdão, consagrou a
cooperação militar, ainda que limitada às missões Petersberg
3
1
A cooperação JAI (Justiça e Assuntos Internos) contempla várias áreas (imigração, asilo, cooperação
aduaneira, cooperação judiciária em matéria civil e penal, cooperação policial, combate à criminalidade).
, contribuindo para o
reconhecimento da security actorness por atores estaduais (membros e não membros),
herdeiros do legado realista que valoriza a componente militar e a distinção clássica
entre segurança interna e segurança externa. De sublinhar ainda duas alterações no
2
Preâmbulo do Tratado da União Europeia (1992).
3
Missões humanitárias ou de evacuação; missões de manutenção da paz; missões de forças de combate
para a gestão de crises, incluindo operações de restabelecimento da paz. Estas missões foram,
inicialmente, definidas no âmbito da União da Europa Ocidental (UEO), pelo respetivo Conselho Ministerial
que, em 1992, reuniu no Hotel Petersberg, em Königswinter (Alemanha).
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O nexo interno-externo na narrativa securitária da União Europeia
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domínio da segurança introduzidas pelo referido Tratado: a restrição do terceiro pilar à
cooperação policial e judicial em matéria penal; a possibilidade de externalização dessa
cooperação. Volvida uma década, o Tratado de Lisboa conferiu personalidade jurídica à
União Europeia, eliminou a estrutura em pilares, e transferiu as matérias relativas à
‘segurança interna’ para o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia
Gradualmente, à boa maneira monnetiana, a União tem-se dotado de capacidade
política (elaboração e execução de políticas, definão de prioridades e agenda-setting,
coesão interna mínima, legitimação interna do processo político), jurídica (adoção de
normas jurídicas), institucional (instituições comuns com competências na área e
organismos específicos), diplomática (negociação e representação internacional) e
material. Para a área da segurança não apenas concorrem a Política Externa e de
Segurança Comum/Política Comum de Seguraa e Defesa, a cooperação no domínio
da ‘segurança interna’, como também outras políticas da União. Tal permite-lhe
desempenhar quatro funções no domínio da segurança (Kirschner e Sperling, 2007):
prevenção (de conflitos interestaduais e intraestaduais); assurance (peacebuilding);
proteção (‘segurança interna’); compulsão (restabelecimento da paz, manutenção da
paz, imposição da paz).
Quais as implicações da gradual institucionalização da actorness de segurança
europeia? Esta evolução tem sido acompanhada pela narrativa que sublinha uma
ambição de actorness ‘global’ em termos quer de alcance geográfico quer de
abordagem holística (comprehensive approach). Os nexos securitários constituem um
dos eixos desta abordagem, entre os quais se inclui o declarado “nexo entre os aspetos
internos e externos da segurança”. O presente capítulo propõe-se responder a duas
perguntas: porquê o nexo?; como é construído o nexo? Aplicando o quadro teórico da
securitização (Buzan, Wæver e Wilde, 1998), combinado com a matriz conceptual de
Bretherton e Vogler (2007)
4
O capítulo começa por traçar a evolução da narrativa dos nexos securitários associada
à construção da actorness da União Europeia no domínio da segurança, após a entrada
em vigor do Tratado da Uno Europeia que consagrou a cooperação nos domínios da
Política Externa e Segurança Comum e da ‘segurança interna’. A segunda e terceira
secções privilegiam a narrativa e as práticas europeias relativas ao nexo entre as
dimensões interna e externa da segurança, procurando responder a duas perguntas
centrais porquê e como (é construído) - a partir da análise de três casos (expressões
sobre a actorness europeia, argumenta-se que o nexo
entre a segurança interna e a segurança externa traduz um securitising move do ator
europeu explicado pela convergência de oportunidade (redefinição da segurança,
prioritarização das ameaças transnacionais num mundo globalizado, valorização do soft
power no pós-Guerra Fria), capacidade (legal, orgânica e operacional no domínio da
segurança, após a entrada em vigor do Tratado da União Europeia) e (ambição de)
presença. A abordagem holística, subjacente à lógica dos nexos, resulta de uma
adequação co-constitutiva: aproprião de políticas e instrumentos de um ator
multifuncional para fins securitários (segurança da UE e dos cidadãos europeus);
securitização dos assuntos com vista à projeção das políticas e do ator.
4
Os autores identificam três elementos da actorness: oportunidade fatores em termos de ideias e
acontecimentos no ambiente externo que limitam ou permitem a actorness”; capacidade “contexto
interno da ação interna da UE disponibilidade de instrumentos políticos e de entendimentos sobre a
capacidade da União usar estes instrumentos, em resposta à oportunidade e/ou para capitalização da
presença”; presença - “capacidade da EU, por força da sua existência, exercer influência para além das
suas fronteiras” (Bretherton e Vogler, 2007).
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do nexo): a dimensão civil da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD); a
internalização da PCSD; a externalização da segurança interna.
Os Nexos Securitários
No pós Guerra Fria generalizou-se o debate sobre a segurança que resultou no
pluralismo concetual, teórico e emrico, do qual resultou a reconcetualização
expandida do fenómeno. Descentrada da abordagem realista, a segurança é concebida
como um fenómeno multissetorial
5
, porque não restrito aos tradicionais setores político
e militar, e multinível, porque não limitado ao provedor e objeto de referência estadual.
Em síntese, podem ser identificadas quatro temáticas centrais no debate. Em primeiro
lugar, os contributos críticos da configuração realista da ameaça alertaram para a
complexidade do ambiente do pós guerra fria caraterizado por ameas múltiplas
incluindo ameaças de fonte não estadual. No plano político, generalizou-se o discurso
sobre o “contexto em mudança”, por isso difuso e imprevivel. Uma segunda frente do
debate incidiu sobre o objeto referenciador da segurança desconstruindo a equação
realista ‘segurança do Estado’ igual a ‘segurança da pessoasa partir da pergunta
‘segurança de quem?’. Uma das respostas privilegiou a abordagem centrada nas
pessoas, no contexto do discurso ‘humanizador’ da década de noventa, presente
também no domínio do desenvolvimento. A diversidade em termos quer de ameaça
quer de objeto (da segurança) justificou um terceiro eixo da reformulação aplicado ao
provedor da segurança: além do Estado, historicamente consagrado como o ator da
segurança, outros atores concorrem para a segurança das pessoas, desde organizações
supraestaduais a organizações não-governamentais. A tendência, académica e política,
para a abordagem holística (comprehensive approach) da segurança é reforçada pelo
quarto eixo do debate: os nexos securitários. A narrativa dos nexos assenta na ideia da
interdependência entre fenómenos dois ou mais fenómenos que “se interligam e se
reforçam mutuamente” (Ganzle, 2009: 11) contrariando o racional de fronteira (lato
sensu
6
A título ilustrativo, evocamos dois espaços de presença do ator europeu associada à
narrativa e prática dos nexos. A Somália e o Sahel são percecionados como continuum
de insegurança, onde se interligam fragilidade estadual, pobreza extrema, crises
alimentares, alterações climáticas, corrupção, tensões internas, tráficos icitos,
terrorismo, extremismo violento e radicalização, com “crescente impacto direto nos
interesses dos cidadãos europeus (EEAS 2011). Em ambos os casos, a UE adotou a
comprehensive approach: o apoio humanitário à Somália, na década de 90, foi
posteriormente combinado com cooperação para o desenvolvimento, diálogo político,
instrumentos civis e militares
) subjacente ao paradigma realista. Assim, as ameaças são “dinâmicas”
(Conselho Europeu, 2003: 6) e muldimensionais o que exige a coordenação
interpolíticas na prevenção e combate às mesmas. O nexo é intensificado pela
crescente transnacionalização das ameaças.
7
5
Barry Buzan (1991) definiu cinco setores de segurança: político; militar; económico; ambiental; societal.
; a Estratégia para a Segurança e Desenvolvimento do
Sahel (EEAS 2011), com a dotação de 600 milhões de euros, contempla os domínios da
6
Fonteira no sentido não só geográfico mas também político (separação concetual, operacional e orgânica
entre áreas políticas).
7
“The rising of the Somali insurgent group Al Shabaab in 2006 and its support for Al Qaida’s international
jihad as well as the escalating attacks on international shipping within the Gulf of Aden and the Indian
Ocean resulted in an enhanced securitization of EU policies toward Somalia since 2007” (Ehrhart e
Petretto, 2014: 182).
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O nexo interno-externo na narrativa securitária da União Europeia
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segurança, do peace-building, da prevenção de conflitos, do desenvolvimento e da luta
contra a radicalização.
No domínio da segurança, prolifera a narrativa dos links (segurança-desenvolvimento/
pobreza-conflito, migração-segurança, energia-ambiente-segurança, terrorismo-crime
organizado, terrorismo-proliferação, civil-militar, segurança interna-externa, segurança
blica-privada) entendidos como fenómenos interdependentes, fundidos ou em
continuum, narrativa essa que culmina numa espécie de “caixa de Pandora” - a
interconexão de nexos.
O Nexo In-Out
A interdependência entre as dimensões interna e externa (Conselho Europeu 2003 e
2008, Conselho da União Europeia 2010) é uma ideia transversal aos documentos
oficiais da União Europeia relativos à área da segurança. O que significa essa
interdependência?
No plano quer político quer académico
8
Historicamente, o estudo da segurança, associado à polity estadual, assentou na
separação entre “os dois braços do Príncipe” (Pastore, 2001), aplicando-se bem a
imagem de “mesas separadas”
, diferentes expressões, não necessariamente
sinónimas, têm sido utilizadas para referir o fenómeno. Esta cacofonia terminológica
não facilita o trabalho de políticos (formulação de políticas) e académicos (explicação e
compreensão do fenómeno). O domínio estritamente científico tem sido marcado pela
“ambiguidade empírica, fragmentação teórica e ausência de diálogo académico sobre
este assunto” (Eriksson e Rhinard, 2009: 244).
9
8
“esbatimento da distinção entre segurança interna e externa” (Pastore, 2001); “dimensão externa da
Justiça e Assuntos Internos (Wolff, Wichmannb e Mounier, 2008); “dimensão/face externa da segurança
interna” (Rees, 2008); “aspetos externos da segurança interna” (Trauner, 2006); “convergência da
segurança externa e interna”/”divisão entre os domínios externo e interno em dissolução” (dissolving
divide) (Lutterbeck, 2005); “fusão entre segurança interna e externa” (Bigo, 2000 e 2001; Ehrhart,
Hegemann, Kahl 2014), “interface entre segurança interna e externa” (Ekengren, 2006), “nexo segurança
interna-externa” (Eriksson e Rhinard, 2009; Trauner, 2013), “externalização da segurança interna
(Monnar, 2010); “Dimensão externa da área de Liberdade, Segurança e Justiça” (Cremona, Monar e Poli,
2011; Monar 2014).
. A complexificação do fenómeno, associada à
diversificação das ameaças, à profusão de atores, quer como provedores de segurança
quer como fonte de ameaça, em contexto de intensa mobilidade e comunicabilidade à
escala global, contrariou a tradicional separação paradigmática, política e orgânica
entre as dimensões interna e externa da segurança consagrada pelo legado realista. O
fim da Guerra Fria e os acontecimentos de 11 de setembro de 2001 potenciaram a
perceção de uma segurança holística (compreensive approach) abarcando quatro
frentes: setores da segurança (segurança multissetorial para lá dos setores político e
militar); objetos da segurança (múltiplos atores, incluindo os indivíduos e os grupos,
para lá do Estado); atores da segurança, quer como provedores de segurança quer
como fontes de ameaça; dinâmicas transfronteiriças (cooperação transgovernamental
em prol da segurança; atuação de entidades transnacionais em prol da segurança;
atores transnacionais perversos). No quadro da União Europeia, o nexo pode ser
aplicado a diferentes fenómenos que, em síntese, decorrem de três dinâmicas: (a)
internalização de fenómenos de incidência externa; (b) externalização de fenómenos
9
Expressão usada por Gabriel Almond para caraterizar a Ciência Política (“Separate Tables: Schools and
Sects in Political Science”. Political Science and Politics. Volume 21, nº 4: 828-842).
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O nexo interno-externo na narrativa securitária da União Europeia
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de incidência inicialmente interna; (c) fenómenos de natureza transfronteiriça. A título
exemplificativo:
AMEAÇAS E RISCOS
Origem externa (à UE) da insegurança/internalização
dos efeitos da insegurança externa (a)
Atividades ilícitas no seio da UE e através das
fronteiras (externas) da UE (c)
PREVENÇÃO/COMBATE
Externalização da cooperação europeia no domínio da
segurança interna (cooperação da UE com atores
externos - Estados, Organizações Internacionais - no
domínio do terrorismo, da criminalidade
transnacional, etc) (b)
Ex. cooperação UE-EUA na luta contra o
terrorismo
Utilização de instrumentos de políticas da UE de
incidência interna no plano externo (b)
Utilização de instrumentos de segurança interna no
plano externo (b)
Ex. Missões de polícia (PCSD)
(Possibilidade de) Utilização instrumentos de políticas
da UE de incidência externa no plano interno (a)
Ex. PCSD
Cooperação transgovernamental (c)
Force
Utilização combinada de instrumentos de incidência
externa e interna
Ex. cooperação civil-militar
Coordenação interpolíticas Ex. objetivos de segurança interna na
política externa
Subjacente à narrativa in/out está a ideia da “globalização da segurança”, associada ao
“caráter predominantemente transnacional dos riscos pós-modernos”, (Rehrl e
Weisserth, 2010: 21). Neste contexto, uma PESC eficaz na prevenção e combate às
ameaças externas é considerada como condição para garantir a segurança interna do
espaço europeu e, por sua vez, um sistema de segurança interna efetivo é entendido
como condição para que aquela seja uma política ativa. Na mesma linha, a Estratégia
Europeia de Segurança (Conselho Europeu, 2003 e 2008) afirma a “indissolúvel ligação
entre os aspectos internos e externos da segurança” (Conselho Europeu, 2003: 2),
para a qual concorrem diversos fenómenos, designadamente: a vulnerabilidade
europeia decorrente da sua dependência em relação a uma infraestrutura interligada
em diversos domínios (transportes, energia e informação); a dimensão externa da
criminalidade organizada; a natureza global do terrorismo, que dispõe de crescentes
recursos, incluindo a ligação através de redes eletrónica; a proximidade em relação a
zonas conturbadas fruto do alargamento da UE; conflitos regionais que têm impacto
direto ou indireto nos interesses europeus; alterações climáticas que têm um “efeito
multiplicador de ameaças” (Conselho Europeu, 2008: 5). Assim, na “era da
globalização, as ameaças longínquas podem ser tão preocupantes como as que estão
próximas de nós” pelo que “a primeira linha de defesa há-de muitas vezes situar-se no
exterior” (Conselho Europeu, 2003: 6), sendo por isso necessário “aperfeiçoar a forma
como conciliamos as dimensões interna e externa(Conselho Europeu, 2008: 4).
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Neste sentido, a Estratégia de Segurança Interna (Conselho da União Europeia, 2010)
sustenta um conceito de segurança interna “amplo e completo que se estende a
múltiplos setores” e uma “abordagem de segurança global com os países terceiros”
(Conselho Europeu, 2010: 29).
Os acontecimentos mais recentes, designadamente no domínio do terrorismo, têm
contribuído para a intensificação da narrativa securitária do nexo in-out. Em fevereiro
de 2015, o Conselho da UE reafirmou o imperativo de complementar as medidas na
área da justiça e assuntos internos com o empenhamento a nível externo,
nomeadamente no Médio Oriente, no Norte de África, no Sahel e no Golfo. Nas palavras
de Federica Mogherini, a luta contra a radicalização e o extremismo violento deve
continuar a ser “uma prioridade, não só na ação interna e securitária, mas também na
política externa e diplomática” (EEAS, 2015).
Em síntese, a narrativa europeia evidencia uma tendência securitizadora construída
com base no risco de falta de controlo num mundo globalizado de ameaças adjetivadas
de complexas, dinâmicas, menos visíveis, imprevisíveis, em que o distante (frágil,
instável e inseguro) se tornou próximo.
O Nexo Externo-Interno na Política Comum de Segurança e Defesa
Pensada para a ação externa da União Europeia, no quadro da PESC, a PCSD
10
foi
instituída em 1999, constituindo mais um instrumento ao serviço da atorness
internacional e securiria da UE. A interdependência externo/interno começou por
expressar-se na dimensão civilista, traduzida no uso de meios policiais e judiciais em
espaços externos de instabilidade, sendo declarada, após os ataques terroristas de 11
de março de 2004, em Madrid, a possibilidade de uso interno dos meios,
designadamente militares, de uma política construída para a dimensão internacional.
A Dimensão Civil da Política Comum de Segurança e Defesa
A Política Comum de Segurança e Defesa foi pensada como concretização do uso da
força para fins pacificadores em palcos externos à UE. Esta configuração inicial foi
alterada no que respeita quer à natureza dos operações/meios (na emergência da
política, apenas militares) quer ao alcance das mesmas (originalmente, apenas
externo). Ainda antes da operacionalização da política
11
Esta dimensão resultou da projeção das preferências nacionais dos estados
militarmente neutros interessados em participar na nova política sem por em causa a
natureza civilista das suas políticas externas nacionais, o que reforçou o objetivo inicial
da política de projetar e credibilizar a actorness internacional da UE:reforçar a acção
externa da União através do desenvolvimento de uma capacidade militar de gestão de
, o Conselho Europeu, reunido
em Santa Maria da Feira, em junho de 2000, aprovou a dimensão civil da então PESD.
Esta passou a contemplar quatro domínios prioritários da gestão civil de crises: polícia;
Estado de Direito; proteção civil; administração civil (Conselho Europeu, 2000).
10
Então designada Política Europeia de Segurança e Defesa (PESD).
11
Operacionalização orgânica (estruturas político-militares) e no terreno (missões): estabelecimento, com
base permanente, das estruturas político-militares em 2001; Declaração sobre Operacionalidade em
dezembro de 2001; primeira missão, MPUE (Missão de Polícia da União Europeia na Bósnia Herzegovina),
em janeiro de 2003.
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crises, assim como de uma capacidade civil” (Conselho Europeu, 2000: 2).
Concomitantemente, reforçou a abordagem holística à qual também subjaz a
preocupação securitária de contribuir para a paz e estabilidade da União:
A proteção da segurança interna da União Europeia implica não só medidas nas e
dentro das fronteiras da Comunidade, mas também, e em especial, envolvimento no
exterior.
(…)
Por um lado, temos de combater as causas e as raízes da
instabilidade e do radicalismo com recurso à ajuda ao
desenvolvimento e à cooperação económica. Por outro lado,
necessitamos de mecanismos para substituir, reconstruir e apoiar
estruturas no domínio da segurança pública e ordem após as
crises. Além do destacamento de pessoal militar e policial, as
equipas da proteção civil desempenham um papel importante na
reconstrução de infraestruturas (…). (Future Group, 2007: 1).
Apesar desta inovação, a verdade é que a União Europeia já tinha experiência adquirida
em gestão civil de crises, designadamente através das atividades da Comissão
desenvolvidas no âmbito da Política de Desenvolvimento e, sobretudo, da Ajuda
Humanitária. O upgrading no quadro da PCSD contribuiu para a especificidade europeia
da gestão civil de crises, não tendo equivalente a nível internacional. Uma das
particularidades prende-se com a coordenação civil-militar decorrente do apoio militar à
presença civil no terreno: as missões civis integram habitualmente elementos militares
para aconselhamento, planeamento e/ou atividades de reconstrução. De referir ainda
missões de natureza mista (civil/militar).
Volvida uma década, constata-se a uma clara prevalência das missões civis em
detrimento das operações militares. Este desenvolvimento tem sido acompanhado por
alterações orgânicas, graças à criação de organismos quer específicos da componente
civil quer de coordenão civil-militar, bem como pela diversificação de tipo de missões
(polícia, Estado de Direito, monitorização, reforma do setor de segurança, assistência
na fronteira) e de áreas geográficas.
A Internalização (declarada) da Política Comum de Segurança e Defesa
No âmbito da luta contra o terrorismo após 2001, o Conselho Europeu, sob a égide da
Presidência espanhola, aprovou uma declaração sobre o contributo específico da
PESC/PESD. O documento (Conselho Europeu, 2002) destacava as seguintes áreas de
atuação: “diálogo político com países terceiros (promoção dos direitos humanos e da
democracia, não-proliferação e controlo de armamentos) e assistência internacional;
prevenção de conflitos; estabilização pós-conflito; intercâmbio de informações e
produção de documentos de avaliação de situação e de relatório de alerta rápido;
desenvolvimento de uma avaliação comum de ameaça contra os Estados-Membros ou
contra força sem operações de gestão de crises; determinação das capacidades
militares necessárias para proteger de atentados terroristas as referidas forças; análise
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da possibilidade de utilizar capacidades militares e civis para ajudara proteger as
populações civis dos efeitos dos atentados terroristas.”
Conforme solicitado pelo Relatório apresentado ao Conselho Europeu sobre a
implementação da Declaração relativa ao combate ao terrorismo (Conselho Europeu,
2004a) e pelo Plano de Ação, o Comité Político e de Segurança elaborou um documento
mais detalhado sobre o contributo específico da PESD que sublinhava a vantagem
comparativa da União Europeia, detentora de uma diversidade de instrumentos,
incluindo civis e militares, na luta contra uma ameaça complexa e multifacetada. O
“Quadro Conceptual” começa por referir o contributo global para a prevenção (a longo
prazo) do terrorismo:
Para reagir às crises, a União consegue mobilizar uma vasta gama
de meios e instrumentos tanto civis como militares, que lhe
confere assim uma capacidade global de gerir crises e de prevenir
conflitos em apoio dos objectivos da Política Externa e de
Segurança Comum. Isso favorece uma abordagem abrangente
para prevenir a ocorrência de Estados em dissolução, restaurar a
ordem e a governação civil, afrontar crises humanitárias e prevenir
conflitos regionais. Ao reagir eficazmente a essas situações
multifacetadas, a UE já dá um contributo considerável para acções
a longo prazo de prevenção do terrorismo. (Conselho da União
Europeia, 2004: 6)
No que respeita ao contributo específico da então designada PESD, foram identificadas
quatro áreas de atuão, entre as quais a reação e gestão das consequências
(tratamento dos efeitos de um atentado combinando meios militares e civis)
12
. Apesar
das diferentes sensibilidades nacionais quanto ao uso de meios militares na luta contra
o terrorismo, os documentos oficiais evidenciam um consenso relativamente a vários
aspetos, designadamente a prevenção da ameaça terrorista nos territórios dos Estados-
Membros, a proteção das instituições democráticas e das populações civis contra
ataques terroristas, incluindo NRBQ, e a assistência a um Estado-Membro alvo de um
ataque (Conselho Europeu, 2004)
13
Na mesma linha, encontra-se a cláusula de solidariedade em caso de ameaça terrorista
e de catástrofe natural ou de origem humana que, embora não se enquadre na PCSD,
prevê a mobilização pela União de “todos os instrumentos ao seu dispor, incluindo os
meios militares disponibilizados pelos Estados-Membros”
.
14
.
12
As restantes três reportam-se a: prevenção de ataques terroristas, incluindo operações de vigilância
marítima e aérea; proteção do pessoal, do material e dos meios, proteção de alvos-chave civis, incluindo
infraestruturas críticas, na zona das operações e proteção dos cidadãos europeus em países terceiros;
apoio a países terceiros na luta antiterrorista.
13
No plano externo, de referir o restabelecimento da ordem em Estados falhados e a estabilização pós-
conflito (União Europeia, 2004b).
14
Artigo 222 do Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia.
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O nexo interno-externo na narrativa securitária da União Europeia
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A Externalização da Segurança Interna
A cooperação europeia concretiza a externalização da segurança interna a dois níveis: a
externalização da segurança interna dos Estados-Membros (EMs); a externalização da
segurança interna da UE através da dimensão externa da sua atividade (cooperação
com organizações internacionais e Estados terceiros). Assim, a título exemplificativo, na
partilha de informações, a Europol concretiza a externalização quer da atividade policial
nacional quer da cooperação europeia
15
A cooperação em matéria de ‘segurança interna’, em rigor no domínio dos problemas
de segurança transnacionais entre EMs, foi lançada na década de 70 do século XX, fora
do quadro do Tratado de Roma e das instituições comunitárias, no âmbito mais
alargado da justiça e assuntos internos (JAI). O fator propulsor desta cooperação
interestadual informal foi o crescendo da atividade terrorista internacional na Europa
Ocidental que evidenciou os limites dos meios nacionais para lutar de forma eficaz
contra a ameaça.
. Nesta seção vamos incidir sobre o segundo
nível.
Em junho de 1976, os ministros reunidos no Luxemburgo estabeleceram uma estrutura
informal de cooperação TREVI - que “funcionou fora do quadro das Comunidades
Europeias numa base puramente intergovernamental como parte do processo de
cooperação no domínio da política externa” (Mitsilegas et all., 2003: 23). A estrutura
consistiu inicialmente em dois grupos - TREVI I, dedicado ao terrorismo transnacional,
e TREVI II, orientado para assuntos relativos à ordem pública, à organização e à
formação de forças policiais - constituídos por funcionários dos ministérios, das polícias
e dos serviços de informações nacionais. Nos anos 80, a agenda da cooperação passou
a prioritarizar a prevenção e luta contra atividades transnacionais tais como o tráfico de
droga e crime organizado, o que levou à criação do grupo TREVI III. O objetivo 1993
concretização do mercado interno
16
A segunda fase da cooperação foi iniciada pela revisão do Tratado de Maastricht que
introduziu, formalmente, a cooperação JAI no âmbito do Tratado da União Europeia
(TUE):
intensificou as preocupações securitárias
associadas à criação de um espaço europeu sem fronteiras internas, conduzindo à
criação de novos organismos de cooperação, entre os quais TREVI 1992 centrado na
cooperação policial e em matérias de segurança interna decorrentes da abolição das
fronteiras internas da Europa comunitária. De referir nesta evolução, o contributo do
Acordo Schengen e da subsequente Convenção de Aplicação, ainda que celebrado fora
do quadro do Direito Comunitário. Schengen, que antecipou a livre circulação de
pessoas entre os Estados signatários, também previa medidas compensatórias ao nível
da segurança.
15
Em 2006, a Europol aprovou a Estratégia Externa da Europol para 2006-2008. Em setembro de 2008 foi
decidido prorrogar a estratégia até 2009. A Estratégia da Europol 2010-2014 contempla vários pontos
sobre a dimensão externa: cooperação com parceiros chave através do estabelecimento de planos
operacionais conjuntos, de acordos e de atividades de I&D com vista ao desenvolvimento de novas
técnicas para prevenir e combater os crimes graves e o terrorismo.
16
Livre circulação de bens, capitais, serviços e pessoas.
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O nexo interno-externo na narrativa securitária da União Europeia
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11
“[A] mudança mais significativa (…) [foi] o fato de, através de
alterações aos tratados, as matérias de segurança interna serem
pela primeira vez trazidas para o centro do processo de
integração. (…) no contexto mais amplo da JAI, os assuntos de
segurança interna passaram a fazer parte da agenda política da
União” (Mitsilegas et al, 2003: 32).
O terceiro pilar da União Europeia manteve a natureza intergovernamental da
cooperação, ainda que utilizando as instituições comunitárias, com particular relevo
para o Conselho da UE. O Tratado de Amesterdão introduziu três alterações: a
comunitarização de algumas matérias JAI (imigração, asilo, justiça em matéria civil),
ficando o terceiro pilar restrito à cooperação policial e judiciária em matéria penal; a
integração do acervo Schengen no Direito Comunitário; a dimensão externa da JAI.
O Tratado de Lisboa consagrou alterações transversais, designadamente ao dotar a
União Europeia de personalidade jurídica, pelo que a cooperação no domínio da
segurança interna passou a estar sob a alçada de uma organização internacional, e ao
abolir formalmente os pilares
17
em prol de uma maior coerência entre políticas, em
geral, e entre a dimensão interna e externa da União, em particular. De referir ainda as
alterações espeficas no domínio da segurança interna: transferência desta matéria
para o Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE)
18
; consagração
terminológica de “segurança interna”
19
Nesta síntese evolutiva, merece destacar a institucionalização de agências promotoras
da cooperação em matéria de segurança interna. Em 1991, aquando da reunião do
Conselho Europeu, o então Chanceler da Alemanha, Helmut Kohl, inspirado pelo
modelo do FBI, propôs a criação de uma agência europeia de polícia (Europol, 2009:
11). Esta proposta esteve na origem da criação da Unidade de Drogas Europol. Na
sequência da entrada em vigor do TUE, foi celebrada, em 1995, a Convenção Europol
; controlo jurisdicional do Tribunal de Justiça da
EU; criação do Comité Permanente de Segurança Interna (COSI) “a fim de assegurar
na União a promoção e o reforço da cooperação operacional em matéria de segurança
interna” (artigo 71° TFUE); possibilidade de estabelecer uma Procuradoria Europeia
(artigo 86º TFUE) para combater crimes que afetem os interesses financeiros da UE. De
notar, no entanto, as exceções da componente operacional da cooperação: o
Parlamento é meramente consultado; o Conselho decide por unanimidade
(procedimento legislativo especial). A comunitarização sui generis, bem como o
procedimento especial, no quadro do TFUE, são sintomáticos da resistência estadual à
delegação de poder numa área que toca o núcleo duro da soberania.
17
De notar que prevalece, de forma encoberta, o segundo pilar (PESC/PCSD) e, no domínio da segurança
interna, uma comunitarização sui generis (iniciativa legislativa partilhada; procedimento legislativo
especial em matéria de cooperação operacional; opt-out (Protocolo nº 21 relativo à posição do Reino
Unido e da Irlanda em relação ao Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça; Protocolo nº 22 relativo à
posição da Dinamarca) e ‘travão de emergência (nº 3 do artº 82º TFUE).
18
Título IV, dedicado ao “Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça” (ELSJ) , constituindo uma das onze
áreas de competência partilhada: iniciativa legislativa, ainda que partilhada com os EM, da Comissão;
procedimento legislativo ordinário; princípio da maioria no seio do Conselho; adoção de regulamentos e
diretivas
19
Nas anteriores versões dos Tratados, a expressão era praticamente omissa. A cooperação em matéria de
segurança interna expressava-se através das expressões cooperação policial e judicial em matéria penal,
no quadro da JAI e, após a revisão de Amesterdão, do ELSJ. O Tratado de Lisboa acrescentou a expressão
‘segurança nacional’ que se reporta à ‘segurança interna dos EM’, distinguindo-se assim da ‘segurança
interna da UE’.
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12
com base no artigo K.3 do referido tratado. O serviço europeu de polícia é, desde 1 de
janeiro de 2010, uma agência
20
da UE que providencia análise estratégica e operacional
bem como apoio operacional aos EM, e, mais especificamente: intercâmbio de
informações; análise de informação; análise estratégica; apoio a operações; partilha de
conhecimento (Europol, 2009: 3). Concorrem ainda para a função de proteção da
União, mais três agências: a Eurojust (Unidade Europeia de Cooperação Judiciária),
criada em 2002
21
, contribui para a luta contra formas graves de criminalidade
transnacional através da coordenação das investigações e dos procedimentos penais
entre os EM; a Frontex, estabelecida em 2004, favorece a gestão integrada das
fronteiras externas dos EM; a CEPOL (Academia Europeia de Polícia), instituída em
2005
22
Originalmente pensada para o interior do espaço comunitário, a cooperação em matéria
de segurança interna extravasou mais tarde esse espaço ao contemplar uma dimensão
externa. Ainda que 1999 seja considerada a data marco dessa externalização
, promove formação de altos funcionários dos serviços de polícia dos EM, bem
como para a cooperação transfronteiriça na luta contra a criminalidade. A existência
destas agências resulta da sobreposição de dinâmicas supraestaduais (agências no
quadro do Direito da UE, articulação com as instituições supraestaduais), interestaduais
(coordenação de políticas e recursos nacionais), transgovernamentais (redes de
funcionários dos Ministérios, da polícia, procuradores, juízes, membros dos serviços de
informações).
23
, é
possível localizar precedentes na década de 80, designadamente associados à
necessidade, identificada pela Comissão Europeia e pelo Conselho, de integrar a luta
contra a droga e o crime organizado nas relações externas da União. Na mesma linha,
o Conselho Europeu de Amesterdão exortava “ o Conselho a prosseguir o seu trabalho
relativo à cooperação com regiões e países terceiros” (Conselho Europeu, 1997) no
âmbito do Plano de Ação contra a Criminalidade Organizada; o Conselho Europeu de
Viena
24
congratulava-se “com o desenvolvimento de várias iniciativas de cooperação
regional” e lançava “um apelo para que as iniciativas relativas à América Latina e à Ásia
Central sejam levadas por diante sem demora” (Conselho Europeu, 1998). De referir a
externalização de proximidade no que respeita aos candidatos à adesão: em 1998, os
Ministros JAI dos EM e dos países candidatos aprovaram um pacto de pré-adesão sobre
crime organizado (Conselho da UE, 1998). Ainda relativamente à proximidade, a
preocupação centrava-se nos Balcãs, com particular incidência sobre o crime
organizado, pelo que o processo de estabilização e associação, após a intervenção da
NATO no Kosovo em 1999, contemplou também a cooperação nesse domínio. O
racional securirio era explícito na narrativa europeia:
20
Em 2009, o quadro jurídico da Europol foi simplificado graças à substituição da Convenção Europol e
subsequentes Protocolos, pela Decisão do Conselho de 6 de abril de 2009 que criou o Serviço Europeu de
Polícia ao abrigo do título VI do TUE então em vigor.
21
A criação de uma unidade de cooperação judicial foi suscitada pelo Conselho Europeu de Tampere. Em
2000 foi estabelecida uma unidade provisória (Pro-Eurojust).
22
Equiparada a agência, é a sucessora da AEP criada pela Decisão 2000/820/JAI.
23
No quadro mais amplo da Justiça e Assuntos Internos.
24
Aprovou o primeiro plano de ação em matéria de Justiça e Assuntos Internos.
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13
“A escolha para nós neste caso é clara: ou exportamos
estabilidade para os Balcãs, ou os Balcãs exportam instabilidade
para nós” (Patten, 2002)
25
.
O Conselho Europeu de Tampere consagrou a externalização da segurança interna, no
quadro mais amplo da JAI ao salientar “que todas as competências e todos os
instrumentos de que dispõe a União, em particular a nível das relações externas,
deverão ser utilizados de forma integrada e coerente para que se possa criar um
espaço de liberdade, de segurança e de justiça. A Justiça e os Assuntos Internos devem
ser integrados na definição e implementação das outras políticas e actividades da
União” (Conselho Europeu, 1999).
No ano seguinte, o Conselho Europeu da Feira aprovou o relatório sobre as prioridades
externas da União Europeia no domínio JAI, afirmando que essas prioridades “deveriam
devem ser integradas na estratégia externa global da União a fim de contribuir para a
criação do espaço de liberdade, de segurança e de justiça” (Conselho Europeu, 2000).
Não se tratava de desenvolver uma política externa específica/paralela, mas consolidar
o Espaço de Liberdade, Segurança e Justiça (ELSJ) através da ação externa da UE e
sob controlo dos diplomatas.
“Esta ‘demonstração de força’ pelos diplomatas pode também ser
interpretada como um reconhecimento implícito da ‘contaminação’
progressiva dos objetivos da política externa da UE por
preocupações de segurança interna” (Wolff et al., 2009: 12).
Em suma, a estratégia era justificada pela “pressão de um mundo crescentemente
interligado e do inerente carácter internacional de ameaças”, passando a segurança e
estabilidade da União Europeia pela “projecção externa dos valores em que assenta o
ELSJ”, contribuindo a dimensão externa para aumentar a credibilidade e influência da
UE no mundo (Parlamento Europeu, 2007: 354).
O primeiro programa multi-presidências
26
25
“Even before the horror of 11 September, the recent tragic history of the Balkans had shown to Europe
and to the wider international community the danger that failed, or failing, states can pose to our stability
and security in this small and interconnected world. The Balkans have demonstrated how instability is
contagious, how quickly someone else's problem can become everyone's problem. (…) They have
reminded us and this too has wider application that standing up for our values when they are in danger,
standing up for democracy, for others' rights, for justice, is not flabby idealism: it is a matter of hard
security, and profoundly in our self-interest” (Patten, 2002). “Every country of the region is blighted by
the smuggling of drugs and cigarettes, by the trafficking of people and weapons, by corruption and by
racketeering. The cumulative effect is intolerable - important war criminals remain at large, often
sustained by organised crime. It is an affront to justice, a barrier to the progress and development of the
countries of the region, and a threat to the security of us all. Quite simply, it must stop” (Solana, 2002).
para a dimensão externa da JAI (Council of
the EU, 2002) previa a aprovação de estratégias comuns (Rússia, Ucrânia e
Mediterrâneo), o diálogo com parceiros (EUA, Canadá, América Latina, países EFTA e
países africanos) e a cooperação com outras organizações internacionais (Nações
Unidas, Conselho da Europa, Conferência de Haia e G7/G8).
26
O trio contemplava as presidências belga, espanhola e dinamarquesa.
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A pedido do Conselho Europeu foi elaborada uma Estratégia para a dimensão externa
da JAI com o propósito decontribuir para o estabelecimento sucedido da área interna
de liberdade, segurança e justiça, e prosseguir os objetivos das relações externas da
UE através da promoção do Estado de Direito, do respeito dos Direitos Humanos e das
obrigações internacionais” (Council of the EU, 2006: 3). A Estratégia RelExt JAI,
aprovada em dezembro de 2005, procurava articular esta área, a PESC, a PESD, a
Política de Desenvolvimento, a Estratégia de Segurança Europeia e os objetivos
económicos e comerciais da UE, definindo prioridades temáticas
27
e geográficas (países
candidatos; países vizinhos; parceiros estratégicos)
28
. No ano seguinte, teve lugar, em
Viena, uma Conferência Ministerial na qual os representantes da UE, de países
terceiros, dos Estados Unidos, da Rússia e de outras organizações internacionais,
debateram o papel da segurança interna nas relações entre a UE e os seus vizinhos. A
prioridade geográfica também se explica pela proximidade:
A segurança interna não pode ser garantida isoladamente do resto
do mundo e, em particular, da vizinhança europeia imediata. Por
conseguinte, é importante assegurar a coerência e
complementaridade entre as vertentes interna e externa da
segurança da UE. Tal como reconhecido na Estratégia Europeia de
Segurança e na Estratégia de Segurança Interna, as relações com
os nossos parceiros assumem uma importância fundamental na
luta contra a criminalidade grave ou organizada e o terrorismo.
(Comissão Europeia, 2011: 12).
Para facilitar a coordenão entre os grupos JAI e RELEX, designadamente ao nível do
intercâmbio de informação e de reflexões estratégicas e horizontais, foi criado o Grupo
de Trabalho JAIEX
29
Como se desenvolve a cooperação na área sensível da segurança interna? Quatro
princípios presidem à dimensão externa (Comissão Europeia, 2011: 3): diferenciação,
por área regional e/ou país; condicionalidade, isto é, o reforço da cooperação é gradual
e dependente dos progressos realizados e do êxito da mesma nos donios acordados;
coerência com a política externa global da EU, com outras políticas pertinentes e com
as cooperação nas diferentes regiões/países; regionalização, que se traduz no apoio a
iniciativas de cooperação regional e sub-regional. A cooperação compreende três
níveis: geral, enquadrado pelos acordos de parceria e cooperação ou de associação que
contemplam várias áreas, incluindo a segurança interna; específico através de acordos
em matéria de segurança interna; operacional, sobretudo associado à dimensão
externa das agências da UE. A cooperação concretiza-se atras de instrumentos
legais, políticos, diplomáticos e financeiros: acordos/ tratados/convenções, declarações
políticas conjuntas, programas/agendas/planos de ação; reuniões (desde cimeiras
.
27
Terrorismo, crime organizado, corrução, tráfico de drogas, gestão dos fluxos migratórios.
28
África do Norte (combate ao terrorismo), Balcãs Ocidentais e outros países vizinhos (luta contra a
criminalidade organizada, a corrupção, a imigração ilegal e o terrorismo), Afeganistão (combate à
produção e ao tráfico de droga) e países africanos (cooperação em matéria de migração).
29
Este Grupo de Trabalho do Conselho da União Europeia, inicialmente com a designação de Grupo de Apoio
(JAI-RELEX Ad Hoc Support Group), tornou-se permanente (JAI-RELEX Working Party), em 2010, após a
entrada em vigor do Tratado de Lisboa.
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O nexo interno-externo na narrativa securitária da União Europeia
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15
anuais ao mais alto nível até encontros regulares entre alto funcionários, passando
pelas reuniões dos conselhos, comités e subcomités de cooperação); redes de
especialistas e profissionais; programas de assistência.
A título exemplificativo, consideremos a cooperação UE-Rússia. A Cimeira de São
Petersburgo, em 2003, lançou os quatro espaços comuns da cooperação, incluindo o
espaço da liberdade, segurança e justiça. Dois anos mais tarde, foi aprovado o
respetivo roteiro
30
, cuja execução é monitorizado pelo organismo central da
cooperação, o Conselho da Parceria Permanente no domínio da LSJ que reúne duas
vezes ao ano. O roteiro, no ponto relativo à segurança, prevê a cooperação no combate
ao terrorismo e a todas as formas de crime organizado
31
. A cooperação tem-se
traduzido sobretudo no apoio à elaboração de legislação, na formação e no intercâmbio
de informação. Ao longo dos anos têm-se verificado uma “rede crescente de contactos
profissionais, reuniões e consultas, compromissos” (Hernández i Sagrera e Potemkina,
2013: i). Pese embora o efeito positivo desta socialização, os resultados concretos da
cooperação têm sido limitados. No domínio específico da segurança interna
32
, a
agenda tem sido dominada pelo crime transnacional, o tráfico de droga e o
terrorismo
33
. Foi ainda celebrado um acordo operacional entre a Rússia e a Frontex
destinado a promover a cooperação prática a três níveis: formação, intercâmbio de
conhecimentos e de boas práticas; partilha de informações para análise de risco;
operações conjuntas. O acordo concluído com a Europol
34
, anterior à aprovação do
roteiro, limita-se à partilha de informação estratégica
35
e de documentos de avaliação
da ameaça, não tendo sucedido ainda as negociações para um acordo operacional
36
.
Apesar de duas rondas negociais
37
, não foi ainda concldo o acordo com a Eurojust,
pelo que até ao presente a cooperação concretiza-se nas reuniões dos funcionários de
ligação das partes. O principal obstáculo à cooperação resulta do uso da
condicionalidade política pela UE que não é bem aceite pela Rússia (Hernàndez i
Sagrera e Potemkina, 2013). Adicionalmente, de referir o défice de confiança mútua,
fundamental em áreas sensíveis como a segurança, a heterogeneidade de culturas
jurídicas e administrativas e ainda as diferenças na perceção das ameaças.
30
“Road Map on the Common Space on Freedom, Security and Justice” (EU-Russia Permanent Partnership
Council on Freedom, Security and Justice, 2005).
31
O road map contempla as seguintes áreas: terrorismo, segurança de documentos, crime organizado
transnacional, lavagem de dinheiro, tráfico de droga, tráfico de seres humanos, corrução, furto de
veículos e artigos com valor histórico e cultural.
32
A agenda mais ampla do LSJ contempla o movimento de pessoas e migração. Foram celebrados dois
acordos (Agreement between the Russian Federation and the European Community on the facilitation of
the issuance of visas to the citizens of the Russian Federation and the European Union e Agreement
between the Russian Federation and the European Community on readmission, 2006) e está em execução
os "Common Steps towards visa free short term travel for Russian and EU citizens"(2011).
33
“European Union Action Plan on Common Action for the Russian Federation on Combating Organised
Crime” (2000), “Memorandum of Understanding between the Federal Service of the Russian Federation
for Narcotics Traffic Control and the European Monitoring Centre for Drugs and Drug Addiction” (2007).
Disponíveis em:
http://www.russianmission.eu/en/basic-documents.
34
Agreement on Co-operation between the European Police Office and the Russian Federation (2003).
35
Não permite a transferência de dados.
36
“Discussion with the Russians had been rather empty. Professor Rees thought that Russia was resistant to
EU incentives because the Kremlin considered itself to be too important to have its policies molded by
Brussels” (House of Lords, 2011: 21).
37
As partes iniciaram a negociação em 2009.
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Considerações Finais
No pós-Guerra Fria, a edificação da actorness europeia no domínio da segurança foi
acompanhada pela narrativa dos nexos securitários. Esta narrativa começou por
emergir associada às funções de prevenção e assurance para as quais concorre o nexo
entre segurança e desenvolvimento. Neste contexto, foi dado particular relevo às root
causes da conflitualidade, bem como às situações de fragilidade estadual consideradas
como obstáculo ao desenvolvimento e fonte de instabilidade regional e internacional. O
nexo serve os interesses da organização internacional (como forma de aumentar a
eficácia actorness internacional e securitária da UE), da Comissão Europeia (partindo de
uma área de sua competência onde detém experiência acumulada) e dos Estados-
Membros (europeização das políticas nacionais).
Os ataques terroristas de 11 de setembro de 2001 e subsequentes em palco europeu
tiveram um efeito amplificador de tendências anteriores consolidando a abordagem
holística (comprehensive approach) da segurança, a ambição de actorness global e as
narrativas e práticas securitizadoras. Neste contexto, foi reforçado “o nexo entre os
aspetos internos e externos da seguraa” o qual decorre de três dimicas que se
reforçam mutuamente: internalização de fenómenos de incidência externa;
externalização de fenómenos de incidência inicialmente interna; fenómenos de
natureza transfronteiriça.
A análise de três expreses do nexo (dimensão civil da PCSD, internalização da PCSD,
externalização da segurança interna) demonstrou que, subjacente ao mesmo, está um
racional combinado: securitário (garantir a segurança e estabilidade da UE face a riscos
e ameaças transnacionais); político (consolidão da área específica do ELSJ bem como
da ação externa da UE); institucional (interesse da Comissão Europeia em desenvolver
as componentes da segurança em que pode ter mais presença). A narrativa
securitizadora é constrda com base na ideia do perigo de falta de controlo num
mundo globalizado de ameaças adjetivadas de dinâmicas, menos visíveis,
impreviveis, em que o distante, percebido como frágil, instável e inseguro, se tornou
próximo. A actorness e a narrativa securitizadora dos nexos são assim co-constitutivas:
apropriação de políticas e instrumentos de um ator multifuncional para fins
securitários; securitização dos assuntos com vista à consolidação das políticas e à
projeção do ator. Em suma, o nexo in/out é justificado pelo ambiente (oportunidade),
legitimando o uso de diversos instrumentos (capacidade) em prol da atorness europeia
(presença).
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OS DOIS CONFLITOS MUNDIAIS COMO ILUSTRAÇÃO
DA AUSÊNCIA DE ANARQUIA INTERNACIONAL
António Horta Fernandes
ahf@fcsh.unl.pt
Docente do Departamento de Estudos Polítcos da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas
(FCSH), Investigador do Centro de Histótia d'Aquém e d'Além-Mar (CHAM/FCSH) da Universidade
Nova de Lisboa. Estrategista da Escola Estratégica Portuguesa.
Resumo
A Grande Guerra, as décadas conturbadas que se lhe seguem, nomeadamente a década de
trinta do século XX, culminando na Segunda Guerra Mundial, e, posteriormente, a Guerra
Fria, a seu modo, são momentos históricos privilegiados para se comprovar da
impossibilidade de sustentar uma das imagens mais famosas das Relações Internacionais, a
de anarquia internacional. A ideia de um estado de guerra ontologicamente permanente,
que não fenomenologicamente, é incompatível com um mundo pejado de soberanias. Ora,
estas soberanias nunca perderam o controlo político-estratégico das guerras, nem mesmo
no caso dos principais conflitos do século XX. Todos esses conflitos foram estrategicamente
mediados e nunca deram lugar ao reinado da guerra absoluta.
Palavras chave:
Anarquia; Guerra, Estratégia; Soberania
Como citar este artigo
Fernandes, António Horta (2015). "Os dois conflitos mundiais como ilustração da ausência
de anarquia internacional". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 6, N.º 1,
Maio-Outubro 2015. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol6_n1_art2
Artigo recebido em 18 de Julho de 2014 e aceite para publicação em 16 de Abril de
2015
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Os dois conflitos mundiais como ilustração da ausência de anarquia internacional
António Horta Fernandes
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OS DOIS CONFLITOS MUNDIAIS COMO ILUSTRAÇÃO
DA AUSÊNCIA DE ANARQUIA INTERNACIONAL
António Horta Fernandes
A Grande Guerra, as décadas conturbadas que se lhe seguem, nomeadamente a
década de trinta do século XX, culminando na Segunda Guerra Mundial, e
posteriormente a Guerra Fria, a seu modo, são momentos históricos privilegiados para
se comprovar a impossibilidade de sustentar uma das imagens mais famosas das
Relações Internacionais. Referimo-nos à ideia de anarquia internacional.
Naturalmente é mister colocar de antemão os termos da questão. Obviamente que não
nos iremos debruçar aqui, num espaço tão curto, sobre todas as nuances acerca dos
conceitos de guerra e de anarquia internacional, nem escorar ponto a ponto as
justificações para a apresentação definitória dos conceitos que fazemos. As respectivas
definições servem apenas para moldar o discurso, para que o leitor saiba do que
estamos a falar quando argumentamos em torno da guerra e da anarquia internacional.
1. Guerra e Soberania: a normalização soberana da guerra e a guerra
absoluta
Assim, abrindo com o conceito de guerra, o mesmo pode ser definido como “violência
(enquanto luta, duelo em escala) entre grupos políticos (ou grupos com objectivos
político-sacrais), em que o recurso à luta armada constitui, pelo menos, uma
possibilidade potencial, visando um determinado fim nos limites (de preferência
exteriores) da política (ou fins políticos em grande parte, mas não na totalidade, a
partir da modernidade), dirigida contra as fontes do poder adversário e desenrolando-
se segundo um jogo contínuo de probabilidades e acasos”
1
Naturalmente que aqui os parênteses são fundamentais, pois a internalização de jure
da guerra na acção política, na constituição do próprio ser da política, é algo que se vai
firmando apenas na Idade Moderna, e paulatinamente, por intermédio de uma força
todo-poderosa que irá adquirir meios para isso, a saber: a soberania. Deve-se ao
soberano, esse poder absoluto, perpétuo e indivisível, definido pela excepção, pela
faculdade de proclamar o estado de excepção, a normalização da guerra.
.
1
Para quem está familiarizado com os meios da estratégia, terá verificado que a presente definição é
inspirada naquela outra de Abel Cabral Couto. A definição do estrategista português foi originalmente
publicada por este em (Couto, 1989: 148), que a apresenta da seguinte forma: “violência organizada
entre grupos políticos, em que o recurso à luta armada constitui, pelo menos, uma possibilidade
potencial, visando um determinado fim político, dirigida contra as fontes do poder adversário e
desenrolando-se segundo um jogo contínuo de probabilidades e acasos”.
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Entendendo-se por normalização da guerra a dessacralização, a secularização operada
pelo soberano nessa força até aí mitificada, sacralizada de forma distópica e posta fora
do comércio normal dos homens. Aquilo que o soberano faz é concatenar os mundos da
paz e da guerra apartados até à modernidade, encaixar ordem e desordem uma na
outra num novo estado, que exprime a possibilidade, a eventualidade ontológica e
fenomenológica da guerra permanente, porque doravante a guerra é considerada como
acção política ordinária. Um estado que, à falta de melhor designação, se poderia
denominar um estado de paz mediante condicionalidades soberanas.
Como está bom de ver, é essencial ao soberano, ou se quisermos concretizar, aos
vários soberanos da cena internacional, uma quota-parte de controlo última de que não
podem abdicar, porquanto alguém só se pode ser suserano daquilo que não se lhe
escapa. É que o estado de excepção não é o caos que precede a ordem ou sucede ao
seu fim, mas aquele onde a ordem vigora sob a forma (peculiar) de suspensão dos
comandos legais propriamente ditos, onde a informulabilidade da lei, e a dificuldade em
saber se estamos a observar ou a transgredir, a norma é máxima; um estado em que
se está completamente dependente da discricionariedade do soberano, ou dos
mecanismos soberano-governamentais, que não da sua arbitrariedade, em sentido
próprio, já que isso remeteria para o anárquico, na qualidade de puro desordenado
2
Acontece que se a guerra é, em parte, um estado de excepção, em que se pode matar
sem que tal seja considerado homicídio, é igualmente uma excepção que excede esse
mesmo estado de excepção, por assim dizer. Não podemos esquecer que o valor de
utilidade marginal, aquele núcleo que estabelece o “preço”, o sentido ou des-sentido
último da guerra enquanto fenómeno com consistência interna, autónoma, quer dizer,
com a sua própria gramática, é aquilo que Clausewitz designou por guerra absoluta.
Isto é, o cerne irredento da guerra, a caótica abissal, o cilindro estanque da pura
violência, o núcleo mais íntimo do conflito bélico, que embora não perfazendo todas as
manifestações de guerra, está presente e municia cada uma das guerras que
deflagram, promovendo sempre a asceno aos extremos, porque o que é próprio do
extremo é extremar-se, materializar-se por completo. Significa isto que uma guerra
alimentada no essencial pelas suas próprias fontes perfaz um estado politicamente
incontrolável, até para um poder soberano. Dito de outro modo: tendo a guerra sua
própria gramática, a sua própria consistência interna, ou para dizê-lo com maior
propriedade, o seu próprio motor de corrosão, de dissimetrias abismais, de
desagregação, há nela um núcleo que nunca se rende, nem à mão-de-ferro do
soberano. Infelizmente, é essecleo que lhe dá vida, que abala todos os alicerces da
normalidade, inclusive dessa temível “normalidade” em forma de suspensão
característica da lógica soberana. Por mais que seja controlada, a guerra comporta em
si esse caos que constantemente elide a ordem e se desenfia, inclusive da
discricionariedade soberana. Dei-lo à solta é arriscar a perdão, e é verdade que a
lógica soberana criou condições, mais que nenhum outro aparato político, para que a
guerra se aproximasse da ascensão aos extremos, como bem viu Clausewitz
.
3
2
Acerca das características do estado de excepção, tal como as apresentamos, somos devedores de
Agamben (Agamben, 2006: 105-106).
.
3
(Clausewitz, 1986: livro VIII, cap.IIIB, 593 e livro VIII, cap.VIB, 606), respectivamente, para a
constatação de que no período napoleónico a guerra se aproxima da ascensão aos extremos, da sua
forma absoluta conspicuamente libertada, mediante actos soberanos, e para a ideia de que uma política
poderosa, e a política soberana é-o, Clausewitz está consciente disso, pode ajudar a libertar a guerra
absoluta dos freios fenoménicos que geralmente a aperram.
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2. Anarquia Internacional como Estado de Guerra: a impossibilidade da
guerra permanente num mundo pejado de soberanias
Importa agora debruçar-nos sobre o conceito de anarquia internacional, indo de
imediato à linha definidora que subjaz à estrutura do pensamento realista, aquela que
caucionou a imagem de anarquia internacional. Ora, a nosso ver, o mais consequente
dos pensadores realistas sobre o tema é Kenneth Waltz, porque é aquele que
verdadeiramente coloca o problema de forma franca, embora de maneira mais ou
menos tácita, em todos os outros internacionalistas de pender realista se possa
depreender o sentido que está claro na sua formulação:
among men as among states, anarchy, or the absence of
government, is asociated with occurrence of violence (Waltz,
1979: 102).
Quer eno dizer que o conceito de anarquia (no senso de desordem) pressupõe uma
unidade inextrincável com o conceito de guerra. Obviamente, não há sequer um único
internacionalista afim ao conceito de anarquia internacional a interpretar a anarquia
internacional como um permanente e generalizado estado fáctico de guerra ou de
desordem. A guerra não tem, na vida internacional corrente, um carácter de
necessidade fáctica. O conceito de anarquia internacional significa antes que, em última
análise, cada actor internacional não pode depender senão das suas capacidades
impositivas, do seu poder sem mais. Ou seja, mesmo não havendo guerra nem
desordem efectiva (fenomenologia), esta pende permanentemente sobre os actores,
mais que como possibilidade, como a razão de ser última (ontologia) do seu
comportamento. Daí poder afirmar-se ser a anarquia um estado de desordem
inapelavelmente ligado à violência bélica, o mesmo é dizer, que o sentido ou (des)-
sentido da violência fundamenta a política internacional, é o seu pano de fundo, a sua
seiva ontológica, a sua alma nutriz. Em suma, o estado de guerra é ontologicamente
patente e, por vezes, também fenomenologicamente efectivo.
A distinção é franca e Hobbes já percebera muito bem no Leviatã quando afirma que
“a guerra não consiste apenas na batalha, ou no acto de lutar, mas
naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de travar
batalha é suficientemente conhecida.[…] a natureza da guerra não
consiste na luta real, mas na conhecida disposição para tal,
durante todo o tempo em que não há garantia do contrário. Todo o
tempo restante é de paz. Portanto, tudo aquilo que é válido para
um tempo de guerra, em que todo o homem é inimigo de todo o
homem, o mesmo é válido também para o tempo durante o qual
os homens vivem sem outra segurança senão a que lhes pode ser
oferecida pela sua própria força e pela sua própria invenção. Numa
tal situação não há lugar para a indústria, pois o seu fruto é
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incerto,; consequentemente não há cultivo da terra, nem
navegação, nem uso de mercadorias[…],
e por aí fora, continua Hobbes. Curiosamente, argui pouco depois que, embora os
soberanos vivam em constante rivalidade, de armas assestadas, quais gladiadores
vigiando-se mutuamente, o que para ele constitui uma atitude de guerra, conclui, no
entanto, que
“como através disso protegem a indústria dos seus súbditos, daí
não vem como consequência aquela miséria que acompanha a
liberdade dos indivíduos isolados” (Hobbes, 2002: cap.XIII, 111-
112).
Aquilo para que Hobbes nos está a chamar a atenção é que a atitude dos soberanos
configura uma predisposição estrutural para a guerra, mas não mais do que isso (o que
já não é pouco, saliente-se), porque se fosse mais do que isso, nem sequer indústria
haveria para proteger, tudo se resumiria à indigência que acima o próprio descreveu.
Bastava somente a esta precisa argumentação de Hobbes para confutar qualquer
tentativa apressada de firmar no filósofo inglês a ideia de anarquia internacional.
Contudo, isso já são contas de outro rosário
4
Porém, se a anarquia internacional concerne a um estado endémico de violência bélica,
temos um verdadeiro problema de incompatibilidade de raiz para encarar. Um estado
de guerra estrutural relativo tanto à p-compreensão como à compreensão ontológicas
dos actores políticos do seu próprio ser não é de todo compatível com a vigência do
modo de ser ordenador da soberania. O problema não está na passagem de hostis a
inimicus, porque o soberano franqueia com facilidade as portas. O grau qualitativo com
que os adverrios se encaram não é a este propósito decisivo, porque os soberanos,
fruto da sua necessidade ordenadora, mesmo só brigando sob determinados eixos,
podem muito bem diabolizar o oponente, mesmo que essa escolha seja mais arriscada,
porquanto facilita (não implica necessariamente) a ascensão aos extremos e o possível
governo da guerra. O problema reside na extensão da desordem, ou na sua
“estabilização” nuclear, precisamente no governo da guerra como pano de fundo,
enquanto princípio ontológico que balize os comportamentos e na qualidade de
princípio epistemológico de explicação dos mesmos, pois isso sim seria a morte do
soberano, porque, por definição, o que se subtrai à ordem escapa à suserania do poder
absoluto de dar e quebrar a lei. O estado de guerra tornado regra liquidaria as
pretensões soberanas. Se o fundo operativo das relações internacionais fosse a guerra
a soberania nunca teria existido, e como a soberania existe e os racionais soberanos
ainda são dominantes, o estado de guerra não pode ser determinante. O lorde
protector de Hobbes não protegeria nada, o leviatã não seria tal, o que parece uma
contradição nos termos, já que é aos soberanos que se fica a dever essa predisposição
(normalizada) para a guerra, dado o enorme potencial de conflito gerado pela presença
contígua de poderes por natureza excludentes. Além do mais, não se trata somente da
.
4
A confutação da escora da ideia de anarquia internacional em Hobbes, bem como uma crítica radical aos
fundamentos do conceito de anarquia internacional pode ler-se em (Fernandes, 2012).
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consistência lógica do ser da soberania ser afectada radicalmente pelos abismos
entrópicos da guerra em si feitos motor da política internacional, mas da realidade
primeiríssima da sororidade, incontornável até para os soberanos, o ficar igualmente,
como se procurou mostrar noutro lugar (Fernandes, 2012: 93-97). Onde grassam os
soberanos a anarquia pura e simples não faz sentido, a guerra não é a palavra
primeira, apenas a sua possibilidade o é. Contudo, como estamos a falar do domínio
ontológico e não apenas fenomenológico, a diferença entre a eventualidade de ser e o
registo de ser é abissal.
Dito de outra forma, atendo à secularização da guerra de que já fizemos menção. Se a
guerra fosse fundo ontológico permanente, não apenas ninguém aguentaria um tal
estado de coisas por muito tempo, mas sobretudo seria remitificada, ressacralizada
como potência demoníaca, e, desse modo, posta fora do alcance do soberano, que é,
na melhor das hipóteses, um deus mortal, para parafrasear Hobbes referimo-nos à
figura da soberania e não só à condição mortal de cada homem que a encarna. Pior,
como a soberania já tinha destruído antes a dicotomia ontológica entre a paz e a
guerra, esta presença sacral, incontrolada, da guerra far-se-ia sentir agora muito mais
próxima da vida comum, e, por consequência, ainda menos manejável e monitorizável
pelo homem, com inclusão da máxima figura de poder que este entretanto criara, a
soberania, tão absoluta quanto o absoluto que é permitido ao homem alcançar nos
limites do pensável do seu ser criatural.
Com a modernidade a guerra passou a pender, por dentro, sobre a cabeça dos homens,
como permanente possibilidade, e por isso se tornouo fácil acionar o mecanismo de
abertura da Caixa de Pandora. Mas não como permanente força de ser, passiva ou
activa, porque o ser em potência também é ser. Se a guerra fosse essa permanente
força de ser, implicaria revalorizar em alta a guerra absoluta, isto é, pôr a guerra a
ditar as regras, tornar a política a continuação da guerra por outros meios, o que, como
é sabido, nunca se verificou. Embora, na aparência, nada obste a que se possa vir a
verificar
5
Seja como for, basta haver soberania enraizada para a conjugação de um estado de
anarquia internacional com essa mesma soberania ser um oximoro. Quando se julgaria
precisamente o contrário: a dinâmica soberana teria catalisado a anarquia. Maior erro
de análise não existe, mas também não é este o lugar para buscar as razões do erro.
.
3. Política e Estratégia nas Duas Primeiras Guerras Mundiais: a
ausência de anarquia
Afinal, como servem as duas conflagrações mundiais de comprovação do nosso
argumento, quando aparentemente até nos deveríamos livrar delas como escolhos
pontuais?
Uma primeira resposta não é dicil. A guerra foi feita por soberanos e estes
continuaram a existir, logo não há lugar sustentado para anarquia no caso vertente
pouco importa a configuração concreta que a soberania foi tomando desde do dealbar
5
Em bom rigor, temos dúvidas face a certas prevenções antropológicas em fundo metafísico. Todavia, não
é este o lugar para as desenvolver.
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António Horta Fernandes
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da Idade Moderna até hoje
6
O primeiro conflito mundial vê erguer-se com pujança um intermediário, de que ainda
não falámos, na divisão social do trabalho político, integrada que foi a guerra na
arquitectura da política: referimo-nos à estratégia.
. Todavia, poder-se-ia contrapor que durante a guerra
talvez os soberanos tivessem perdido o controlo e posteriormente o reganhassem.
Coisa estranha, dada a virulência das duas guerras e as alterações históricas ocorridas
por via delas. De qualquer maneira não seguiremos por essa senda, antes introduzindo
um elemento adicional.
Antes de continuar, e tal como para os conceitos de guerra e de anarquia internacional,
não desenvolveremos aqui os pressupostos justificatórios da definição de estratégia
que apresentaremos de seguida. Tomamos a liberdade de registar uma definição
branda, o mesmo é dizer, consensual e de acordo com os melhores cânones clássicos
da teoria da estratégia desde há 50 anos, no mundo continental, aquele onde a
disciplina tem sido cultivada sem as insuficiências que a caracterizam no mundo anglo-
saxónico. Assim, podemos definir a estratégia como a sabedoria prática desenvolvida
pelos actores políticos, com expressão colectiva, a fim de preparem e conduzirem a
conflitualidade hostil uns face aos outros.
Pois bem, retomando o evolver, quando se desencadeia a Grande Guerra, embora a
estratégia continue a ser, no essencial, estratégia militar (e irá continuar a sê-lo até ao
fim da Segunda Guerra Mundial)
7
6
Se atentarmos à importante obra de Christopher Clark sobre as origens da Grande Guerra, facilmente se
pode depreender que, embora nos anos imediatamente antecedentes à conflagração houvesse cada vez
mais vozes disponíveis para aceitar uma possível guerra, a concebê-la como uma certeza imposta pela
índole das relações internacionais, que poderia até ser terapêutica, (279-281), distava de ser geral a ideia
de que a cena internacional era no essencial e em si mesma uma arena. Era sim um terreiro de possível
confrontação, fruto do choque de interesses das soberanias e das lutas pelo poder em que estas se
implicavam (Clark, 2013: 237-239). O que obviamente aponta para as lógicas soberanas, no limite, para
o frenesim sempre díscolo da cinética soberana (difícil de controlar até para os próprios soberanos que
iniciam o movimento, como se pôde verificar com o desenlace da Grande Guerra), e não para o vazio
soberano e da sua peculiar ordem.
, e apesar de se notar já o desabrochar dos alicerces
para outras estratégias, então recolhidos no conceito em voga, o de defesa, uma
espécie de albergue espanhol que acolhe tudo o que ainda não possui um lugar
conceptual preciso, o certo é que, fruto das novas condições da guerra industrial e da
noção de nação em guerra, se percebe que à estratégia não é possível acantoná-la
mais enquanto conduta operativa da guerra, de alguma forma nesta imersa. À
estratégia é requerida a preparação do conflito e o vislumbrar objectivos de saída dele.
Na prática, a topologização horizontal da estratégia em relação à política e à táctica,
isto é a sua diferenciação das mesmas pela natureza social das acções e dos
protagonistas, tende a ser substituída por um critério vertical, em que o que interessa
7
Na verdade, para utilizar uma metáfora cara ao refundador da escola estratégica portuguesa, Abel Cabral
Couto, o último dos grandes mestres clássicos da estratégia ainda, felizmente, vivo e em ebulição
conceptual, a Grande Guerra lança as primícias decisivas para a passagem de uma estratégia ainda
aperrada em exclusivo à servidão militar, a estratégia como recital de um instrumento a solo, nas
palavras do Mestre, para uma estratégia em que o instrumento particular ainda é determinante, mas que
está já envolvido por todo um conjunto de dimensões de apoio, mobilizadas entretanto, e que serão o
embrião das futuras estratégias económica, diplomática (talvez esta seja logo, muito precocemente, a
primeira a despontar), ideológica, cultural, comunicacional, entre outras possíveis. É a estratégia como
concerto para um determinado instrumento. A versão a que chegámos, como é sabido, é a da estratégia
integral, onde se procura que os diversos naipes de instrumentos, as diversas estratégias gerais,
promovam harmoniosamente a manobra conjunta. Trata-se da estratégia na sua versão sinfónica, no
dizer de Abel Cabral Couto. Naturalmente que se na música não se deve colocar estra tríade em termos
de progresso qualitativo, já na estratégia sim. Resta acrescentar que ao desenvolvimento de diversas
formas de estratégia que não só a militar, correspondeu igual desenvolvimento de diversas modalidades
de guerra que não só a luta armada.
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já não é tanto o que se faz adentro e imerso no conflito mas a relação do agir com o
poder político director e as consequências integrais da acção. Significa isto que as
racionalidades sociais estratégicas - a conduta específica de uma dada sociedade face
ao conflito hostil), que pela sua natureza excepcional, gera fins intermédios próprios
em correlação com os fins políticos directores - ganham uma espessura que até aí não
tinham tido.
Qual é a importância deste facto? A resposta não é dicil de antever, pelo menos para
os estrategistas. É que as conflagrações bélicas do tipo das duas guerras mundiais
tendem a inverter a pirâmide estratégica, a subordinar, ou, pelo menos, a reduzir os
objectivos políticos àqueles que têm a ver com a hostilidade e caem debaixo da alçada
da estratégia. É uma situação negativa, que põe em causa o próprio cerne da
estratégia, a assunção prudente (no sentido dianoético) do conflito, e que a estratégia
tenta contrapor como pode, retroagindo sobre uma dinâmica mais violenta da própria
política, para evitar a delapidação desbragada de recursos humanos e materiais, mas
nem sempre o conseguindo com êxito. De qualquer forma, para os nossos propósitos, o
essencial está em assinalar que nessas ocasiões, que não são meramente pontuais
tanto na Grande Guerra como na Segunda Guerra Mundial, não é a política que claudica
face à guerra, antes é a política que claudica, ou melhor, se estreita à gestão da
violência. Gestão essa que, mesmo ao percutir as membranas mais violentas da
estratégia, fazendo da estratégia uma função sobre-estratégica, está longe, e este
ponto é decisivo, de ser a violência desalmada que configura o olho da guerra. Pelo
contrário, e embora a prudência estratégica seja transfigurada em mero cálculo
malicioso para apurar capacidades de infligir danos ao adversário, correndo o risco de
incrementar a violência até ao descontrole, desvirtuando a própria natureza da
estratégia, que é o apaziguar do conflito, o contrafogo por dentro do incêndio, ainda
assim, nessa gestão (senão não era gestão), continua presente um ir ao leme, uma
ponderação materializada, um não estar desfeito pela procela da violência, mesmo nos
casos mais extremos de afunilamento político, de inversão da pirâmide, de
subordinação da política à estratégia.
Por que rao assim é? Por que é que a estratégia, dominante, quer dizer, em processo
ultimamente autofágico - que o que torna estratégica a estratégia é assumir o seu
lugar piramidal enquanto disciplina de fins intermédios, o querer-se enquadrada pela
política num espaço organizado em torno de um controlo firme da violência - pura e
simplesmente não ateia o fogo que resta atear? Porque a natureza visceral da
estratégia, mesmo quando era apenas conduta da guerra, foi sempre a de ser esse
contraponto personalista ao descambar da violência, mais do que isso, quinta-coluna
no seio do inaudito para tentar ajudar a apagar de vez todas as ínferas chamas, criar
condições para uma paz definitiva.
Restam, não obstante, duas objecções. A primeira, tem a ver com o desenvolvimento
do conceito de guerra total e a sua aplicação prática. Todavia, o conceito de guerra
total, introduzido pelo político e jornalista francês Léon Daudet, em 1918
8
8
Daudet define a guerra total como a “extensão da luta nas fases mais agudas e crónicas aos domínios
político, económico, comercial, industrial, intelectual, jurídico e financeiro. Não são só os exércitos que se
batem, são as tradições, costumes, códigos, espíritos e sobretudo os bancos” (Daudet, 1918: 8).
, e depois
substancialmente desenvolvido e popularizado pelo general alemão Erich Ludendorff,
em 1935, na sua obra A Guerra Total, não é, como poderia parecer à partida a caução
de uma guerra de extermínio, de uma guerra sem quartel, levando a guerra até às
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últimas consequências. A obra de Ludendorff não vai nesse sentido, pelo contrário, a
guerra total, pressupondo uma política total, onde o político deve ceder ao
comandante-em-chefe, deve ser o comandante-em-chefe, submetendo, por
conseguinte, a política à estratégia, exactamente por ser totalizante nos meios e no
empenho, exige que seja fortemente controlada. As operações devem cessar
rapidamente após a realização possível do objectivo para evitar a desagregação interna
da sociedade. (Ludendorff, 1941, 36, 113, 233 e ss)
9
Na realidade, o conceito de guerra total é a expressão histórica de uma era que se abre
com o fim da Grande Guerra e cessa com o culminar da Segunda Guerra Mundial,
dominado pela ideia da utilização de todas as formas de luta, simultaneamente e com a
máxima intensidade, e caracterizando-se ainda pela redução da política aos objectivos
de hostilidade, aqueles que caem debaixo da alçada da estratégia, se não mesmo pela
subordinação da política à estratégia (que não à guerra) em razão da auto-
neutralização prudencial desta; ou melhor, transformando o seu registo dianoético, em
mero calculismo, manha, sofisticada ponderação arteira, ainda que nunca expulsando
de si, apesar da deriva, o senso primeiro de contenção.
.
Na prática, verificou-se que a inversão da pimide não era só uma possibilidade séria,
mas foi um facto histórico. É certo que, em teoria, o estreitamento da política aos
objectivos políticos de hostilidade pode ainda configurar uma situação de
sobredeterminação política em relação à estratégia, reduzindo a síntese política a esses
objectivos, ou tornando-os ancilares para a definição de conjunto do que se quer ser
enquanto actor político. Todavia, não deixa de ser verdade que esse estreitamento da
política tende a acicatar a estratégia, ao concentrar a sua força no espaço que é por
excelência o desta, com isso deformando a lógica prudencial do exercício estratégico. A
estratégia vê-se assim levada a limitar radicalmente a sua função prudencial e a
alcandorar-se ao ponto da política se confundir com ela, e de se enfeudar a ela, pois os
âmbitos parecem sobrepor-se, e nessa caso a estratégia parece tecnicamente mais
talhada para a tarefa, com as consequências atrás mencionadas. Escusado será dizer
que no concreto histórico rapidamente se passou à solução mais fácil, a do
enquistamento da estratégia
10
9
Jean-Ives Guiomar, historiador francês da guerra total, na obra atrás citada, acredita que a emergência
da guerra total se deu com as guerras levadas a cabo pela França revolucionária, embora reconheça que
essa mesma guerra total não se plasma na íntegra senão no século XX (Guiomar, 2004: 25, 102-105,
120, 151). Todavia, parece-nos que o historiador francês sobrepõe várias vezes guerra total e guerra
absoluta. Ainda que afirme (Idem: 302) que não pretende resolver a questão - para ele uma questão em
aberto - de saber se o conceito de guerra total designa a mesma coisa que o conceito de guerra absoluta.
Na verdade, o autor defende (Idem: 19-20) que a guerra total é uma guerra que não pode ser parada
nem interrompida por quem a declara, alargando-se constantemente no espaço e estendendo-se
incessantemente no tempo. Todavia, essa é uma característica mais consonante com a guerra absoluta,
isto é, a guerra obedecendo no essencial à sua gramática específica, que propriamente com a guerra
total.
.
10
Na realidade, a estratégia não é mera disciplina técnica, instrumento, ferramenta. O abaixamento da
política e consequente elevação da estratégia, acabando ambas por coincidir, optando-se então pela
preponderância estratégica não é fruto de um juízo neutro, antes diz respeito à razão instrumental. Sendo
da responsabilidade da política, a estratégia não se limitou a um papel passivo. Não só a estratégia veio a
ganhar um protagonismo retroactivo muito forte sobre a política, no sentido de a moderar, a partir dos
começos da era nuclear, logo quando estava mais enquadrada superiormente em termos políticos, como
tendeu a monopolizar a política na era da guerra total, quando ainda comportava uma dose ferramental
ainda muito significativa. A óbvia contradição tem de ter outra resolução. Aquilo que aconteceu foi que a
política e a guerra percutiram na estratégia as suas membranas mais violentas, e estando como estava a
estratégia ainda a caminho de um critério vertical de topologização que a colocava mais próxima da política,
mas sem ter perdido ainda o seu rasto táctico, optou por neutralizar-se (era também mais simples e mais
corrente fazê-lo de acordo com o seu enquadramento topológico tradicional) e dessa maneira responder à
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A segunda objecção parece de maior vulto. Porqueo obstante aquilo que dissemos,
não é menos verdade que certas passagens dos dois conflitos mundiais pronunciam, ou
realizam mesmo um ir além da inversão piramidal, um mergulho em cheio da política e
da estratégia na guerra, um ir de si da guerra. A hecatombe alsaciana de Verdun na
Grande Guerra, ou muitos dos episódios (provavelmente mais do que isso) na Frente
Oriental, na Segunda Guerra, para já não falar dos genocídios, apontam nesse sentido.
Parece-nos inegável. E então? A única lição que podemos extrair do sucedido é o
reconhecimento de qo fácil é hoje ascender aos extremos. Porque, por contraste, o
que se constata é a diferença entre esses tramos da guerra e os restantes, e, por
maioria de razão, a diferença face aos outros tramos da história, em que a guerra é
fenomenologicamente latente, mas em que seria suposto estarmos ontologicamente
em estado de guerra. Se a guerra fosse ontologicamente activa, a situação normal
assemelhar-se-ia mais a esses momentos negros que ao resto; ou melhor, ao fim de
tanto tempo já não se assemelharia a nada.
4. A Anarquia Internacional: uma imagem fora-de-jogo
Por fim, a Guerra Fria. Neste caso seria melhor nem sequer tentar objectar por aí. A
Guerra Fria corresponde à idade adulta da estratégia como disciplina de fins
intermédios e incompletos, a completar na síntese política superior. Preparada,
portanto, como nunca, para uma perfeita (ou quase) coabitação com a política, debaixo
da ameaça nuclear, a primeira ameaça a poder verdadeiramente concretizar num ápice
o armagedom. O advento da arma nuclear e o surgimento das doutrinas subversivas e
de contra-subversão alcandoram a estratégia a uma nova época, aquela em que nós
estrategicamente ainda vivemos.
O advento da era atómica, ou mais propriamente, o surgimento das armas
termonucleares e a corrida aos armamentos, tornou claro que somente a dissuasão
poderia evitar a catástrofe. O estilo estratégico directoo era remunerador.
Doravante já não se podia canalizar o esforço bélico e estratégico para o militar, as
outras estratégias adquiriam assim a autonomia desejada. O que seria um patamar
mais na escalada, de acordo com a prática da guerra total, torna-se uma oportunidade
de a travar, de escolher judiciosamente e prudentemente as melhores estratégias.
Poderia a estratégia fazê-lo se não fosse intrinsecamente portadora de fins específicos?
Se é verdade que só com o surgimento do nuclear, e depois com a possibilidade de
guerra intestina, através da guerra de subversão, implicando a necessidade de maior
coordenação entre a estratégia e a política e mesmo a subordinação completa daquela à
política, é permitido à estratégia, enquanto estratégia integral, evidenciar na íntegra as
suas capacidades prudenciais, não é menos verdade que a escalada possível de
patamares de violência, oferecida pelas novas modalidades de guerra, só não levou à
violência dessas suas membranas mais intratáveis com uma saída fortemente instrumental, cega e
mecânica. No fundo, assistiu-se à estratégia a neutralizar-se a si mesma enquanto razão instrumental,
invadindo de forma aparentemente neutra outras áreas que nada tinham a ver com a hostilidade. Ou seria
alguma vez plausível pensar que essa neutralização de fins e a inversão da relação piramidal entre a
política e a estratégia, afim de um fascínio epocal, ideológico, pela razão técnica, ocorreria se a estratégia
fosse de cabo a rabo, e desde sempre, uma disciplina instrumental sem mais? Como? Se a inversão
piramidal foi mais tarde revertida, curiosamente quando a estratégia se torna mais robusta e retoma o
seu fio condutor finalista, e se essa mesma inversão própria da era da guerra total, por sua vez já inverte
um anterior contexto (aquele que desemboca na Grande Guerra) em que a estratégia está menos solta
mas também a política soberana é ainda menos incisiva do que veio a ser?
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guerra absoluta, porque a estratégia fez valer os seus recursos prudenciais. E não
devemos olvidar que, com toda a probabilidade, estaria em causa a guerra absoluta na
sua plenitude, avocada à libertação integral da sua húbris destruidora, Aquele estado em
que se a guerra fosse senhora não precisaria de tanto tempo assim para revolver as
entranhas da terra, o que sempre traz transtornos, porque homens se podem cansar de
tanto frenesim.
Mas não continuamos nós vivos? A pergunta é naturalmente a própria resposta.
Onde a política e, acima de tudo, no campo da hostilidade, a estratégia, vicejam, não
pode a guerra por si, a guerra entregue a si mesma, a anarquia internacional vicejar. O
esforço morigerador daquelas, se é efectivo, compromete a anarquia, porque a guerra,
por sua conta, tende ao solipsismo, a marchar em direcção ao nada. Contudo, nem a
política nem a estratégia, só por si, têm força para esvair a caótica bélica, para isso é
preciso uma outra razão, uma metánoia oriunda dos lados da paz pura, que, aliás,
insufla a estratégia no seu percurso. Porém, se virmos bem, já só essa insuficiência da
estratégia e da política dizem muito da impossibilidade de uma anarquia internacional,
de um estado de guerra ontologicamente materializado. É insuficiente aquele que não é
suficientemente capaz, que não é capaz só por si. Mas porventura ainda estaamos a
falar de capacidade se a guerra reinasse, ou estaríamos tão-só acabrunhados, movidos
apenas pela mesma (hipotética) sussurrante esperança que preside ao final da
narração trágica de A Estrada, de Cormac McCarthy:
“nos fundos vales onde as trutas viviam, todas as coisas eram
mais antigas de que o homem e nelas ressoava um mistério”?
(McCarthy, 2007: 187).
Varrida - não se sabe como, até porque não estamos a falar de um acidente ocorrido,
ou de um efeito absolutamente inesperado resultante de uma qualquer guerra - a
indestrutível e primacial inclinação para o bem. E se a coisa fosse ainda mais obscura,
não estaríamos, se é que estaríamos, tão-somente pendentes do mais serôdio milagre
milagreiro?
Felizmente não estamos. Então por que razão nos quererão levar ao absurdo os
proponentes da tese da anarquia internacional?
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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OS TRIBUNAIS DE OPINIÃO E O TRIBUNAL PERMANENTE DOS POVOS
Luís Moita
lmoita@autonoma.pt
Professor Catedrático, Diretor do Departamento de Relações Internacionais e coordenador do
Mestrado em Estudos da Paz e da Guerra da Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal) e
membro do Conselho Científico. Diretor do OBSERVARE, Observatório de Relações Exteriores,
integra o projeto "Cidades e Regiões: a paradiplomacia em Portugal". Foi Vice-Reitor (1992-
2009) e coordenou o Instituto Sócrates para a Formação Contínua. Conferencista regular no
Instituto de Defesa Nacional, leciona no Instituto de Estudos Superiores Militares.
Resumo
Há uma relação dialéctica entre a opinião pública e a aplicação da justiça pelas instâncias
competentes. A história encerra numerosos exemplos em que movimentos internacionais de
opinião se manifestam contra decisões judiciais, já que, por acção ou por omissão, as
jurisdições estabelecidas pronunciam por vezes veredictos discutíveis ou deixam na
impunidade crimes cometidos. Estas manifestações assumem grande diversidade de formas,
desde as comissões internacionais de inquérito até às comissões de verdade e reconciliação.
Entre tais exercícios de cidadania, oriundos da sociedade civil, distinguem-se os chamados
“tribunais de opinião”, cuja primeira grande iniciativa se deve a Lorde Bertrand Russell nos
anos 1960. Seguindo essa tradição, o Tribunal Permanente dos Povos tem um percurso de
intensa actividade, entre 1979 e 2014, realizando assembleias deliberativas e pronunciando
decisões num quadro “parajudicial”. Os seus críticos censuram a aparência de justiça para
fins ideológicos, mas é defensável a legitimidade destas iniciativas enquanto sobressaltos
das consciências, referenciadas ao direito internacional vigente e também à inovação
jurídica, ao serviço do direito dos povos.
.
Palavras chave:
Direito internacional; opinião pública; tribunais de opinião; direitos dos povos;
construtivismo jurídico
Como citar este artigo
Moita, Luís (2015). "Os Tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos".
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 6, N 1, Maio-Outubro 2015.
Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol6_n1_art3
Artigo recebido em 5 de Fevereiro de 2015 e aceite para publicação em 6 de Abril de
2015
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Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
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OS TRIBUNAIS DE OPINIÃO E O TRIBUNAL PERMANENTE DOS POVOS
Luís Moita
Apesar de nem sempre conhecida de modo alargado, a existência de “tribunais de
opinião” tem sido uma realidade nas últimas décadas. Em regra, eles actuam no
domínio do internacional. Mesmo que tratem de temas da vida interna de tal ou tal
país, tocam questões globais e os ecos das suas deliberações ultrapassam as fronteiras
nacionais. O objectivo destas páginas é o de reflectir criticamente a natureza e as
funções dos tribunais de opinião, em particular o caso do Tribunal Permanente dos
Povos, criado na cidade italiana de Bolonha no ano de 1979. Tal reflexão enquadra-se
no âmbito de um projecto de investigação acerca das jurisdições internacionais
promovido pelo OBSERVARE, unidade de investigação em relações internacionais da
Universidade Autónoma de Lisboa
1
Nos seus próprios termos, a expressão “tribunal de opinião” abriga dois conceitos: a
ideia de “tribunal” associa-se de imediato à de aplicação de justiça com base numa
norma jurídica; a ideia de “opinião” reporta-se a essa realidade algo difusa da opinião
pública, na qual se manifestam sentimentos colectivos, correntes de juízos largamente
partilhados ou convicções persistentemente evidenciadas no espaço público. Existe uma
dialéctica peculiar entre direito e opinião pública no nosso caso, entre o direito tanto
nacional como internacional e a opinião pública internacionalizada. As normas de direito
aplicadas pelas instâncias de jurisdição, pelos seus imperativos mas também nas suas
lacunas, repercutem a sua influência nas opiniões públicas, projectam nelas valores,
difundem regras de conduta, promovem consensos em torno de princípios
comummente aceites, quando não deixam em aberto questões por resolver;
inversamente, a sensibilidade das manifestações de opinião pública interfere na
formulação das leis, exige a sua aplicação ou contesta o seu incumprimento. Como diz
sabiamente um sociólogo francês das relações internacionais:
.
1
Para a elaboração deste texto recebi preciosas indicações e sugestões de Gianni Tognoni (Secretário geral
do TPP) e Piero Basso, antigos companheiros de causas mobilizadoras, assim como de Simona Fraudatario
(da Fundação Internacional Lelio Basso). Os meus colegas Mario Losano, da Universidade do Piemonte
Oriental, e Miguel Santos Neves, da Universidade Autónoma de Lisboa, enriqueceram o original com
comentários e sugestões relevantes e outros colegas juristas Patrícia Galvão Teles, Constança Urbano
de Sousa, Mateus Kowalski e Pedro Trovão do Rosário ajudaram a suprir as minhas limitações nessa
área. Da parte de Brígida Brito tive um apoio meticuloso para os aspectos metodológicos. A todos é
devido um agradecimento especial.
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Os tribunais de opinião e o Tribunal Permanente dos Povos
Luís Moita
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A opinião pública e o direito internacional não se confundem e não
ganhariam em ser confundidos. É da tensão inevitável e necessária
entre eles que pode surgir um pouco mais de justiça no mundo. Se
os juristas se libertassem da pressão da opinião pública, arriscar-
se-iam a transformar-se em puros técnicos da ordem estabelecida.
Se a opinião fosse entregue a si própria, arriscar-se-ia a vaguear
sem fim em busca dos seus projectos: só o direito a pode ajudar a
realizar o seu ideal proporcionando-lhe os quadros e as instituições
de um novo mundo. Por isso é do interesse da comunidade dos
homens que nunca cesse o diálogo entre o direito internacional e a
opinião pública. (Merle, 1985: 97).
Dando esta perspectiva por adquirida, um esclarecimento prévio todavia se impõe: não
se deve entender “tribunal de opinião” como se assim se designasse um julgamento
praticado pela opinião pública. O conceito de opinião pública é excessivamente volátil
para se admitir que sustente a consistência de um juízo fundado, desapaixonado,
ponderado. A justiça não pode estar ao sabor das emoções da voz corrente ou das
vicissitudes das opiniões publicadas. Os procedimentos judiciais, no seu rigor e na sua
complexidade técnica, na sua correspondência à legislação vigente, no seu respeito
pelas garantias dos acusados, não são equiparáveis às percepções e preferências
flutuantes, por mais generalizadas que elas sejam. Mas isso não impede, bem pelo
contrário, que se formem consensos em torno de determinados princípios, de modo a
antecipar normas ainda não legisladas que mais tarde venham a ser juridicamente
consagradas, ou a protestar contra a insuficiente aplicação das leis internacionais, ou a
preencher os vazios legais ou as omissões institucionais que arrastam consigo a
impunidade de criminosos.
Movimentos de opinião e decisões judiciais
A história do século XX está pontuada por exemplos de movimentos de opinião que
desempenharam o papel de consciência crítica em relação a actos controversos de
aplicação da justiça. Por vezes, o seu impacto circunscreveu-se a meios limitados de
elites informadas. Noutros casos, foram grandes os ecos na opinião pública. Vale a
pena recuperarmos aqui a memória de alguns casos emblemáticos, sabendo de
antemão que não se trata de esboçar um inventário completo, mas apenas recordar
momentos simbólicos da referida dialéctica entre aplicação do direito e opinião pública
internacional.
Ainda nos finais do séc. XIX, o célebre Affaire Dreyfus agitou a opiniãoblica tanto
francesa como internacional, com a particularidade de desvendar perversas reaões de
anti-semitismo e de ter desencadeado veementes protestos que levaram mais tarde a
repor a justiça. Alfred Dreyfus, oficial de origem judaica, integrou postos de
responsabilidade no exército francês e em 1895 foi acusado de espionagem em favor
da Alemanha, quando ainda se faziam sentir os ressentimentos relativos à guerra
franco-prussiana. Destituído de militar, deportado para uma ilha longínqua, Dreyfus
sempre alegou inocência e o seu processo suscitou uma onda de indignação que veio a
determinar a sua reabilitação.
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Umas décadas mais tarde, são os Estados Unidos abalados por um tremendo erro
judiciário que levou à condenação à morte de Nicola Sacco e Bartolomeo Vanzetti.
Estes dois imigrantes italianos, anarquistas, portadores de arma ilegal, suspeitos de um
crime de assassinato e roubo, foram presos em 1920 e condenados em tribunal por
homicídio, não obstante a ausência de provas e o imenso clamor contra a sua
condenação: comités de solidariedade são criados, grandes manifestações convocadas
em vários pses e eminentes personalidades internacionais clamam pela sua
libertação. Em vão. Saco e Vanzetti são electrocutados sete anos depois. Foi preciso
esperar pelo ano de 1973 para que a verdade fosse oficialmente reposta e reabilitada
postumamente a memória dos dois anarquistas.
Entretanto, o ascenso do nacional-socialismo na Alemanha tem um episódio dramático
que assinala a um tempo a escalada da tomada do poder por Hitler e o ódio anti-
comunista do seu regime: o incêndio do Reichstag, o palácio do Parlamento de Berlim,
em Fevereiro de 1933. O inquérito nazi identifica um suspeito, um jovem esquerdista
holandês que acabou condenado à morte, mas as culpas são atribuídas aos comunistas,
o que levou nos dias seguintes à prisão de milhares e milhares de resistentes ao
nazismo. Mas em Setembro desse ano é criada em Londres a “Comissão de inquérito
internacional ao incêndio do Reichstag” que organiza um contra-processo que conclui
pela provável culpabilidade dos responsáveis nazis
2
Por sua vez, entre 1936 e 1938 são os Processos de Moscovo a desencadear grande
repercussão internacional. Sob as ordens de Estaline, é levada a efeito uma gigantesca
purga que liquida fisicamente a maior parte da elite soviética. Após denúncias forjadas
ou “confissões” de conveniência, os tribunais pronunciam sentenças implacáveis contra
a classe dirigente, em especial contra Trotsky e os seus seguidores. A esquerda
europeia reage com ambiguidade aos acontecimentos, apesar das severas críticas de
homens como o poeta surrealista André Breton ou o marxista Victor Serge; mas nos
Estados Unidos é criada uma Comissão internacional de inquérito, presidida pelo
prestigiado filósofo moralista John Dewey, que conclui pela inocência de Trotsky,
apesar da generalidade da Comissão se distanciar das suas ideias
.
3
Um outro processo que provoca intenso clamor internacional é o que tem lugar de novo
nos Estados Unidos, já depois do final de II Guerra Mundial, contra o casal Rosenberg,
acusado de ter feito espionagem sobre o programa nuclear em favor da URSS, o que
teria permitido à União Soviética acelerar a fabricação da bomba atómica. Julgados em
1951 e executados em 1953, Julius e Ethel Rosenberg eram judeus e simpatizantes
comunistas e ainda hoje há controvérsia sobre a sua culpabilidade, designadamente a
da mulher Ethel. Contra a sua execução levantaram-se inúmeras vozes de prestígio
mundial, desde Einstein a Pio XII, passando por Sartre e Brecht, denunciando o anti-
comunismo primário e o anti-semitismo latente e pedindo clemência para um casal que
foi condenado sem provas concludentes.
.
Na sua força simbólica, o conjunto destes casos agora exemplificados manifesta a
tensão entre aplicação das normas jurídicas e opinião pública internacional, bem como
entre as instâncias formais dotadas de autoridade judicial e as instâncias informais que
as contestam. Como uma espécie de diálogo ou confronto entre poderes e contra-
2
Uma análise pormenorizada deste processo pode ser consultada em Klinghoffer, A. J. e Klinghoffer, J. A.
(2002: 11-50).
3
Para maior desenvolvimento ver igualmente Klinghoffer, A. J. e Klinghoffer, J. A. (2002: 51-101).
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poderes, desenha-se uma dialéctica de oposição e complementaridade entre as
sentenças jurídicas e as correntes de opinião. A aplicação da justiça, falível como é,
vulnerável a toda a sorte de abusos, não se esgota na jurisdição dos tribunais mas
prolonga-se na capacidade social de protesto, o que não significa que esta última tenha
qualquer garantia de acerto ou qualquer prerrogativa de “superioridade moral”. Por
acção ou por omissão, seja por deficiência interpretativa, seja por vazio legal, o direito,
e especialmente o direito internacional, nem sempre responde às exigências das
complexas situações humanas. Daí esta aparente necessidade histórica de criação de
momentos de rectificação, de reabilitação, de contestação, como antídoto à possível
deturpação da justiça provocada pelos seus próprios agentes.
Talvez seja esta mesma necessidade de fazer justiça fora dos quadros convencionais
que leva à criação de instâncias especiais, naquelas circunstâncias onde os tribunais
regulares não parecem ser os lugares mais apropriados para ajuizarem os
comportamentos colectivos ou individuais, como é o caso das comissões de verdade e
reconciliação. São conhecidas as iniciativas neste campo, em situações como as da
África do Sul pós-apartheid ou das sociedades latino-americanas após as ditaduras
militares. Procurando evitar os ajustes de contas susceptíveis de reabrir feridas do
passado, mas também tendo por inadmissível a impunidade dos responsáveis pelos
crimes cometidos, tais comissões têm tido o papel de conservar a memória dos factos e
estabelecer a responsabilidade dos actores políticos, visando não tanto a punição como
antes o reconhecimento, a desocultação, o perdão e a reconciliação. Nestes casos
prevalece a prudência das fases de transição com vista à consolidação da democracia,
mais que a aplicação mecânica das leis penais.
Encontramos um processo análogo no Ruanda como terapia face à memória da tragédia
do genocídio dos tutsis pelas milícias hutus perpetrado entre Abril e Junho de 1994,
provocando a morte de mais de 800.000 ruandeses e a fuga de quase dois milhões de
pessoas. Internacionalmente foi criado um Tribunal especial para julgar os responsáveis
pelos crimes, mas no próprio ps permanecia um grande número de prisioneiros,
acima dos 100.000, pelo que os tribunais oficiais não tinham capacidade para julgar
todos os casos. O governo local encorajou o recurso à instituição tradicional de
resolução de conflitos designada Gacaca como forma de mobilizar a população para
o cumprimento da justiça, com relevo para o papel dos anciãos e para a função de
integração social, de acordo com as melhores tradições africanas.
Estamos a ver a variedade de modos como se têm encontrado soluções para contestar
ou complementar o papel dos sistemas judiciais estabelecidos, seja por movimentos de
opinião, seja por comissões internacionais de inquérito, seja por comissões de verdade
e reconcilião, seja por práticas costumeiras, na referida tensão entre direito e opinião
pública. No limite, esta acção pode até ser individual, como demonstra o caso especial
do blogue do grande jurista norte-americano Richard Falk, um dos nomes mais
influentes no campo do direito internacional
4
, blogue que ele lançou no dia em que
completou 80 anos e que constitui um impressionante repositório do pensamento
independente e crítico do autor sobre as questões jurídicas e políticas, com um título
que é em si mesmo um programa: Global Justice in the 21st Century.
4
Ver http://richardfalk.wordpress.com/, consultado em 29/12/2014.
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As jurisdições internacionais e os tribunais de opinião
O direito internacional foi durante séculos regulado por tratados celebrados entre dois
ou mais Estados, os quais, apesar da natureza jurídica do vínculo estabelecido, ficavam
apenas moralmente obrigados a acatar as suas disposições, sem que existisse em rigor
uma jurisdição internacional dotada de instrumentos para garantir o respeito das
mesmas, se necessário de modo coercitivo. Todavia, já em 1899 é criado um Tribunal
Permanente de Arbitragem no seguimento de uma Conferência internacional de Haia e,
embora já existisse um Tribunal Permanente de Justiça Internacional criado ao abrigo
do Pacto da Sociedade das Nações, só em 1946, já no quadro multilateral das Nações
Unidas, começa a funcionar o Tribunal Internacional de Justiça, sedeado em Haia. A sua
vocação é claramente delimitada: dirimir os conflitos entre Estados. De natureza
diferente é o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, com sede em Estrasburgo, criado
em 1959 pelo Conselho da Europa. Bem mais tarde, em 2002, após a adopção do seu
estatuto em Roma, tem início o Tribunal Penal Internacional, por coincidência também
instalado na capital da Holanda, que se distingue do TIJ pela capacidade de julgar
pessoas individuais acusadas de praticarem agressão, genocídio, crimes de guerra e
crimes contra a humanidade.
Entretanto, por iniciativa do Conselho de Segurança das Nações Unidas, foram criados
três outros tribunais para julgamento pontual de situações concretas: o Tribunal Penal
Internacional para a ex-Jugoslávia, criado em Maio de 1993, o Tribunal Penal
Internacional para o Ruanda, criado em Novembro de 1994 e o Tribunal Especial para a
Serra Leoa, criado em 2000
5
Temos assim duas espécies de jurisdições internacionais: os tribunais de excepção,
com funções ad hoc e competências delimitadas a situações específicas (Nuremberga,
Tóquio, ex-Jugoslávia, Ruanda, Serra Leoa, …) e os tribunais, digamos, regulares ou
permanentes os dois de Haia, TIJ e TPI , mais o Tribunal Europeu dos Direitos
Humanos que constituem elementos estáveis da arquitectura jurídica internacional.
, destinados a julgar os crimes de genocídio, os crimes de
guerra e os crimes contra a humanidade praticados nesses países. De algum modo, são
réplicas actuais dos tribunais especiais estabelecidos no imediato após guerra de 1939-
45 para julgar os crimes de alemães e japoneses, respectivamente o Tribunal de
Nuremberga e o Tribunal de Tóquio. Estes últimos, é certo, tiveram características
muito particulares, já que eram tribunais militares organizados pelos vencedores da
guerra; criaram jurisprudência pois deliberaram com base em normas que não estavam
anteriormente legisladas, o que punha em causa o princípio da não retroactividade da
lei penal; tiveram todavia o mérito de julgar as responsabilidades individuais dos
deres políticos já não abrigados por detrás do regime do qual cumpririam ordens e
condenar crimes até então não explicitados, como o crime contra a paz, o crime de
guerra, o crime de genocídio e o crime contra a humanidade.
Numa esfera totalmente diferente, surgem os tribunais de opinião. Pode duvidar-se da
pertinência desta designação, conforme mais à frente será referido. Seja como for,
5
Sobre este caso verdadeiramente especial, pois se trata de um tribunal híbrido, nacional e internacional,
ver Paula, Thais e Mont’Alverne, Tarin “A evolução do direito internacional penal e o Tribunal Especial para
Serra Leoa: análise da natureza jurídica e considerações sobre sua jurisprudência”, Nomos: Revista do
Programa de Pós-Graduação em Direito da UFC, disponível em
http://mdf.secrel.com.br/dmdocuments/THAISeTARIN.pdf, consultado em 30/1/2015.
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numerosas iniciativas de cidadãos, sem qualquer mandato oficial, têm assumido a
forma de processo judicial para enunciarem pronunciamentos relativos a questões onde
estão em causa direitos humanos fundamentais. Eles constituem assim uma espécie de
jurisdições internacionais informais, oriundas da sociedade civil e não dos poderes
estabelecidos, desprovidas de força coercitiva, mas ambicionando sensibilizar a opinião
internacional e os poderes públicos graças ao valor moral das suas sentenças, aliás
fundadas elas próprias no direito internacional vigente.
O mais representativo destes tribunais de opinião será porventura o Tribunal
Permanente dos Povos (TPP), activo desde 1979 até ao presente e objecto central
deste estudo. A sua criação, porém, está situada num contexto que importa recordar.
O TPP tem origem numa experiência antecedente, verdadeiramente “fundadora”, que é
o Tribunal internacional contra os crimes de guerra cometidos no Vietname, conhecido
simplesmente como Tribunal Russell I
6
, o qual constitui a fonte de inspiração para
todas as acções posteriores do mesmo tipo. A iniciativa pertenceu a Lorde Bertrand
Russell, filósofo e matemático, prémio Nobel da Literatura em 1950, que se distinguiu
também pela acção cívica nomeadamente como activista da causa da paz e pelo
desarmamento. A ele se juntou um prestigiadíssimo grupo de membros, incluindo outro
grande nome do pensamento do século XX, Jean-Paul Sartre, de início reticente mas
depois convencido por influência de Simone de Beauvoir, aceitando presidir às sessões
do Tribunal em Londres no ano de 1966. Os trabalhos foram retomados em Estocolmo
(1967) e finalmente em Roskilde, na Dinamarca, no mesmo ano. Esteve prevista a sua
realização em Paris, mas o General De Gaulle, então presidente da França, não
consentiu, embora ele próprio se opusesse à politica norte-americana para o Vietname.
Na carta dirigida a Sartre explica que a sua decisão em nada limita a liberdade de
expressão, mas argumenta: “não é a si que ensinarei que qualquer justiça, no seu
princípio como na sua execução, pertence exclusivamente ao Estado”
7
. Eis um tema de
primeira importância ao qual será necessário regressar. E na resposta, Sartre
estabelece o fundamento da sua legitimidade:
Porque nos designámos a nós próprios? Precisamente porque
ninguém o fez. Só os governos ou os povos o poderiam ter feito.
Ora os governos querem manter a possibilidade de cometerem
crimes sem incorrer no risco de serem julgados; não iriam por isso
criar um organismo internacional habilitado para o fazer. Quanto
aos povos, excepto em caso de revolução, eles não nomeiam
tribunais, não poderiam assim designar-nos
8
.
6
Análise muito pormenorizada em Klinghoffer, A. J. e Klinghoffer, J. A. (2002: 103-162).
7
A carta do General De Gaulle, com data de 19 de Abril de 1967, está disponível on line em
http://bernat.blog.lemonde.fr/2008/06/10/le-tribunal-russell-et-le-proces-du-11-septembre/ consultado
em 29/12/2014.
8
Ibidem. Muita informação sobre o Tribunal Russell, incluindo a lista completa dos membros do mesmo, as
exposições técnicas e os testemunhos pessoais, está disponível em
http://911review.org/Wiki/BertrandRussellTribunal.shtml, consultado em 29/12/2014. A versão inglesa do
discurso inaugural de Sartre pode ser lida em http://thecry.com/existentialism/sartre/crimes.html,
consultado no mesmo dia.
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De algum modo, este primeiro Tribunal Russell recupera o antecedente constituído pelo
Tribunal de Nuremberga (Jouve, 1981: 670-671; Merle, 1985: 56-59), reportando-se a
uma tipologia de crimes que inclui os crimes contra a paz, os crimes de guerra, os
crimes contra a humanidade e o crime de genocídio
9
Já depois da morte de Bertrand Russell, um segundo Tribunal Russell com idêntica
estrutura foi convocado pelo senador italiano Lelio Basso que tinha integrado o júri do
primeiro e nele se tinha distinguido pela sua intervenção. Entre 1973 e 1976 vão
desenrolar-se ts sessões, em Roma e Bruxelas, dedicadas à denúncia e condenação
dos crimes das diversas ditaduras militares latino-americanas, designadamente o Brasil
e o Chile, mas também a Bolívia e o Uruguai, bem como a Argentina e outros países
centro-americanos, com impacto importante nas opiniões públicas desse sub-
continente
. Com a fundamental diferença de
ser um tribunal que sabe não ter capacidade de coerção física nem de decretar saões
efectivas.
10
Há ainda breves alusões a um Tribunal Russell III que se reuniu em Frankfurt em 1978
sobre um tema aparentemente local as interdições profissionais na República Federal
da Alemanha bem como um Tribunal Russell IV com lugar em Roterdão, já em 1980,
para denunciar o “etnocídio” dos povos ameríndios (Jouve, 1981: 671).
. O nome de Lelio Basso reaparecerá mais à frente, ligado definitivamente
ao Tribunal Permanente dos Povos: é possível que o contacto com as atrocidades das
ditaduras latino-americanas lhe tenha permitido uma intuição, a saber, há governos
que estão em guerra contra os seus povos, a estes tem de ser dada voz, para além dos
Estados que supostamente os representam.
Neste contexto de sessões do Tribunal Russell, é em Portugal que tem lugar em 1977-
78 uma iniciativa marcante de contornos análogos: o Tribunal Cívico Humberto Delgado
(general opositor ao regime, assassinado pela PIDE polícia política de Salazar), criado
para julgar os crimes da ditadura em Portugal. Foi uma experiência breve mas intensa,
motivada pela ausência de julgamento dos responsáveis do regime ditatorial,
designadamente da policia política. Reuniu figuras prestigiadas de democratas
11
Pouco depois, no ano de 1982, reuniu-se em Roterdão o Tribunal Russell sobre o
Congo, para julgar os crimes praticados durante o regime do ditador Mobutu Sese
Seko
e
tomou uma decisão final intitulada “Julgar a PIDE, condenar o fascismo”.
12
9
A expressão “genocídio” é um neologismo usado em primeiro lugar pelo jurista judeu polaco Raphael
Lemkin para descrever a perseguição sistemática do nazismo contra os judeus: ver elementos em
, presidente do Zaire. Aparentemente a designação “Tribunal Russell” era
assumida como uma “marca” utilizada em diferentes circunstâncias.
http://www.ushmm.org/wlc/en/article.php?ModuleId=10007043, consultado em 29/12/2014.
10
O estudo mais pormenorizado sobre o Tribunal Russell II está disponível num PDF on line em
academia.edu da autoria de Julien Louvrier:
http://www.academia.edu/166082/Le_Tribunal_Russell_II_pour_l_Amérique_latine_1973-
1976_Mobiliser_les_intellectuels_pour_sensibiliser_l_opinion_publique_internationale, consultado em
29/12/2014.
11
Ver análise disponível em http://www.esquerda.net/artigo/tribunal-c%C3%ADvico-humberto-delgado-
uma-experi%C3%AAncia-breve-1977-1978/28229, consultado em 28/12/2014. A sentença completa
pode ver-se em http://ephemerajpp.com/2014/01/11/tribunal-civico-humberto-delgado/, consultado no
mesmo dia.
12
Ver breve indicação em http://fr.wikipedia.org/wiki/Tribunal_Russell_sur_le_Congo, consultado em
29/12/2014.
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Entretanto em 1993 foi criado o IPT Indian Independent People’s Tribunal também
designado Indian People's Tribunal on Environment and Human Rights
13
Já no ano 2000 realiza-se em Tóquio o Tribunal de opinião (em japonês designa-se
minshû hôtei, isto é, tribunal popular) sobre as “mulheres de conforto”
, situado na
tradição dos movimentos de base que atravessam a sociedade indiana, centrado nas
questões dos direitos humanos e particularmente na justiça ambiental.
14
Há também referência à sessão efectuada em Berlim em 2001 do Tribunal sobre os
Direitos Humanos na Psiquiatria
utilizadas em
bordeis militares: por iniciativa do Violence against Women in War Network, tratava-se
de julgar responsabilidades relativas ao rapto e deportação em massa de mulheres
para disponibilizarem favores sexuais aos soldados japoneses nos territórios ocupados
pelo expansionismo nipónico nos anos 1930-40, questão de há muito conhecida mas
sempre silenciada, apesar de ter afectado mulheres da Coreia, de Taiwan, da
Indonésia, de Timor Leste, da China e do Vietname.
15
Desde os anos 1998-2000 até à actualidade tem sido muito activo o Tribunal Latino-
americano da Água, também articulado com o designado Tribunal Centro-americano da
Água, com iniciativas muito diversas em certo número de países da região, em torno
das questões da contaminação e dos recursos hídricos. Reporta-se a sessões de 1983,
em Roterdão, acerca da contaminação da bacia hidrográfica do Reno, bem como de
1992, em Amesterdão, sobre os crimes ecológicos em vários continentes, e ainda ao
Tribunal Nacional da Água em Florianópolis, Brasil, em 1993, sobre a contaminação
mineira e os produtos agrotóxicos
, igualmente referenciado ao Tribunal Russell, com a
particularidade de ter concluído os seus trabalhos com um duplo veredicto: um
maioritário que considera haver sérios abusos dos direitos humanos na prática
psiquiátrica, outro minoritário limitando-se a alertar para possíveis desvios na mesma
prática.
16
A intervenção militar ocidental no Iraque foi um dos acontecimentos que suscitou mais
iniciativas do tipo tribunal de opinião. Foi assim criado um Tribunal Mundial sobre o
Iraque
. Defendendo a democratização da justiça
ambiental, estes documentos latino-americanos usam a expressão “tribunal ético”
(para assinalar a sua natureza) e a categoria de “ecocídio” (para caracterizar os crimes
ambientais).
17
13
O site respectivo tem este endereço:
a partir de 2003 em Bruxelas, por isso também designado Tribunal de
Bruxelas ou Tribunal BRussells (jogando com a proximidade fonética de Bruxelas com
Russell), confirmando que o Tribunal Russell continua a ser a referência fundamental.
Realizou sessões em Bruxelas e Istambul, em 2004 e 2005, tendo analisado o Project
for a New American Century dos neo-conservadores norte-americanos e a consequente
agressão ao Iraque. Uma sessão em Lisboa, também em 2005, contou com a
http://www.iptindia.org, consultado em 29/12/2014.
14
Ver Rumiko Nishino, "Le tribunal d’opinion de Tôkyô pour les «femmes de réconfort»", Droit et cultures
[on line], 58 | 2009-2, disponibilizado em 1/10/2009, consultado a 29/12/2014. URL :
http://droitcultures.revues.org/2079.
15
Ver Ian Parker, “Russell Tribunal on Human Rights in Psychiatry & “Geist Gegen Genes”, PINS (Psychology
in society), 2001, 27, 120-122 30 June-2 July 2001, Berlin, disponível em
http://www.pins.org.za/pins27/pins27_article12_Parker.pdf , consultado em 29/12/2014. Ver também
http://www.freedom-of-thought.de/rt/accusation.htm, consultado no mesmo dia.
16
Ver http://tragua.com, consultado em 29/12/2014, bem como
http://www2.inecc.gob.mx/publicaciones/libros/363/cap18.html, consultado no mesmo dia.
17
Ver o seu site http://www.brusselstribunal.org, consultado em 30/12/2014.
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colaboração de diversos juristas portugueses
18
Desde 2007 está activa na Malásia uma comissão para averiguar crimes de guerra,
designada Kuala Lumpur War Crimes Commission (KLWCT), também conhecida como
Kuala Lumpur War Crimes Tribunal, que se apresenta como alternativa ao Tribunal
Penal Internacional, reputado ineficaz
. Posteriormente o Tribunal Mundial
sobre o Iraque passou a ser umrum permanente, evoluindo para uma rede
internacional de “académicos, intelectuais e activistas”.
19
Por sua vez, de novo em Bruxelas teve lugar em 2008 o Tribunal de opinião sobre a
detenção de crianças estrangeiras em centros fechados
. Preside o ex-primeiro ministro da Malásia,
Mahathir Mohamad; condenou em 2011 a intervenção no Iraque responsabilizando
pessoalmente o presidente Bush e o primeiro-ministro Blair e, em 2013, o genocídio do
povo palestiniano pelo Estado israelita.
20
Apesar da distância no tempo em relação aos acontecimentos, em 2009 reuniu em
Paris o Tribunal de opinião sobre a utilização do “herbicida laranja”
. Por iniciativa da
Coordenadora das ONG’s para os Direitos da Criança, na Bélgica, o veredicto condenou
simbolicamente o Estado belga por desrespeito das convenções internacionais
pertinentes.
21
Um dos mais representativos tribunais de opinião é porventura o Tribunal Russell sobre
a Palestina
(ou “agente
laranja”), nome por que é conhecido um potente desfolhante químico, composto pela
mistura de dois fortes herbicidas, utilizado pelos norte-americanos na guerra do
Vietname, cujos impactos ainda se fazem sentir. Enquanto arma química de efeitos
devastadores, este desfolhante está proibido pelas convenções internacionais. A
sentença do tribunal condena não apenas o governo norte-americano, como também as
firmas produtoras do herbicida, nomeadamente a Monsanto e a Dow Chemical.
22
Complementarmente foi noticiada a realização em Veneza, em Setembro de 2014, de
uma sessão do Tribunal “informal”, de natureza pouco explícita e mesmo duvidosa, que
também se reivindica da tradição de Bertrand Russell, sobre a situação na Ucrânia
, com sessões desde 2010 até 2013 em Barcelona, Londres, Cidade do
Cabo e Nova Iorque e mais recentemente uma sessão extraordinária (Setembro de
2014), em Bruxelas, sobre as violações do direito internacional por Israel na Faixa de
Gaza. Em regra, porém, o objectivo não é tanto o de condenar Israel (as violações
israelitas do direito internacional são por demais conhecidas), mas antes mostrar as
responsabilidades das instâncias que apoiam objectivamente Israel nas suas violações
do direito internacional. Qualifica a situação em Israel como análoga à do regime sul-
africano de apartheid e introduz a categoria de “sociocídio” para caracterizar o atentado
à identidade palestiniana.
23
18
Documentação disponível em
,
concluindo pela condenação do presidente norte-americano Obama, bem como do
http://tribunaliraque.info/pagina/ap_tmi/o_que_e.html, consultado em
30/12/2014.
19
Ver o site respectivo em http://criminalisewar.org, consultado em 30/12/2014.
20
Referência em http://www.lacode.be/tribunal-d-opinion-sur-la.html, consultado a 29/12/2014.
21
Sobre o Tribunal ver http://www.mondialisation.ca/agent-orange-le-tribunal-international-d-opinion-de-
paris-condamne-les-tats-unis-et-les-firmes-tasuniennes/13667?print=1, consultado em 29/12/2014. Mais
informação em
http://www.history.com/topics/vietnam-war/agent-orange, consultado no mesmo dia.
22
Bastante informação disponível em http://www.russelltribunalonpalestine.com/en/, consultado em
29/12/2014.
23
Notícia em http://rt.com/news/187584-russell-tribunal-obama-ukraine/ consultado em 29/12/2014.
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presidente ucraniano Poroshenko, da NATO e da Comissão Europeia, acusados de
crimes de guerra praticados no Leste do pais.
Além desta sequência de iniciativas efectivamente realizadas, têm sido noticiados
diversos apelos à constituição de tribunais de opinião, segundo o modelo Russell, em
torno de certa variedade de questões. Por exemplo, em Paris, no ano de 2010, é feito o
apelo para um tribunal mundial de opinião sobre o clima e a biodiversidade
24
, com base
na frustração das grandes conferências internacionais sobre o tema. No ano seguinte, é
tornada pública uma petição cujos signatários reclamam um tribunal de opinião que
julgue os crimes nucleares
25
Tóquio, Kuala Lumpur, Bruxelas, Roma, Paris, Florianópolis, Roterdão, Amesterdão,
Lisboa, Veneza, Cidade do Cabo, Nova Iorque, Londres, Estocolmo, Roskilde, Frankfurt,
Berlim, Istambul, Nova Deli, São José da Costa Rica, Haia cidades de três continentes
a manifestar a dispersão geográfica e cultural de eventos que os seus organizadores
designam de muitas formas como tribunais, tribunais de opinião, tribunais de cidadãos,
tribunais internacionais, tribunais éticos, tribunais de consciência
, privilegiando neste caso o nuclear civil, a partir das
tragédias de Tchernobyl e Fukushima.
26
... Para além da sua
dispersão geográfica e da variedade de designações, porém, algumas notas comuns os
caracterizam: são iniciativas da sociedade civil; são processos participados envolvendo
intelectuais e activistas; fundamentam-se tecnicamente em normas vigentes provindas
da comunidade das nações; procuram compensar insuficiências do direito internacional
ou da sua aplicação; denunciam e condenam os mais graves crimes contra seres
humanos e contra povos; têm genericamente uma evidente carga ideológica de pendor
anti-imperialista e anti-colonialista; são portadores de causas de intenção
emancipadora; utilizam analogias com os procedimentos judiciais para encenar as suas
conclusões; visam sensibilizar as opiniões públicas e através delas os poderes
estabelecidos.
O Tribunal Permanente dos Povos (1979-2014)
No contexto antes referido tem especial relevo o Tribunal Permanente dos Povos (TPP).
Em traços gerais, recapitulemos as suas principais coordenadas. Lelio Basso, senador
da esquerda independente italiana, homem de invulgar estatura politica, tinha
integrado, como vimos, o júri do Tribunal Russell I e foi a alma do Tribunal Russell II.
Falecido em 1978, deixa incompleto um projecto envolvendo três instituições: a
Fundação Lelio Basso, a Liga Internacional para os Direitos e a Libertação dos Povos e o
Tribunal Permanente dos Povos. A Fundação ainda hoje existe com sede em Roma; a
Liga, criada em 1976, foi um movimento social alargado com acção meritória mas nos
últimos anos do século XX os seus membros dispersaram-se por diversas outras
causas; o Tribunal já após a morte de Basso só foi constituído em 1979, na cidade
24
Ver notícia em http://www.lemonde.fr/idees/article/2010/10/27/pour-un-tribunal-mondial-d-opinion-
pour-le-climat-et-la-biodiversite_1431693_3232.html, consultado em 30/12/2014.
25
Como se pode ver em http://www.rene-balme.org/24h00/spip.php?article1358, consultado em
30/12/2014.
26
Muito distintos destes casos são os chamados “tribunais populares”, promotores de sentenças sumárias e
por vezes de execuções sumárias em resultado de verdadeira perversão da justiça, como os que foram
montados pelas Brigadas Vermelhas em Itália, por exemplo na condenação de Aldo Moro, ou que foram
promovidos mesmo por governos em períodos de instabilidade, como aconteceu em Angola (ver
http://www.casacomum.org/cc/visualizador?pasta=04308.001.017, consultado em 27/1/2015).
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de Bolonha, tendo como primeiro presidente François Rigaux, eminente jurista belga,
professor da Universidade Católica de Lovaina
27
Este conjunto de instituições referenciava-se a uma espécie de “magna carta”: a
Declaração Universal dos Direitos do Povos
e como secretário geral Gianni
Tognoni, médico de Milão, profissionalmente ligado às políticas de saúde.
28
Recordado brevemente o enquadramento circunstancial e o ambiente ideológico que
levaram à criação do Tribunal Permanente dos Povos TPP vejamos agora a sua
caracterização.
, proclamada por Lelio Basso em Argel, em
4 de Julho de 1976, dia simbólico em que se completavam 200 anos da independência
dos Estados Unidos. A Declaração de Argel, documento ancorado em valores que na
época emergiam, caracterizava-se por alguns traços fundamentais: considerava os
povos como sujeitos colectivos de direitos, em linha com as próprias abordagens das
Nações Unidas, complementando assim a visão corrente acerca dos direitos humanos;
abordava um novo tipo de direitos recentemente reconhecidos, ditos de “terceira
geração” (para além dos direitos cívico-políticos e económico-sociais), tais como o
direito dos povos à existência, à identidade cultural, à autodeterminação política e
económica, o direito ao progresso científico enquanto património comum da
humanidade, o direito à protecção ambiental e ao acesso aos recursos comuns do
planeta e os direitos das minorias. Além disso, o espírito da Declaração situava-se
plenamente em sintonia com o tema da reivindicação de uma “nova ordem política e
económica internacional”, então insistentemente presente no discurso político dos
deres do Terceiro Mundo e da esquerda europeia, als assumido pelas instituições
multilaterais.
Antes de mais, é um tribunal permanente. A generalidade das outras experiência
congéneres traduzia-se como se viu na iniciativa de tribunais de opinião dirigidos a
problemas específicos e a casos particulares, geograficamente delimitados e de
natureza circunscrita. Ao contrário, o TPP existe desde há 35 anos (de 1979 a 2014),
prolongando-se duradouramente no tempo e acolhendo um número muito grande de
situações, aberto como está à variedade de processos que lhe são propostos. Daí a
pertinência de se considerar “permanente”, por trabalhar no tempo longo e por ter uma
constante disponibilidade para atender o clamor dos que sofrem violações de direitos
fundamentais.
Em segundo lugar é um tribunal internacional, a muitos títulos: a) pela sua
composição (basta ver que os membros do júri são personalidades vindas de 29 países
diferentes); b) pelos seus temas que tocam múltiplas questões sensíveis da política
mundial e abordam casos que mesmo quando são locais têm impacto para além
das fronteiras; c) pela constante referência ao direito internacional, bem como aos
direitos humanos e dos povos, portadores de valores universais; e d) pela sua ambição
de influenciar a opinião pública internacional, os centros de decisão globais e as
instâncias da comunidade das nações.
Em terceiro lugar, é um tribunal dos povos (independentemente da conhecida
ambiguidade do termo "povo"). Lelio Basso teria recusado a possível designação de
27
François Rigaux faleceu em Dezembro de 2013; já lhe tinha sucedido como presidente do TPP Salvatore
Senese e mais tarde Franco Ippolito, juristas italianos.
28
Texto integral disponível em http://www.internazionaleleliobasso.it/?page_id=214, consultado em
30/12/2014.
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“tribunal de cidadãos”, por suposta conotação "burguesa", preferindo "tribunal dos
povos" (Klinghoffer, A. J. e Klinghoffer, J. A. 2002: 164). Pode dizer-se que o sujeito de
direitos que o TPP privilegia é o sujeito colectivo, tal povo, tal comunidade humana, tal
sociedade no seu conjunto. É certo que os direitos humanos estão na primeira linha da
sua agenda mas, segundo o seu estatuto, “o Tribunal não é competente a pronunciar-
se sobre casos particulares de indivíduos singulares, salvo quando exista uma relação
com a violação do direito dos povos”
29
Em quarto lugar, o TPP tem um funcionamento análogo ao de um tribunal. Guiando-se
“pelos princípios de Nuremberga”
. Isto em consonância com a Declaração de Argel
(Declaração Universal dos Direitos do Povos) e com a designação da Liga Internacional
para os Direitos e a Libertação dos Povos. Num contexto onde convencionalmente os
Estados são considerados únicos sujeitos do direito internacional, o TPP rompe com
essa concepção e afirma a prerrogativa de os povos serem, eles próprios, sujeitos de
direito internacional, de tal maneira que se podem assumir como interlocutores de
jurisdições internacionais.
30
Em quinto lugar, a composição do júri está também regulada estatutariamente,
obrigando à presença de sete membros para uma sentença válida. Os membros
actuais
, os seus Estatutos e sua prática estabelecem uma
série de procedimentos inspirados nos processos judiciais: recebida uma “queixa”, ela
pode ser arquivada (em caso de inconsistência) ou aceite para ser instruído o inquérito;
um processo largamente participado leva ao aprofundamento das situações, à
identificação das violações do direito internacional, ao inventário das testemunhas, à
audição de peritos, à elaboração de relatórios; as sessões públicas são presididas por
um júri; os acusados são convidados a comparecer e a apresentar a sua versão dos
factos (o que raramente acontece); o júri reúne à porta fechada e elabora uma
sentença definitiva da qual não há apelo; a sentença é tornada pública e enviada “às
Nações Unidas, aos organismos internacionais competentes, aos governos e à
imprensa”. Todo o fundamento para a decisão é baseado com rigor no direito
internacional vigente e o formalismo das sessões públicas reproduz o modelo de uma
audiência de tribunal. Mais à frente será debatida esta analogia com o processo
judiciário.
31
Por último, em sexto lugar, uma referência ao financiamento das actividades do TPP.
As funções correntes do secretariado contam com o apoio logístico e operacional da
Fundação Internacional Lelio Basso, enquanto os encargos com a realização das
sessões públicas são suportados por sponsors, públicos e privados, contactados para o
, cooptados pela estrutura central, são ao todo 71 e, como vimos, oriundos de
29 países diferentes e são chamados caso a caso para as sessões do TPP. Ao longo dos
35 anos de actividade, numerosas outras personalidades constituíram este corpo de
juízes, muitas delas de renome mundial. Predominam os juristas e os universitários, a
par de cientistas, escritores e artistas consagrados, governantes e ex-governantes,
membros com experiência de organismos internacionais, alguns prémios Nobel e
personalidades destacadas dos movimentos sociais.
29
Artigo 1º dos Estatutos do TPP, disponíveis em http://www.internazionaleleliobasso.it/?page_id=213,
consultado em 2/1/2015.
30
Ibidem. Os pontos seguintes reportam-se sempre a estes Estatutos.
31
A lista actual pode ser vista em http://www.internazionaleleliobasso.it/?page_id=215, consultado em
3/1/2015.
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efeito pelo próprio secretariado do Tribunal e pelas entidades interessadas na
apresentação do processo.
As sentenças do TPP
Ao longo de quatro dezenas de sessões, localizadas em muito diferentes cidades dos
vários continentes, foram apreciadas causas propostas ao Tribunal e as respectivas
sentenças constituem um acervo importante de documentação factual, jurídica e
política
32
. Na impossibilidade de analisar aqui os conteúdos de cada uma das sentenças
emanadas do TPP, pode ensaiar-se a sistematização das áreas temáticas acolhidas
33
Uma primeira área tem a ver com situações residuais de descolonizações mal
resolvidas, nos casos do Sara Ocidental, antiga colónia espanhola anexada por
Marrocos, da Eritreia, antiga colónia italiana anexada pela Etiópia, e Timor Leste, antiga
colónia portuguesa anexada pela Indonésia, em sessões ocorridas respectivamente em
Bruxelas (1979), Milão (1980) e Lisboa (1981). Tratava-se de típicas situações onde
estava em causa o princípio da autodeterminação dos povos, de acordo com as normas
da comunidade internacional, e os processos foram introduzidos pelos movimentos de
libertação reconhecidos como tais: a Frente Polisário, a Frente Popular de Libertação da
Eritreia e a FRETILIN. Em analogia com estes casos, foi julgada a situação de Porto Rico
(em Barcelona, 1989).
.
Uma outra série de sentenças prende-se com violações dos direitos de minorias,
um dos temas já referenciados na Declaração de Argel e nos estatutos do TPP. Foi
julgado o regime das Filipinas e a violação dos direitos do povo Bangsa-Moro (em
Antuérpia, 1980); uma outra sentença condenou o histórico genocídio dos Arménios
(em Paris, 1984); os direitos das comunidades indígenas da Amazónia brasileira foram
objecto de uma sessão (em Paris, 1990); de igual modo foram julgadas as violações
dos direitos do povo do Tibete (em Estrasburgo, 1992); enquanto os do povo Tamil do
Sri Lanka, mais tarde silenciado por acção militar, foram tema de duas sessões (em
Dublin, 2010, e Bremen 2013).
O TPP assumiu ainda processos relativos a regimes opressores dos seus próprios
povos, seja no quadro de ditaduras militares, seja pela sistemática negação do Estado
de Direito. Foi o caso da sessão que condenou a Junta militar da Argentina (em
Genebra, 1980); pouco depois foi julgado o carácter repressivo do regime de El
Salvador (na Cidade do México, 1981); no ano seguinte foi condenado o regime do
presidente Mobutu do Zaire (em Roterdão, 1982); logo depois houve o julgamento do
poder na Guatemala (em Madrid, 1983); o regime das Filipinas, que já havia sido
julgado na sessão a propósito do povo Bangsa-Moro, será objecto de nova sessão
condenatória (em Haia, 2007).
Algumas sessões do Tribunal foram especialmente centradas nas violações dos
direitos humanos em diversas sociedades, a começar pela América Latina (em
Bogotá, 1991), especificamente contra “a impunidade pelos crimes de lesa
32
As sentenças relativas aos anos 1979-1998 estão compiladas em livro na sua versão italiana em Tognoni,
Gianni (org) (1998). Para as restantes ver o site
http://www.internazionaleleliobasso.it/?cat=15,
consultado em 3/1/2015.
33
Uma sistematização diferente da aqui adoptada pode ser vista em Klinghoffer, A.J. e Klinghoffer, J.A.
2002: 165-181.
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humanidade”; as restrições ao direito de asilo na Europa foram igualmente julgadas
(em Berlim, 1994); o caso especial das violações dos direitos das crianças e dos
menores no mundo foi tratado num processo que se desdobrou em três cidades
(Trento, Macerata, Nápoles, 1995); o mesmo tema dos direitos das crianças e
adolescentes na sociedade brasileira foi objecto de julgamento (em São Paulo, 1999);
uma sessão (em Paris, 2004) foi dedicada à violação dos direitos humanos na Argélia
no período de 1992 a 2004.
Em diversas circunstâncias o TPP pronunciou-se acerca de situações de conflito
armado nos quais eram violados direitos fundamentais do povos. Em primeiro lugar, a
intervenção soviética no Afeganistão foi caracterizada como “agressão” que contrariava
as regras da comunidade internacional e a URSS foi assim condenada como potência
agressora (objecto de duas sessões, em Estocolmo, 1981, e Paris, 1982); de igual
modo, os crimes contra a humanidade praticados nos conflitos na ex-Jugoslávia foram
tratados em duas sessões do Tribunal (em Berna, 1995, e Barcelona, no mesmo ano);
já antes tinha havido um pronunciamento condenando as agressões militares norte-
americanas contra o regime sandinista da Nicarágua (em Bruxelas, 1984); um caso
histórico especial pode ser enquadrado nesta área: o da conquista da América e da
negação dos direitos dos povos ameríndios, analisado quinhentos anos depois da
chegada de Colombo a esse continente (em Pádua e Veneza, 1992); por último, na
previsão da iminência da agressão (“guerra preventiva”) contra o Iraque em 2003, o
TPP organizou uma sessão sobre “o direito internacional e as novas guerras” (em
Roma, 2012).
Um capítulo específico das sentenças do TPP é relativo a crimes ambientais de
peculiar gravidade, que representaram atentados de grande dimeno aos direitos
humanos à vida, à saúde e ao ambiente sustentável. Foram os casos do acidente da
indústria química da firma Union Carbide em Bophal, na Índia em 1984, resultante da
fuga de gás que provocou a morte a milhares de pessoas e consequências na saúde a
centenas de milhar (sessões sobre riscos industriais e direitos humanos em Bophal,
1992, e Londres, 1994); assim como do acidente nuclear de Tchernobyl ocorrido em
1986, julgado numa sessão dez anos mais tarde (em Viena, 1996).
Mais recentemente tem tido relevo na agenda do TPP a problemática das politicas
económicas dos organismos multilaterais e da acção das grandes empresas
multinacionais na medida em que afectam os direitos dos povos, indo assim ao
encontro de causas profundas da violência estrutural que atinge as nossas sociedades.
As políticas macro-económicas do Fundo Monetário Internacional e do Banco Mundial
foram objecto de duas importantes sessões (em Berlim, 1988, e Madrid, 1994), com
um julgamento severo sobre as suas práticas; as empresas produtoras de vestuário
foram condenadas pelo desrespeito dos direitos dos trabalhadores, nomeadamente
através da subcontratação de empresas nos países mais pobres (em Bruxelas, 1998); a
empresa petrolífera Elf-Aquitaine foi julgada pelas suas actividades criminosas no
continente africano (em Paris, 1999); em geral, o papel das multinacionais foi tema de
uma sessão do TPP (em Warwick, 2000); o caso específico da violação dos direitos
humanos pelas multinacionais na Colômbia foi longamente julgado (de 2006 a 2008);
por sua vez, as práticas da União Europeia e das multinacionais no conjunto da América
Latina foram escrutinadas e condenadas (em Madrid, 2010) pela sua violação de
direitos frequentemente esquecidos, como o direito à terra, o direito à soberania
alimentar, o direito à saúde pública, o direito ao ambiente e assim por diante; as
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empresas multinacionais do sector agro-químico foram objecto de um julgamento
próprio (em Bangalore, 2011); por último, uma série de audiências em diversas cidades
mexicanas culminou com uma sessão final na Cidade do México, em 2014, sobre
“comércio livre, violência, impunidade e direitos dos povos no México”.
Feita a caracterização do Tribunal Permanente dos Povos e vista a sistematização dos
seus conteúdos
34
, é o momento de se avançar para a análise das questões de fundo
suscitadas pelas observações anteriores, abordando os problemas da legitimidade e das
funções do TPP, bem como da sua relação com o direito internacional.
Qual a legitimidade do TPP?
Citámos atrás a expressão de De Gaulle: “qualquer justiça, no seu princípio como na
sua execução, pertence exclusivamente ao Estado”. A teoria clássica é bem clara a este
respeito, na medida em que considera a aplicação da justiça como função de soberania,
no quadro do Estado de Direito assente na célebre divisão de poderes, onde justamente
os poderes legislativo e judicial são pilares do Estado soberano, ficando excluída da sua
esfera qualquer autoridade não pública. A este título, a iniciativa do tribunal de opinião
estaria sumariamente privada de legitimidade. Com a agravante, segundo os seus
críticos, de encenar uma simulação de justiça, sem qualquer mandato para tal, ao
serviço de um combate político conduzido ao sabor de motivações ideológicas. O já
citado sociólogo Marcel Merle usa mesmo ásperas expressões críticas, denunciando o
“simulacro de justiça para efeitos de propaganda” (Merle, 1985: 85). A composição do
tribunal seria “um tanto elitista, ao invés de democrática, por comissões
autonomeadas, (…) seleccionadas mais pelas suas preferências ideológicas que pela
sua rectidão legal” (Klinghoffer, A. J. e Klinghoffer, J. A. 2002: 7). Ao politizar a
suposta aplicação do direito, o tribunal de opinião subverteria a própria ideia de justiça,
pois renunciaria ao princípio da imparcialidade como pré-condição para a correcção do
pronunciamento. Nesse sentido, a “sentença” estaria inevitavelmente ferida pela
ausência de isenção e o processo mais não seria que a montagem de peças que
levassem à conclusão pretendida. O “acusado” estaria previamente “condenado” e a
audiência do “tribunal” seria um mero procedimento teatral com intuitos
propagandísticos.
Estas duras interrogações críticas devem ser tomadas a sério e, pela sua própria
veemência, questionam a prática dos tribunais de opinião. Se tomadas à letra e levadas
às últimas consequências, teriam como resultado desautorizar essas iniciativas,
retirando-lhes credibilidade e até mesmo respeitabilidade.
Em contrapartida, é possível uma reflexão acerca dos tribunais de opinião e em
particular do TPP que tenha em conta a sua verdadeira configuração e que reconsidere
as fontes da sua legitimação. Neste sentido poderá defender-se que a sua natureza é
“parajudicial” e que a sua legitimidade se funda, a um tempo, em imperativos de
34
O TPP interessou-se evidentemente por outros casos e outras causas que, de uma maneira ou outra, o
interpelavam, mas que não chegaram a ser objecto de nenhuma audiência. O problema dos curdos, por
muitos considerado como uma nação sem Estado, chegou a ser considerado mas o seu tratamento foi
bloqueado devido a circunstâncias que levaram à interrupção dos contactos. Da mesma maneira, a
questão dos direitos do povo da Palestina foi insistentemente suscitada, apesar das dificuldades
provocadas pelas divisões entre os nacionalistas palestinianos e, dramaticamente, pelo assassinato de
três do seus interlocutores de alto nível.
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consciência, na referência ao direito internacional vigente e na participação alargada de
testemunhos relativos ao estabelecimento dos factos onde se verificam violações
flagrantes dos direitos humanos e dos direitos dos povos. Vejamos por partes.
Antes de mais, a natureza “parajudicial”. Esta expressão é aqui usada por analogia com
um outro termo que entrou no vocabulário dos estudos de relações internacionais: a
“paradiplomacia”. Tradicionalmente a acção diplomática também é considerada função
de soberania e como tal da competência exclusiva dos Estados. Todavia, na
actualidade, mais e mais entidades distintas dos poderes centrais desenvolvem
iniciativas de relacionamento externo que se aproximam do conceito de diplomacia,
como é o caso de acções de projecção de interesses e de cooperação exercidas por
cidades, regiões, empresas, fundações, organizações não governamentais, associações
diversas... O conjunto destas actividades tem sido designado por alguns autores como
“paradiplomacia”
35
No caso do TPP os procedimentos foram acima descritos, justificando a analogia agora
invocada. Da acusação à sentença, passando pela instrução do inquérito, pela admissão
do contraditório, pela audição de testemunhas e de relatórios de peritos, pela
referência às normas jurídicas em vigor, estabelece-se uma semelhança com os
processos judiciais, dando com isso força simbólica e moral aos veredictos. Como se
viu, tudo isso se passa no entendimento de que a designação de “tribunal” é
meramente analógica, quase metafórica, tanto mais quanto se sabe que a deliberação
é desprovida de poder coercitivo. Numa palavra, situa-se no campo do “parajudicial”.
. No mesmo sentido, o carácter “parajudicial” pode porventura ser
atribuído a eventos que não pertencem à esfera dos poderes públicos mas que têm um
formalismo análogo ao dos tribunais oficiais e seguem procedimentos inspirados nos
das instâncias jurídicas tanto nacionais como internacionais. Como ficou
abundantemente sublinhado logo de início, numerosas iniciativas têm utilizado este
paradigma “parajudicial”, desde as comissões internacionais de inquérito até aos
tribunais de opinião.
Esta expressão “parajudicial” tem a vantagem de apontar implicitamente para uma
certa ambivalência presente no conceito de justiça. Justiça é, por um lado, a aplicação
da norma jurídica e nesse sentido se diz que os tribunais fazem justiça. Mas justiça
também é um valor ético e social, uma ambição de equidade nas relações entre os
humanos e nessa acepção a justiça é algo de programático em direcção ao futuro. Os
tribunais de opinião estão de algum modo na fronteira destes dois conceitos: de um
lado aproximam-se do procedimento jurídico e da referência à legislação codificada, do
outro tentam ser câmaras de eco da aspiração de justiça que atravessa positivamente
as sociedades.
Sendo esta a sua natureza específica, fica porém em aberto o problema da sua
legitimação. Sobre isso, é possível afirmar que a legitimidade do TPP está assente no
direito democrático fundamental da liberdade de opinião e de expressão do
pensamento e se funda antes de mais no sobressalto das consciências. Face às
violações incontáveis de direitos dos povos, face à impunidade dos responsáveis, face à
omissão das instâncias jurisdicionais tanto nacionais como internacionais, é natural que
se faça ouvir, como um grito, a consciência dos que reagem com inconformismo a
essas situações. Digamos que a autoridade ética vem em socorro do incumprimento da
35
Veja-se por exemplo Miguel Santos Neves “Paradiplomacia, regiões do conhecimento e a consolidação do
‘soft power’” in JANUS.NET, e-journal of International Relations, Vol. 1, n.o 1 (Outono 2010), pp. 12-32.
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autoridade judica, visando reproduzir o seu quadro de actuação, como se situasse ao
“nível pós-convencional” (para usar a expressão divulgada por Lawrence Kohlberg
36
Semelhante legitimidade, porém, é reforçada por uma componente das sessões do TPP:
a iniciativa da sociedade civil e, mais ainda, a participação alargada de numerosas
instituições de base que colaboram no estabelecimento dos factos, no testemunho das
situações vividas, na denúncia das violações de direitos. Assim se organiza uma
comprovação factual que é antídoto contra qualquer tentação de arbitrariedade, ao
mesmo tempo que se assegura o enraizamento na realidade social, onde o clamor das
vítimas mais se faz ouvir.
),
no sentido de que o respeito pela norma é superiormente assumido e ultrapassado pela
apreeno de valores. Por alguma razão encontrámos pelo caminho expressões como
“tribunal ético” ou “tribunal de consciência”: elas traduzem este registo ambivalente
onde se cruzam o jurídico e o axiológico, à margem das “razões de Estado” ou das
conveniências das jurisdições internacionais.
Se tomarmos um exemplo entre muitos outros, a sentença do TPP relativa aos crimes
sociais e ambientais na Amazónia brasileira faz o inventário de nada menos que 26
organizações locais que estiveram na base da acusação e que sustentaram a
argumentação de todo o processo
37
O TPP beneficia ainda de um outro tipo de legitimidade que é alcançada, digamos, a
posteriori.
da sessão organizada em Paris, em 16 de Outubro
de 1990. Constrói-se assim uma espécie de legitimidade de exercício de cidadania,
oriunda de percepções colectivas, assentes em sentimentos partilhados e sobretudo
numa factualidade verificável, ao mesmo tempo que se dá voz aos que não têm voz. A
ligação aos movimentos sociais permite atribuir ao TPP uma qualidade de contrapoder
que se afirma, no âmbito dos princípios democráticos, face aos poderes estabelecidos,
o que também ajuda a legitimar as suas práticas, pois em qualquer sociedade é
saudável a existência de contrapoderes e a sua acção não deve ser considerada
abusiva, já que funcionam como factores de equilíbrio, justamente de contrapeso,
como precaução contra a patologia da “verdade oficial” ou do pensamento único.
O facto de, por via de regra, a generalidade das suas deliberações ser mais tarde
objecto de reconhecimento pela comunidade internacional pode significar uma espécie
de ratificação ela própria legitimadora. Basta ver processos dos quais o Tribunal se
ocupou, como por exemplo os do Sara Ocidental, da Eritreia e de Timor Leste, para
concluirmos que os direitos invocados vieram a ser amplamente confirmados. Esse
36
Ver Kohlberg, Lawrence (1981) Essays on Moral Development, I: The Philosophy of Moral Development:
Moral Stages and the Idea of Justice. San Francisco: Harper & Row.
37
Trata-se de: Centro dos Trabalhadores da Amazónia, Associação Brasileira de Reforma Agrária,
Associação dos Geógrafos Brasileiros, Instituto de Apoio Jurídico Popular, Instituto Vianei, Conselho
Indigenista Missionário, Comissão Pró-Índio, Campanha Nacional para a Defesa e o Desenvolvimento da
Amazónia, OIKOS, Salve a Amazónia, Fase (Nacional), Amigos da Terra (Rio Grande do Sul), IBASE
(Instituto Brasileiro de Análises Económicas e Sociais), Movimento Nacional de Defesa dos Direitos
Humanos, Sociedade Parense para a Defesa dos Direitos Humanos, UNI (União das Nações Indígenas),
CPT (Comissão Pastoral da Terra), Campanha Nacional pela Reforma Agrária, Campanha Nacional dos
Seringueiros, CEDI (Centro Ecuménico de Documentação e Informação), IAMA (Instituto de Antropologia
e Meio Ambiente), MAGUTA (Centro de Documentação e Pesquisa do Alto Solimões), NDI (Núcleo de
Direitos Indígenas), CTI (Centro de Trabalho Indigenista), INESC (Instituto de Estudos Sócio-económicos)
e CUT (Central Única dos Trabalhadores). In Tognoni (org) (1998) p.358.
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olhar retrospectivo lança uma nova luz sobre o conjunto das sentenças, atribuindo-lhes
pertinência, oportunidade e consistência tanto jurídica como política.
Por último, para a legitimação do TPP concorre certamente a imparcialidade das suas
decisões. Tanto condenou as agressões norte-americanas contra o regime sandinista da
Nicarágua, como a invasão do Afeganistão pelas tropas da URSS. Tanto condenou os
crimes sociais e ambientais de Bophal na Índia como os de Tchernobyl na Ucrânia
soviética. Contra a suspeita de facciosismo ideológico, a referência aos direitos dos
povos tornou-se garantia de isenção e, portanto, de credibilidade.
O TPP e o direito internacional
No quadro da perspectiva “parajudicial” acima referida, as deliberações do Tribunal
Permanente dos Povos reportam-se permanentemente, como é lógico, às normas
jurídicas adquiridas. Recorre assim à multiforme codificação das regras que
salvaguardam os direitos humanos e os direitos dos povos, e que regulam os papeis
dos agentes políticos e económicos internacionalizados, bem como as relações dos
membros da comunidade mundial. Fruto de sedimentação e maturação ao longo de
séculos, está disponível um acervo legislativo e contratual a que o TPP recorre atulo
de referência basilar.
Um exemplo é bem elucidativo: a deliberação relativa aos direitos sociais e ambientais
na Amazónia brasileira
38
Todavia, o TPP não se limita a reproduzir os processos das instâncias jurisdicionais
estabelecidas, mas tem, em relação a elas, uma função de substituição e de
complementaridade. De novo como exemplo, a decisão relativa aos crimes na ex-
Jugoslávia, na sessão em Berna no ano de 1995, declara explicitamente:
, processo apreciado em Outubro de 1990. A sentença então
proferida inventaria os documentos judicos em que se apoia, começando pela própria
Constituição brasileira e pela referência a mais de 40 normas da legislação nacional, às
quais se soma um total de 24 documentos do direito internacional: declarações,
convenções, pactos, resoluções e tratados internacionais pertinentes. Esta é uma regra
presente em todos os veredictos do TPP, a saber, o rigor da fundamentação no direito
positivo, emanado tanto das poderes legislativos nacionais como da comunidade
internacional ou contratualizado através de tratados entre Estados, assim como da
jurisprudência de outras instâncias.
Afirmando-se como herdeiro do Tribunal Internacional sobre os
crimes de guerra americanos no Vietname e do Tribunal Russell II
sobre a América Latina, o Tribunal Permanente dos Povos assume
para si mesmo uma função supletiva, devida à carência e à
inadequação dos actuais tribunais internacionais, e da
impossibilidade para os povos, os indivíduos e as várias ONG de
aceder a tais tribunais, exclusivamente habilitados a julgar a nível
38
Disponível em http://www.internazionaleleliobasso.it/wp-content/uploads/1990/10/Amazzonia-
brasiliana_TPP_it.pdf, consultado em13/1/2015.
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de conflitos entre Estados ou em seguimento a um mandato
estritamente regulamentado
39
.
Esta necessidade é particularmente sentida no domínio das políticas e das actividades
económicas, as quais estão fora da alçada das jurisdições internacionais, apesar da sua
relevância humana e social. Por tudo isso se pode afirmar que a prática do TPP tenta
preencher um vazio, exercendo uma função subsidiária: “Os tribunais de opinião
jogaram um papel relevante desde o fim da segunda Guerra Mundial na disputa para
iluminar os vazios históricos e geográficos da persistente selectividade do direito penal
internacional” (Feirstein, 2013: 118).
Uma outra característica diz respeito ao entendimento da função de julgar. Mais do que
punir, o que estaria fora de causa pela ausência de força de coerção, o TPP privilegia
não a função penal mas a sensibilização acerca da violação de direitos e pelo
reconhecimento do papel dos povos da capacidade das energias libertadoras. O
domínio jurídico parece assim reconduzido à sua vocação de origem:
Recupera-se o papel originário atribuído ao direito que, longe de
ser um instrumento de controlo, actua como instrumento de
libertação de todas as formas de dominação, exclusão, negação.
Também os ‘juízes’ deixam para trás o papel tradicional de
julgadores, superando a dimensão penal e punitiva do direito, para
se converterem em acompanhantes, cujo papel é o de guiar a
interpretação dos factos para a reconstrução da verdade que
legitima as denúncias e as resistências (Fraudatario e Tognoni,
2013: 5)
40
.
As iniciativas do TPP assumem assim o carácter de alerta avançado relativamente ao
esmagamento de direitos colectivos, visando colmatar lacunas e antecipar normas que
se venham a impor. O exercício de cidadania representa então um contributo para o
progresso do próprio direito positivo, à maneira de um “reservatório de ideias” (Merle,
1985: 58), que se constitui como grupo de pressão com vista à melhoria do direito
internacional, na sua normatividade e nas suas aplicações. Encontramos deste modo
uma vio dinâmica do direito, como uma codificação sempre susceptível de inovação,
não apenas para corresponder às surpreendentes vicissitudes da nossa história, como
ainda para aperfeiçoar os seus mecanismos de humanização.
Curiosamente, a este respeito é elucidativa a leitura dos textos acerca do TPP da
autoria dos seus principais responsáveis, já referidos: o primeiro, François Rigaux, que
39
Ver em http://www.internazionaleleliobasso.it/wp-content/uploads/1995/02/ExYugoslavia_I_TPP_it.pdf,
consultado em 13/1/2015.
40
Veja-se também esta passagem: “Longe de se afirmar como um produtor de condenações, o propósito
real e a missão do TPP é o de dar às vítimas o reconhecimento e a legitimidade da sua verdade nunca
correspondente à oficial para que esta se torne um instrumento de luta e de reivindicação perante as
instâncias oficiais. Por outro lado, a legitimidade do Tribunal e das suas sentenças, das suas verdades e
da sua memória depende do reconhecimento a posteriori daquelas mesmas verdades reconstruídas pelas
vítimas, o que faz do TPP um instrumento de antecipação de verdades, minimizando de facto qualquer
argumentação sobre a sua impotência.” in Fraudatario e Tognoni (2011: 3).
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foi seu presidente durante longos anos, o segundo, Gianni Tognoni, desde sempre seu
secretário-geral. Mais do que quaisquer outros, foram eles a teorizar sobre o TPP e a
explicitar as visões que têm sobre o mesmo. Nos seus escritos transparecem duas
atmosferas diferentes face à mesma realidade, com pontos de vista complementares
sobre a própria identidade do TPP. Rigaux é essencialmente um jurista e portanto o seu
registo é o da referência ao imperativo da lei:
O tribunal permanente dos povos não é um tribunal popular, mas
um tribunal de opinião. A sua única força está na própria
racionalidade: recolher os factos, escutar testemunhas, solicitar
esclarecimentos aos relatores, para depois verificar se os factos
que dá como estabelecidos são contrários a alguma regra do
direito. (…) O fundamento objectivo da actividade do Tribunal
Permanente dos Povos pode ser deduzido do dinamismo inerente à
regra do direito. (Rigaux, 2012: 168-169).
Aqui a insistência é posta na racionalidade do procedimento jurídico e do fundamento
legal das suas deliberações. A fonte de autoridade dos pronunciamentos do TPP está
basicamente na conformidade à ordem jurídica internacional. O pensamento de Gianni
Tognoni, por sua vez, não é certamente distante deste, mas acentua uma versatilidade
e uma criatividade que propiciam outra abordagem intelectual. As suas expressões são
significativas desse outro registo. Para ele o TPP é um “exercício de pesquisa”, que
envolve “escolher a inteligência face ao poder, ter como encargo buscar as raízes das
coisas e do seu potencial de futuro mais que os equilíbrios da gestão do presente”,
como “um exercício de escuta e de observação sem fronteiras, por respeito aos
portadores de necessidades e aos que procuram o sentido libertador”, prosseguindo
uma “lógica de pesquisa partilhada” (Tognoni, 1998: I). Noutro texto, escrito com
Simona Fraudatario referem que a documentação emanada do TPP é como uma
“agenda de trabalho” e que a sua prática configura sobretudo uma “ferramenta
permanente de exploração-experimentação” (Fraudatario e Tognoni, 2013: 2). E ao
descreverem a concepção de fundo acerca do projecto do tribunal, acrescentam:
Experimentar práticas e linguagens de restituição estrutural do
papel de protagonistas activos às vítimas de violações, as quais
foram causadas pela invisibilidade, o não reconhecimento, a
impunidade por parte do direito internacional vigente (…). A sua
missão mais profunda consiste na busca continuada de
instrumentos de observação e interpretação do real com um olhar
comparativo e crítico dirigido à capacidade do direito de
prevenção, protecção e garantia de existência dos povos, das
vítimas, dos ofendidos (Fraudatario e Tognoni, 2013: 2 e 4).
Pesquisa, observação, experimentação: palavras que manifestam uma visão
“laboratorial” da relação entre o TPP e o direito. A vitalidade das comunidades, a
imprevisibilidade da história, a complexidade dos processos colectivos, o
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aprofundamento da consciência acerca dos valores em causa, obrigam a inovação
jurídica. Esta concepção “experimentalista” do direito internacional parece
especialmente interessante: a codificação das normas de conduta não é um processo
estático e acabado, mas antes um processo aberto, em busca de novas soluções, em
referência às dinâmicas sociais e às crescentes exigências éticas percepcionadas pelos
povos. Digamos que é uma perspectiva construtivista do direito, entendido como algo
in fieri, justamente em construção. A normatividade jurídica surge assim como um
dispositivo de progresso e de humanização. Os tribunais de opinião e em particular o
Tribunal Permanente dos Povos, oriundos da iniciativa privada, da cidadania, da
sociedade civil, ligados aos movimentos sociais de base, exercem porventura a
responsabilidade partilhada de contribuírem para evitar a impunidade dos crimes
cometidos e favorecer uma aplicação do direito, não tanto como norma opressiva, mas
antes como matriz libertadora.
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ISBN 10:0312293879 / ISBN 13:9780312293871
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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O INTERESSE NACIONAL PORTUGUÊS NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS
DE SEGURANÇA E DEFESA E DOS ASSUNTOS DO MAR.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS NO ÂMBITO DO
RELACIONAMENTO ENTRE PORTUGAL E A UNIÃO EUROPEIA
Jaime Ferreira da Silva
jaimefsilva@gmail.com
Licenciado em Ciências Militares Navais pela Escola Naval; Mestre em Estratégia pelo Instituto
Superior de Ciências Sociais e Políticas; Doutorando em Ciência Política, na especialidade de
Estudos Estratégicos, no Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas (ISCSP); Investigador
do Centro de Investigação de Segurança e Defesa do IESM (Portugal) e do Centro de
Administração e Políticas Públicas do ISCSP; Professor da Área de Ensino de Estratégia do
Instituto de Estudos Superiores Militares.
Resumo
Com a adesão à União Europeia, Portugal passou a pertencer a um espaço que tem
caminhado no sentido de uma maior integração económica e política. Neste processo, os
Estados-Membros têm delegado parte das suas competências às instituições europeias, na
esperança que as decisões sobre as matérias de interesse comum possam ser tomadas, de
uma forma mais eficaz, a nível europeu. No entanto, a atual crise económico-financeira veio
revelar fragilidades no processo de construção europeu, que tornaram evidentes as
dificuldades em se alcançar a convergência dos interesses nacionais dos Estados-Membros.
Nestas circunstâncias, o presente trabalho procura avaliar se o interesse nacional português
está a ser devidamente salvaguardado, face às estratégias setoriais e às políticas comuns
promulgadas pela União Europeia, no âmbito das políticas de segurança e defesa e dos
assuntos do mar.
Para tal, numa primeira parte analisa-se o conceito de interesse nacional, com o intuito de
estabelecer um entendimento comum sobre o assunto. Na segunda parte, identificam-se os
interesses nacionais portugueses na atualidade e, na terceira, reconhecem-se os interesses
da União Europeia nos domínios em análise. Na quarta parte, reflete-se sobre a forma como
os interesses nacionais se articulam com os interesses europeus, procurando-se evidenciar
as oportunidades a aproveitar e as ameaças a colmatar.
A análise desenvolvida permitiu concluir que no domínio da segurança e defesa não é
possível percecionar um claro interesse europeu, enquanto na área dos assuntos do mar
esse interesse é bem evidente e passa pela salvaguarda de competências exclusivas da
União, no âmbito da gestão dos recursos biológicos do mar. A defesa do interesse nacional
português passa por um adequado acompanhamento das negociações conducentes à
edificação das estratégias setoriais e das políticas comuns da União Europeia.
.
Palavras chave:
Portugal; União Europeia; Interesse Nacional; Segurança e Defesa; Assuntos do Mar.
Como citar este artigo
Silva, Jaime Ferreira da (2015). "O interesse nacional português no contexto das políticas de
segurança e defesa e dos assuntos do mar. Algumas considerações teóricas no âmbito do
relacionamento entre Portugal e a União Europeia". JANUS.NET e-journal of International
Relations, Vol. 6, N.º 1, Maio-Outubro 2015. Consultado [online] em data da última
consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol6_n1_art4
Artigo recebido em 1 de Outubro de 2014 e aceite para publicação em 15 de Abril de
2015
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O interesse nacional português no contexto das políticas de segurança e defesa e dos assuntos do mar
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O INTERESSE NACIONAL PORTUGUÊS NO CONTEXTO DAS POLÍTICAS
DE SEGURANÇA E DEFESA E DOS ASSUNTOS DO MAR.
ALGUMAS CONSIDERAÇÕES TEÓRICAS NO ÂMBITO DO
RELACIONAMENTO ENTRE PORTUGAL E A UNIÃO EUROPEIA
1
Jaime Ferreira da Silva
1. Introdução
Ao aderir, em 1986, à então Comunidade Económica Europeia, hoje União Europeia
(UE), Portugal passou a pertencer a uma entidade que tem percorrido um longo
caminho no sentido de uma maior integração económica e política dos Estados que a
constituem
2
Apesar de todos os Estados-Membros serem soberanos e independentes, têm cedido
parte dos seus poderes de decisão às instituições europeias entretanto criadas, cientes
que daí resulta uma reconfiguração de alguns aspetos da soberania. Nestas
circunstâncias, importa ter em atenção a relação custo-benefício entre as perdas
associadas às novas dinâmicas dos atributos de soberania e os ganhos resultantes da
integração num espaço de maior dimeno.
.
Na conjuntura atual esta questão assume uma grande importância, visto que a
inexistência de um verdadeiro Governo europeu que prossiga os interesses
comunitários e as clivagens entretanto criadas pela crise económico-financeira, vieram
demonstrar a dificuldade em se obter a convergência dos interesses nacionais dos
Estados-Membros, de modo a prosseguir um interesse comum claramente
percecionado.
Neste contexto, interessa averiguar em que medida o interesse nacional português está
a ser devidamente salvaguardado, no quadro das estratégias setoriais e das políticas
comuns da UE. O presente estudo tem por finalidade contribuir para essa avaliação,
nos domínios da segurança e defesa e dos assuntos do mar.
Para tal, o trabalho articula-se em quatro partes principais. Na primeira, começa-se por
analisar o conceito de interesse nacional à luz das teorias realista e construtivista das
relações internacionais. Na segunda, tendo por base o edifício jurídico do Estado
português, identifica-se o atual interesse nacional nos domínios em questão, enquanto
na terceira parte, através do exame da documentação comunitária relevante,
1
Este artigo tem por base o estudo efetuado para proferir, no dia 27 de novembro de 2013, a lição
inaugural do Instituto de Estudos Superiores Militares, por ocasião da Abertura Solene do Ano Letivo
2013/2014.
2
Mais do que uma versão deste texto foi lida pelo Professor Armando Marques Guedes, a quem agradeço
os simpáticos comentários.
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reconhecem-se os interesses comuns da União. Na quarta parte, reflete-se sobre a
forma como os interesses nacionais se articulam com os interesses da UE, no sentido
de identificar, no decurso do projeto de construção europeu, as oportunidades a
aproveitar e as ameaças a neutralizar.
2. O interesse nacional no quadro das Relações Internacionais
A caraterização do conceito de interesse nacional é um tema que tem merecido a
reflexão de numerosos investigadores. Com o intuito de estabelecer um entendimento
comum sobre o conceito, de seguida vai ser efetuada uma breve revisão do mesmo, à
luz das teorias realistas e construtivistas. Uma abordagem alternativa que se tem vindo
a tornar “clássica” é a liberal. As teorizações liberais em relações internacionais
constituem, no entanto, mais uma família de posições do que uma entidade
verdadeiramente coesa. Contrastam com o neorrealismo e fundem-se, de maneiras
variáveis, com as posições construtivistas. Ao invés dos neorrealistas, não estipulam
uma “imutabilidade” do sistema internacional, nem que este seja apenas constituído
por Estados que interagem como se fossem “bolas de bilhar”. As teorizações liberais
têm antes como unidade de conta os “povos”, e consideram o sistema internacional
formalmente mutável por vias institucionais (e.g. organizações internacionais e / ou
jurídicas), considerando que, assim, a anarquia internacional se vai progressivamente
esbatendo; informalmente, as posturas liberais nas teorizações das relações
internacionais aludem a figuras intercalares como a dos regimes internacionais. Por isso
se vê que há uma espécie de gradiente entre os liberalismos e os construtivismos no
quadro das relações internacionais. É porventura em áreas hard, porque muito
próximas da soberania dos Estados, como, por exemplo, nas áreas relativas à
segurança e defesa, à política externa, à estratégia e ao mar, que essa fusão
progressiva mais se faz sentir. Neste artigo as teorias liberais são tratadas no quadro
maior das teorias apelidadas de construtivistas.
No âmbito das relações internacionais, o conceito de interesse nacional é usado para
indicar uma determinada necessidade que alcaou o estatuto de reclamação aceitável
em nome do Estado, mas também para justificar e apoiar a prossecução de
determinadas políticas específicas (Griffiths et al., 2008: 216). De uma forma
pragmática, o Instituto de Defesa Nacional define interesse nacional como a “expressão
integrada e compatibilizada dos desejos e preocupações dos indivíduos e dos grupos
que constituem a comunidade nacional”, correspondendo a uma abstração generalizada
das aspirações e das necessidades básicas dessa mesma comunidade (Sacchetti, 1986:
14).
O interesse nacional tem uma dimensão associada à política interna do Estado e outra
relacionada com a sua política externa, ainda que a globalização tenha esbatido as
diferenças entre as dimensões interna e externa dos interesses dos pses (Stolberg,
2012: 13; Guedes & Elias, 2012b). No âmbito da política interna, é frequentemente
designado por interesse público, sobretudo nos regimes democráticos, ou por bem
comum, entre os comunitaristas. Nessa circunstância é entendido como aquilo que é
importante para a generalidade da população de um determinado Estado, por
contraposição ao interesse particular dos cidadãos, dos grupos socioeconómicos e das
regiões que constituem esse mesmo Estado (Bobbio et al., 1998: 642). No contexto da
política externa, o conceito é normalmente associado à perspetiva realista clássica das
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relações internacionais, também apelidada de “teoria dos interesses dos Estados”
(Bobbio et al., 1998: 641).
Esta teoria considera que os Estados são os atores centrais do sistema internacional e
que interagem entre si num ambiente anárquico, no qual não existe um poder superior
capaz de definir e de impor normas que regulem as suas relações. Neste contexto, as
políticas desenvolvidas têm por base o interesse nacional, sendo este baseado no poder
de cada Estado (David, 2001: 33). Como a política internacional é tida pelos realistas
como sendo essencialmente conflitual, para garantir a sua segurança e defender os
seus interesses, os Estados têm de desenvolver um poder credível, assumindo o vetor
militar um papel preponderante na sua edificação. Num mundo em que os Estados
soberanos competem por recursos, a sobrevivência da nação é o interesse nacional
fundamental. Uma vez garantida a sobrevivência, o Estado pode então prosseguir
outros interesses, tendo sempre presente que aqueles que descuram os seus interesses
acabam por não subsistir enquanto nações soberanas (Dougherty & Pfaltzgraff, 2011:
95-97). Segundo esta visão das relações internacionais, os interesses e a identidade
dos Estados são definidos antes de qualquer tipo de interação na cena internacional, e
as relações de poder que se estabelecem são determinadas em função das capacidades
materiais dos Estados.
Contudo, esta perspetiva, que ocupou uma posição dominante no estudo das relações
internacionais no período que medeia entre o fim da Segunda Guerra Mundial e o início
da década de 1980, foi objeto de várias críticas, em diferentes frentes. Numa tentativa
de encontrar respostas para as omissões identificadas, as perspetivas neorrealistas e
neoliberais centraram a sua atenção na forma como as estruturas afetam a
racionalidade dos atores. Por um lado, os neorrealistas enfatizam que a pressão
competitiva de um sistema internacional anárquico influência decisivamente
determinados tipos de comportamento do Estado, nomeadamente a constante procura
do equilíbrio de poder. Por outro, os neoliberais defendem que, num mundo
interdependente, as instituições internacionais constituem-se como um contexto
estrutural alternativo, no qual os Estados podem definir os seus interesses e coordenar
as políticas divergentes (Katzenstein, 1996: 12). No entanto, estas perspetivas liberais,
menos focadas nos Estados e mais nos povos enquanto atores, continuam a não ter em
conta que o interesse nacional está dependente da interpretação que dele fazem os
decisores políticos e que o significado que estes lhes atribuem é condicionado pela sua
educação e valores, bem como pelos dados que lhes são facultados. Também não têm
em atenção o papel fundamental que a identidade nacional exerce na construção dos
interesses das nações, e que este não é exclusivamente um produto de fatores
propriamente materiais e externos, pois se assim fosse, Estados com capacidades
semelhantes teriam comportamentos idênticos. Esta identidade tem uma dimensão
interna, relacionada com a forma como os grupos, Estados ou agentes se veem a si
próprios, e uma dimensão externa, que exprime o modo como percecionam aqueles
que os rodeiam. Desta forma, conforme tem sido argumentado, constroem-se
consensos intersubjetivos acerca dos seus papéis externos, que por sua vez dão forma
ao interesse nacional, surgindo este a partir de normas e regras desenvolvidas no
interior do grupo
3
3
Os consensos intersubjetivos constituem-se através de entendimentos partilhados, de expectativas e do
conhecimento social existente nas instituições internacionais.
.
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O interesse nacional português no contexto das políticas de segurança e defesa e dos assuntos do mar
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Conceber o interesse nacional como produto de uma identidade socialmente construída,
e não como algo material, pertence ao domínio da família de teorias apelidadas de
construtivistas (Dougherty & Pfaltzgraff, 2011: 121, 122). Para os construtivistas, o
interesse nacional é construído através da interação social entre os Estados nas
instituições internacionais, não se encontrando definido à partida (Katzenstein, 1996:
2). O sistema internacional é o resultado das relações que se estabelecem entre os
seus membros, relações essas que dão significado às capacidades materiais dos
Estados, e assenta nos seguintes princípios: (i) os Estados são as principais unidades
de análise; (ii) as estruturas-chave do sistema estatalo são materiais, mas sim
intersubjetivas; e (iii) as identidades e os interesses estatais são, em grande parte,
construídos pelas estruturas sociais (Wendt, 1994: 385). A produção normativa das
principais estruturas institucionais exerce uma influência decisiva na formação da
identidade e dos interesses dos Estados. Estes têm uma identidade corporativa que
estabelece objetivos genéricos, mas a forma como os alcançam depende das suas
identidades sociais, ou seja, depende do modo como se veem em relação aos outros
Estados. As instituições incorporam as normas que regulam as interações entre os
Estados. Por sua vez, estas mesmas interações vão condicionar a formação das
identidades e interesses dos Estados, estabelecendo ainda as possibilidades de ação e
os constrangimentos a que estes estão sujeitos (Griffiths, et al., 2008: 51, 52).
Considera-se, assim, a perspetiva construtivista particularmente adequada para
analisar a formação do interesse comum da UE, em resulta da interação entre os
Estados-Membros nas instituições comunitárias.
O interesse nacional expressa o que o Estado quer salvaguardar, constituindo a sua
identificação a base de partida para o desenvolvimento de uma determinada política ou
estratégia, pelo que deve ser colocado muito cuidado na sua avaliação. Uma vez
reconhecidas e analisadas as interações entre as várias categorias de interesses,
compete ao Governo definir os objetivos nacionais, que designam o que o Estado
deseja atingir. Da concretização dos objetivos vai depender a satisfação dos interesses
(Sacchetti, 1986: 17; Santos, 1983: 45).
A correta identificação, num determinado momento histórico, dos interesses nacionais
não se afigura uma tarefa fácil, pois estes elementos não se encontram claramente
enunciados num único documento. Para deduzi-los é necessário analisar os documentos
oficiais e os discursos dos decisores políticos. Neste contexto, o próximo capítulo
sistematiza a análise efetuada à documentação do quadro legal nacional, relevante
para a identificação do atual interesse nacional português, nos donios da segurança e
defesa e dos assuntos do mar.
3. O interesse nacional português na atualidade
O interesse nacional apresenta uma dimensão permanente, que se mantém constante
ao longo de largos períodos de tempo, e outra conjuntural, que vigora num
determinado contexto (Santos, 1983: 48). O interesse nacional permanente de
Portugal é indissociável das opções atlânticas, europeias, e lusófonas que enformam a
sua política externa. País de escassos recursos, o quadro de alianças em que se insere
assume um papel fundamental na salvaguarda do interesse nacional. Neste particular,
a aliança com a potência marítima tem sido uma constante ao longo da história de
Portugal, pelo que a manutenção de uma relação privilegiada de cooperação com os
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Estados Unidos da América (EUA) ganha especial relevância. Os motivos são aqui
sistémicos, mais do que propriamente políticos-ideológicos. Os EUA, nesse sentido,
vieram tão-somente ocupar o lugar que até meados do século XX tinha sido ocupado
pela Inglaterra. Num quadro em que a Europa se constitui como a principal área
geográfica de interesse estratégico permanente português, logo seguida em termos de
importância pelo espaço euro-atlântico (Governo de Portugal, 2013a: 20), a UE e a
NATO assumem-se como parceiros estratégicos fundamentais. Noutra vertente, o
interesse nacional está ainda associado à consolidação da Comunidade dos Países de
Língua Portuguesa (CPLP), enquanto espaço de cooperação entre os seus Estados-
Membros (Governo de Portugal, 2013a: 8).
No respeitante ao interesse nacional conjuntural, este é influenciado, sobretudo, pela
situação na UE. A crise económico-financeira internacional, que afetou particularmente
a zona euro, veio revelar deficiências na arquitetura de construção europeia, que até
então não tinham sido identificadas. Perante a adversidade, os líderes políticos têm
reforçado a primazia conferida aos interesses dos seus próprios países, dando azo a
tensões internas e pondo à prova a solidariedade europeia, impcita no projeto
europeu. Neste contexto, a reavaliação do posicionamento dos Estados-Membros face
aos tratados e às políticas comuns em vigor é uma variável a considerar, sobretudo
quando está em causa o interesse nacional. Para que tal seja viável, é necessário que
os países disponham da liberdade de ação necessária para atuarem na defesa dos seus
interesses, o que não acontece com Portugal nas circunstâncias atuais. Este facto
constitui-se como o principal fator condicionante da definição do interesse nacional
português na atualidade.
No domínio da segurança e defesa, as restrições financeiras inerentes a esta crise e o
consequente impacto negativo nos orçamentos destas áreas, assim como a emergência
de novas potências e as obrigações decorrentes dos compromissos assumidos no
quadro da NATO e da UE, constituem-se como os fatores que mais condicionam a
definição do interesse nacional (Governo de Portugal, 2013a: 6). A reorientação das
prioridades estratégicas dos EUA para o espaço Ásia-Pacífico ditou um menor
empenhamento daquele ps nas questões atlânticas e mediterrânicas, o que
representa um acréscimo de responsabilidade para os aliados europeus, sobretudo
devido aos momentos de grande turbulência que se vivem no Norte de África e no
Médio Oriente. No âmbito da NATO, foram introduzidos os conceitos de Comprehensive
Approach, que defende a necessidade de adotar uma abordagem que envolva os
instrumentos político, civil e militar na resolução de crises, e de Smart Defence, que
procura estimular o aparecimento de uma nova cultura de cooperação que possibilite o
desenvolvimento de melhores capacidades a custos razoáveis (Governo de Portugal,
2013a: 21). No quadro da UE, uma construção institucional tributária do liberalismo, do
Tratado de Lisboa resultou a substituição da Política Europeia de Segurança e Defesa
(PESD) pela Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD), o estabelecimento das
cláusulas de defesa mútua e de solidariedade, o alargamento do domínio das
cooperações reforçadas e o estabelecimento do mecanismo das cooperações
estruturadas permanentes. Por outro lado, a Estratégia Europeia de Segurança reforça
a necessidade da UE melhorar a sua capacidade para atuar num ambiente caraterizado
pela diversidade de meios civis e militares. As restrições orçamentais tiveram como
reflexo o reforço do papel da European Defence Agency (EDA) e a identificação da
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necessidade de desenvolver o conceito de Pooling and Sharing, que se traduz na
partilha de meios e capacidades militares (Governo de Portugal, 2013a: 22).
No domínio dos assuntos do mar, nos últimos anos tem-se assistido a um aumento do
interesse da comunidade internacional pelos oceanos, sobretudo pela perspetiva de
acesso aos recursos marinhos que estes potencialmente encerram. A emergência de
novas potências em processo de acelerado desenvolvimento económico, associada ao
rápido crescimento demográfico de algumas regiões do globo, tem determinado um
aumento da procura de recursos naturais. Esta situação tem conduzido ao progressivo
esgotamento dos recursos naturais em terra, pelo que o acesso aos recursos marinhos
adquire uma nova importância. Neste contexto, a possibilidade de extensão da
plataforma continental para além das 200 milhas náuticas assume uma inegável
relevância para os Estados costeiros, que dessa forma veem alargada a zona sobre a
qual exercem direitos soberanos, para efeitos de exploração de recursos marinhos. Por
outro lado, a consciência da natureza finita dos recursos naturais tem feito emergir a
necessidade de se proceder à sua exploração de uma forma sustentável, e dado corpo
à necessidade de se adotar uma gestão integrada do mar e da orla costeira.
Para a identificação do atual interesse nacional nos domínios em análise foi examinada
a documentação nacional onde normalmente esta matéria se encontra vertida,
nomeadamente a Constituição da República Portuguesa (CRP), a Lei de Defesa Nacional
(LDN), o Conceito Estratégico de Defesa Nacional, o Programa do XIX Governo
Constitucional e a Estratégia Nacional para o Mar 2013-2020.
A análise efetuada permitiu concluir que, no âmbito da segurança e defesa, os
interesses nacionais se desenvolvem segundo três vetores. O primeiro está associado
aos valores fundamentais e compreende:
A garantia da soberania do Estado, da independência nacional e da integridade do
território português, assim como a liberdade e a segurança das populações (art.º
273.º da CRP e art.º 1.º da LDN); e
A salvaguarda da estabilidade e da segurança europeia, atlântica e internacional
(Governo de Portugal, 2013a: 8).
O segundo vetor está relacionado com a política de alianças e de parceiras estratégicas.
Neste quadro, os interesses nacionais surgem associados:
Ao fortalecimento da coesão da UE e da NATO (Governo de Portugal, 2013a: 28);
Ao reforço do relacionamento com a NATO e com as estruturas europeias
responsáveis pela implementação da PCSD (Governo de Portugal, 2011: 110); e
À consolidação das relações de amizade e cooperação com os países da CPLP (art.º
7.º da CRP), consubstanciada no reforço da cooperação técnico-militar com aqueles
Estados (Governo de Portugal, 2011: 111).
O terceiro vetor diz respeito ao desenvolvimento de capacidades e abarca:
O reforço da capacidade para enfrentar agressões ou ameaças externas (art.º 5.º da
LDN);
O fortalecimento da capacidade para participar em missões internacionais de
carácter humanitário e de manutenção da paz (Governo de Portugal, 2013a: 28); e
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O desenvolvimento de capacidades civis e militares integradas (Governo de Portugal,
2013a: 28).
Por sua vez, no domínio dos assuntos do mar, os interesses nacionais também se
desenvolvem segundo três eixos. O primeiro está relacionado com o papel do mar
enquanto instrumento de afirmação internacional de Portugal, surgindo os interesses
associados:
À recuperação da identidade marítima de Portugal (Governo de Portugal, 2013b:
62);
À valorização da vocação atlântica de Portugal (Governo de Portugal, 2013a: 28); e
À consagração de Portugal como nação marítima e como parte da Política Marítima
Integrada (PMI) e da Estratégia Marítima da UE, designadamente para a área do
Atlântico (Governo de Portugal, 2013b: 62).
O segundo eixo diz respeito ao mar enquanto instrumento de desenvolvimento
económico, passando os interesses nacionais pela:
Captação de recursos financeiros para investimentos nos setores da economia do
mar (Governo de Portugal, 2013b: 62);
Promoção da interoperabilidade entre os serviços marítimos e portuários, construção
e reparação naval e obras marítimas (Governo de Portugal, 2011: 53);
Defesa do setor das pescas e promoção da aquicultura (Governo de Portugal, 2011:
53);
Promoção do bem-estar e da qualidade de vida da população (art.º 9.º da CRP),
destacando-se neste âmbito as populações piscatórias; e
Assunção do carácter estratégico do projeto de extensão da plataforma continental,
devido à perspetiva de acesso aos recursos minerais, energéticos e biogenéticos que
esta potencialmente encerra (Governo de Portugal, 2011: 110).
O terceiro eixo está relacionado com o desenvolvimento sustentável e abarca:
A defesa da natureza, do ambiente e a preservação dos recursos naturais (art.º 9.º
da CRP); e
O correto ordenamento do território nacional e o seu desenvolvimento harmonioso
(art.º 9.º da CRP), destacando-se no âmbito deste trabalho o ordenamento da orla
costeira.
Sintetizado aquele que se considera ser o interesse nacional expresso pela
documentação nacional relevante nos domínios da segurança e defesa e dos assuntos
do mar, procurar-se-á agora identificar o interesse comum da União nas mesmas
áreas.
4. O interesse da UE
O modelo de governação híbrido que dá corpo à UE, com a intergovernamentalidade a
coexistir com a supranacionalidade, torna-a num novo tipo de ator na cena política
internacional (Buzan & Little, 2000: 359). O seu carácter único resulta do facto de,
apesar de todos os Estados-Membros serem soberanos e independentes, terem
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congregado parte da sua soberania, significando isto que delegaram parte dos seus
poderes de decio às instituições europeias entretanto criadas.
A questão da existência de um interesse comum europeu não é consensual, existindo a
perspetiva que esse interesse simplesmente não existe, ou então, que é apenas a soma
dos interesses dos vários Estados-Membros. Numa outra linha, há quem argumente
que os mecanismos conducentes a tomadas de decisão não existem ainda com
suficiente robustez na Europa comunitária. No entanto, determinados indícios levam a
supor que esse interesse existe, conforme o atesta a própria denominação das políticas
da UE, as quais são qualificadas de comuns. Neste aspeto, é paradigmática a alteração
de designação de PESD para PCSD. Este facto, de inegável significado potico,
evidencia a intenção de os Estados-Membros percorrerem um caminho que os leve à
identificação de interesses comuns na área da segurança e defesa. Conforme se poderá
constatar, no momento atual ainda há um longo caminho a percorrer até se conseguir
materializar uma verdadeira política comum neste domínio. Contudo, considera-se que
o interesse comum europeu existe em determinados contextos, e que é formado no
decurso das interações entre os Estados-Membros nas instituições europeias.
A UE baseia-se no princípio do Estado de direito, na medida em que as decisões
tomadas fundamentam-se nos tratados ratificados pelos Estados-Membros. O Tratado
de Lisboa constitui-se como a última alteração aos tratados, encontrando-se os
tratados anteriores incorporados numa versão consolidada que dá corpo ao Tratado da
União Europeia (TUE) e ao Tratado sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE)
(Comissão Europeia, 2013: 3, 4). Os domínios políticos em que a UE pode tomar
decisões são determinados pelos tratados da União. Os domínios de competência
exclusiva da UE compreendem a política aduaneira e comercial, as regras de
concorrência, a política monetária na zona euro e a conservação dos recursos biológicos
do mar (artigo 3.º do TFUE). A competência é partilhada, entre outras, nas áreas do
mercado interno, agricultura, proteção dos consumidores e transportes (artigo 4.º do
TFUE). Nos restantes domínios políticos as decisões são da competência dos Estados-
Membros, não podendo a Comissão Europeia ter iniciativas legislativas nessas matérias
(Comissão Europeia, 2013: 8).
Para a identificação dos interesses da UE nas áreas em questão, foram examinados os
tratados da União, a Estratégia Europa 2020, a Estratégia Europeia de Segurança, a
PMI e o dispositivo legislativo que dá corpo à Política Comum das Pescas (PCP). Em
resultado da análise efetuada verificou-se que o interesse da UE se encontra
essencialmente expresso, duma forma implícita, no TUE.
Tendo por base o estudo efetuado, considera-se que no domínio da segurança e defesa
os interesses europeus compreendem:
A salvaguarda da sua segurança, independência e integridade (art.º 21.º do TUE);
A promoção da paz e do bem-estar dos seus Estados-Membros (art.º 3.º do TUE);
A promoção dos seus valores, nomeadamente o respeito pela dignidade humana,
liberdades fundamentais, democracia, igualdade, Estado de direito e direitos do
Homem (art.º 2.º do TUE);
A criação de um espaço de liberdade, segurança e justiça sem fronteiras internas
(art.º 3.º do TUE);
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A promoção da paz e da segurança internacional, assim como a solidariedade e o
respeito mútuo entre os povos (art.º 3.º do TUE);
O desenvolvimento de relações privilegiadas com os pses vizinhos, de modo a criar
um espaço de prosperidade e boa vizinhança (art.º 8.º do TUE); e
O desenvolvimento de relações e a constituição de parcerias com os países e com as
organizações internacionais, regionais ou mundiais, que partilhem dos valores da
União (art.º 21.º do TUE).
Não exclusivamente relacionados com os assuntos do mar, mas com pontos de
contacto com estas matérias, identificam-se essencialmente os seguintes interesses
europeus:
O estabelecimento de um mercado interno, assente no desenvolvimento sustentável
(art.º 3.º do TUE); e
A preservação do ambiente e a gestão sustentável dos recursos naturais (art.º 21
do TUE).
Com base nos desenvolvimentos anteriores, irá agora ser abordada a questão da
articulação entre os interesses nacionais portugueses e os interesses da UE, de modo a
identificar pontos de convergência e de potencial conflito.
5. A articulação do interesse nacional com o interesse da UE
Analisando a área da segurança e defesa segundo um ponto de vista genérico,
constata-se que as resoluções relativas à PCSD são adotadas por unanimidade (art.º
42.º do TUE), o que oferece relativas garantias de não serem são tomadas decisões à
revelia dos decisores políticos nacionais. Olhando retrospetivamente para o processo de
construção europeu, verifica-se que na dimensão da segurança e defesa o interesse da
UE é algo de muito difuso, considerando-se mesmo que não existe um verdadeiro
interesse comum. Este facto fica bem patente na redação que foi dada à cláusula de
defesa mútua existente no TUE e que se transcreve de seguida (art.º 42.º do TUE):
“Se um Estado-Membro vier a ser alvo de agressão armada no seu
território, os outros Estados-Membros devem prestar-lhe auxílio e
assistência por todos os meios ao seu alcance (…). Tal não afeta o
carácter específico da política de segurança e defesa de
determinados Estados-Membros. Os compromissos e a cooperação
neste domínio respeitam os compromissos assumidos no quadro
da NATO, que, para os Estados que são membros desta
organização, continua a ser o fundamento da sua defesa coletiva e
a instância apropriada para a realizar”.
Na leitura que se faz desta cláusula, fica evidente que ela resulta de uma solução de
compromisso, que procura satisfazer os interesses de três tipos de Estados-Membros
(Monteiro, 2011: 734):
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Os integracionistas, que quiseram ver refletida a obrigação de ajudar o Estado-
Membro alvo da agressão;
Os tradicionalmente neutros, que pretenderam ver consagrado o respeito pelas
políticas de segurança e defesa de cada Estado-Membro; e
Os atlantistas, que na sua condição de Estados-Membros da NATO, quiseram ver
remetida a sua defesa para a Aliança.
Estes três grupos de Estados acabam por refletir as grandes tendências da UE no
âmbito da segurança e defesa, pelo que apesar de existir uma política de segurança e
defesa denominada de comum, não se perceciona a existência de um claro interesse
comum. Não é por acaso que o TUE manifesta a intenção da PCSD conduzir à edificação
de uma defesa comum, mas apenas quando o Conselho Europeu, deliberando por
unanimidade, assim o decidir. No atual contexto, em que a crise económico-financeira
está a colocar à prova todo o projeto europeu, não se vislumbra que seja possível
percorrer este caminho a breve trecho.
Passando agora a centrar a análise na articulação dos interesses segundo os vetores
através dos quais se desenvolvem os interesses nacionais portugueses, na área da
segurança e defesa verifica-se que, no vetor dos valores fundamentais, existe um
alinhamento entre os interesses nacionais e os interesses da UE, o que não é de
estranhar, sobretudo se tivermos em consideração que a construção europeia tem
subjacente a partilha de princípios basilares. Contribuem especialmente para a
salvaguarda do interesse nacional neste domínio a cláusula de defesatua e a
cláusula de solidariedade. A primeira estabelece o compromisso político de ajuda
recíproca em caso de agressão armada ao território nacional, enquanto a segunda
institui a assistência mútua no caso de um Estado-Membro ser alvo de ataque terrorista
ou vítima de catástrofe de origem natural ou humana.
No âmbito da política de alianças, a articulação dos interesses tem de ser analisado na
perspetiva do relacionamento entre a União e a NATO, bem como no domínio das
cooperações estruturadas permanentes. Integrando Portugal o grupo de Estados que
dão primazia à sua defesa no âmbito da Aliança Atlântica é do seu interesse que a
articulação entre a NATO e a UE seja reforçada. Neste capítulo, verifica-se a existência
de um alinhamento entre o interesse da União e o interesse nacional, pois enquanto a
PCSD respeita as obrigações assumidas pelos Estados-Membros no quadro da Aliança,
o relatório sobre a execução da estratégia europeia de segurança, reforça a
necessidade da União e a NATO aprofundarem a sua parceria estratégica, em benefício
de uma melhor cooperação na gestão de crises (Conselho da União Europeia, 2008, p.
2). O reforço desta cooperação tem percorrido o seu caminho, verificando-se que, por
vezes, na execução das missões da UE existe coordenação com a NATO, cujas
estruturas de comando e controlo são utilizadas (Comissão Europeia, 2013, p. 18).
Deste modo, considera-se ser do interesse de Portugal e das referidas organizações, a
institucionalização de formas de cooperação que permitam a articulação dos meios e
das capacidades existentes. Esta articulação poderá passar pela coordenação ao nível
do processo de planeamento de forças, de modo a que seja possível alcançar uma
maior eficiência na utilização dos recursos disponíveis.
Numa outra vertente, é permitido aos Estados-Membros estabelecerem entre si
cooperações reforçadas, nas áreas em que a UE não detém competências exclusivas
(art.º 20.º do TUE). A autorização para dar início à cooperação reforçada é concedida
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por decisão unânime do Conselho (art.º 329.º do TFUE). Neste âmbito, o Tratado de
Lisboa estabeleceu as cooperações estruturadas permanentes que são um mecanismo
de cooperação especificamente criado para a PCSD (art.º 46.º do TUE). As cooperações
estruturadas estão a meio caminho entre a criação de alianças formais e o acender de
regimes internacionais, como força consuetudinária. A própria noção de cooperação
estruturada é tributária de um liberalismo construtivista. Este instrumento permite que
os Estados-Membros com as mais elevadas capacidades militares estabeleçam
compromissos entre si, tendo em vista a realização das missões militares mais
exigentes. A participação na cooperação estruturada permanente tem subjacente o
compromisso dos Estados-Membros procederem, de forma mais intensiva, ao
desenvolvimento das suas capacidades militares (art.º 1º do Protocolo n.º 10, relativo
à Cooperação Estruturada Permanente). Este mecanismo pode constituir-se como um
catalisador para o desenvolvimento das capacidades militares dos Estados-Membros,
permitindo que os europeus assumam uma maior partilha de responsabilidades com os
EUA, mas também pode abrir o caminho para a formação de uma Europa a várias
velocidades no domínio da segurança e defesa. Deste modo, para alcançar os objetivos
pretendidos, deve ser colocado muito cuidado na definição dos critérios de adesão a
este mecanismo. Se as condições estabelecidas forem pouco rigorosas, não é atingido o
objetivo de fomentar o desenvolvimento de capacidades de defesa dos Estados-
Membros; se forem muito exigentes, estão criadas as condições para a existência de
uma Europa a várias velocidades nesta área. Neste caso, Portugal poderá não estar no
pelotão da frente, devido aos constrangimentos estruturais e financeiros que impedem
o desenvolvimento das capacidades militares necessárias. Se for tido em consideração
que a defesa dos interesses nacionais tem passado por estar na primeira linha da
construção europeia, com o intuito de participar ativamente no processo decisório
comunitário, a não integração numa eventual cooperação estruturada permanente pode
ser contrária aos interesses nacionais.
Simultaneamente, o protocolo relativo à cooperação estruturada permanente
estabelece que, na medida do possível, os Estados-Membros devem proceder a uma
harmonização dos instrumentos militares e a uma especialização dos seus meios e
capacidades de defesa (art.º 2.º). Portugal, enquanto país com interesses numa vasta
área geográfica, materializados numa diáspora espalhada pelos quatro cantos do
mundo,o deve abdicar da possibilidade de intervenção autónoma, nas circunstâncias
em que a defesa dos seus interesses assim o exija, algo que poderá ficar comprometido
caso seja iniciado o caminho da especialização de meios e capacidades militares. Esta
circunstância apresenta-se como mais um fator a ponderar numa eventual participação
de Portugal neste mecanismo.
Contudo, importa assinalar que, desde o seu icio, a ideia da criação das cooperações
estruturadas tem sido um assunto muito controverso, considerando-se mesmo que a
probabilidade de algum dia vir a ser concretizada é muito remota. Esta situação é
comprovada pelo facto de, apesar dos anos decorridos, e dos esforços feitos por alguns
países (e.g. lgica, Hungria e Polónia) para substituir os critérios de admissão por
compromissos de participação, ainda nenhum Estado-Membro ter notificado o Conselho
da intenção de encetar uma cooperação estruturada. No respeitante a Portugal, o facto
de não ter reunidas as condições de base para se poder pensar na adesão a uma futura
cooperação estruturada, poderá afetar de forma mais significativa a sua capacidade
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para proteger o interesse nacional, do que eventuais cedências de soberania às
instituições europeias
4
O anteriormente exposto remete para a terceira dimensão dos interesses nacionais no
âmbito da segurança e defesa, que está relacionada com o desenvolvimento de
capacidades. O TUE confere à EDA competências para contribuir para a identificação
dos objetivos de capacidades militares dos Estados-Membros, para a promoção da
harmonização das necessidades operacionais, bem como para a execução de medidas
conducentes a um reforço da base industrial e tecnológica do setor da defesa (art
45.º do TUE). Enquanto a atribuição de competências a uma agência europeia para
identificar objetivos de capacidades militares dos Estados-Membros é um caminho que
pode comprometer os interesses nacionais, a participação em projetos de investigação
e desenvolvimento de tecnologia de defesa pode ser do interesse de Portugal, se daí
resultar um aumento da qualidade da despesa afeta às atividades da Defesa.
.
Se no âmbito da segurança e defesa não foi possível percecionar um claro interesse
comum, no domínio dos assuntos do mar esse interesse é manifesto, e passa pela
salvaguarda da competência exclusiva da União no domínio da conservação dos
recursos biológicos do mar. A intenção de se proceder à comunitarização dos recursos
biológicos marinhos torna-se evidente logo no Tratado de Roma, mas só com a
concretização de uma política comum para o setor das pescas foram dados os primeiros
passos nesse sentido. Este interesse vai culminar no Tratado de Lisboa com a adoção
de uma cláusula que estabelece que, no âmbito da PCP, a UE dispõe de competência
exclusiva no respeitante à conservação dos recursos biológicos do mar (art.º 3.º do
TFUE).
Atenta ao problema da sobrepesca, a UE tenta impor medidas que contribuam para a
sustentabilidade dos recursos piscícolas, enquanto os Estados-Membros, preocupados
com o bem-estar das populações piscatórias, procuram garantir o acesso das suas
frotas pesqueiras a zonas de pesca, do que resulta um conflito de interesses. Este
conflito tem sido dirimido no seio da União através da adoção de cláusulas de exceção,
que têm permitido aos Estados-Membros salvaguardar os interesses das comunidades
piscatórias locais, muito dependentes da pesca tradicional desenvolvida junto à costa.
Estas cláusulas têm permitido aos Estados-Membros manter a exclusividade da
atividade piscatória no seu mar territorial, para as embarcações nacionais.
Adicionalmente, nos Arquipélagos da Madeira e dos Açores, com a entrada em vigor do
Regulamento (CE) n.º 1954/2003, relativo à gestão do esforço de pesca, Portugal tem
conseguido restringir a pesca aos navios registados nos portos dos arquipélagos, numa
faixa compreendida entre a linha de base e as 100 milhas náuticas. Esta restrição só
não se aplica a navios comunitários que tradicionalmente pesquem nessas águas e
desde que não excedam o esforço tradicional de pesca. Com exceção da Bélgica e da
Holanda, onde predominam os navios de grandes dimensões, nos restantes Estados-
Membros prevalecem as embarcações com menos de 12 metros de comprimento
(Parlamento Europeu, 2013: 2). Nestas circunstâncias, a pesca costeira ganha especial
relevância para os países europeus, o que atesta a importância da salvaguarda, para as
embarcações nacionais, da exclusividade da atividade de pesca nas zonas costeiras.
Outro aspeto que importa ter em atenção no domínio das pescas é a negociação, em
nome dos Estados-Membros, de acordos de pesca pela Comissão Europeia. Com estes
4
Agradeço a um dos revisores anónimos por me ter alertado para estes pontos tão importantes.
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acordos a União procura obter autorização para que os seus navios pesquem na ZEE do
país parceiro. Da celebração destes acordos pode resultar benefício ou prejzo para os
interesses de Portugal, devendo os processos negociais ser acompanhados caso a caso
e com particular atenção.
Para terminar a análise do setor piscícola, destaca-se o facto deste setor ainda não se
ter conseguido autonomizar em relação à agricultura. Esta falta de autonomia traduz-se
na inexistência, nos tratados, de disposições próprias sobre as pescas, sendo estas
regidas pelas disposições relativas à agricultura (Monteiro, 2011: 742). Tal
circunstância fica clara no TFUE, onde é referido que “por «produtos agrícolas»
entendem-se os produtos do solo, da pecuária e da pesca (…)” e que “as referências à
política agrícola comum ou à agricultura e a utilização do termo «agrícola» entendem-
se como abrangendo também as pescas (…)” (art.º 38.º do TFUE). Outro sinal
indiciador desta falta de autonomia é o facto do Comité Económico e Social Europeu
reunir-se em sessões plenárias divididas em seis secções temáticas, sendo os assuntos
das pescas tratados na Secção Especializada de Agricultura, Desenvolvimento Rural e
Ambiente (Comissão Europeia, 2013: 32). Considera-se que a não salvaguarda da
especificidade do setor das pescas é contrária aos interesses de um país como Portugal,
que em setembro de 2011 possuía a quarta maior frota pesqueira da Uno (Comissão
Europeia, 2012: 15, 21, 44).
Por outro lado, o carácter estratégico das questões relacionadas com a plataforma
continental aconselha a que se preste muita atenção a este assunto, para que não se
perca esta janela de oportunidade para Portugal. Se no que diz respeito aos recursos
não vivos da plataforma continental, não se encontra nenhuma disposição nos tratados
europeus que retire soberania aos Estados-Membros, já no que concerne aos recursos
vivos a situação não é linear, pois o TFUE estabelece que, no âmbito da PCP, a União
dispõe de competência exclusiva no respeitante à conservação dos recursos biológicos
do mar. Esta questão é particularmente relevante no caso dos organismos bentónicos
das fontes hidrotermais, pela perspetiva de exploração economicamente rentável, em
resultado das possíveis aplicações nas indústrias biotecnológicas. Daqui resulta a
necessidade de esclarecer se estes organismos, que não correspondem à definição
tradicional de recursos de pesca, estão incluídos naquilo que o TFUE designa como
recursos biológicos do mar. Numa análise simplista, a carecer da devida
fundamentação jurídica, somos levados a considerar que, à luz do disposto no
Regulamento (UE) 1380/2013, relativo à nova PCP, os organismos das fontes
hidrotermais deverão ser considerados como recursos biológicos do mar. De facto, o
referido regulamento indica que os recursos biológicos marinhos abarcam “as espécies
aquáticas marinhas, vivas, disponíveis e acessíveis, incluindo as espécies anádromas e
catádromas durante a sua vida marinha”, abarcando assim os organismos dos fundos
marinhos, o que é contrário aos interesses nacionais.
Analisada a PMI, deve-se procurar que a sua perspetiva integradora não leve a UE a
centralizar as competências atualmente existentes no domínio dos assuntos do mar. Tal
poderá ser conseguido através da observação do princípio da subsidiariedade,
permitindo, assim, que sejam encontradas soluções que tenham em consideração as
especificidades nacionais.
Por outro lado, sempre atenta às questões ambientais, a UE lançou um apelo
internacional para a redução das emissões de gases com efeito de estufa,
comprometendo-se a reduzir, até 2050, 80 a 95% das suas emissões relativamente aos
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veis de 1990. Para tal, estudos efetuados indicam que será necessário alcançar uma
redução de 60% de emissões no setor dos transportes (Comissão Europeia, 2011: 3,
4). Para atingir este objetivo foram estabelecidas várias metas, destacando-se de entre
estas a intenção de transferir para o transporte marítimo/fluvial ou ferrovrio, a
2030, 30% do tráfego rodoviário de mercadorias em distâncias superiores a 300 km, e
mais de 50% até 2050 (Comissão Europeia, 2011: 10). Num quadro em que o
alargamento do canal do Panamá poderá tornar Portugal na porta de entrada na Europa
para mercados tão importantes quanto o americano e o asiático, este facto constitui-se
como uma oportunidade a não desperdiçar (Guedes, 2012a). Para tal, torna-se
necessário o desenvolvimento das infraestruturas portuárias nacionais, de modo a
responder ao previvel aumento do fluxo de transporte matimo, bem como a criação
de plataformas logísticas nos portos portugueses, que acrescentem valor às
mercadorias transportadas pelos navios de grandes dimensões. O escoamento da
mercadoria poderá ter lugar por via marítima, sendo necessário nestas circunstâncias
efetuar o transbordo para navios mais pequenos, ou por via terrestre, assumindo neste
caso o transporte ferroviário um papel fundamental. Como qualquer cluster da
economia do mar tem por base um forte setor dos transportes marítimos, as
preocupações ambientais da União constituem uma oportunidade para Portugal
desenvolver este setor da sua economia, que importa não desperdiçar. O futuro nos
dirá se e como o conseguiremos.
Na sequência do anteriormente exposto, serão agora identificadas aquelas que se
considera serem as principais ameaças e oportunidades nos domínios em questão, na
perspetiva da salvaguarda do interesse nacional. Relativamente às principais ameaças,
identificam-se as seguintes:
A criação de cooperações estruturadas permanentes sem a participação de Portugal,
pois deste modo o país ficaria arredado do processo decisório comunitário neste
domínio;
A possibilidade de se proceder a uma especialização de meios e capacidades
militares, pois este caminho condicionaria a possibilidade de Portugal intervir, de
forma autónoma, onde a natureza dos seus interesses assim o exigisse;
A eventualidade de os objetivos e das capacidades militares serem identificados pela
EDA, devido à possibilidade desta avaliação não ter em conta a especificidade dos
interesses nacionais;
A comunitarização dos recursos biológicos marinhos, pela perspetiva de os recursos
vivos da plataforma continental virem a geridos pela Comissão; e
A negociação de acordos de pesca pela Comissão Europeia, pois daqui podem
resultar situações em que o interesse nacional não seja devidamente acautelado.
No respeitante às principais oportunidades, reconhecem-se as seguintes:
O desenvolvimento de ações que contribuam para um reforço da cooperação entre a
NATO e a UE, tendo em vista uma melhor articulação dos meios e das capacidades
militares;
A participação, no âmbito da EDA, em projetos de investigação e desenvolvimento
que permitam maximizar os escassos recursos financeiros disponíveis, colmatar as
vulnerabilidades inerentes ao sistema de forças nacional, promover o
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desenvolvimento da base tecnológica e industrial de defesa e aumentar a
interoperabilidade com as Forças Armadas de outros Estados-Membros; e
A adequação das infraestruturas portuárias nacionais para fazer face ao previsível
aumento do tráfego marítimo e às intenções demonstradas pela União, no quadro da
Política Comum de Transportes.
6. Conclusão
Neste trabalho foi analisada a questão da articulação do interesse nacional português
com o interesse da UE, procurando-se apurar se o interesse nacional está a ser
convenientemente salvaguardado, nos domínios da segurança e defesa e dos assuntos
do mar. O tema foi tratado à luz das teorias realistas, liberais e das suas variantes
construtivistas das Relações Internacionais, considerando-se a perspetiva de análise
construtivista particularmente adequada para estudar a formação dos interesses numa
entidade política com o caráter da UE.
Análise desenvolvida permitiu concluir que no domínio da segurança e defesa não é
possível percecionar a existência de um claro interesse comum europeu, mas antes os
interesses de três grupos de Estados-Membros, designadamente os integracionistas, os
neutrais e os atlantistas. Para acautelar o interesse nacional português neste domínio
de análise, Portugal deverá promover a cooperação entre a UE e a NATO, e reunir as
condições materiais, humanas e financeiras adequadas, tendo em vista a sua
participação numa cooperação estruturada que eventualmente venha a ser criada.
Deverá, ainda, evitar enveredar pelo caminho da especialização de meios e capacidades
militares, bem como procurar participar em projetos de investigação e desenvolvimento
no âmbito da EDA, que lhe permitam maximizar os parcos recursos financeiros
disponíveis.
Por sua vez, no domínio dos assuntos do mar foi possível percecionar um evidente
interesse comum europeu, estando este relacionado com a sustentabilidade dos
recursos biológicos do mar. A persecução deste interesse passa pela comunitarização
dos recursos vivos marinhos. Para acautelar os interesses nacionais neste domínio,
Portugal deverá procurar evitar que os recursos vivos da plataforma continental
venham a ser geridos pela Comissão Europeia, e acompanhar devidamente os acordos
de pesca negociados pela Comissão com países terceiros.
Em suma, num quadro de progressiva cedência de soberania às instituições europeias
em nome de um interesse comum, a salvaguarda dos interesses nacionais passa por
um rigoroso acompanhamento das negociações conducentes à edificação de estratégias
setoriais e de políticas comuns da UE, tendo sempre presente as palavras de Lord
Palmerston, em 1848, perante a Câmara dos Comuns, quando afirmou
We have no eternal allies and we have no perpetual enemies. Our
interests are eternal and perpetual, and those interests it is our
duty to follow”.
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PROBLEMAS SOCIALES: LA URGENCIA DEMOGRÁFICA EN URUGUAY
Virginia Delisante Morató
delisante@ort.edu.uy
Magister en Relaciones Internacionales del ISCSP, Universidade de Lisboa
Licenciada en Estudios Internacionales por la Universidad ORT Uruguay.
Coordinadora Académica Adjunta de la Licenciatura en Estudios Internacionales, Docente y
Catedrática Asociada de Proyectos Finales de la Facultad de Administración y Ciencias Sociales de
la Universidad ORT Uruguay.
Resumo
El presente artículo habla del Uruguay en un contexto de imagen externa muy mediatizada a
través de su reciente ex Presidente José Mujica, recorriendo políticas de gobierno
relacionadas con los problemas que todas las sociedades deben enfrentar y en particular,
del problema demográfico del que sufre ya que lo distingue de su contexto, no sólo regional,
sino en el marco latinoamericano todo.
Palavras chave:
Uruguay; problemas sociales; demografía; migración
Como citar este artigo
Morató, Virginia Delisante (2015). "Problemas sociales: la urgencia demográfica en
Uruguay". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 6, N.º 1, Maio-Outubro
2015. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol6_n1_art5
Artigo recebido em 23 de Julho de 2014 e aceite para publicação em 24 de Março de
2015
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PROBLEMAS SOCIALES: LA URGENCIA DEMOGRÁFICA EN URUGUAY
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I. Introducción
Uruguay es un país que ha estado en la primera plana de los principales diarios
internacionales, en los últimos años, a partir del último gobierno de José (Pepe) Mujica,
ya sea por lo mediático de su figura o por las tres legislaciones, si se quiere, más
progresistas que su gobierno ha aprobado, a saber: la Ley del matrimonio igualitario, la
liberalización del consumo de marihuana y la Ley que permite el aborto. Sin embargo,
resulta pertinente, en este contexto de imagen externa que tiene el país, hablar de
otras políticas de gobierno relacionadas con los problemas que todas las sociedades
deben enfrentar y en particular, del problema demográfico del que sufre ya que lo
distingue de su contexto, no sólo regional, sino en el marco latinoamericano todo.
Grosso modo la urgencia es clara: un ps sin gente carece de desarrollo viable.
Las políticas públicas, los índices del país en términos generales son elementos, por
otro lado, difíciles de medir en relación con sus vecinos. Siendo éstos grandes países,
con poblaciones enormes en comparación y sistemas de aplicación de políticas muy
diferentes considerando que, tanto Argentina como Brasil, tienen sistemas federales de
administración. De esta manera podemos decir que Uruguay se hace visible, no por su
tamaño (sea geográfico, poblacional, económico o todos juntos), como algunas
potencias regionales, sino por su diferencia, en términos de Joseph Nye
1
La rapidez con la que la información fluye en nuestros días nos lleva a introducir
nuestro análisis con una clara definición de la globalización porque va de la mano, por
su influencia en los grupos humanos incorporando cambios no siempre fáciles de
acompañar, ya sea por la complejidad que presentan o por la velocidad con la que lo
hacen.
, a través del
soft power, en este caso, partiendo de una figura muy mediática como su Presidente
saliente, el Sr. Mujica.
Anthony Giddens
2
nos dice que
“la globalización puede ser definida como la intensificación de las
relaciones sociales en escala mundial que ligan localidades
distantes de tal manera que los acontecimientos de cada lugar son
1
NYE, Joseph. 2010. The future of power. United States. Public Affairs.
2
GIDDENS, Anthony. 1991. As conseqüências da modernidade. São Paulo. Ed. Unesp
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modelados por eventos que ocurren a muchas millas de distancia y
viceversa. Éste es un proceso dialéctico porque tales
acontecimientos locales pueden desplazarse en dirección inversa a
las relaciones muy distanciadas que los moldean. La
transformación local es tanto una parte de la globalización cuanto
la extensión lateral de las conexiones sociales por medio del
tiempo y el espacio. Así, quien quiera que estudie las ciudades hoy
en día, en cualquier parte del mundo, está consciente de que lo
que ocurre en una vecindad local tiende a ser influido por factores
tales como el dinero mundial y los mercados de bienes- que
operan en una distancia indefinida de la vecindad en cuestión”.
Las economías latinoamericanas padecen la globalización como realidad de
vulnerabilidad y dependencia externa, donde los dones argumentados sobre la misma
desde los pses que la dirigen, hablan de ella como un beatífico fenómeno de
igualación de los beneficios y de las oportunidades, hechos que hasta el momento
distan de llegar a varias latitudes, entre las que se encuentra nuestro Cono Sur
americano.
No estamos sólo frente a una situación de libre mercado internacional, sino que la
globalización encuentra otras formas de manifestarse, a tras de avances
tecnológicos, a una velocidad descontrolada que ha llevado a un proceso de creciente
segmentación social con su consecuente dualización laboral, cultural y educacional por
lo que los impactos de la globalización recaen sobre los sistemas democráticos de las
sociedades que lo padecen, generando o resaltando distintos problemas sociales que
esas mismas economías deben enfrentar y resolver. En la línea de pensamiento de
Baylis
3
, la globalización está separando a los ciudadanos, en pie de guerra, entre los
educados cosmopolitas y los marginados económicos y sociales. Es ante esta nueva
forma de comportamiento mundial, que los países han tenido que buscar estrategias
comunes para salvaguardar problemas reales que enfrentan desde lo económico, sin
olvidar la estructura social y de clases, el sistema político y de partidos, el formato
estatal, los movimientos sociales, el grado de desarrollo material y de equidad social, la
profesionalidad y creatividad de las élites estatales y de la sociedad civil, la
configuración del sistema de actores sociales, los modelos culturales y el imaginario
colectivo, así como varios otros aspectos, incluyendo naturalmente la nueva realidad
mundial.
II. Concepto de problema social
Es necesario darle un marco conceptual teórico a lo que entendemos por problema
social que le dará razón a los tópicos elegidos para este trabajo.
Así, la doctrina define al problema social como consecuencia de condiciones o prácticas
que suponen una falta de armonía con los valores sociales de determinada sociedad.
3
BAYLIS, John. 2011. The globalization of world politics. Oxford. Oxford University Press
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Los problemas sociales existen cuando hay un desequilibrio en las formas de
organización social que tiene efectos negativos en el colectivo y, además, cuando su
competencia apela a la responsabilidad de ese colectivo
4
Frente a la pregunta ¿qué es un problema social? Pablo Kreimer, Director del Doctorado
en Ciencias Sociales de FLACSO Argentina, nos dice que
.
“un primer nivel de respuesta alude a la existencia de condiciones
objetivas que se relacionan, directamente, con los padecimientos
humanos (…) por ejemplo, la desnutrición, el analfabetismo, las
malas condiciones sanitarias, la falta de trabajo, entre otros, son
asuntos percibidos socialmente como problemas sin otro requisito
que la sensibilización acerca de las condiciones de vida de los
individuos implicados. Los problemas que afectan a una parte de la
población, resultan así “sociales” por el solo hecho de su
emergencia en el seno de una sociedad dada”.
Por su parte, Juan Sandoval Moya
5
, de la Universidad de Valparaíso, Chile, agrega que
“el proceso de construcción de problemas sociales es de carácter
simbólico e involucra la interacción de categorías propias de una
psicología social ligada a los sujetos y los discursos sociales, las
cuales pretenden dar cuenta de los procesos de subjetivación e
historicidad que en todas las comunidades humanas intervienen a
través de la producción de discursos en la definición, priorización y
caracterización de lo que definen en una época como problemas
sociales”.
En definitiva, la propia historia social de los pueblos y su identidad, definen los
problemas sociales y su prioridad de acuerdo a sus propias características.
En esta línea de razonamiento, los problemas por los que atraviesan nuestras
sociedades, refiriéndonos específicamente a América Latina, hacen hincapié en la
urgencia que provoca la desigualdad, dirigiendo la tendencia en la utilización de los
recursos en políticas que colaboren a atender estos problemas, de manera prioritaria
hacia los sectores sociales en condición de extrema pobreza
6
4
MONTENEGRO, Marisela. 2001. Otredad, legitimación y definición de problemas en la intervención social:
un análisis crítico. Universidad Autónoma de Barcelona.
. Cabe aclarar, en este
sentido, que esta pobreza tiene génesis distinta de acuerdo a las subregiones a las que
hagamos referencia, tomando en cuenta la existencia, o no, de comunidades indígenas,
las políticas económicas y de desarrollo aplicadas a lo largo de la historia reciente y de
5
En su trabajo “Producción discursiva y problemas sociales” publicado en la revista Última Década n 007-
1997.
6
OIT/Cinterfor.1995. Las Políticas Sociales en Uruguay. Informe elaborado por el Centro Interamericano
para el Desarrollo del Conocimiento en la Formación Profesional
Tomamos aquí el término “política social” como la forma política que la sociedad (a través del Estado)
tiene de “resolver” la cuestión social, léase, los problemas sociales.
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la actuación, en muchos casos, de los regímenes dictatoriales por los que pasaron
muchos de estos países, con marcadas diferencias sobre todo en el Cono Sur, temas
que sobrepasan el objetivo de nuestro análisis pero que no debemos dejar de
considerar como parte del contexto en el que se desarrollan algunos, surgen otros, de
los problemas sociales que aquí se presentan.
Ahora bien, no sólo la pobreza y la marginación entran en lo que se puede definir, o
puede llegar a ser para un colectivo, un problema social. Debemos mencionar las
cuestiones relacionadas con ellas, como ser, el analfabetismo, el hambre, los problemas
de salud, la educación y el trabajo infantil, además del abuso. Como problema social
tenemos también el envejecimiento poblacional, la migración (en el caso uruguayo,
como veremos más adelante, la emigración particularmente), las consecuencias
sociales, económicas y políticas de estos problemas demográficos; los problemas
ambientales (que en Uruguay está planteado como problema social a través del
conflicto surgido con la República Argentina, por la instalación de una empresa
productora de pasta de celulosa al margen del río Uruguay); el desempleo; el HIV/Sida;
la violencia en todos sus términos, entre otros.
III. Principales problemas sociales en Uruguay
Uruguay es un país que se ubica en un contexto geográfico donde, a pesar de sus
176.000km
2
, resulta de poca envergadura. Su poca dimensión no sólo hace referencia
a aspectos territoriales, sino también a sus índices demográficos y económicos.
Imagen 1 - Mapa del Uruguay
Fuente: www.lahistoriadeldia.wordpress.com
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Cuenta con poco más de 3 millones de habitantes
7
En el panorama latinoamericano, es un país que históricamente se destaca por su
igualitaria distribución del ingreso, la solidez de su democracia y su nivel de integración
social. En las últimas décadas, sin embargo, “han surgido fisuras que se manifiestan a
través de comportamientos marginales, esto es, comportamientos que no se rigen por
los patrones socialmente aceptados. El porqué de tales comportamientos se entiende
como un desajuste entre las metas culturales, las estructuras de oportunidades para
alcanzar las metas y la formación de capacidades individuales para aprovecharlas”
, de los cuales el 46% viven en la
capital, Montevideo, el más pequeño de sus 19 departamentos. El 38% habita el
interior urbano y sólo el 16% lo hace en las zonas rurales.
8
A fines de la década del 50, en la que el Uruguay supo aprovechar los beneficios
económicos de la guerra (sobre todo como exportador de carne y lana) lo que llevó a
identificarlo como “la Suiza de América”, fue entrando, lento pero sin pausa, en un
declive que lo viene acercando, aun hoy, a los parámetros de su contexto
latinoamericano. Producto del resurgir europeo, y mundial, de la posguerra, de la caída
de la dependencia de los beligerantes de sus productos primarios, el Uruguay no supo
reconvertirse, si bien cabe aclarar que los 11 años de dictadura (1973 -1984) tampoco
cooperaron en este escenario
.
9
De acuerdo con estos antecedentes, podemos identificar los principales problemas
sociales que sufre el país como los siguientes:
.
III.1 Pobreza, desigualdad y exclusión social
Debemos decir que los
índices no son alentadores ya que la información nos dice que
la pobreza afecta mayoritariamente a los jóvenes. En una sociedad tempranamente
envejecida, con muy baja natalidad en términos globales, esto constituye en sí, un
grave problema social ya que la pobreza infantil constituye un severo cuestionamiento
a cualquier proyecto de ps que se quiera llevar a cabo, de acuerdo al Informe país de
UNICEF de 2013, 24,5% de los menores de 6 años viven en la pobreza en Uruguay. La
pobreza alcanza al 13%
10
En lo que se refiere a la desigualdad, si bien el país se ha destacado históricamente por
tener, en el contexto latinoamericano, una distribución de la riqueza más pareja que
sus vecinos, y por contar con una clase media aún vigente e importante, la brecha no
ha dejado de crecer desde las últimas crisis de fines de los 90 y, la última que afectara
directamente, de 2002. Si bien la pobreza ha disminuido en el último quinquenio, se
verifica un incremento de la desigualdad que se manifiesta tanto en la distribución del
ingreso como en el acceso a los servicios sociales. En este sentido, se hace mención a
un proceso de segmentación urbana y residencial, en particular en la ciudad de
Montevideo y su área metropolitana donde “los barrios se fueron haciendo cada vez
de la población mientras que el 0,5% es indigente.
7
3:285.877 según el último censo realizado en 2011.
8
KAZTMAN, Ruben. (1997). Marginalidad e integración social en Uruguay. Revista de la CEPAL n 62.
Montevideo.
9
Debemos señalar, y subrayar, que en términos internacionales Uruguay califica bien pero que el escenario
nefasto surge cuando se desagregan la información y los datos, como intenta demostrarse en este
trabajo.
10
Datos de 2013, Instituto Nacional de Estadística (INE)
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más homogéneos a su interior y heterogéneos entre sí, perdiéndose así una relativa
capacidad de integración social que había sido un rasgo diferencial de la sociedad
uruguaya”
11
En cuanto a la exclusión social, la consideramos bajo la definición de Manuel Castells
. La pobreza y la desigualdad en Uruguay están estrechamente ligadas al
desempleo que ataca sobre todo a las personas con bajos niveles de calificación. De
acuerdo al Informe de Desarrollo Humano de Uruguay (PNUD 2005), en Montevideo, el
ingreso de las personas mejores posicionadas cuatriplica aquél de las personas menos
favorecidas.
12
como el proceso por el que determinados individuos y grupos ven sistemáticamente
bloqueado su acceso a posiciones que les permitirían una subsistencia autónoma dentro
de los niveles sociales determinados por las instituciones y los valores en un contexto
dado. Las situaciones de exclusión varían en función de la educación, características
demográficas, prejuicios sociales, prácticas empresariales y políticas públicas, y puede
afectar tanto a personas como a territorios. En este sentido, entonces, puede decirse
que el sector más afectado es el de las mujeres jefas de hogar, que dirigen el 32,7% de
los hogares en Uruguay, de los cuales el 11,7% es pobre
13
. Otro problema importante y
a resolver para el país en cuanto a la desigualdad, es el que contempla la deserción
escolar que es muy alta: según los datos que proporciona UNICEF, sólo 4 de cada 10
jóvenes de 21 y 22 años logran completar su educación media y sólo el 37% de los
jóvenes de 21 y 22 años terminaron la educación media superior, señalando que el
63% restante abandonó antes de terminar el ciclo obligatorio
14
Por otra parte, las condiciones de pobreza, el desempleo, hacen difícil el acceso a una
vivienda digna, provocando la aparición de los asentamientos irregulares, sobre todo en
la capital. Existen en Montevideo 562 asentamientos precarios, con 61 mil viviendas y
una población estimada de 257 mil personas
.
15
11
CEPAL. 2007. Serie Mujer y Desarrollo N°88. Las metas del milenio y la igualdad de género. El caso de
Uruguay. Naciones Unidas. Santiago de Chile.
. La mayoría de los terrenos ocupados
por estos asentamientos son fiscales, que con el paso del tiempo se han transformado
en verdaderos barrios pero sin los servicios que un barrio debe tener. La anterior
administración comenzó un proceso de regularización, que continúa hoy, a través del
cual se le brindan los servicios básicos de acceso a la luz, el agua corriente y el
saneamiento en aquellos asentamientos en los que se podía realizar, cosa no siempre
posible. El problema radica en trasladar a las personas que ocupan espacios por
diversas razones inhabitables, que no siempre están dispuestas a abandonar el lugar
ocupado, dónde ubicarlas y mejorar su situación para que abandonen actividades,
muchas veces, delictivas y clandestinas. En este proceso de regularización, entonces,
se detectó que muchas de estas casas se habían construido en zonas no aptas para la
vivienda por estar bajo antenas de alta tensión o expuestos a altas concentraciones de
plomo. En este sentido la plombemia está unida a la tierra y la pobreza, aunque no
sean los únicos factores determinantes, donde los niños terminan siendo los más
perjudicados, con concentraciones de plomo en sangre que superan el doble de lo
tolerable, de acuerdo con el Ministerio de Salud Pública.
12
CASTELLS, Manuel. 1998. La era de la información. Economía, sociedad y cultura, vol.3. Madrid. Ed.
Alianza.
13
Datos de 2002, Instituto Nacional de Estadística (INE), estadísticas de género.
14
UNICEF. Informe anual 2013. Disponible en
http://www.unicef.org/uruguay/spanish/InformeAnualWeb.pdf#Informe Anual 2013
15
Datos de 2010, de Asociación Un Techo para mi País relevado por el Portal 180, disponible en
http://www.180.com.uy/articulo/13392
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III.2 Problemas ambientales
Continuando el eje temático, cabe destacar el
serio problema que enfrenta el país
por la exposición a altas concentraciones de plomo. El plomo es considerado desde
hace décadas como uno de los contaminantes ambientales más importantes. En
Uruguay, la exposición laboral al plomo está vinculada a la industria metalúrgica y a la
fabricación de baterías de automotores
16
Otro problema, de raíz ambiental y que ha generado grandes y graves perjuicios a
nuestro país, es el que nos enfrentó con la hermana República Argentina por la
instalación, al margen del río Uruguay, de una planta productora de pasta de celulosa
de origen finlandés, BOTNIA, hoy UPM. Esta planta se instaló en el departamento de
o Negro, en régimen de zona franca, frente a la argentina ciudad de Gualeguaychú.
Si bien el conflicto trasciende el tema medioambiental y forma parte hoy de la esfera
política, comenzó con el reclamo por parte de los ciudadanos de Gualeguaychú, con el
beneplácito del gobierno argentino del entonces presidente Dr. Néstor Kirschner, de
que la planta contaminaría el río y el aire. A pesar de las garanas dadas, no solo por el
gobierno uruguayo y la propia empresa, sino por varias auditorías internacionales,
estos ciudadanos se organizaron en lo que llaman una “asamblea” y cortaron el paso
fronterizo del puente internacional que une ambos países reclamando que la planta
mude su ubicación. BOTNIA inició su producción el 12 de noviembre de 2007 y el
conflicto si bien ha perdido fuerza, retoma impulso cada vez que se le permite a la
empresa aumentar su producción. El conflicto provocó en Uruguay graves
consecuencias con pérdidas de puestos de trabajo en el departamento de Río Negro y
una baja sustancial en el turismo, a nivel nacional, que duró al menos 5 años, sin
mencionar los costos para la economía regional, ya que por esa ruta pasaban toneladas
de mercaderías al año que tienen como destino, además de Uruguay o Argentina,
Paraguay y Bolivia; costos que se miden en millones de dólares. Si bien es un
problema puntual, no estructural y cuya solución no depende ya de nuestro país, su
actualidad, la dimensión que ha tomado, enfrentando a ambos países, sus gobiernos y
sus ciudadanos, hace que su referencia sea obligatoria, a pesar de que, para Uruguay,
probablemente sea hoy un problema más económico y político, que social.
. Como se dijo anteriormente, sin embargo, la
exposición al plomo también está, sobre todo, estrechamente ligada a los problemas de
pobreza y de la tierra, donde normalmente se ubican los asentamientos irregulares,
siendo los menos favorecidos, los más perjudicados. Los asentamientos se ubican
muchas veces en zonas inundables que han sido rellenas con residuos industriales,
donde normalmente se realizan quemas de cables y fundiciones clandestinas, además
de que su población no cuenta con educación en higiene. El problema se presenta como
grave en los niños y jóvenes, ya que dependiendo de los niveles de intoxicación, la
plombemia deja secuelas irreversibles en todo lo que se refiere al aprendizaje y el
aparato psicomotor, sobre todo cuando ataca a personas con mala alimentación. El
retirar las naftas con plomo del mercado en diciembre de 2003 fue un primer paso
importante, pero insuficiente, a la hora de enfrentar este problema.
16
Revista Médica Uruguaya. 2006. Artículo: Estudio epidemiológico de una población expuesta laboralmente
al plomo. Departamento de Toxicología. Facultad de Medicina.
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III.3 La salud
Uruguay presenta una situación de salud con indicadores que lo distinguen en la región
por las bajas tasas de mortalidad infantil y materna, sin embargo, así como en el resto
del continente, el riesgo de morir, enfermar o curarse, no se distribuye
equitativamente. La principal causa de muerte en el país está dada por enfermedades
cardiovasculares, con 322 muertes por cien mil habitantes, según datos del Ministerio
de Salud Pública (2007). Sin embargo, la mayor vulnerabilidad, una vez más, se
encuentra en las personas en situación de pobreza y entre ellas en las mujeres
17
. Ya
mencionamos anteriormente el problema de la plombemia, por lo que no vamos a
ahondar más en ello. Comenzamos, entonces, por señalar que si bien el Uruguay tiene
una población con porcentajes marginales de desnutrición, cabe mencionar que ésta
afecta fundamentalmente a los niños menores de 2 años y que, según datos de
Presidencia de la República (2014), el 15% de las embarazadas comienza su embarazo
con déficit de peso y que, para las madres adolescentes, este porcentaje aumenta al
40%. En este sentido, a pesar de la baja tasa de fecundidad y su tendencia decreciente
(que, como veremos s adelante, se encuentra hoy en el límite de la llamada tasa de
reemplazo poblacional), se detecta un aumento en los embarazos adolescentes dentro
de los sectores menos favorecidos, con las consecuencias sociales que ello implica en el
riesgo de reproducción de los círculos de pobreza. El 17% de los nacimientos en 2008
fueron hijos de madres adolescentes (entre 15 y 19 años). El problema radica en que
estas jóvenes se ven tempranamente obligadas a abandonar sus estudios, lo que les
reduce las posibilidades de entrar en el mercado de trabajo con mejores condiciones,
reteniéndolas en el ambiente de pobreza. Siguiendo esta línea de razonamiento, la
bibliografía indica que la fecundidad adolescente y la educación, están estrechamente
ligadas: el 71% de las madres adolescentes tienen la enseñanza primaria completa
pero sólo un 6,4% logra finalizar el siclo secundario
18
. Datos del Ministerio de Salud
Pública del 2011 indican que el 73% de estas madres no trabaja ni estudia y el 15%
estudia y solo el 12% trabaja
19
Por otra parte, debemos mencionar el tema VIH/SIDA, si bien no puede considerarse
un problema social en nuestro país bajo las definiciones dadas. Es un tema que
parecería estar controlado y no tiene la urgencia que presentan los otros temas aquí
planteados. Uruguay tiene uno de los índices de enfermos de SIDA más bajos de la
región, con una tasa 25,4 cada 100.000 habitantes, según datos del Ministerio de Salud
Pública (2012). Ni siquiera es elegible frente al Fondo Global de lucha contra el Sida, la
Tuberculosis y la Malaria. Para fines de 2012 los casos acumulados de Sida ascendían a
8.000, de los cuales 36,5% son mujeres. De acuerdo con los datos del Ministerio de
Salud Pública, la edad de mayor incidencia de la enfermedad oscila entre los 25 y 54
, por lo que un 88% de estas madres no esté integrada
en ninguna actividad económica. En un país con pocos jóvenes activos, una población
envejecida y una tasa de emigración que se mantiene alta, donde los que emigran, en
su mayoría, son jóvenes preparados y con altos niveles académicos, estos signos son
preocupantes y alarmantes.
17
CEPAL. 2007. Serie Mujer y Desarrollo N°88. Las metas del milenio y la igualdad de género. El caso de
Uruguay. Naciones Unidas. Santiago de Chile.
18
VARELA, María del Carmen. 1999. La fecundidad adolescente: una expresn de cambio del
comportamiento reproductivo en el Uruguay. En Salud Problema. Universidad Autónoma Metropolitana-
Xochimilco. México.
19
MSP 2011. Informe disponible en file:///C:/Users/Virginia/Downloads/Informe_Embarazo_Adolescente.pdf
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años
20
El país está embarcado en una gran reforma de la salud, vigente desde el de enero
de 2008, que, entre otras cosas, amplía la cobertura de salud de calidad a todos los
menores de 18 años, hijos de padres activos que aportan a la seguridad social. Esta
reforma pretende paliar, si no eliminar, los problemas de equidad asociados al acceso,
a los diferenciales de calidad asistencial y las inequidades en el financiamiento. El
nuevo sistema integrado de salud pretende eliminar la existencia de una "salud para
pobres" (pública) y una "salud para ricos" (privada) a través de un sistema mixto y
homogéneo en cuanto a la accesibilidad con respecto a una atención de calidad. Es un
paso importante en materia de salud que, bien gestionado, puede ayudar a disminuir
algunos de los problemas más urgentes que, en esta materia, nuestro ps tiene.
Lamentablemente lo que conceptualmente se presenta como una buena política pública
no previó que aquellos más desfavorecidos terminarían por volver al sector público una
vez que en el sector mixto, con el nuevo sistema, deben hacer frente a costos de
exámenes obligatorios, por ejemplo pediátricos, que salud pública los ofrece gratis.
Inclusive que, a veces, el solo traslado a la mutualista puede ser oneroso dados los
ingresos familiares, por lo que se decide atenderse en la policlínica del barrio,
dependiente de salud pública. En definitiva, en el sector mixto/privado de salud se
detecta una caída en la calidad del servicio, a partir de la reforma, debido a la cantidad
de gente que los distintos servicios debieron absorber sin generar un verdadero
beneficio a quienes realmente más lo necesitan.
. Los casos de transmisión perinatal de madre a hijo bajaron considerablemente,
pasando de 26% en 1995 a un 4% en 2007 y a un 2,14% en 2012, lo que es
satisfactoriamente significativo.
Por último, en término de profesionales de la salud, cabe destacar que se percibe una
feminización de la carrera de medicina y, a partir de este fenómeno, una masiva
especialización en pediatría
21
, lo que nos ha transformado en un país "exportador" de
pediatras, e "importador" de médicos especializados en otras áreas, como la
oftalmología, o nos hace padecer la carencia de otras como la neurocirugía,
especialización que cuenta sólo con 32 profesionales para atender a todo el país.
III.4 Violencia y criminalidad
Cerrando esta brevísima síntesis de los principales problemas sociales que presenta el
Uruguay, debemos mencionar que en este punto el principal problema, y quizás el más
urgente, es el relacionado con la violencia doméstica. En nuestro país, muere una
mujer cada 14 días a manos de su pareja, si se le suma la muerte de nas y
adolescentes en acciones violentas el número de días se reduce a 9
22
20
MSP 2012. Informe epidemiológico VIH/SIDA. Disponible en
. Estas cifras no
contemplan los suicidios de las víctimas de violencia que ya no pudieron soportarla. La
violencia doméstica trae aparejada serias consecuencias para el entorno familiar y para
la sociedad en su conjunto, a pesar de ser un problema social importante, no existe en
el país una potica de Estado que intente modificar los patrones socioculturales que
están en la base de este problema y que en cierto modo justifican o permiten la
existencia de la violencia doméstica. Es un problema que no distingue clase ni creencias
file:///C:/Users/Virginia/Downloads/Informe_epidemiologico_VIH2012.pdf
21
Hecho que ya resaltaba Romero Gorski en 1999, en su trabajo Caracterización del campo de la salud en
Uruguay en Salud Problema. Universidad Autónoma Metropolitana-Xochimilco. México.
22
Datos proporcionados por la Red uruguaya contra la violencia doméstica y sexual.
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políticas o filoficas, que afecta la salud física y psicológica de quien la padece y que
provoca ausentismo laboral con el consecuente costo económico, no sólo individual,
sino también social.
En cuanto a la criminalidad, la sensación de inseguridad en la ciudadanía no deja de
aumentar en los últimos años. Las cifran indican, de hecho, que los delitos contra la
persona aumentaron un 8% durante 2007 con respecto al año anterior
23
. En su informe
de 2013, el Ministerio de Desarrollo Social establece que se estima que el 54% de los
uruguayos fue víctima de algún delito en los últimos 5 años
24
. Se percibe sobre todo,
un aumento en la violencia de los crímenes cometidos y un descenso en la edad de los
delincuentes, esto acompañado e impulsado, en cierto modo, por el aumento en el
consumo de drogas como la pasta base, en nos y jóvenes.
IV Uno de los problemas para análisis: el problema demográfico
Hemos dejado el problema demográfico aparte porque consideramos que, dentro de los
problemas más graves que tiene el Uruguay, éste es quizás, el más urgente.
Como introducción conceptual debemos definir la demografía como la ciencia social que
estudia los acontecimientos que ocurren a los miembros de una población a lo largo de
su vida. Este estudio tiene dos dimensiones: la medición (cuántos hay, cuántos nacen,
cuántos mueren) y la explicación (por qué tantos hijos, por qué tantos emigrantes, por
qué el aumento en la esperanza de vida)
25
Uruguay ha mantenido bajos los indicadores demográficos por un período prolongado,
con un crecimiento y una estructura de edades similares a los de los pses europeos
occidentales, diferentes del contexto general de América Latina. En este sentido, de
acuerdo a Varela Petito
. Así, el tema demográfico en Uruguay se
transforma en un problema, urgente e importante, por dos de sus variables
fundamentales: la baja tasa de fecundidad y la alta tasa de emigración.
26
a) el impacto cultural de la inmigración europea sobre un territorio escasamente
poblado;
, “la reconstrucción del proceso histórico que explica el
comportamiento demográfico del Uruguay en el contexto de América Latina es
compleja. Las evidencias disponibles permiten visualizar como principales factores de
incidencia:
b) la incorporación temprana al modelo occidental;
c) una urbanización temprana que ha llevado a que hoy el 91% de la población sea
urbana;
d) una actividad económica basada fundamentalmente en la ganadería extensiva;
e) el reparto latifundario de la tierra, que ha impedido el desarrollo de una población
rural, la cual suele tener altos niveles de reproducción;
23
Ministerio del Interior. Observatorio nacional sobre violencia y criminalidad. Evolución de la violencia y la
criminalidad en el Uruguay. 2007.
24
Informe disponible en http://www.mides.gub.uy/innovaportal/file/23497/1/reporte_social_2013.pdf
25
ORTEGA Osona, José Antonio. 2001. Revisión de conceptos demográficos. En Contribuciones a la
economía: http://www.eumed.net/cursecon/colaboraciones/Ortega-demograf.htm
26
PETITO VARELA, Carmen. Fecundidad En Importante pero urgente. Políticas de población en Uruguay.
2007. Montevideo. UNFPA Ed. Rumbos
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f) una forma de explotación de la tierra que no genera alta demanda de mano de obra;
g) características de la actividad económica que no estimulan el crecimiento de núcleos
urbanos intermedios y consolidan el crecimiento de la ciudad capital, principal puerto
exportador”.
Características que pudieron darse, también, por ser un país que quedó sin población
indígena y fue receptor de importantes contingentes de europeos en la segunda mitad
del siglo XIX y la primera del XX (en su mayoría italianos y españoles, aunque no sólo)
manteniéndose poco poblado a pesar de su extensión territorial.
A partir de la década del 60, al decir de Pellegrino
27
Luego de las crisis de fines de los 90 y, sobre todo, la crisis de 2001-2002, la
emigración se convirtió en la herramienta más utilizada para enfrentar la falta de
oportunidades y el desempleo, si bien el saldo migratorio del país es negativo ya desde
1963. Los datos nos indican que desde el año 2000 tenemos un promedio de 20.000
personas emigradas por año en el ps, cifra que llegó a su máximo en 2002 con
29.000 salidas
, "la emigración de los uruguayos se
convierte en un tema creciente y las ausencias en un factor de preocupación en todos
los planos de la vida nacional". Ya fuera por el estancamiento de la economía, como se
apuntó anteriormente, o por la represión y el exilio, la emigración alcanzó tasas muy
altas durante las décadas del 70 y principios de los 80. El fin de la dictadura (1984) no
mejoró la situación ya que, si bien la recuperación del primer peodo de transición
democrática, implicó un retorno al país, la emigración se sostuvo y aumentó
nuevamente en la década de los 90 superando los reingresos de aquél periodo.
28
La emigración en general tiene causas económicas, sobre todo al comienzo y durante
las últimas crisis mencionadas, políticas, más que nada durante el período del golpe de
Estado (1973-1974), pero también la falta de horizontes y oportunidades que no
siempre está ligada a problemas estrictamente económicos. La emigración dejó de ser
la reacción rápida de la sociedad uruguaya a problemas específicos y coyunturales, se
transformó en un objetivo en los jóvenes desde que salen del ciclo secundario. El
problema de la emigración es ya estructural en nuestro país, lo más grave: el 77% de
los emigrantes recientes (periodo comprendido entre 2000 y 2006) tienen entre 15 y
34 años
y que en 2007 estuvo en 17.000. Para el tamaño de nuestra
población, sonmeros enormes que deben llamarnos la atención: si consideramos que
nuestro crecimiento natural (diferencia entre defunciones y nacimientos) es de 20.000
personas alo en promedio quiere decir que apenas crecemos y que, de hecho, entre
2000 y 2002 tuvimos crecimiento negativo. Se estima así, que la población uruguaya
que vive fuera del país representa el 13% de la población. Por eso, con las
características del Uruguay, y en palabras de Pellegrino, "el fenómeno emigratorio tiene
un peso sobre la sociedad uruguaya que debe ubicarse entre los más altos del mundo".
29
27
PELLEGRINO, Adela. 2007. En Migración uruguaya: un enfoque antropológico. UDELAR
. Suelen ser jóvenes capacitados y/o que siguen capacitándose en el exterior,
28
PELLEGRINO, Adela. 2003. En La emigración en el Uruguay actual ¿el último que apague la luz? Informe
de UNESCO Montevideo.
29
Datos del Informe sobre migración internacional en base a los datos recogidos en el módulo migración de
la Encuesta Nacional de Hogares Ampliada 2006. UNFPA PNUD INE
El mismo informe apunta que los datos reflejan que el 50% de los emigrantes en el periodo estudiado
(2000 2006) tenía trabajo al momento de emigrar lo que confirma y refuerza nuestra afirmación de que
la emigración hoy sobrepasa el tema únicamente económico y de desempleo.
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cuyo problema mayor es la falta de oportunidades que tienen en el país junto a la poca
valoración de sus capacidades en términos de salarios comparados. Debemos sumar
además, los programas de reclutamiento que ofrecen pses como Canadá, para llevar
recursos humanos a Québec, que entrena (y se lleva) decenas de jóvenes profesionales
por año, o los programas de reclutamiento para profesionales espeficos en áreas de
tecnología e informática como los que supo ofrecer Alemania, que junto con la India, a
través de una de sus multinacionales mayores instalada en una de las zonas francas
próximas a la ciudad de Montevideo, capta prácticamente toda la oferta de mano de
obra en esa área, entrenando a los recién recibidos en los temas que necesitan y
enviándolos al exterior; y mencionar la emigración técnica que se ha dado, por
ejemplo, en el área de la salud a países como Inglaterra y Suiza.
Los destinos de los emigrantes uruguayos son variados, como en un principio solían ir a
Australia, Estados Unidos, Argentina, Brasil, Venezuela, México, Suecia y España, hoy
puede afirmarse que la mayoría de los jóvenes siguen emigrando hacia Europa
(principalmente España e Italia) y Estados Unidos (si bien este destino cayó levemente
una vez que se comenzó a pedir visa a los uruguayos para entrar, luego de la crisis de
2001-2002 y que se mantiene hasta hoy).
Otro dato que preocupa es el aumento de grupos familiares enteros que emigran,
padres que deciden reunirse con sus hijos en el exterior, caso que se dio mucho en la
etapa previa a la reinserción del pedido de visa por parte de Estados Unidos, o adultos
que se encuentran entre los 30 y 45 años que perdieron el trabajo y decidieron emigrar
con sus hijos menores, en bloque. Esto es importante porque afecta las remesas que el
Uruguay podría percibir desde el exterior, minimizando aún más cualquier beneficio que
pudiera encontrarse en la emigración para el país. En este sentido, se constata que ni
siquiera para los que quedan las remesas logran ser un aliciente. Como señalan Cabella
y Pellegrino con datos de un estudio realizado en 2006,
"en los estratos pobres la salida de un integrante hacia el
extranjero tiende a profundizar la vulnerabilidad, más que a
mejorar las condiciones materiales y sociales de vida. (…) la
migración de algún miembro menoscaba los canales de acceso al
bienestar, y esta pérdida no se ve compensada por transferencias
económicas sostenidas. Las remesas que reciben estos hogares
tienen un carácter más bien ocasional y son enviadas cuando el
hogar se encuentra ante situaciones límite"
30
.
Por otra parte, existe la sensación de país que se vacía que plantea Laura Pastorini, en
su artículo “No estamos todos los que somos ni somos todos los que estamos”,
agregando que “el vaciamiento “en bloque” retroalimenta la emigración, porque un país
que se vacía de su población más joven, más dinámica y más educada se vuelve cada
vez menos atractivo para la gente joven, dinámica y educada. En el imaginario de esos
grupos sociales, el Uruguay se torna un ps envejecido, estancado, aburrido y sin
30
CABELLA, Wanda. PELLEGRINO, Adela. Emigración. En Importante pero Urgente. Políticas de población en
Uruguay. 2007. Montevideo. UNFPA Rumbos
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perspectivas”. Y sentencia: “Un país para abandonar”
31
En los gráficos que se presentan en Anexo se puede ver la pirámide de edad
poblacional y las pirámides por edades de los emigrantes recientes. En un país como el
nuestro, con una pirámide poblacional envejecida, pocos jóvenes y donde la mayoría de
los niños nacen en los sectores más pobres de la sociedad; que la emigración esté
concentrada en la faja de los 15 a los 30/40 años no permite visualizar un futuro muy
alentador.
. La masiva emigración de la
última década hace que todos tengan familiares, o al menos conocidos, en el exterior lo
que genera, a su vez, menor desarraigo a la hora de emigrar. Estas redes de familiares
y amigos en el exterior hacen de contención y facilitan la toma de decisión a la hora de
dejar el país.
Con respecto a la segunda variable a analizar debemos comenzar mencionando que la
tasa general de fecundidad (número de hijos que tienen las mujeres en ausencia de
mortalidad y de variaciones de las tasas de fecundidad por edad, TGF) en nuestro país
se ubicaba en 2,04 en 2005 y en 2,03 en 2006 (último dato disponible), de acuerdo a
los datos de 2006 y 2007 respectivamente, del Instituto Nacional de Estadística. Según
la misma fuente, la tasa de crecimiento para el total del país en 2006 fue de 0,284% y
la esperanza de vida se ubica en los 75,72 años para el total de la población (72,12
para los hombres y 79,52 para las mujeres). Si tomamos la definición de reemplazo de
la población como “la capacidad de una población de autoreemplazarse a través de la
reposición numérica de las mujeres, futuras procreadoras
32
El descenso en los niveles de fecundidad y el envejecimiento de la población es un
tema mundial y que se aplica a la propia América Latina. La diferencia está en que para
este continente viene siendo un fenómeno relativamente nuevo, es un comportamiento
que puede registrarse a partir de la década del 70, cuando el Uruguay hacía ya dos
décadas que lo venía padeciendo. Los datos indican que en la década del 50, cuando
para América Latina y el Caribe, la TGF era de 5,9
, y si ésta corresponde a
una tasa global de fecundidad por encima de 2,1 hijos por mujer, concluimos que
nuestro país se encuentra, al menos hace 3 años, por debajo de dicha capacidad.
33
Ahora bien, la época dorada pasó, la tendencia generalizada en el continente, a la que
Uruguay no estuvo ajeno, de aplicar una política económica de sustitución de
importaciones que intentó industrializar un país que no tea los recursos (ni
materiales, ni humanos) necesarios para ello, provocó una crisis que profundizó los
, tanto en Uruguay como en Europa
ya estaba en 2,7. Este comportamiento excepcional del Uruguay en el contexto en el
que se encuentra, como ya se señaló anteriormente, está ligado a su propio proceso
histórico. El grado de desarrollo social y económico de la primera mitad del siglo XX,
hicieron que el país adoptara tempranamente conductas reproductivas que
generalizaron el modelo de familia pequeña. En una época en la que el país iba bien, en
la que los niveles de pobreza aún eran bajos, no llamó la atención este fenómeno
(quizás hasta era de avanzada) equiparándonos, una vez más a los países
desarrollados de Europa occidental. Debemos destacar que, en términos históricos, el
tema demográfico en general, nunca formó parte de política de Estado alguna, ni
general ni espefica, nunca se consideró ni se previó que podía ser un problema.
31
En Migración uruguaya: un enfoque antropológico. 2007. UDELAR
32
Definición de Varela Petito en su artículo Fecundidad, en Importante pero Urgente. 2007.
33
Datos de la CEPAL (www.cepal.org)
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problemas políticos habilitando una dictadura, que dejó al país empobrecido y
endeudado en poco más de una década. A partir de allí, la tasa global de fecundidad se
mantuvo relativamente estable entre los años 1985 y 1996, por encima de los 2,4 hijos
por mujer. Sin embargo el escenario era otro, las disparidades y desigualdades entre la
población se habían agudizado, los índices de pobreza aumentado y los nacimientos
eran muy diferentes dependiendo del sector de la población que se mirara. Así, en este
período, puede decirse que la baja fecundidad en los quintiles más ricos de la población
fue compensada por el aumento de embarazo adolescente (cuya maternidad alcanzó su
pico máximo en 1997 con 74,2‰ entre las mujeres de 15 a 19 años
34
El envejecimiento de la población, dado por la alta esperanza de vida que tiene el ps
sumado a la baja tasa de fecundidad y crecimiento poblacional, sumado a los altos
índices de emigración, hacen que nos encontremos ante un problema que pide a gritos
medidas urgentes por parte, al menos, del gobierno, sobre todo en lo que se refiere a
la emigración.
) y en la
cantidad de hijos por mujer en los quintiles más pobres. A partir de allí, la TGF vuelve a
caer paulatinamente llegando al hito histórico en 2004 de estar por debajo de la tasa
de reemplazo poblacional, como ya se señaló. Esta baja continua se explica por dos
fenómenos: por un lado se detecta que, si bien aumenta el embarazo adolescente,
disminuye la cantidad de hijos (específicamente a partir del tercer hijo) por mujer en
los quintiles más pobres y, por otro lado, resulta de la alta emigración en la franja de
edad de mayor reproducción.
Si bien es cierto, y no puede dejar de mencionarse, que el Estado facilitó el regreso de
aquellos que, a partir de la crisis de 2009, en Europa perdieron sus trabajos o por la
situación social vivida, decidieron volver, esto no cambia la situación descripta ya que
el país sigue ofreciendo pocas oportunidades a los jóvenes preparados y no se agiorna
a la evolución tecnológica que puede traer nuevos desaos. Más bien los rechaza con
un temor conservador a los cambios, típicos de una idiosincrasia que ha quedado
anclada en los años 50 y el éxito que represenel Maracaná.
Los nacimientos son pocos y casi la mitad de ellos se producen en los sectores más
pobres de la sociedad, esto repercute en la educación, que si bien sigue siendo buena
en términos de acceso a la educación inicial (3-5 años), presenta altas tasas de
repetición escolar, y abandono, y muy altas tasas de deserción en la educación media
(de las más altas de América del Sur, de acuerdo a UNICEF Uruguay). Nuestros índices
demográficos repercuten también en la salud ya que provoca desvíos de recursos hacia
los requerimientos de la población mayor en detrimento de la salud materno-infantil, a
pesar de que la política en salud sexual y reproductiva que asumió el Estado desde el
año 2000, puede decirse que viene siendo exitosa en la medida en que ha logrado
bajar el número promedio de hijos en los sectores más carenciados de la sociedad.
V Conclusiones
En una sociedad que históricamente miró hacia afuera, principalmente a Europa, en
contacto permanente con sus orígenes españoles e italianos, cuyas olas migratorias no
hicieron más que reforzar esos lazos, no parece extraño que los jóvenes, producto
también de factores adicionales como los que se describen en este trabajo, tomen
34
Datos tomados de Varela Petito en Fecundidad, a partir de las estadísticas del Ministerio de Salud Pública.
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como objetivo natural el hecho de abandonar el país y emigrar. Por otro lado, “es un
lugar común que en las últimas décadas se han acelerado los procesos llamados de la
globalización y que asistimos a una revolución en las comunicaciones. Ese acceso a la
información tuvo como consecuencia la homogeneización de aspiraciones y valores,
creando expectativas de modos de vida y de pautas de consumo que son los de las
sociedades desarrolladas. La imposibilidad de acceso a esos estilos de vida constituyó
un estímulo adicional para desencadenar la potencialidad migratoria. También es cierto,
que el mundo está comunicado como nunca pudo haberse imaginado en otros tiempos
y que los migrantes pueden comunicarse en tiempo real con sus familiares y amigos.
Dicho de otra manera, al mismo tiempo que facilitan los traslados, las nuevas
tecnologías refuerzan los vínculos y las pertenencias a los lugares de origen”
35
Como hemos visto, el Uruguay padece muchos de los problemas sociales que la
globalización ha, al menos, puesto en evidencia, lo que quizás no sorprenda al lector
desprevenido de su historia que, hasta mediados del siglo XX, lo mantuvo fuera de los
parámetros de su contexto latinoamericano. Los problemas sociales que el país debe
enfrentar surgen como producto de la aplicación de políticas equivocadas y de una
dependencia excesiva de las erráticas economías vecinas, sobre todo a partir de la
década del 90, con la creación del MERCOSUR. La alta emigración y, en ella, lo que se
ha dado en llamar la “fuga de cerebros”, por ser principalmente jóvenes altamente
calificados los que abandonan el país, nos va dejando sin recursos humanos capaces de
sustituir a la generación próxima a jubilarse, mediocrizando el medio, pauperizando al
país y generando un escenario que permite el desarrollo de radicalismos políticos y
populismos que ya han comprometido históricamente el desarrollo de la región.
.
Daría la impresión de que en un país pequeño como este, que supo tener un lugar en el
mundo por ser de vanguardia en cuanto a sus políticas sociales y hasta por ser el
primero en organizar una copa mundial de fútbol y por ganarla en dos ocasiones, se
podría haber evitado volver a estar en el mundo, pero esta vez, para entrar en la lista
de los países dignos de la cooperación internacional para el desarrollo. Sin embargo no
hay que subestimar el componente individual de idiosincrasia del propio ser uruguayo
que facilitó y facilita que el país haya entrado en este recorrido de declive. A pesar de
ello, lo que importa hoy, es que los problemas están, existen y son una realidad que el
Estado demora en atender. Peor, en algunos casos que apenas reconoce. Queda claro
que más allá de los problemas sociales de pobreza, desigualdad, salud, educación, etc.,
de los cuales no negamos su importancia, señalamos el problema demográfico como el
más urgente e importante porque sin gente, sin jóvenes capaces, no hay proyecto de
país que tenga sustento.
35
Adela Pellegrino en el Prólogo de Migración uruguaya: un enfoque antropológico.
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ANEXO
Fuente: Informe sobre migración internacional en base a los datos recogidos en el módulo
migración de la Encuesta Nacional de Hogares Ampliada 2006. UNFPA PNUD INE
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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REGULAÇÃO DO CIBERESPAÇO: CESURISTAS E TRADICIONALISTAS
Lino Santos
lino.santos@cncs.gov.pt
Mestre em Direito e Segurança pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa.
Licenciado em Engenharia de Sistemas e Informática pela Universidade do Minho. Coordenador
de Operações no Centro Nacional de Cibersegurança (Portugal)
Resumo
No fantástico Code and Other Laws of Cyberspace, o Professor L. Lessig afirma “que algo de
fundamental mudou” com o ciberspaço, no que à capacidade do Estado em fazer cumprir a
lei diz respeito.
Por um lado a estrutura e as características do ciberespaço colocam algumas dificuldades
relacionadas com a competência e a escolha da lei aplicável. Por outro, levanta dúvidas
sobre o próprio conceito de soberania, como o conhecemos.
Este trabalho analisa os argumentos daqueles que defendem uma regulação do ciberespaço
à margem da soberania do Estado ou dentro de um novo conceito de soberania e de
capacidade para fazer cumprir a lei, bem como os argumentos daqueles que rejeitam essa
excepcionalidade de tratamento ao ciberespaço.
Palavras chave:
Ciberespaço; Regulação; Auto-regulação; Soberania; Utopia
Como citar este artigo
Santos, Lino (2015). "Regulação do ciberespaço: cesuristas e tradicionalistas". JANUS.NET
e-journal of International Relations, Vol. 6, N.º 1, Maio-Outubro 2015. Consultado [online]
em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol6_n1_art6
Artigo recebido em 31 de Março de 2015 e aceite para publicação em 30 de Abril de
2015
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Regulação do ciberespaço: cesuristas e tradicionalistas
Lino Santos
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REGULAÇÃO DO CIBERESPAÇO: CESURISTAS E TRADICIONALISTAS
Lino Santos
Introdução
É incontestável que o ciberespaço introduziu profundas alterações na forma como os
cidadãos, as organizações e os Estados se relacionam entre si.
A capilaridade da internet, juntamente com a sua grande cobertura geográfica de
acesso e o advento do computador pessoal, deram origem às globalizações da
informação e do conhecimento, criando novos espaços de interactividade, partilha e
armazenamento de e produtos de mercado, entre os quais destacamos os ambientes
virtuais imersivos de lazer, cultura (mundos virtuais), o produto das interacções sociais
mediadas pelas tecnologias da informação (redes sociais), ou o local onde é
armazenada e processada a informação (cloud). Esta diversidade de espaços que
representa a riqueza de aplicações do ciberespaço, está na base do seu sucesso e do
rápido crescimento da sua utilização.
Este conjunto de espaços assenta no sistema de comunicações globala internetao
qual os sistemas de informação e os dispositivos electrónicos de uso pessoal se ligam
para realizarem a sua função. Senão criada pelo menos desenvolvida originalmente
com objectivos militares, a internet desenvolveu-se como rede académica no final da
década de 1980 e rapidamente se assumiu como meio de comunicação de massas em
meados dos anos 90. Na sua origem militar, o desenho da internet teve como principal
preocupação a resiliência a falhas parciais,
1
Cedo o ciberespaço foi idealizado como espaço de liberdadeuma espécie de novo Far
West global onde nenhum Estado conseguiria aplicar a lei ou manter a ordem. Neste
contexto, surgiram duas correntes académicas, antagónicas entre si. A primeira sugere
a falência do sistema jurídico para lidar com o ciberespaço e defende a criação de
novas formas de regulação, adaptadas às suas especificidades. A segunda sustenta
uma inexcepcionalidade de tratamento para esse mesmo ciberespaço e defende que os
resultando numa arquitectura física e numa
gestão completamente distribuídas, sem qualquer tipo de ligação com o mapa
administrativo das nações.
1
Um dos requisitos colocados aos criadores da internet, então designada ARPANET, visava a tolerância a
falhas na comunicação entre bases operacionais militares em cenário de destruição parcial das suas infra-
estruturas. Composta por uma “teia” (web) de ligações entre os vários “nós”, (nodes) a informação
dentro desta rede deveria chegar sempre ao destino desde que existisse um caminho disponível para tal,
desta forma reduzindo a criticidade individual de cada “nó” para o contexto global das comunicações.
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Regulação do ciberespaço: cesuristas e tradicionalistas
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desafios na sua regulação não são distintos daqueles que foram colocados por outros
domínios onde se verificam transações transnacionais.
Este artigo propõe-se apresentar e discutir estas duas correntes, à luz dos
desenvolvimentos ocorridos desde a sua formulação inicial, bem como verificar se
existe uma tendência ou primazia na utilização de mecanismos de regulação para o
ciberespaço.
Características do ciberespaço
Algumas características da arquitectura do ciberespaço colocam sérios desafios de
governação deste novo media, bem como de regulação das diversas actividades nele
realizadas. Desde logo o ciberespaço aumenta radicalmente a velocidade e a
quantidade das comunicações, ao mesmo tempo que reduz ou elimina a distância entre
instituições, entre indivíduos, ou mesmo entre nações. As mensagens de correio
electrónico ou sms são enviadas e recebidas quase instantaneamente, fotografias,
videos e artigos de opinião são partilhados e difundidos globalmente quase em tempo
real, comprar um livro pela internet é hoje tão fácil e cómodo como fazê-lo numa
livraria. Neste contexto, o ciberespaço e a conversão do analógico para o digital vieram
aumentar brutalmente a frequência e a velocidade de alguns comportamentos icitos já
existentes. São exemplo destes a violação de direitos autorais, que sempre existiu, mas
que as tecnologias digitais facilitaram e levaram ao extremo.
Por outro lado, como já foi referido, o ciberespaço é aterritorial. Ao contrário dos
domínios naturais (ar, mar, terra e espaço), onde os Estados, dentro das suas
capacidades, exercem a soberania e aplicam a lei dentro de um território físico
relativamente bem definido, no ciberespaço esse exercício levanta problemas de
delimitação. Neste mesmo sentido, B. Posen refere-se-lhe como mais um global
common, comparando-o ao espaço marítimo, aéreo e extra-atmosférico (Posen, 2014:
64). Assim sendo, conceitos clássicos tais como “jurisdição” ou “propriedade”para
dar aqui apenas alguns exemplostornam-se difusos quando aplicados ao ciberespaço.
A prestação de serviços on-line dificilmente cumprirá o quadro legal de todos os
Estados onde estes são disponibilizados,
2
Por último, este espaço virtual garante algum grau de anonimato a quem o utiliza, o
que levanta, novamente, dificuldades quanto à atribuição dos actos praticados ou à
identificação dos seus autores. Um cibernauta português ou localizado em território
português pode utilizar um serviço de blogues norte-americano para difamar outro
cidadão português. Esse mesmo cibernauta pode jogar on-line um jogo permitido no
país onde o servidor está alojado, mas proibido em Portugal. Pode, ainda, praticar
remotamente uma profissão regulada em Portugal, mas não regulada no país onde o
serviço é prestado.
criando dificuldades a cada um destes no seu
exercício de soberania, começando pela própria escolha da lei aplicávelaplica-se a lei
de onde é prestado o serviço, ou aquela de onde são produzidos os efeitos?
O ciberespaço veio igualmente criar um conjunto de novos objectos de protecção
jurídica, alargar a esfera de protecção de alguns já existentes, bem como facilitar o
surgimento de novos tipos ilícitos. Figuras como como a de identidade digital, múltiplas
2
J. P. Trachtman refere que a grande novidade do ciberespaço é a de que “dará lugar a mais situações nas
quais os efeitos são sentidos em múltiplos territórios em simultâneo” (1998: 569).
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Regulação do ciberespaço: cesuristas e tradicionalistas
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identidades, avatar, dinheiro virtual ou domínio internet, bem como profissões tais
como administrador de sistemas, blogger ou programador, ainda hoje não possuem
regras que lhes confiram direitos e responsabilidades. Da mesma forma, conceitos
tradicionais como o de privacidade viram alargado o seu espectro de protecção jurídica,
passando a incluir, por exemplo, o direito ao esquecimento,
3
e o conjunto das acções
tipificadas como ilícitas no contexto da pornografia de menores passou a incluir a posse
de material desta natureza em formato digital ou a mera vizualização deste.
4
Estes e outros desafios foram avaliados, na viragem do século, por vários académicos
da área do direito. As discussões de então permitem identificar duas tendências
divergentes no que respeita à regulação do ciberespaço.
Refira-se
ainda a necessidade, cedo percebida, da protecção jurídica dos próprios sistemas que
informáticos que materializam o ciberespaço, tratada em regime autónomo na lei do
cibercrime.
Uma primeira via entende algumas das características distintivas do ciberespaço como
suficientes para, por um lado, justificar a inviabilidade da aplicação dos mecanismos de
escolha da lei aplicável e da determinação da jurisdição legais existentes e, por outro,
advogar um novo paradigma de regulação para o ciberespaço. Contribuem para esta
visão, entre outros, Johnson e Post, defendendo a regulação do ciberespaço pelos
cibernautas através de mecanismos de auto-regulação (1996; 2002), e Lessig que
defende, por sua vez, a regulação pelo “código” e pela arquitectura do ciberespaço
(1999; neste como em todos os casos que se seguem, a tradução é minha).
Do outro lado encontram-se aqueles que defendem que os desafios levantados ao
direito pelo ciberespaço não são muito diferentes daqueles que foram colocados por
outros desenvolvimentos tecnológicos, e que as transações realizadas com recurso a
este não diferem de outras transações de características transnacionais, realizadas por
outros meios. Os principais partidários desta via são Goldsmith (1998) e Trachtman
(1998), que recusam a excepcionalidade do ciberespaço e defendem uma evolução
dentro do quadro do direito internacional e através do reforço dos instrumentos
supranacionais de regulação.
A discussão académica do tema levou J. P. Goldsmith a apelidar aqueles que, tal como
D. Johnson e D. Post, acentuam o cariz extraordinário do ciberespo e pedem um
novo modelo de regulação de “cépticos da regulação” (1998, pp.1199). Por sua vez,
Post trata os que advogam que os problemas colocados pelo ciberespaço à capacidade
do Estado exercer e fazer cumprir a lei não são assim tão diferentes ou novos, de
“inexcepcionalistas” (2002: 1365). Sem desprimor dos respectivos autores, trataremos,
doravante, os primeiros como “cesuristas” e os segundos como “tradicionalistas”.
3
O art.º 17.º da proposta da Comissão Europeia de regulamento da Protecção de Dados Pessoais refere
que “[o] titular dos dados tem o direito de obter do responsável pelo tratamento o apagamento de dados
pessoais que lhe digam respeito”. Ver Proposta de Regulamento do Parlamento Europeu e do Conselho
relativo à proteção das pessoas singulares no que diz respeito ao tratamento de dados pessoais e à livre
circulação desses dados (regulamento geral sobre a proteção de dados), disponível em
http://ec.europa.eu/justice/data-protection/document/review2012/com_2012_11_pt.pdf, consultado em
Setembro de 2014.
4
Cf. alínea f) do art.º 20.º da Convenção para a Protecção das Crianças contra Exploração Sexual,
Resolução da Assembleia da República n.º 75/2012, de 28 de Maio, onde é prevista a criminalização
sempre que “[...] aceder, conscientemente, através das tecnologias de comunicação e de informação, a
pornografia de menores”.
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Tirando partido da distância temporal em relação a esta discussão, começaremos por
abordar os argumentos esgrimidos entre “cesuristas” e “tradicionalistas”, para de
seguida analisar as duas soluções dominantes para uma melhor regulação do
ciberespaço: a auto-regulação e a abordagem supranacional complementar.
Cesurismo vs. tradicionalismo
O termo “cesurismo” cunhado por Hermínio Martins (Garcia, 2006) é aqui usado
como referência a uma linha de pensamento que tende a tratar os fenómenos como
específicos e sem precedentes, de algum modo renunciando ao tempo e à história. É
precisamente esta a linha de pensamento dos que, tal como Johnson e Post,
concentram sua atenção na novidade que representa o ciberespaço como justificação
para a falência do actual modelo de regulação baseado na lei e para uma ruptura com o
passado.
A base de argumentação dos “cesuristas” centra-se na aterritorialidade do ciberespaço
e, mais concretamente, no facto de as fronteiras bem definidas serem um atributo
necessário para a eficácia da aplicação da lei. A relação entre o espaço e a lei, defende
Johnson, apresenta múltiplas dimensões. Por um lado, é a lei que permite a um Estado
exercer soberania e controlo sobre o seu territóriouma espaço bem delimitado e
reconhecido por todos, assim como ao cidadão defender-se da acção do Estado. Por
outras palavras, o conceito de fronteira funciona como o limite dentro do qual o Estado
faz cumprir a sua lei, bem como aquele fora do qual o cidadão está a salvo dessa acção
do Estado.
5
Por outro lado, a relevância jurídica dos efeitos de uma acção - ou da
ausência dela - é igual dentro de um mesmo espaço jurídico e, muito provavelmente,
diferente entre espaços jurídicos distintos
6
Tendo em conta esta relação entre espaço e lei, os “cesuristas” defendem que a
localização geográfica dentro de limites físicos conhecidosfronteiras, são essenciais
para determinar o conjunto de direitos e responsabilidades da pessoa jurídica,
concluindo que o ciberespaço “enfraquece radicalmente [esta] relação entre o
fenómeno com significado legal e a localizaçãosica” (Johnson & Post, 1996: 1370).
Partindo deste pressuposto, os “cesuristas” questionam a competência de um qualquer
Estado para a aplicação da lei e da justiça para actos praticados no ciberespaço e
levantam reservas sobre a escolha da lei aplicável. Johnson e Post idealizam o
ciberespaço como uno
. Por outro, ainda, a legitimidade da lei
advém da participação directa ou indirecta dos cidadãos de um Estado na elaboração
da lei, perdendo essa legitimidade quando aplicada de outra forma. Finalmente, a
eficácia preventiva da lei resulta do conhecimento prévio da lei aplicável ao espaço
onde praticamos actos relevantes ou daquela onde esses actos produzem efeitos
(Johnson & Post, 1996).
7
5
É através da lei que um Estado de Direito regula as liberdades e as responsabilidades dos seus cidadãos e
instituições. O aplicação eficaz dessa regulação representa um exercicio de soberania.
, como um novo plano de acção ou dimensão paralela cuja
6
Mais uma vez o apelo aos princípios de um Estado de Direito, onde a lei deve ser igual para todos.
Obviamente esta igualdade aplica-se aos objectos jurídicos desse Estado, já que a lei pode ser diferente
entre Estados.
7
M. Libiki sugere que o ciberespaço não é um media uno, mas sim uma “multiplicidade de mediasno
mínimo a tua, a deles e a dos outros” (2012: 326) . Também L. Strate, no seu brilhante artigo sobre
concepções de ciberespaço, sugere a exeitência de uma multiplicidade de ciberespaços centrada na
vivência de cada indivíduo (1999). Note-se igualmente que no quadro ideológico de um único ciberespaço,
não faria sentido o conceito de “ciberespaço nacional”, comummente utilizado nas várias estratégias
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Regulação do ciberespaço: cesuristas e tradicionalistas
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fronteira com o nosso mundo fisico é “feita de écrans e palavras chave” (1996: 1367)
onde, uma vez lá dentro, não existem outras barreiras. Uma vez dentro deste
ciberespaço, é igual comunicar com o vizinho do lado ou com alguém nos antípodas -
aliás, dentro do ciberespaço não existe o conceito de antípodas - e o quadro judico
que regula essa comunicação, ou não existe, ou é de difícil identificação.
O caso que opôs a Liga Internacional contra o Racismo e anti-Semitismo à gigante
norte-americana Yahoo, ilustra bem estas dificuldades . No ano 2000, o cidadão francês
Marc Knobel, um activista da luta contra o neo-nazismo, verificou que o portal de
leilões da Yahoo, estava a vender material neo-nazi. Através da ONG referida, Knobel
levou a tribunal a Yahoo - uma empresa sediada na Califórnia - por violação da lei
francesa de proibição de tráfico de bens nazis. A primeira reação de um dos co-
fundadores da Yahoo, Jerry Yang, foi considerar que o tribunal francês pretendia impor
um julgamento numa área sobre a qual não tem controlo. Independentemente desta
opinião, o julgamento prosseguiu, com a defesa a centrar a sua argumentação na
impossibilidade técnica de distingir o que era apresentado aos clientes franceses da
Yahoo daquilo que era apresentado aos restantes, e a acusação, por seu lado, a
defender a soberania do Estado francês para se defender da venda de mercadorias
nazis ilegais a partir dos Estados Unidos e a questionar o porquê de um regime de
excepção para a Yahoo, e para o ciberespaço. O tribunal determinou que a Yahoo
violou a lei francesa e ordenou que esta empresa tomasse todas as medidas
necessárias para dissuadir e tornar impossível o acesso, por parte de cidadãos
franceses, a tais conteúdos. A alegação da Yahoo a respeito da impossibilidade técnica
de cumprir a ordem do tribunal, baseada nas idiossincrasias da arquitectura da
internet, foi ultrapassada depois de vários gurus da internet, entre os quais Vint Cerf,
terem apontado soluções técnicas que permitem à Yahoo cumprir a ordem do tribunal
(Goldsmith & Wu, 2006: 1-10).
Na linha de argumentação de Johnson e Post relativamente à excepcionalidade do
ciberespaço, a autoridade apenas pode ser exercida dentro de um território,
questionando estes autores a legitimidade de uma nação regular actividades exercidas
noutro território. Também argumentam que as disputas internacionais pela escolha de
um quadro jurídico se resolvem pela escolha do quadro do local onde os actos icitos
são praticados. Estes pressupostos garantem a uniformidade, a previsibilidade e a
certeza na aplicação das leis, valores de um Estado de Direito. Porém, o caso acima
descrito vem apontar no sentido contrário e dar razão aos “tradicionalistas”.
Os “tradicionalistas”, cujo mote poderia ser “nada de novo debaixo do sol”
8
, defendem,
por oposição aos “cesuristas”, que o ciberespaço não constitui uma excepção. Para os
“tradicionalistas”,
“[a]s transações no ciberespaço não são diferentes das transações
transnacionais ocorridas no espaço real. [...] Elas envolvem
nacionais de cibersegurança. Ver The National Strategy to Secure Cyberspace (2003), disponível em
https://www.us-cert.gov/sites/default/files/publications/cyberspace_strategy.pdf, consultado em
Setembro de 2014; ou Italy’s National Strategic Framework for Cyberspace Security (2014), disponível
em
http://www.sicurezzanazionale.gov.it/sisr.nsf/wp-content/uploads/2014/02/italian-national-strategic-
framework-for-cyberspace-security.pdf, consultado em Setembro de 2014.
8
Eclesiastes 1:9 “O que foi, isso é o que há de ser; e o que se fez, isso se fará; de modo que nada há de
novo debaixo do sol.”
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pessoas no espaço real inseridas numa jurisdição, a comunicar
com outras pessoas também no espaço real noutras jurisdições
(Goldsmith, 1998: 1250).
Para J. P. Trachtman o ciberespaço é o meio. A conduta persiste num território, os seus
autores encontram-se num território, e o mais importante é que os efeitos - embora
mais dispersos do que no passado - continuam também a ser produzidos num território
(1998: 568)
9
A ideia de que o ciberespaço nada traz de novo é sustentada por Goldsmith recorrendo
à analogia com outros contextos de comunicação e transação transnacionais. O autor
aceita que o mundo esteja a mudar e que o ciberespaço é uma expressão dessa
mudança, mas refere que o direito internacional tem evoluído no sentido de responder
a estas alterações, nomeadamente “é commumente aceite que [na ausência de
soluções consensuais internacionais] uma nação regule, extraterritorialmente, os
efeitos locais de uma conduta” (Goldsmith, 1998: 1212) e aponta como exemplo o
tema da propriedade industrial.
. Como consequência, o conjunto de princípios e os instrumentos legais
tradicionais são capazes de resolver os problemas da escolha da lei e da competência
jurisdicional.
A outra ideia chave dos “cesuristas” - em género de conclusão - é a de que as
dificuldades legais atrás referidas, conjugadas com dificuldades técnicas colocadas
pelas características do ciberespaço, tornam impossível a regulação deste por parte dos
Estados. Para Johnson e Post o ciberespaço "cria um fenómeno totalmente novo que
precisa de ser objecto de regras jurídicas claras, mas que não pode ser regulado, de
forma satisfatória, por uma qualquer soberania assente no conceito de território".
(1996: 1375) Desta impossibilidade técnica e legal para os Estados exercerem a sua
soberania sobre o ciberespaço, emergirão, numa primeira fase, mecanismos de auto-
regulação (1996: 1387).
Os "tradicionalistas", por seu turno, defendem que a tecnologia existe e que, como
ficou patente no caso que envolveu a Yahoo, mas também nos diversos casos que
envolvem a filtragem de conteúdos realizada, pelas mais diversas razões, os Estados
conseguem exercer a sua soberania e proteger os cidadãos contra conteúdos ofensivos
ou actividades ilícitas (Goldsmith & Wu, 2006: viii). A informação envolvida numa
transacção “aparece num território, não por magia, mas por uma acção de hardware e
software localizado dentro desse território” (Goldsmith, 1998: 1216) pelo que actuando
junto desse hardware e software é possível realizar a função de regulação.
A auto-regulação do Ciberespaço
Esta dualidade de pontos de vista relativamente a um assunto novo que ainda não é
percebido na sua plenitude é recorrente. Ao longo da história, o surgimento de novas
tecnologias tem originado tomadas de posição que defendem a sua excepcionalidade e
o seu futuro papel numa ruptura com o passado e na criação de um mundo melhor -
instrumentos da paz universal -, bem como opiniões mais conservadoras que logo
9
Trachtman rejeita a visão dos “cesuristas” sobre a diminuição de soberania dos Estados provocada pelo
ciberespaço: “Não foi o Estado que morreu, mas a velha e moribunda teoria da soberania absoluta sobre
o território” (1998: 562).
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identificam afinidades com outros episódios ocorridos. Armand Mattelart (2000), na sua
História da Utopia Planetária, elenca um conjunto de exemplos históricos onde, ao
surgimento de uma nova tecnologia, foi criada uma esperança libertadora: a imprensa
escrita, o telégrafo, os caminhos de ferro ou a televisão.
Como já foi referido, os “cesuristas” estão convencidos de que o ciberespaço é uma
destas tecnologias libertadoras. Uma tecnologia suficientemente diferente do mundo
real para que a regulação do comportamento humano nesse espaço não possa ser feita
através dos mecanismos existentes
10
A ideia de que o ciberespaço dilui o conceito de soberania de Estado, mas também de
que os probelmas no ciberespaço devem ser deixados para os cibernautas, encaixa
perfeitamente no perfil de “internet-centrismo”, como idealizado por E. Morozov
(2012). A crença no efeito libertador da internet, mas principalmente a ideia de que
tudo se resume, tudo pode ser explicado, ou pode ser feito por via da internet, permite
compreender porque razão Johnson e os seus correlegionários defendem regras à parte
para o ciberespaço.
. Lessig advoga que “algo de fundamental mudou”
(1999: 126), para sustentar a sua tese de que no ciberespaço "o código é a lei";
enquanto Johnson e Post defendem que o ciberespaço é dos cibernautas e portanto
“aqueles que definiram e usam os sistemas on-line têm o interesse em prevenir a
segurança do seu território electrónico e de prevenir o crime” (1996: 1383), dando o
mote para auto-regulação do ciberespaço.
11
Dentro deste espírito, Johson e Post apontam alguns exemplos práticos de auto-
regulação. Este autores sugerem que o sistema de DNSsistema global de atribuição e
gestão nomes internet, coordenado por uma organização internacional sem fins
lucrativo, designada de ICANN,
As teses dos “cesuristas” inserem-se claramente num contexto de
euforia da internet e não anterviram nem as alterações societais desencadeadas com
as redes sociais na última década, nem a concentração de poder nas mega empresas
do sector. Inserem-se no espírito e na ideologia dos primórdios da internet e na
vontade dos seus utilizadores de a manter livre de regulação e da intervenção dos
Estados ou de manter viva a ideia de que o cibespaço “possa realizar a sua promessa
de profunda alavancagem liberatória” (Post, 2000: 1439), vontade essa expressa por
grupos como o Electronic Frontier Foundation, e por manifestos como a Declaração de
uma Internet Independente, de John Bralow (1996).
12
10
Lessig sustenta que a regulação do comportamento humano é realizado pela convergência de quatro
forçasquatro reguladores: a lei, o mercado, as normas sociais e, no tocante ao ciberespaço, a
arquitectura (1999).
estaria a ser redesenhado, num processo de auto-
regulação, para acondicionar um conjunto de salvaguardas exigidas pela "propriedade
industrial" (1996: 1388). Passados quase vinte anos, podemos avaliar como decorreu
este processo. Pese embora a gestão do DNS continue nas mãos do cibernautas,
praticamente todos os países europeus liberalizaram as regras de registo de domínios
internet, colocando uma maior pressão sobre a gestão dos direitos de propriedade
industrial e criando fenómenos como o cybersquating especulação financeira com os
nomes internet mais apetecíveis. Existe efectivamente um regime de auto-regulação
neste domínio, segundo um modelo de melhores práticas internacionais. No entanto,
11
"Os internet-centricos gostam de responder a qualquer questão sobre mudanças democráticas,
reformulando-as, antes de mais, em termos da internet, em vez do contexto em que estas ocorrem”
(Morozov, 2012: xvi). Um dos alvos favoritos de Morozov é o norte-americano Clay Shirky, (2009), que
Morozov qualifica de ciberutópico.
12
Internet Corporation for Assigned Names and Numbers. Ver https://www.icann.org, consultado em
Setembro de 2014.
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essa auto-regulão revela-se insuficiente e é recorrente o recurso à legislação da
propriedade industrial para dirimir conflitos. Note-se, no entanto, que, como sugerido
por Johnson, alguns países criarm tribunais arbitrais especializados
13
Outro exemplo de auto-regulão como forma de resolução para problema concretos do
ciberespaço é-nos exposto por Post relativamente ao crescimento do número de
mensagens de correio electrónico não solicitadas, vulgarmente conhecidas como spam.
Post apresenta-nos como um bom exemplo de auto-regulação ou de como a rede irá
funcionar no futuro, uma das várias iniciativas para criação de uma base de dados
centralizada de reputação de endereços de correio electrónico ou de servidores de
correio electrónico (Realtime Blackhole List), alimentada remotamente por voluntários -
activistas nas suas palavras (2000: 1440). Este conjunto de voluntários estabelece, em
comunidade, um conjunto de regras, às quais todos os participantes no ciberespaço
aderem. É, de facto, uma visão linda, mas que a história não confirmou. Desde logo,
não surgiu uma, mas várias iniciativas semelhantes que criaram um problema de
escolha aos administradores de serviços de correio electrónico. Depois, o regime de
voluntariado passou a ser um constrangimento para a qualidade do serviço, pelo que
assistimos à mercantilização de alguns destes serviços - o modelo vigente
, com o saber-
como necessário para tratar as particularidades cibernéticas neste domíno (1996:
1387).
14
Numa outra prespectiva do significado de auto-regulação, a tese de Lessig sobre o
papel do código na regulação do ciberespaço é ambivalente. Por um lado sustenta uma
ideia de que a produção das normas que regulam o ciberespaço reside nos seus
arquitectos e programadores e não no Estado. Neste cenário, o poder regulatório
encontra-se tanto nas mãos da indústria de telecomunicações, de media e de
aplicações para a internet, que através dos seus produtos regem e enformam as
condutas no ciberespaço. Mantendo intocáveis os princípios da neutralidade da rede e
o não dever de vigilância sobre os conteúdos transitados ou armazenados nas suas
infraestruturas, os gigantes dos media digital têm vindo a introduzir, nas suas
aplicações, mecanismos de denúncia com vista à remoção de conteúdos ofensivos ou,
ainda, mecanismos de reputação para avaliação de risco em transações comerciais
entre desconhecidos. Por outro lado a produção de norma também reside nas mãos do
cidadão comum, que pode criar uma nova aplicação e, por essa via, produzir norma.
Em ambos os casos esta forma de produção de norma pode ser conflituante com outros
poderes normativos. Bons exemplos desta auto-regulação são: o Skype, um sistema
global de comunicações de voz criado por dois jovens nórdicos à margem do quadro
regulatório das telecomunicações e em violação de disposições processuais penais, em
várias jurisdições, como o regime de intercepção telefónica; ou o Pretty Good Privacy,
. Por outro
lado, nasceram outras formas de solucionar o problema do spam. O mercado viu a
oportunidade e os gigantes da cloud, como a AOL a Microsoft e a google criaram o
Sender Policy Framework, o SenderID ou, ainda, o DKIM - para referir apenas os mais
conhecidos -, não existindo, ainda hoje, o “consenso colectivo” preconizado por Post
(2000: 1456). Em suma, no que ao tratamento do spam diz respeito, podemos afirmar
que sofremos de "demasiada" auto-regulação.
13
No caso português, as regras para registo de nomes internet inclui a possibilidade de recurso para um
tribunal arbitral especializado. Ver .PT Domain Registration Rules, Chapter VI, disponível em
http://www.dns.pt/en/domains-2/domain-rules/chapter-vi/, consultado em março de 2015.
14
O modelo de negócio de muitas destas RBL passa pela cobrança de uma taxa pela remoção de entradas
da lista.
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uma plataforma de cifra, desenvolvida por Phil Zimmermann, que violou, entre outras,
as leis norte-americanas de exportação algoritmos de cifra. Por outro lado, a tese de
Lessig, define o código como o meio para, de uma forma mais eficaz, fazer-se cumprir
a lei:
“o código substitui a lei através da codificação das regras,
tornando-as mais eficazes do que estas eram enquanto meras leis”
(Lessig, 1999: 206).
Ou seja, o Estado pode tirar proveito do código no seu exercício de soberania. Da
mesma forma que as empresas codificaram os seus processos de negócio, diminuindo a
arbitrariedade e o erro do colaborador, os Estados começam a codificar parte das suas
funções - nomeadamente aquelas onde é necessária a interação com o cidadão - com
ganhos de eficácia. Um exemplo disto é o actual modelo de colecta de impostos em
Portugal, onde a codificação do comportamento dos comerciantes para a emissão de
facturas e a codificação do comportamento dos contribuinte para o preenchimento da
sua declaração de impostos - o termo "declaração" começa a não fazer sentido - são a
própria da lei.
Em sentido contrário à auto-regulação, a arquitectura do ciberespaço veio, igualmente,
criar um conjunto de oportunidades para o controlo e a vigilância da sociedade. Os
Estados de regime autoritário foram os primeiros a perceber esta possibilidade
15
, mas
rapidamente a vigilância passiva, a recolha indiscriminada de metadados e o conceito
de big data no suporte às funções de soberania criaram adeptos um pouco por todo o
mundo. Os Estados já perceberam que para um melhor controlo do ciberespaço - o seu
e o dos outros, na acepção de M. C. Libiki (2012) - as grandes empresas da indústria
da internet podem desempenhar um papel fundamental, seja na arquitectura da
topologia dos fluxos de informação, seja no desenho das próprias funcionalidades do
serviço. É geopoliticamente relevante, para dar apenas um exemplo, a localização física
do motor de busca planetário google. Este interesse estratégico adensa-se quando
passamos a falar de armazenamento de informação. Por exemplo na disputa entre a
google e o governo da República Popular da China, em 2010, a última via a primeira
como uma componente do poder norte-americano (Klimburg, 2011: 52).
Soberania desagregada
Atentos aos limites do processo de auto-regulação do ciberespaço, vários autores
sugerem complementar os mecanismos tradicionais de regulação com uma abordagem
supranacional para os problemas mais complexos. Numa perspectiva mais
tradicionalista - aquela que não advoga um regime de excepção para o ciberespaço - é
comummente aceite uma partilha de poder com outras instituições para melhor
responder aos vários desafios de governação global, e não apenas aqueles colocados
pelo ciberespaço. Os exemplos mais conhecidos desta forma governação em rede são
15
Talvez o caso mais evidente deste controlo seja o aparato tecnológico designado de Great Firewall of
China, uma infra-estrutura tecnológica, alegadamente capaz de monitorizar e de bloquear selectivamente
comunicações e conteúdos dentro do ciberespaço chinês e entre este e o resto do mundo, numa espécie
de “lápis azul” virtual e em tempo real.
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as várias instituições da Organização das Nações Unidas, tais como a Organização
Mundial de Saúde ou Organização Mundial do Comércio.
Estas estruturas de resposta aos problemas contemporâneos de governação
transnacional têm vindo a ser teorizadas, entre outros, por W. H. Reinicke, que as
designou de "redes globais de política pública" (1999) ou por A.-M. Slaughter, que lhes
chamou "soberania desagregada" (2009). Os objectivos destas redes entram dentro do
conceito de soft-power e determinam uma transposição do conceito de soberania
centrado na administração do território para uma combinação entre poderes fixados
nos Estados e mecanismos supranacionais e descentralizados de articulação entre
estes. Estes mecanismos assentam em estruturas que juntam as partes interessadas -
stakeholders - quer do governo, quer da economia, quer ainda da sociedade civil, para
tirar proveito das vantagens das redes na gestão de conhecimento, para partilhar
informação e ideias e para coordenar políticas entre si, sem o cunho formal negociado
de um tratado” (Mueller, 2010: 40). Estas formas de governo são coincidentes com o
conceito de abordagem multi-stakeholder preconizada por exemplo no Internet
Governance Forum, ou nos vários grupos de trabalho da União Europeia.
Os partidários desta abordagem não a consideram uma perda de soberania para os
Estados, mas antes uma inevitabilidade para a resolução de problemas globais. Como
refere Slaughter,
“[p]or mais paradoxal que possa parecer, a medida da capacidade
de um Estado actuar como uma unidade independente dentro do
sistema internacionala condição e objectivo de soberania -
depende da largura e da profundidade das suas ligações a outros
Estados” (2009: 268).
Os problemas de regulação do ciberespaço não fogem a esta regra. Como refere J. S.
Nye Jr. (2010: 3),
“o ciberespaço não irá substituir o espaço físico geográfico e não
acabará com a soberania dos Estados, mas a difusão de poder no
ciberespaço coexistirá e complicará, em grande medida, o que
signica exercício de poder neste domínios.”
Neste sentido vários autores defendem uma solução global para um problema global.
H. H. Perritt Jr. sugere que
“ter em conta o pontencial do [ciberespaço] requer uma evolução
das instituições internacionais públicas e privadas de forma a que
as regras de atribuição de responsabilidade possam se fazer
cumprir com eficácia, mesmo em relação às condutas que não
possam ser localizadas territorialmente num Estado em particular”
(1996: 113).
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Também Trachtman insiste que “vale a pena idealizar uma solução institucional mais
forte” (1998: 569) para a regulação do ciberespaço.
Um das áreas onde esta soberania desagregada tem vindo a produzir efeitos é a do
combate ao cibercrime. Muito cedo se percebeu a necessidade de uma abordagem
transnacional aos desafios colocados pelo crime nas redes de computadores. Em 1990
a Assembleia Geral das Nações Unidas adoptou uma primeira resolução onde se
identifica como necessário o desenvolvimento de formas e instrumentos de cooperação
internacional para o combate ao cibercrime
16
. Ainda no quadro da Nações Unidas, e do
11.º congresso sobre prevenção e justa criminal, realizado em 2005, resultou uma
declaração onde foi expressa a necessidade de harmonização legislativa no combate ao
cibercrime
17
. A concretização desse objectivo surge em 2004, da reunião dos Ministros
da Administração Interna do G8, realizada em Washington, da qual resulta um plano de
acção para o combate ao crime high-tech onde se destaca o incentivo à adopção, por
parte de todos os países, da Convenção para o Cibercrime, do Conselho da Europa, de
2001
18
Ainda no quadro das Nações Unidas, foram feitas algumas tentativas, sem sucesso,
para celebrar um acordo com vista à limitação do uso de ciberarmas por parte de um
Estado. Por desconfiança na eficácia de tal acordo nomeadamente quanto à
possibilidade de verificação , ou porque simplesmente não existe vantagem
estratégica para si, este acordo tem sido rejeitado sistematicamente pelos Estados
Unidos (Clark & Knake, 2010: 219-225).
. Esta Convenção é muitas vezes referida como o primeiro documento de
trabalho internacional resultado de uma reflexão profunda sobre o tema (Verdelho et
al., 2003). Um dos seus principais objectivos é a harmonização das várias legislações
nacionais relativamente a crimes cometidos contra redes de computadores ou crimes
de conteúdo nas redes de computadores. Para além do direito penal material, a
Convenção visa, igualmente, uma cooperação transnacional mais eficaz, para o que
contribui com um conjunto de institutos de direito processual penal e com a criação de
instrumentos de cooperação judiciária transnacional.
No mesmo sentido e como resposta a uma crescente centralidade do ciberespaço na
actividade terrorista - seja como instrumento, seja como potencial alvo -, a União
Europeia prepara-se para aprovar medidas tendentes a um maior controlo e vigilância
da actividade jihadista na internet. De entre estas, destacam-se a criação de uma
unidade especial, dentro da Europol, para monitorização da internet e o reforço da
16
Resolução A/RES/45/121, Eighth United Nations Congress on the Prevention of Crime and the Treatment
of Offenders, disponível em
http://www.un.org/documents/ga/res/45/a45r121.htm, consultado em Maio
de 2014. Dessa resolução resultou um manual sobre prevenção e controlo de crimes relacionados com
computadores. Ver United Nations Manual on the Prevention of Computer-related Crime, disponível em
http://www.uncjin.org/Documents/irpc4344.pdf, consultado em Maio de 2014. Em 2000, a mesma
Assembleia Geral adoptou uma nova resolução em matéria de combate à utilização criminosa de
tecnologias da informação, onde se reforça a necessidade de os Estados membros assegurarem que os
seus regimes legais não criem zonas francas para o exercício de actividades criminosas desta natureza e
apela a uma maior cooperação na investigação criminal e judiciária transnacional. Ver Resolução
A/RES/55/63, Combating the criminal misuse of information technologies, disponível em
http://www.unodc.org/pdf/crime/a_res_55/res5563e.pdf, consultado em Maio de 2014.
17
Ver Synergies and Responses: Strategic Alliances in Crime Prevention and Criminal Justice, “Declaração
de Bangkok”, disponível em
http://www.unodc.org/pdf/crime/congress11/BangkokDeclaration.pdf,
consultado em Maio de 2009.
18
Texto integral em http://conventions.coe.int/Treaty/en/Treaties/Html/185.htm, consultado em Maio de
2009. Para um sumário da génese e objectivos da Convenção sobre o Cibercrime, ver
http://conventions.coe.int/Treaty/en/Summaries/Html/185.htm, consultado em Maio de 2014.
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cooperação público-privada com os principais gigantes de social media, como o
Facebook ou o Twitter, para a eficácia dessa monitorização
19
Outro exemplo de soberania desagregada para uma melhor regulação do ciberespaço
surgirá com a nova directiva da União Europeia para a segurança das redes e da
informação que, previsivelmente, será aprovada ainda em 2015. Na proposta de
directiva
.
20
é prevista a criação de fora para a partilha de informação e de boas práticas,
para a articulação na resposta a incidentes de cibersegurança, bem como para a
articulação entre autoridades nacionais de cibersegurança, numa abordagem multi-
stakeholder.
Conclusões
Repetidamente, o surgimento de cada nova tecnologia tem originado tomadas de
posição que defendem a sua excepcionalidade e a ruptura com o passado. Como sugere
Trachtman,
“talvez porque a tecnologia seja tão exuberante, existe uma
tendência para defender que as alterações que observamos nos
conceitos de soberania, Estado, jurisdição e lei, sejam todas
causadas pelo ciberespaço” (1998: 561).
O mesmo já havia acontecido quando surgiu o telefone ou o telégrafo ou ainda a rádio.
Grande parte das dificuldades sentidas na regulação e na aplicação da lei no
ciberespaço devem-se a alterações profundas na sociedade - catalizadas por este
mesmo ciberespaço -, tais como o adensar da globalização e o consequente aumento
das transacções transnacionais ou a velocidade do desenvolvimento tecnológico. Por
outro lado, o ciberespaço apresenta características distintas e ambivalentes que vieram
colocar grandes desafios aos Estados para a sua regulação, mas também oportunidades
para uma maior vigilância da sociedade. Não se trata, pois, de um problema de
excepcionalidade, mas antes de uma gestão de oportunidade - libertária, económica,
política - para os vários vários actores envolvidos.
Passados quase vinte anos sobre o trabalho de Johnson e Post, Law and borders: The
rise of law in cyberspace, ainda não é absolutamente claro o caminho definido para a
sua regulação. Dependendo dos interesses de cada Estado (económicos ou
securitários), temos situações onde prevalence uma maior auto-regulação (interesse
económico) e outros onde se identifica uma crescente vigilância e controlo da sociedade
(interesse securirio), resultando numa fragmentação do ciberespaço em
ciberespaços.
19
Ver EU proposes terror unit to tackle online jihadis, Financial Times, 11 de Março de 2015, disponível em
http://www.ft.com/intl/cms/s/0/4d93b7f0-c804-11e4-9226-00144feab7de.html, consultado em Março de
2015.
20
Ver COM(2013) 48 final, Proposta de Directiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa a medidas
destinadas a garantir um elevado nível comum de segurança das redes e da informação em toda a União,
disponível em
http://eur-lex.europa.eu/LexUriServ/LexUriServ.do?uri=COM:2013:0048:FIN:PT:PDF,
consultado em Setembro de 2014.
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Podemos afirmar igualmente que, face a estas duas tendências o ciberutopianismo não
passa disso mesmo - de uma utopia.
“É fácil demais argumentar que que a regulação do ciberespaço
pertence à sociedade do ciberespaço.” (Trachtman, 1998: 568)
As duas abordagens aqui tratadas - a auto-regulação e a soberania desagregada -
coexistem e muito provavelmente continuarão a coexistir. Como vem expresso na
Estratégia de Cibersegurança holandesa, de 2011, no capítulo de princípios
orientadores: "auto-regulação se posvel, legislação e regulação se necessário"
21
Por último e considerando as dificuldades aqui enunciadas de um Estado, de per si,
realizar, quando necessária, esta regulação, observamos o surgimento das redes
transnacionais de governação, e o reforço do papel destas na agenda política. O
conceito de soberania absoluta centrado na administração do território encontra-se em
diluição e os problemas globais são tratados nestas estruturas transnacionais. É
necessária uma abordagem global para problemas globais.
.
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21
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Lino Santos
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LA ENERGÍA EN LA AGENDA PÚBLICA:
CAMBIOS EN BOLIVIA CON ‘PROYECCIÓN’ EN EL CONTEXTO CONTIGUO
Natalia Ceppi
natalia.ceppi@fcpolit.unr.edu.ar
Doctora en Relaciones Internacionales. Universidad Nacional de Rosario (UNR, Argentina).
Investigadora del CONICET. Profesora de la asignatura Derecho Consular y Diplomático de la
Licenciatura en Relaciones Internacionales (UNR).
Resumo
El presente trabajo aborda desde una perspectiva comparada el ascenso de la cuestión
energética en las relaciones de Bolivia con Argentina y Brasil durante la primera década del
siglo XXI. En este contexto, la nacionalización de los hidrocarburos bolivianos, decretada por
Evo Morales el 1 de mayo de 2006, se transforma en un elemento central del análisis al
convertirse en un objetivo y una herramienta política del MAS. Se propone entonces
indagar, por un lado, las acciones que derivaron de este Decreto al interior de Bolivia y por
el otro, las similitudes y diferencias surgidas en los procesos de negociación y sus
resultados- en los vínculos argentino-bolivianos y boliviano-brasileros.
Palavras chave:
Argentina-Bolivia-Brasil-hidrocarburos-acuerdos
Como citar este artigo
Ceppi, Natalia (2015). "La energía en la agenda pública: câmbios en Bolívia con
«proyección» en el contexto contíguo". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol.
6, N.º 1, Maio-Outubro 2015. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol6_n1_art7
Artigo recebido em 1 de Dezembro de 2014 e aceite para publicação em 23 de Abril de
2015
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La energía en la agenda pública: cambios en Bolívia con «proyección» en el contexto contíguo
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LA ENERGÍA EN LA AGENDA PÚBLICA: CAMBIOS EN BOLIVIA CON
‘PROYECCIÓN’ EN EL CONTEXTO CONTIGUO
*
Natalia Ceppi
Introducción
El 18 de diciembre de 2005 la sociedad boliviana concurrió a las urnas en un contexto
marcado por la incertidumbre, el avance de los movimientos sociales que cuestionaban
el modelo económico y político imperante y la tensión constante entre la continuidad y
el cambio que es propia de toda elección presidencial. En esta contienda, Evo Morales,
líder del Movimiento al Socialismo (MAS), se impuso frente a las siete fuerzas políticas
restantes con el 53.74% de los votos, dejando atrás el sistema de coaliciones
gubernamentales que había caracterizado a la democracia por más de dos décadas
1
Esta victoria, marcada por la mayoría absoluta, fue un indicio significativo de que gran
parte de la población recibió con beneplácito un programa de gobierno sumamente
crítico del período neoliberal, la exclusión del Estado en el control del aparato
productivo y la falta de atención de las demandas sociales cuyos ejes disparadores han
sido la pobreza y la desigualdad (Programa de Gobierno MAS-IPSP, 2005). A diferencia
de las propuestas de los partidos políticos tradicionales, el proyecto del MAS se ha
orientado a revalorizar la figura del Estado, entendiéndolo no sólo como un actor
protagónico en el proceso de ‘ruptura’ con el pasado sino también como el principal
conductor de un modelo socio-económico más distributivo e inclusivo. Con miras a
cumplir con este cometido, a 100 días de su estadía en el poder, Morales decretó la
nacionalización de los hidrocarburos bolivianos a través de la recuperación accionaria
de Yacimientos Petrolíferos Fiscales Bolivianos (YPFB); empresa que a nombre del
Estado tuvo a su cargo la totalidad de la cadena energética nacional durante décadas
.
2
La nacionalización de los hidrocarburos no fue una medida tomada al azar. Al contrario,
el Decreto 28.701 “Héroes del Chaco” se inscribe en los reclamos sociales que
eclosionaron en la Guerra del Gas octubre de 2003 - y en uno de los objetivos
.
*
Estas líneas de investigación como otras preliminares relacionadas con esta temática forman parte de un
proyecto de investigación financiado por el Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas
(CONICET) de la República Argentina.
1
Los partidos políticos que se presentaron en dichas elecciones a excepción del MAS- fueron: Nueva
Fuerza Republicana (NFR), Unión Social de los Trabajadores (USTB), Unidad Nacional (UN), Movimiento
Indígena Pachakuti (MIP), Movimiento Nacionalista Revolucionario (MNR), Frente Patriótico Agropecuario
de Bolivia (FREPAB) y Poder Democrático y Social (PODEMOS).
2
Esta compañía fue creada en 1936. Según Gordon & Luoma, una cuestión heredada de la Guerra del
Chaco conflicto que en la primera mitad de la década del treinta enfrentó a Bolivia y Paraguay- fue “la
comprensión de la importancia del rol del Estado en el desarrollo de los recursos hidrocarburíferos del
país, de los cuales 85% se encuentra ahora en la región del Chaco” (2008: 92). Con la fundación de YPFB
se reafirmó la creencia del significado económico y simbólico que revisten los recursos energéticos bajo el
control del Estado.
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prioritarios del programa político del MAS, a saber, obtener el control de un sector que
es estratégico dentro de una economía poco diversificada para que sus ingresos sean
destinados al desarrollo económico y social del país (Programa MAS-IPSP, 2005: 14).
Debido a que la producción hidrocarburífera boliviana se ha concentrado históricamente
en alimentar el comercio externo, la nacionalización generó un punto de inflexión en los
vínculos establecidos con las empresas transnacionales dedicadas a la explotación de
los energéticos y los Estados del escenario contiguo, tales como Argentina y Brasil,
cuyas matrices de consumo son abastecidas en gran medida por el ps andino.
En base a lo mencionado, el presente trabajo parte de la idea que en una fase de
precios internacionales altos en materia de productos primarios, entre ellos, los
energéticos, como fue la primera década del siglo XXI
3
, Evo Morales buscó a través de
la nacionalización de los hidrocarburos cumplir con una meta dual: acrecentar el peso
del Estado en el sector, en particular, en materia recaudatoria y a partir de al, diseñar
diferentes políticas sociales dirigidas a atender las necesidades de los grupos
poblacionales más pobres y vulnerables. De esta manera, el control de la industria
energética nacional se ha convertido en la herramienta de propulsión y consolidación
del proyecto político del MAS en el ámbito doméstico, mientras que en la agenda
externa ha revitalizado el rol YPFB en los contratos energéticos vigentes. En
consecuencia, se pretende desentrañar una serie de interrogantes que se encuentran
intrínsecamente relacionados: ¿Qué aspectos se identifican como los más significativos
en esta nacionalización de los hidrocarburos bolivianos?; ¿Cómo impactó esta decisión
en los vínculos argentino-bolivianos y boliviano-brasileros? y en conexión con lo
anterior ¿Cuáles han sido las principales semejanzas y diferencias en las negociaciones
emprendidas por Argentina y Brasil?
La nacionalización de los hidrocarburos: política & energía, un binomio
complejo
El informe de la Organización Mundial de Comercio (OMC) de 2010 dedicó al comercio
de los recursos naturales un apartado especial. Este último sostiene que los recursos
naturales son “materiales existentes en el entorno natural, que son a la vez escasos y
económicamente útiles en la producción o el consumo ya sea en estado bruto o tras
haber sido objeto de un mínimo proceso de elaboración” (Informe OMC, 2010: 5). Esta
definición deja entrever el carácter estratégico que revisten los bienes de la naturaleza
en general, sobre todo cuando de recursos energéticos se trata. Dentro del grupo de
los no renovables, el gas natural es considerado el combustible del siglo XXI al reunir
una serie de factores como índices globales positivos en las tasas reservas/producción;
es más limpio que el carbón y otros derivados del petróleo; posee una combustión
eficiente en la generación de electricidad y su utilización es muy importante en la
producción de la petroquímica básica, entre otros (Ríos Roca, 2013: 16-18).
Comparativamente con otras regiones del planeta, las reservas probadas de gas natural
en América Latina y el Caribe no son significativas puesto que sólo representan el 3.8%
de las reservas mundiales. No obstante, este dato cobra otro valor al evaluar el
accionar de los gobiernos en el sector. Tal como plantea Linkohr, América Latina se
3
Sobre este punto se recomienda consultar la investigación realizada por Acquatella, et. al. (2013), Rentas
de recursos naturales no renovables en América Latina y el Caribe: evolución y participación estatal,
1990-2010 para el seminario CEPAL Gobernanza de los recursos naturales en América Latina y el Caribe:
desafíos de política pública, manejo de rentas y desarrollo inclusivo.
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constituye en una de las regiones del mundo donde enera y política poseen una
conexión especial. Esto no implica desconocer la existencia de esta vinculación en otras
partes del mundo, sino subrayar que en el caso de los Estados latinoamericanos, los
energéticos son un elemento significativo a la hora de hacer política (2006: 90-91).
Este argumento puede observarse con claridad en Bolivia donde tras el colapso de la
industria del estaño en 1985, "el gas se convirtió en el recurso natural más importante
del país" (Gordon & Luoma, 2008: 89) y por ende, la principal fuentes de ingresos
públicos. Como era de esperarse, a partir de entonces, la explotación de los
hidrocarburos ha sido - con diferentes connotaciones - central al momento de tomar
decisiones en materia político-económica.
Al igual que aconteció con sus vecinos, Bolivia no quedó exenta de la ola neoliberal
propia de la década del noventa y YPFB fue una de las primeras empresas públicas en
quedar en manos de los operadores extranjeros durante la primera presidencia de
Gonzalo Sánchez de Lozada (1993-1997). De acuerdo con Campodónico, el caso
boliviano se inscribe conjuntamente con Argentina y Perú como los referentes en
materia de privatización de sus industrias energéticas en Sudamérica. Sin desconocer
que cada país tuvo rasgos específicos, sus respectivos gobiernos reformaron los marcos
legales para incentivar la presencia de inversión extranjera en el upstream y
downstream del sector (2007: 40-42)
4
La transnacionalización de YPFB fue posible gracias a la Ley de Capitalización 1544 de
1994 y a la Ley de Hidrocarburos 1689 de 1996 que sentaron las bases jurídicas para
pasar “de una visión de economía hidrocarbufera estatal, que tuvo una vigencia de 60
años, a una de total privatización” (Villegas Quiroga, 2004a: 74). Producto de la
capitalización de YPFB se crearon tres unidades operativas en calidad de sociedades
anónimas mixtas: Chaco y Andina encargadas de la exploración y la producción - y
Transredes, que aglutinó la capacidad de transporte. Así YPFB, empresa emblemática
para la sociedad boliviana, atravesó un proceso de desmembramiento que limitó su
accionar a la provisión del hidrocarburo a los mercados de exportación (Villegas
Quiroga, 2004a: 76). Asimismo, debe agregarse que su capitalización justificada en la
búsqueda de crecimiento económico y bienestar de la población- no tuvo repercusiones
positivas en los indicadores socio-económicos nacionales. Al contrario, las estadísticas
dan cuenta que desde una perspectiva general, las políticas de apertura y liberalización
económica habían favorecido la construcción de una sociedad más pobre y desigual
(Nogales Iturri, 2008). A finales del año 2005, es decir, coincidente con el primer
triunfo electoral de Evo Morales, la pobreza moderada alcanzaba al 60.6% de la
población; la pobreza extrema al 38.2% y el Coeficiente de Gini era de 0.60 (UDAPE,
Información Estadística: s/f). Estos datos tienen similitud con la información brindada
. Como complemento, Sánchez Albavera &
Altomonte sostienen que las reformas energéticas que se llevaron a cabo en los
Estados latinoamericanos en dicho período fueron ‘similares’ en cuanto a sus orígenes y
motivaciones. Existía una creencia generalizada que el modelo de gestión con
protagonismo estatal había ingresado en su fase de agotamiento muchas empresas
estatales estaban en una grave situación financiera producto de la crisis de la deuda de
los ochenta - y que el juego de la libre oferta y demanda otorgaría eficiencia a la
industria (1997: 29).
4
Entre las reformas generales más destacadas, se encuentran: la reducción del porcentaje de regalías a
pagar por parte de las transnacionales, la flexibilización de las condiciones de inversión, la no
obligatoriedad de compartir los descubrimientos con el Estado y la liberalización del mercado de
combustibles, entre otros.
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por la Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL). Después de dos
décadas de neoliberalismo, al 2004 el 63.9% de la sociedad boliviana se encontraba
sumida en la pobreza, siendo ésta muy superior en las áreas rurales, con el 80.6%. A
nivel nacional, la indigencia era de 34.7% y en las zonas rurales emulaba el
comportamiento de la pobreza, es decir, se presentaba con índices mayores (el 58.8
del total de la población). En cuanto a la desigualdad, la base estadística del organismo
registró un Coeficiente de Gini de 0.56 para el mismo año
5
Los indicadores mencionados son un indicio que la privatización de la industria
energética se centró en el fortalecimiento de la producción hidrocarburífera para el
mercado externo sin que los ingresos provenientes de la comercialización, o al menos,
gran parte de los mismos, fueran reinvertidos en el país. Bajo la consigna que el
reposicionamiento del Estado frente a los operadores energéticos transnacionales
constituía un ‘imperativo histórico’, el 1 de mayo de 2006, Evo Morales, acompañado
por funcionarios ministeriales y representantes de movimientos sociales y con un
amplio despliegue de las Fuerzas Armadas en el campo San Alberto en Tarija - decretó
la nacionalización de los hidrocarburos afirmando que:
.
“Llegó el día esperado, un día histórico para que Bolivia retome el
control absoluto de nuestros recursos naturales […] Se acabó el
saqueo por parte de las empresas petroleras internacionales”
(Clarín: 02/05/2006).
Del análisis general del Decreto 28.701 “Héroes del Chaco”, se desprenden las
siguientes consideraciones: En primer lugar, sus disposiciones más sobresalientes están
orientadas a sentar las bases para que YPFB que a partir de ahora actúa en nombre y
representación del Estado- obtenga mayores márgenes de acción, contrarrestando el
lugar de las empresas extranjeras tanto en el upstream como el downstream del
sector. Para cumplir con este cometido, se dispuso la recuperación como mínimo del
51% del paquete accionario de las compañías que resultaron del proceso de
transnacionalización de la década del noventa (Decreto 28.701: 01/05/2006). En
términos prácticos esto se produjo mediante el pago de indemnizaciones - por acuerdo
o por demanda - a las empresas que fueron afectadas por la medida.
En segundo lugar y como muestra que la nacionalización de Morales no excluye la
participación de la inversión extranjera, se estableció un plazo de 180 días para que los
operadores energéticos se ajusten a las disposiciones del Decreto a través de la firma
de nuevos contratos; caso contrario serían inhabilitados para continuar en la actividad.
En esta dirección, las transnacionales debían respetar el requisito mencionado con
anterioridad y cumplir con la Ley de Hidrocarburos 3058 que se aprobó durante el
breve mandato de Carlos Mesa Gisbert (2003-2005) tras la renuncia de Sánchez de
Lozada. Dicha normativa ha permitido asegurar un porcentaje mayor de ingresos
provenientes del sector en contraproposición con la Ley de Hidrocarburos de 1689
(1996). Mientras que esta última redujo los impuestos para las transnacionales del
50% al 18% en materia de regalías y participaciones (Gandarillas Gonzáles, 2008: 72),
5
Estos corresponden a la Base de Datos y Publicaciones Estadísticas de la CEPAL (CEPALSTAT). Allí pueden
consultarse de forma interactiva estadísticas e indicadores por países. Disponible en:
http://estadisticas.cepal.org/cepalstat/WEB_CEPALSTAT/Portada.asp. Consultado: 17/04/2015.
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la Ley 3058 fijó nuevamente ese porcentaje, es decir, el 50% del valor de la producción
como resultado de la suma entre el 18% de las regalías y el 32% del Impuesto Directo
de los Hidrocarburos (IDH). El IDH reviste gran importancia en términos económicos y
socio-políticos porque sus ingresos se coparticipan entre los departamentos
productores, los no productores y el Tesoro General de la Nación. El saldo es asignado
por el Poder Ejecutivo a los municipios, las universidades, el Fondo Indígena y las
Fuerzas Armadas, entre otros (Ley 3058: 17/05/2005)
6
Los 44 contratos firmados tuvieron como punto en común que YPFB se asegura una
recaudación del 50% del valor de la producción y conserva la propiedad de los
yacimientos y la producción en el punto de fiscalización. Las compañías extranjeras
continúan siendo parte de la explotación de los campos gasíferos como ‘contratistas
remuneradas’ ante la imposibilidad de YPFB de enfrentar las operaciones por cuenta
propia (Zaratti, 2013). Las empresas asumen los costos de las actividades al igual que
sus riesgos pero beneficiándose de la aplicación de la cláusula de ‘costos recuperables’,
que abarca ítems como costos de personal, materiales, transporte, depreciación de
activos fijos, seguros y diferencias de cambio, entre otros. Dichos costos son variables
de acuerdo al contrato y son porcentajes que YPFB reintegra a los operadores
transnacionales (Medinaceli Monrroy, 2010: 26). En palabras de Molero Simarro et al,
los contratos vigentes
.
“plantean un escenario escasamente arriesgado para las empresas
extranjeras [porque] continúan explotando las concesiones sobre
yacimientos con reservas probadas y probables que ya conocían,
pero ades con mercados asegurados por el Estado (2012:
167).
En tercer lugar, de la letra del Decreto surge que la nacionalización de los
hidrocarburos fue un objetivo en sí mismo pero también una herramienta para darle
viabilidad a un conjunto de decisiones y medidas que son parte del programa de
gobierno del MAS. Si como sostiene Linkohr que en los países latinoamericanos el
control de los recursos energéticos posibilita acciones de índole político, esta
nacionalización representa en gran medida dicha afirmación. Basta para ello observar
en qué cuestiones el gobierno ha destinado el grueso de los ingresos que derivan de la
comercialización externa del gas. A partir de 2007, los recursos fiscales han
experimentado un crecimiento significativo gracias a la aplicación de una mayor presión
fiscal por el Decreto 28.701 y la Ley 3058- y la existencia de un contexto internacional
favorable en materia de precios energéticos, a excepción de 2009, ante el impacto de
la crisis financiera global. En el período 2007-2013 la renta petrolera casi se
cuadriplicó, pasando de US$ 1533 millones a US$ 5585.6 millones (YPFB Informe
Especial: 06/08/2013). Esto tuvo un impacto directo en la evolución del Producto Bruto
Interno (PBI) anual que en el mismo lapso de tiempo fue ascendiendo de 4.56% a
6.78%, experimentando un leve descenso en 2009 (INE, Nota de Prensa, 23/04/2014).
6
A esto debe agregarse que durante el período de transición hasta la firma de contratos entre YPFB y las
transnacionales- los operadores energéticos debían abonar también el 32% sobre el valor de la
producción para una participación adicional de YPFB en los campos que durante el 2005 la producción
certificada de gas natural fue superior a los 100 millones de pies cúbicos diarios (art. 4 Decreto 28.701).
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Esta situación de mayor bienestar económico le ha permitido a la administración
Morales desplegar un conjunto de políticas sociales orientadas a mitigar la pobreza, la
desigualdad y las falencias en los ámbitos de salud y educación que son financiadas
desde el gobierno central a través de los recursos del Tesoro General de la Nación y el
IDH (Morales, 2010). Las políticas sociales son herramientas que los gobiernos
implementan para “regular y complementar las instituciones del mercado y las
estructuras sociales” (Ortíz, 2007: 6). Si bien no constituyen una novedad del presente
siglo lo que sí ha cambiado es la concepción y los fines que las mismas persiguen. A
diferencia de los años ochenta y noventa cuando las políticas sociales tenían un
carácter netamente asistencialista y buscaban cubrir las fallas del mercado, en la
actualidad, los países latinoamericanos las conciben como parte de las funciones
primarias del Estado porque acercan el crecimiento económico a grupos poblacionales
que no se benefician de manera automática (Ortíz, 2007: 9).
Dentro de estas políticas, sobresalen los programas de transferencias en efectivo
condicionadas (TEC) que van dirigidos a las poblaciones más pobres, donde los
beneficios y las condicionalidades los requisitos a cumplir por los destinatarios- varían
de acuerdo a la política y al país (Sauma, 2007: 5). A este grupo de políticas deben
agregarse otras, tales como las pensiones sociales y los programas de inclusión laboral
y productiva. Entre las más sobresalientes impulsadas por el MAS se encuentran los
Bonos Juancito Pinto y Juana Azurduy, la Renta Universal de Vejez o Renta Dignidad, el
Programa Desnutrición Cero y Mi Primer Empleo Digno
7
. Sus principales diferencias, en
cambio, responden a las estrategias de protección social que persiguen y a la materia-
objeto que regulan. El siguiente cuadro sintetiza estos aspectos:
Gráfico I: Políticas Sociales
Programas
Sociales
Destinatarios Estrategias a
seguir
Materia-objeto de
regulación
Bono
Juancito
Pinto
Niños y adolescentes
Fomento de las
capacidades
humanas
Educación: incentivar la
matriculación y la
permanencia escolar
Bono Juana
Azurduy
Madres y niños hasta los
dos años de edad
Salud: disminuir la
mortalidad materno-infantil
Desnutrición
Cero
Familias con menores
Nutrición: combatir el
hambre y la pobreza
Renta
Dignidad
Bolivianos mayores de
60 años que perciben o
no una renta del sistema
de seguridad social
Incremento y mejora
del ingreso
Seguridad social de largo
plazo:
ampliar el régimen
de protección social
Mi Primer
Empleo Digno
Jóvenes de zonas
urbanas y periurbanas
de bajos ingresos
Fomento de las
capacidades
humanas
Inclusión laboral: facilitar y
ampliar la inserción al
ámbito del trabajo
Fuente: Elaboración propia en base a los datos de Morales (2010); Estado Plurinacional de
Bolivia-Ministerio de Planificación del Desarrollo-UDAPE (2011).
7
La referencia a estos programas es meramente a título ilustrativo de las políticas sociales mencionadas.
Esto no implica desconocer la existencia de otros programas que también buscan avanzar sobre la
pobreza y la vulnerabilidad. Algunos ejemplos son el Programa de alfabetización Yo sí Puedo, la
profesionalización de maestros interinos, los Incentivos Comunitarios, los Programas de Desayuno
Escolar, etc. Véase “Programas de Transferencias Condicionadas en Bolivia: Bono Juancito Pinto, Bono
Juana Azurduy” (2011). Disponible en:
http://www.rlc.fao.org/es/prioridades/seguridad/ingreso6/documentos/Presentaciones/Países/BOLIVIA.pd
f. Consultado: 13/11/2014.
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Cabe subrayar que los programas en Bolivia no representan un hecho aislado sino que
poseen su paralelismo en múltiples políticas que están desarrollándose en la actualidad
en América Latina y el Caribe. Algunos de ellas están vigentes desde los primeros años
del siglo XXI e incluso desde la década del noventa. A modo de ejemplo, pueden citarse
el Programa Previdência Rural (1993, Brasil); la Pensión Mínima de Vejez (2001, Perú);
Más Familias en Acción (2001, Colombia); Chile Califica (2002, Chile) y Jóvenes con
Oportunidades (2003, México)
8
Al momento de analizar los resultados de dichas políticas sociales en Bolivia, se
encuentran que éstos son de índole preliminar pero al mismo tiempo se asocian a la
reducción de la pobreza y la desigualdad. Los últimos datos oficiales de la Unidad de
Análisis de Políticas Sociales y Ecomicas (UDAPE) que presta asistencia técnica al
Ejecutivo- sostienen que en el período 2005-2011, la pobreza moderada pasó del
60.6% al 45%; la extrema del 38.2% al 20.9% y el Coeficiente de Gini experimentó un
descenso, de 0.60 a 0.46 (UDAPE, Información Estadística: s/f). La información
estadística de CEPAL también refleja un comportamiento en caída aunque con índices
más significativos. Al 2011 la pobreza alcanzaba al 36.3% de la población y la
indigencia el 18.7%. En cambio, el Coeficiente de Gini fue de 0.47
.
9
En síntesis, la nacionalización de los hidrocarburos entendida como objetivo y
herramienta política presenta aspectos positivos e interrogantes a resolver. Teniendo
en cuenta las limitaciones coyunturales, la administración Morales emprendió la
recuperación estatal de YPFB, buscando posicionar al Estado en el control de la renta
energética pero sin prescindir de la inversión extranjera en tanto garante de las
actividades de exploración y explotación. Como se mencionó en líneas anteriores, el
buen nivel de precios internacionales durante la primera década del siglo XXI y el pago
de tributos más altos que en los años noventa generaron ingresos fiscales crecientes y
un aumento constante del PBI como de la IED, la cual mostró una alta concentración en
la actividad hidrocarburífera al punto que en 2012 absorbió el 62.9% de la IED total
que llegó al país (BCB, 2014: 22). Esta bonanza económica fue útil a los fines del MAS
de establecer un modelo más distributivo. Los niveles de pobreza y desigualdad
respondieron positivamente a los múltiples programas sociales que se han puesto en
funcionamiento. Sin embargo, éstos no resuelven directamente dichas problemáticas,
sobre todo porque los ingresos que los sustentan son volátiles. Se requieren acciones
de carácter integral que se enmarquen dentro de una estrategia de desarrollo nacional.
Además, poseen algunas falencias, en especial, las políticas de transferencias
condicionadas. Al ser programas con escasa trayectoria, hay dificultades en cuanto a su
implementación; falta de complementariedad y coordinación entre los actores y los
distintos niveles de gobierno; debilidades en el sistema de monitoreo y evaluación e
incompatibilidad entre los sistemas de información del gobierno central y los municipios
rurales (Morales, 2010: 6).
.
8
Se recomienda consultar la base de datos de la CEPAL. Allí se encuentran decenas de programas sociales
que están operativos en los países latinoamericanos y caribeños en los rubros Transferencias
Condicionadas, Pensiones Sociales y Programas de Inclusión Laboral y Productiva. Disponible en:
http://dds.cepal.org/bdptc/. Consultado: 18/04/2015.
9
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Por otro lado, este ciclo de crecimiento y estabilidad económica que se abrió tras la
nacionalización ha reafirmado la dependencia del país a la explotación de los
energéticos sin valor agregado. Los avances en la industrialización del sector son aún
pocos significativos y son notorios los atrasos en lo que respecta la ampliación y
modernización de las refinerías que operan en el ps (Zaratti, 2013). Estos puntos no
son menores si el gobierno desea trabajar en una visión de desarrollo económico a
largo plazo y que sea superadora de una economía anclada en las actividades
extractivas.
Argentina y Brasil: los socios regionales frente a la nacionalización
La nacionalización como herramienta política también estuvo presente en la agenda
externa de Bolivia. En un país donde el comercio externo de los hidrocarburos marca el
rumbo de la econoa, la administración Morales tuvo que desplegar su capacidad de
negociación para acordar nuevas reglas de juego en el sector pero sin perder
inversiones o mercados. En este contexto, los gobiernos de Argentina y Brasil; países
que ocupan los primeros lugares como destinos de las exportaciones bolivianas,
tuvieron que renegociar las condiciones de importación/exportación del hidrocarburo.
Esto indica que la cuestión energética ocupa un lugar preponderante en las relaciones
que Bolivia mantiene con estos dos vecinos. Sin embargo, su ascenso en las agendas
bilaterales y su consecuente tratamiento presentó más diferencias que similitudes.
A partir de marzo de 2004, el Estado argentino comenzó a experimentar una crisis
energética de gran envergadura que se manifestó en las dificultades en el
abastecimiento doméstico como en los problemas para cumplir con las exportaciones
de gas natural hacia Chile, acordadas a mediados de la década del noventa. Frente a
este panorama crítico, el gobierno de Néstor Kirchner (2003-2007) solicitó a su par
boliviano, Carlos Mesa Gisbert, el eno temporal de gas natural para mitigar las
consecuencias negativas de la falta de autoabastecimiento. El 21 de abril de 2004
ambos mandatarios firmaron en la ciudad de Buenos Aires un convenio de compra-
venta por un volumen inicial de 4 MMm
3
diarios por un período de seis meses- que
posteriormente fue renovado en dos oportunidades hasta el 31 de diciembre de 2006
por una cantidad de 7.7 MMm
3
. Por un lado, este convenio inauguró una nueva etapa
de acercamiento en la relación bilateral debido a las necesidades de importación y
exportación del recurso de cada uno de los actores involucrados. Por el otro, fue un
indicio de los errores cometidos por los gobiernos argentinos desde losos noventa en
el tratamiento de la energía, considerando que el gas natural alimenta más del 50% de
la matriz energética nacional. Las compras del hidrocarburo boliviano hicieron resurgir
un proyecto que haa sido lanzado por el Ejecutivo argentino en el año 2003: la
construcción del Gasoducto del Noreste Argentino (GNEA). Esta obra de infraestructura
fue pensada para transportar gas natural boliviano hacia las provincias de dicha región
que no poseen acceso al recurso (Acuerdo Federal para el lanzamiento del Gasoducto
del Noreste Argentino, 24/11/2003). Como era de esperarse, el proyecto fue apoyado
explícitamente por el ex Presidente Gisbert ya que contribuiría a aumentar las ventas y
por ende los ingresos fiscales de su país.
En cambio, la comercialización de la energía en las relaciones boliviano-brasileras
actuales no ascendió intempestivamente ni fue motivada por un escenario energético
nacional en crisis. Las gestiones para comercializar gas natural comenzaron en la
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década del setenta tras el primer shock petrolero -que revalorizó el carácter estratégico
de la energía en la agenda estatal- aunque no resultaron en acuerdos definitivos. La
llegada de Petrobras en la década del noventa a los megacampos San Alberto y San
Antonio fue crucial en los inicios de la exportación de gas natural hacia Brasil,
particularmente porque la compañía contaba con la información sobre la existencia de
reservas para abastecer las principales ciudades del país (Villegas Quiroga, 2004a: 89-
94). En 1996 YPFB y Petrobras firmaron dos acuerdos: uno de compra-venta de gas
natural por un período de 20 años, con una proyección de eno de 30.08 MMm
3
diarios
10
A pesar que las motivaciones contractuales fueron diferentes, a saber, la crisis en el
caso argentino y una decisión política en el caso brasilero, los convenios de 1996 y
2004, fueron consolidando una clara situación de ‘dependencia’ en materia
exportador/importador. Este binomio comercial se evidencia en: a) el lugar del gas en
las exportaciones bolivianas hacia ambos países. Tanto en Argentina como Brasil, el
hidrocarburo corresponde a más del 90% del total de las importaciones provenientes
del Estado andino; b) las compras argentinas han tenido un comportamiento
ascendente en menos de 24 meses, pasando de 794.790 Mm
3
en 2004 año del
convenio temporal- a 1.734.946 Mm
3
a finales de 2005 (IAPG, Información Estadística,
s/f); c) el porcentaje de gas natural boliviano que consumen las ciudades de Brasil
ubicadas al sureste oscila entre el 50% y el 100% (Carra, 2008).
y el otro, para la construcción de un gasoducto binacional (Contrato de
compra-venta de gas natural entre Petrobras y YPFB, 16/08/1996, Villegas Quiroga,
2004b: 41-42). Este último, cuya inauguración fue en 1999, conecta los campos
gasíferos bolivianos con el sureste de Brasil, desde São Paulo hasta Porto Alegre. De
este ducto deriva el gasoducto de Cuiabá que alimenta una termoeléctrica en el Estado
de Mato Grosso.
Pese a la sorpresa que causó el anuncio de la nacionalización, los gobiernos de Néstor
Kirchner y Lula Da Silva le brindaron su respaldo. La entendieron como una decisión de
carácter soberano y frente a esto manifestaron su predisposición a renegociar la
compra-venta de gas natural según el marco legal vigente -la Ley 3058 y el Decreto
28.701- pero procurando garantizar los intereses comerciales estatales y empresariales
involucrados en la importación del hidrocarburo. Tal como se expresa en la Declaración
de Iguazú, “la integración energética [es] esencial en la integración regional [aunque]
la discusión sobre el precio del gas debe darse en un marco racional y equitativo”
(Declaración conjunta de la Cumbre de Presidentes de Puerto Iguazú, 04/05/2006).
Al anunciarse el Decreto 28.701, el contexto energético argentino estaba en una
situación bastante desfavorable: el consumo doméstico de gas natural creció alrededor
de 12% entre 2003 y 2005 pero no así las reservas probadas ante la falta de
inversiones en el upstream. Éstas descendieron de 612.291 MMm
3
a 438.921 MMm
3
en
el mismo período (IAPG, Información Estadística, s/f). A esto debe agregarse que
Argentina no tenía ninguna incidencia en las fases de la industria energética boliviana
puesto que las importaciones del hidrocarburo estaban a cargo de las transnacionales -
especialmente Repsol- que operaban en Bolivia y que participaron en la privatización de
la estatal argentina, Yacimientos Petrolíferos Fiscales (YPF)
11
10
Se lo conoce habitualmente como Gas Supply Agreement (GSA).
.
11
YPF se fundó en 1922. En 1992 se inició su proceso de privatización y unos años después la totalidad de
su paquete accionario fue adquirida por el grupo Repsol (Gadano, 2013).
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Por su parte, Brasil ofrecía un panorama distinto. Para el primer lustro del siglo XXI, el
gas natural tenía una participación reducida dentro de la matriz energética nacional,
alrededor del 9% (EPE, Plano Nacional de Energía 2030, 2007). La crisis en el
suministro eléctrico que atravesó el ps en 2001 obró como elemento disparador para
que desde el Ministerio de Minas y Energía, se planteara, entre otras políticas, la
expansión de la oferta interna de gas natural (De Dicco, Deluchi & Lahoud, 2008, 1-4).
Para emprender esta medida, la administración Lula contaba con el contrato YPFB-
Petrobras y paralelamente decidió darle impulso a las actividades de exploración y
explotación. A diferencia de Argentina que entre 2003 y 2005, las reservas
descendieron, en Brasil sufrieron una leve mejoa, de 245.340 MMm
3
a 306.395 MMm
3
(ANP, 2013). Así, frente a la nacionalización boliviana Brasil presentaba un cuadro de
consumo doméstico reducido, reservas en ascenso y la presencia de Petrobras en la
industria energética de su vecino. Al año 2005 Petrobras operaba el 45.9% del total de
las reservas gasíferas probadas y probables y monopolizaba las actividades de
refinación tras la compra de las refinerías Gualberto Villarroel (Cochabamba) y
Guillermo Elder Bell (Santa Cruz) en 1999 (2004a: 146-147; YPFB Informe Técnico,
01/01/2005).
Las divergencias en los contextos de Argentina y Brasil generaron que los procesos de
negociación emprendidos por ambas administraciones tuvieran características propias.
Al carecer de influencia en la producción boliviana y en sus exportaciones, el gobierno
de Néstor Kirchner se abocó a negociar el precio y las cantidades de gas natural. Con
Evo Morales firmaron, como primera medida, el 29 de junio de 2006 un convenio macro
que definió las pautas contractuales de la relación hasta finales de dicho año y anticipó
los ejes de un futuro contrato de compra-venta según el Decreto 28.701. Se negoció
un valor de US$ 5 por millón de BTU para el período correspondiente entre el 15 de
julio y el 31 de diciembre de 2006, con un compromiso de envío de 7.7 MMm
3
diarios;
cantidad que había sido acordada en una adenda de 2005
12
En el primer mandato de Cristina Fernández (2007-2011), el contrato ENARSA-YPFB
debió ser ajustado mediante una adenda que fue suscripta el 26 de marzo de 2010
porque ambas compañías no podían hacer frente a sus obligaciones y esto impedía que
el vínculo comercial transcurriera con normalidad. Por las dificultades propias de su
proceso de adaptación posterior a la nacionalización, YPFB envió volúmenes inferiores a
los negociados en octubre de 2006 (La Razón, 26/09/2006) y el gobierno argentino
(Convenio Marco entre
Argentina y Bolivia, 29/06/2006). En ese mismo encuentro, los mandatarios
establecieron como meta la firma de un convenio con un plazo de 20 años y con la
proyección de ampliar de forma gradual los volúmenes de envío, a saber, de 7.7 MMm
3
diarios desde el 2007 hasta alcanzar 27.7 MMm
3
por día entre 2010 y la finalización del
acuerdo. Semejante compromiso hizo visible la necesidad de emprender la construcción
del GNEA ante la inexistencia de una obra de infraestructura entre ambos países que
pudiera transportar las cantidades programadas (Convenio Marco entre Argentina y
Bolivia, 29/06/2006). El contrato entre ambos Estados se suscribió el 19 de octubre de
2006, siendo las empresas YPFB y Energía Argentina Sociedad Anónima (ENARSA)
creada por disposición del Ejecutivo en diciembre de 2004- las encargadas de intervenir
en la compra-venta del hidrocarburo (Contrato entre ENARSA y YPFB, 19/10/2006).
12
La cuestión del precio fue objeto de varias reuniones debido a que Evo Morales demandaba un valor de
US$ 6 por millón de BTU pero el gobierno argentino no podía afrontarlo.
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retrasó el inicio de la construcción del gasoducto binacional ante la falta de
financiamiento. Por ello, las administraciones de Fernández y Morales se dedicaron a
revisar los aspectos más endebles del acuerdo: la capacidad de transporte y los
volúmenes de suministro y recepción. ¿En qué resultó esta adenda? De acuerdo con las
posibilidades existentes, se negoció la puesta en marcha de una obra de infraestructura
de menor tamaño, denominada Gasoducto de Integración Juana Azurduy, para agilizar
la importación del hidrocarburo. El gasoducto se inauguró en 2011 y fue ideado para
unirse al GNEA una vez que el Estado argentino finalice su construcción. Como segunda
medida, funcionarios de YPFB y ENARSA establecieron una modificación en la cantidad
diaria contratada (CDC) para adicionar de manera paulatina mayores volúmenes del
hidrocarburo. Según la adenda, la CDC de 27.7 MMm
3
diarios fue prevista a partir de
2021 (Anexo D Primera adenda al contrato ENARSA-YPFB, 26/03/2010). Estos cambios
han permitido una mayor estabilización en la exportación de gas natural. Los datos
ofrecidos por ENARSA muestran que a partir de la suscripción de la adenda, las
cantidades se han incrementado año a año, pasando de 1851 MMm
3
en 2010 a 5690
MMm
3
en 2013
13
Las negociaciones entre los gobiernos de Morales y Lula no fueron expeditivas como en
el caso argentino puesto que estaba en juego la continuidad del aprovisionamiento
energético a una región de gran dinamismo económico muy dependiente del
hidrocarburo- y la presencia de Petrobras en territorio boliviano en calidad de operador
transnacional. La sensibilidad de la cuestión ocasionó una postura reaccionaria en
sectores como en la propia empresa, las fuerzas políticas opositoras y gran parte de la
sociedad, quienes demandaban hacer valer el rol del Estado brasilero y de Petrobras al
momento de evaluar los requerimientos de la administración Morales Magalhães Neiva
Santos, 2009). En particular, el Partido de la Social Democracia Brasileira (PSDB)
reclamó un accionar vehemente y sin concesiones por parte del Partido de los
Trabajadores (PT), quien también fue criticado por el desempeño de la política exterior
en general y en especial, por su actitud ante la nacionalización de los hidrocarburos
bolivianos.
.
“[...] É de fundamental importância que as autoridades do
Governo Federal esclareçam as consequências da nacionalização
da PETROBRAS na Bolívia [...] A situação é muito séria, Sr.
Presidente. O Governo brasileiro subestimou a crise e tem-se
comportado de maneira incompetente [...] A PETROBRAS é um
patrimônio do Brasil. Temos de zelar por essa empresa” (Feijó
PSDB- Diário da Câmara dos Deputados, 04/05/2006).
[...] “O melhor retrato da política externa errática do presidente
Lula foi o episódio da Bolívia [...] Lula não condenou Evo Morales,
justificou o ato e aceitou quebra de contratos (Alckmin en Nota
PSDB, 06/05/2006).
13
ENARSA, Evolución de compras de gas natural a Bolivia. Disponible en:
http://www.enarsa.com.ar/index.php/es/gasnatural/125-gas-de-bolivia. Consultado: 19/04/2015.
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El Poder Ejecutivo no fue partidario de las declaraciones radicales y apostó a privilegiar
el uso de la diplomacia para negociar con el gobierno de Bolivia y los directivos de
YPFB. El proceso negociador fue complejo porque el objetivo iba más al de la firma de
un acuerdo de compra-venta como ocurrió con Argentina; estaba la difícil tarea de
defender los intereses y resguardar los logros de Petrobras en las actividades de
upstream y downstream del Estado andino. Finalmente, el acuerdo entre YPFB y
Petrobras se firmó el 28 de octubre de 2006, a escasos días de vencer el plazo fijado
por el Decreto 28.701. El MAS ha sostenido que tras la nacionalización, Petrobras y las
otras petroleras que continúan en el país son prestadoras de servicios a YPFB (Los
Tiempos, 19/05/2008). En cambio, desde la dirección de compañía brasilera se ha
sostenido que el acuerdo de 2006 se asemeja más a un contrato de producción
compartida porque “pelo contrato, a empresa recebe por sua parcela das vendas e pelo
lucro adicional, além dos custos. O risco do lucro adicional continua com o consórcio
(formado pela Petrobras, Repsol e Total), que, portanto, assume o risco de mercado.
Então, não é um contrato de prestação de serviços (Agência Câmara Notícias,
6/12/2006). Otros elementos que marcan una distancia con el acuerdo ENARSA-YPFB
son: a) el objetivo principal - regular las actividades de exploración y producción de
Petrobras en Bolivia, sobre todo en los campos San Alberto y San Antonio -; b) los
activos - son de Petrobras hasta que finalice el contrato-; c) las inversiones de
Petrobras - se encuentran garantizadas y parte de estas pueden considerarse en la
cláusula de ‘costos recuperables’ - (Agência Petrobras, 21/11/2006).
El tratamiento del precio y la venta de las refinerías que Petrobras había adquirido a
fines de los noventa se negociaron al inicio del segundo mandato de Lula. En la firma
del Acta de Brasilia el 14 de febrero de 2007, Petrobras aceptó pagar a precios
internacionales el llamado ‘gas rico’, es decir, las fracciones de hidrocarburos como
propano, butano y gasolina natural que están en las exportaciones del hidrocarburo
boliviano (Acta de Brasilia, 14/02/2007). El precio del gas que alimenta la
termoeléctrica de Cuiabá sufrió una suba de US$ 3 por millón de BTU. Esto despertó las
críticas por parte de la oposición aunque el arreglo resultó positivo para Brasil porque
hizo valer su condición de ‘socio estratégico’ y obtuvo un valor menor al reclamado por
Morales US$ 5-, el cual, a su vez, fue inferior al negociado por Néstor Kirchner en
2006. Las refinerías fueron transferidas a YPFB en junio de 2007 por un monto de US$
112 millones. Morales publicitó la recuperación de las refinerías como un logro de la
nacionalización. No obstante, su venta fue una decisión de la compañía brasilera de
concentrar sus esfuerzos - en materia de inversiones y recursos - en las fases de
exploración y explotación que son las que permiten garantizar el envío de gas natural
hacia Brasil (Agência Petrobras, 26/06/2007).
Conclusiones
La nacionalización de los hidrocarburos bolivianos en 2006 - en tanto pilar del proceso
de redefinición del vínculo Estado-inversión extranjera- se constituye en un claro
ejemplo de esa relación sinérgica que poseen política y energía. Mediante el
reposicionamiento del Estado en un sector estratégico para la economía de Bolivia, el
MAS ha cumplido un objetivo que estaba presente desde su campaña presidencial y lo
ha transformado en una herramienta de índole político. El oficialismo ha podido
establecer una mayor presión fiscal sobre las transnacionales que operan en el país y
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un control más centralizado de la renta generada por la comercialización de la energía.
Gran parte de dichos ingresos se destinan a la aplicación de diferentes políticas sociales
transferencias monetarias condicionadas y no condicionadas- que procuran combatir
la pobreza y la desigualdad. Las estadísticas consultadas dan cuenta que estos
programas al promover un acercamiento parcial de las poblaciones más vulnerables a
diferentes áreas de protección social estatales, han contribuido a mejorar los
indicadores socio-económicos en general. Sin embargo, como estas políticas se
sustentan casi exclusivamente con la exportación de un recurso no renovable, el
gobierno debería estar alerta sobre los riesgos que enfrentan - en materia de aplicación
y/o continuidad - cuando los precios de los energéticos en el escenario internacional
ingresan a una fase de declinación.
En el plano de las relaciones exportador/importador, los casos de Argentina y Brasil
presentan más diferencias que similitudes, identificándose en puntos como el contexto
que motivó el ascenso de la cuestión energética en sus agendas nacionales; el impacto
del Decreto 28.701 y las negociaciones - y resultados- entre sus empresas y YPFB. Los
elementos en común fueron la situación de ‘dependencia gafera’ que se ha forjado a
lo largo de los años y el desconcierto tras la nacionalización ante los intereses
particulares en juego. Argentina, en plena crisis energética, tenía pocos márgenes de
acción. La deficiencia en el manejo de la energía - manifestada en la declinación de
reservas y la inexistencia de una empresa estatal que intervenga en la producción
gasífera boliviana sólo pudieron garantizar la firma de un contrato de compra-venta,
donde ENARSA posee con pocas posibilidades de ejercer presión ante un eventual
cambio en las reglas de juego. Pese a las críticas señaladas, Brasil, hizo notar su lugar
como primer socio en la balanza comercial boliviana y logró adecuar las disposiciones
de la nacionalización a gran parte de sus objetivos puesto que tanto la sostenibilidad de
los enos del hidrocarburo como la injerencia de Petrobras en la industria energética
de su vecino, pudieron ser preservadas.
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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“ESTADO ISLÂMICO”: PERCURSO E ALCANCE UM ANO DEPOIS DA
AUTO-PROCLAMAÇÃO DO “CALIFADO”
Luís Tomé
ltome@autonoma.pt
Professor Associado da Universidade Autónoma de LisboaDepartamento de Relações
Internacionais (Portugal). Professor Visitante no Instituto da Defesa Nacional, no Instituto de
Estudos Superiores Militares, na Middle East Technical University em Ankara-Turquia e na
SapienzaUniversitá di Roma, Itália. Coordenador Científico do OBSERVARE Observatório de
Relações Exteriores, onde coordena também a Linha de investigação “Estudos de Segurança, da
Paz e da Guerra”. O seu mais recente trabalho é a edição do livro “Islamic State” the new
global jihadist phenomenon (Media XXI, no prelo), obra colectiva com oito ensaios e autores de
Portugal, Itália e Turquia.
Resumo
Em 29 de Junho de 2014, o ISIS/ISIL ou Daesh anunciou a alteração da sua designação para
somente “Estado Islâmico” (IS), proclamou-se “Califado” e nomeou o seu líder Abu Bakr al-
Baghdadi como “Califa Ibrahim”. Cerca de um ano depois, este artigo pretender avaliar o
percurso e o alcance desta entidade jihadista territorial. Começaremos por contextualizar aquela
auto-proclamação em termos de ideologia e objectivos para, depois, descrevermos como o IS se
tem procurado consolidar enquanto “Estado” de facto e os efeitos trágicos da sua política de
terror. A última parte é essencialmente dedicada à expansão internacional do IS, analisando o
alcance na atracção de “combatentes estrangeiros”, os novos wilayats criados fora da Síria e do
Iraque, os grupos locais entretanto afiliados ou as actividades do IS no ciberespaço.
.
Palavras chave:
Estado Islâmico, ISIS, Terrorismo, Jihadismo, Segurança Internacional
Como citar este artigo
Tomé, Luís (2015). "«Estado Islâmico» percurso e alcance um ano depois da auto-
proclamação do «Califado»". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 6, N.º 1,
Maio-Outubro 2015. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol6_n1_art8
Artigo recebido em 5 de Maio de 2015 e aceite para publicação em 28 de Maio de 2015
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"Estado Islâmico": percurso e alcance um ano depois da auto-proclamação do "Califado"
Luís Tomé
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“ESTADO ISLÂMICO”: PERCURSO E ALCANCE UM ANO DEPOIS DA
AUTO-PROCLAMAÇÃO DO “CALIFADO”
Luís Tomé
Introdução
A origem do auto-proclamado “Estado Islâmico” remonta a grupos jihadistas existentes
desde os anos 1990, designadamente o Bayat al Imam e o Jama’at al-Tawid wa-al-
Jihad, ambos liderados pelo jordano Abu Musab al-Zarqawi
1
que, na sequência da
invasão do Iraque, em 2003, passou a visar tanto a “expulsão dos invasores
estrangeiros” como a instigar uma guerra civil sectária, atacando as comunidades Xiita
e Curda que passavam a ter predomínio no Iraque pós-Saddam Hussein. Pela mesma
altura e com motivações idênticas, Abu Bakr al-Baghdadi
2
Em Junho de 2006, al-Zarqawi foi morto pelos americanos e a AQI passou a ser
liderada por Ayyub al-Masri, antigo membro da Zawahiri’s Islamic Jihad Group no
Egipto. Paralelamente, em Outubro desse ano, algumas facções jihadistas agregadas
no Mujahideen Shura Council criaram o “Estado Islâmico no Iraque” (ISI), onde Abu
Bakr al-Baghdadi ficou encarregue da supervisão geral do comité da sharia enquanto a
liderança do grupo foi entregue a outro al-Baghdadi, Abu Umar. O ISI foi concebido
como um grupo independente e não como uma filial da AQ, que nem sequer foi
consultada neste processo (Bunzel, 2015: 20), mantendo o ISI a conduta de ataques
sectários a fim de concretizar o objectivo de um Estado Islâmico “puro”. Em 2010, após
a morte de al-Masri e de Umar al-Baghdadi por bombardeamentos americanos, Abu
Bakr al-Baghdadi assume a liderança de um bastante fragilizado ISI (Fishman, 2011) e,
tal como o seu predecessor, o título de “ Commander of the Faithful”, reclamando ser
descendente da tribo Quaraysh do Profeta Maomé, qualificativo indispensável para um
putativo “califa”.
, nascido em 1971, em
Samarra, no chamado “triângulo sunita” a norte de Bagdade, ajudou a estabelecer um
outro grupo, o Jamaat Jaysh Ahl al-Sunnah wal Jamaa. Já em 2004, ao mesmo tempo
que Abu Bakr al-Baghdadi era capturado em Falluja pelos militares americanos e detido
em Camp Bucca (entre Fevereiro e Dezembro de 2004) onde privou com muitos outros
jihadistas, al-Zarqawi manifestou fidelidade ao “Emir” Osama Bin Laden e o seu grupo
filiou-se na al-Qaeda (AQ), adoptando a designação de Tanzim Al-Qaeda wal Jihad fi
Balad al-Rafidain ou, sumariamente, “al-Qaeda no Iraque” (AQI).
1
Ou Ahmad Fadeel al Nazal Al Khalayeh.
2
Ou Ibrahim Awwad Ibrahim Ali al-Badri ou Ibrahim al-Badri al-Qurashi al-Sammarai.
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A partir de 2011, uma nova conjugação de factores iria favorecer a proeminência do ISI
e de Abu Bakr al-Baghdadi:
i) a retirada americana do Iraque, deixando um ps frágil e entregue ao governo do
Primeiro-Ministro Nouri al-Maliki (Maio 2006-Setembro 2014) que prosseguiu uma
agenda pró-xiita alienando a minoria sunita, contexto que permitiu ao ISI reforçar-
se entre as tribos sunitas, ex-insurgentes e também antigos elementos do Partido
Baas e das estruturas militares e de seguraa iraquianas que procuram recuperar
o poder que tiveram durante a era de Saddam;
ii) a morte de Bin Laden, em Maio de 2011, significando não só a eliminação da
principal referência do movimento jihadista mas também a fragilização da AQ,
levando a uma maior autonomia dos seus núcleos afiliados e ao recrudescimento
de grupos locais e regionais independentes (Tomé, 2012);
iii) a “Primavera Árabe” no Norte de África e Médio Oriente, desencadeando uma
enorme turbulência e conflitualidade na maioria desses países (Argélia, Tunísia,
Líbia, Egipto, Líbano, Síria, Iémen) acompanhadas da ressurgência de rivalidades
sectárias e da expansão das correntes extremistas;
iv) e, em particular, a guerra civil na Síria, a partir de Março de 2011, resultado da
contestação ao regime do Presidente Bashar al-Assad e envolvendo múltiplas
facções (das micias xiitas aos democratas, moderados e jihadistas) e centenas de
grupos (chegaram a ser referenciados mais de 1000), num palco caótico que
rapidamente se tornou o maior “íman” de jihadistas de todo o mundo e de
complexos “jogos de poder” (do Irão e da Rússia aos Países Árabes, Turquia, UE ou
EUA…).
Neste quadro, no Iraque, o ISI
«has reconstituted [itself] as a professional military force capable
of planning, training, resourcing, and executing synchronized and
complex attacks in Iraq» (Lewis, 2013: 7),
anunciando no início de 2012 o seu “regresso imparável” e lançando ataques
crescentemente poderosos e medticos: por exemplo, entre os Verões de 2012 e
2013, a violenta campanha “Breaking the Walls” com camiões-bomba e visando
também várias prisões donde conseguiram escapar centenas de jihadistas
3
3
Das oito prisões atacadas pelo ISI entre Julho de 2012 e Julho de 2013, o caso mais mediático foi o da
prisão Abu Ghraib, em Julho de 2013, donde mais de 500 prisioneiros conseguiram escapar, incluindo
muitos jihadistas.
. Entretanto,
na vizinha Síria, o ISI e a AQ instigaram a criação da “Frente al-Nusra” (Jabhat Al-
Nusra / JN), liderada pelo sírio Abu Mohammad al-Golani (ou al-Julani), antigo
operacional no Iraque e enviado pelo próprio Bakr al-Baghdadi para criar uma “frente”
naquele território. Sendo o ISI de novo uma força credível e considerando as condições
propícias, Abu Bakr al-Baghdadi resolveu então expandir o ISI para a Síria e, em Abril
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de 2013, proclamou a instauração do “Estado Islâmico no Iraque e no Levante” ou no
ash-Sham” (Dawlah al-Islamiyah fil Iraq wa ash-Sham) e a correspondente fusão da
JN no novo ISIL/ISIS/Daesh. Al-Golani recusou esta manobra e também Ayman al-
Zawahiri, sucessor de Bin Laden na liderança da al-Qaeda, instruiu Bakr al-Baghdadi a
dissolver o ISIS e limitar as suas actividades ao Iraque. Contudo, o líder do ISIS
reafirmou que o seu grupo permaneceria também no al-sham (al-Baghdadi, 2013).
Depois de meses de disputas teológicas e operacionais, em 2 de Fevereiro de 2014, a
AQ anunciou oficialmente dissociar-se do ISIS a que se referiu como “grupo” (Bunzel,
2015: 29), acabando o ISIS por entrar em conflito fratricida também com a filial da AQ
na Síria (ver Cafarella, 2014).
Mais do que combater o regime de Assad, o ISIS concentrou então os seus esforços em
ocupar e administrar territórios e localidades nas áreas sunitas sírias (Raqqa, Idlib, Deir
ez-Zor ou Aleppo), desencadeando paralelamente uma campanha similar no Iraque:
depois de capturar Fallujah e Ramadi, em Janeiro de 2014, o ISIS expandiu-se
rapidamente e foi conquistando outros bastiões como al-Qaim, Tikit e, no início de
Junho, a estratégica cidade de Mossul. Em 29 de Junho de 2014, o ISIL/ISIS/Daesh
anunciou a alteração da sua designação para somente “Estado Islâmico” (IS),
proclamou-se “Califado” e nomeou o seu líder Abu Bakr al-Baghdadi como “Califa
Ibrahim”. Evoluía, assim, de organização terrorista jihadista e insurgente para entidade
territorial politicamente organizada na Síria e no Iraque.
Cerca de um ano depois, este artigo pretende avaliar o percurso e o alcance do auto-
proclamado “Califado Estado Islâmico”. Muito mais do que um mero balanço
quantitativo, cruzamos informação, descrição e análise, apoiando-nos em dados tanto
quanto possível actualizados e recorrendo essencialmente a fontes abertas. Para maior
objectividade mas também um melhor esclarecimento dos propósitos do IS, citamos
várias mensagens do próprio IS: apesar de tudo,
«If one wants to get to know the program of the [Islamic] State,
its politics, and its legal opinions, one ought to consult its leaders,
its statements, its public addresses, its own source(Abu
Muhammad al-Adnani, porta-voz do IS, 21 de Maio de 2012, cit. in
Bunzel, 2015: 4).
Começaremos por contextualizar a auto-proclamação do “Califado” em termos de
ideologia e objectivos do IS. A seguir, descrevemos como o IS se tem procurado
consolidar enquanto “Estado” de facto, incluindo as suas formas de “governação”,
administração territorial e financiamento, bem como as fontes do seu arsenal militar, o
crescente número de militantes e de “combatentes estrangeiros” e os efeitos trágicos
da sua persistente política de terror. Depois de fazermos referência breve aos esforços
internacionais de contenção e combate ao IS, a última parte é essencialmente dedicada
à expansão internacional do IS, desde os novos wilayats do IS fora da Síria e do Iraque
aos grupos locais entretanto afiliados ao IS, referindo ainda os seus atentados e as
actividades no ciberespo, acabando assim por retratar a envergadura actual desta
ameaça terrorista e jihadista cerca de um ano após a sua auto-proclamação enquanto
“Califado”.
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Proclamação do “Califado” ideologia e objectivos
Tal como a al-Qaeda (AQ), o ISIS/DAESH/IS baseia-se na ideologia Salafista-jihadista
(al-salafiyya al-jihadiyya), ramo puritano do Islão Sunita Wahabita que pretende o
regresso da Comunidade Islâmica (Umma) às práticas ancestrais “puras”, fazendo uma
separação nítida entre os “verdadeiros crentes” e os “descrentes” considerados
“apóstatas” ou “infiéis”. Recusando a diversidade teológica, os Salafistas-jihadistas
também se baseiam na doutrina Takfir que sanciona a violência contra outros
muçulmanos acusados de apostasia e descrença ou infidelidade (kafir)
4
(Hafez, 2010;
Bunzel, 2014). Assumindo-se como os defensores do Islão original que o Profeta
Maomé e seus companheiros pregaram, e considerando que esse Islão está sob ataque
dos “infiéis”, os Salafi-jihadistas proclamam que o recurso à violência ou “guerra santa”
(jihad) é a única forma de combater os inimigos e defender o verdadeiro Islão. O
objectivo último do também chamado “jihadismo” é, então, a criação de uma
Comunidade Islâmica “pura”, na forma de “Emirato” ou mesmo “Califado”, segundo a
sua exclusiva interpretação da tradição do Profeta Maomé (sunna) e da lei islâmica
(sharia), devendo os “crentes” participar na jihad enquanto os “apóstatas” e “infiéis
têm de ser simplesmente exterminados (Brachman, 2009; Duarte, 2012; Rabbani,
2014; Bunzel, 2015). Como afirma de forma esclarecedora um prelado jihadista na
altura residente no Reino Unido:
«Nós não fazemos distinção entre civis e não civis, inocentes e não
inocentes. Apenas entre muçulmanos e infiéis. E a vida de um
descrente não tem qualquer valor. Não tem santidade...
Assumimos que o objectivo é matar o maior número de pessoas,
para provocar o terror... O texto divino é claro quanto à
necessidade de provocar “o máximo dano possível”. O operacional
tem portanto de certificar-se de que mata o maior número de
pessoas que pode matar. Se não o fizer, espera-o o fogo do
inferno (…) Os Seculares dizem que o “Islão é a religião do Amor”.
É verdade. Mas o Islão também é a religião da Guerra. Da paz,
mas também do terrorismo. Maomé disse: “Eu sou o profeta da
misericórdia”. Mas também disse: “Eu sou o profeta do massacre”.
A palavra terrorismo não é nova entre os mulmanos. Maomé
disse mais: “Eu sou o profeta que ri quando mata o seu inimigo”.
Não é portanto apenas uma questão de matar. É rir quando se
está a matar» (Omar Bakri Mohammed, 2004: 28-31).
Todavia, no plano ideológico, o IS adopta uma concepção ainda mais exclusiva do que
a AQ e outros grupos jihadistas sendo, portanto, menos tolerante para com os
considerados “ramos islâmicos desviantes”, em particular o Xiismo:
4
A grande maioria dos dirigentes, organizações e autoridades religiosas do Islão rejeitam esta concepção
de takfir, considerando-a um desvio doutrinário (bid’at) ou uma heresia. Alguns Éditos (Fatwa) recentes
também condenam e repudiam a “doutrina Takfir”.
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«Following takfiri doctrine, the Islamic State is committed to
purifying the world by killing vast numbers of people… Muslim
“apostates” are the most common victims» (Wood, 2015).
Em Fevereiro de 2004, numa carta à liderança da AQ, Abu Musab al-Zarqawi atacava
duramente o Xiismo quer política quer ideologicamente, a partir do Iraque,
considerando os Xiitas
«the proximate, dangerous enemy of the Sunnis…The danger from
the Shi‘a…is greater and their damage worse and more destructive
to the [Islamic] nation than the Americans… targeting and hitting
[the Shi‘a] in [their] religious, political, and military depth will
provoke them to show the Sunnis their rabies and bare the teeth
of the hidden rancor working in their breasts. If we succeed in
dragging them into the arena of sectarian war, it will become
possible to awaken the inattentive Sunnis as they feel imminent
danger and annihilating death at the hands of these Sabeans [i.e.,
Shi‘a] (al-Zarqawi, 2004).
Esta visão tornar-se-ia num dos pilares da ideologia do IS e daí que, desde os seus
antecedentes no Iraque, o IS prossiga uma estratégia que visa instigar e
instrumentalizar uma “guerra santa” sectária dentro do Islão, fundamentalmente, dos
Sunitas contra os Xiitas. Na realidade, ainda antes da criação do Estado Islâmico do
Iraque (ISI), já as ambições e a estratégia da al-Qaeda no Iraque ultrapassavam as da
estrutura central, atacando directamente muçulmanos xiitas e curdos com tal nível de
violência que a AQ central advertiu a sua filial iraquiana contra os riscos de perder
apoio popular naquele país e também da comunidade islâmica global
5
Por outro lado, organicamente, o IS reclama, sempre reclamou, não ser apenas uma
organização jihadista (tanzim) mas sim, literalmente, aquilo que a sua designação
implica: um verdadeiro “Estado” (dawla). Em 2006, um documento do recém-criado
“Estado Islâmico no Iraque” (ISI) alegava que
.
«This state of Islam has arisen anew to strike down its roots in the
region, as was the religion’s past one of strength and glory» (cit. in
Bunzel, 2014: 2). Como refere Graeme Wood (2015), «Bin Laden
viewed his terrorism as a prologue to a caliphate he did not expect
to see in his lifetime. His organization was flexible, operating as a
geographically diffuse network of autonomous cells. The Islamic
State, by contrast, requires territory to remain legitimate, and a
top-down structure to rule it».
5
Carta de Ayman al-Zawahiri, então número dois da al-Qaeda, a Abu Musab al-Zarqawi, líder da AQI,
datada de 9 de Julho de 2005 e obtida durante as operações contraterroristas no Iraque. Esta carta foi
disponibilizada pelo United States Office of the Director of National Intelligence em Outubro de 2005,
confirmando a sua autenticidade (ver US-ODNI, 2005).
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E um “Estado” com ambições expansionistas: em 8 Abril de 2013, o renomeado ISIL ou
ISIS reclamava o estabelecimento de umEstado Islâmico no Iraque e no Levante ou
“ash-Sham, região que inclui a Síria mas também a Jordânia, Israel, Palestina e Líbano
e, num sentido mais amplo, até territórios do Egipto, da Turquia e do Chipre. Esta
proclamação surgiu dois dias depois do líder da AQ, Ayman al-Zawahiri, ter apelado à
unificação da jihad na Síria, mas entre a Jabhat Al-Nusra (JN) e outros grupos
jihadistas e não por via da expansão do ISI para a Síria e menos ainda pela fusão da JN
no novo ISIS. Apesar do líder da JN, al-Golani, ter recusado esta manobra e declarado
abertamente obediência ao “Emir” al-Zawahiri, e do próprio líder da AQ ter instruido
Bakr al-Baghdadi para dissolver o ISIS e limitar as actividades do seu grupo ao Iraque,
deixando a Síria para a JN, o ISIS reafirmou a nova designação e forçou a sua
expansão para a Síria.
Mais: desde a sua origem, o ISI visava a eventual restauração do “Califado”, mítica
forma monárquico-teocrática de governo que representa a unidade e a liderança do
“mundo islâmico”, num ambicionado império global governado segundo a Lei Islâmica
ou Sharia e dirigido por um único líder, o Califa, sucessor do Profeta Maomé. Por isso,
várias referências e mapas do ISI, do ISIS e, claro, do IS sugerem uma ambição que
passa por dominar todos os territórios dos antigos califados históricos, da Península
Ibérica (Al-Andaluz) ao Sudeste Asiático. Ou seja, a auto-proclamação enquanto
“Califado” corporiza a «fundamentally political rather than religious project even
though the IS insists the two are inseparable» (Rabbani, 2014: 2).
Essa auto-proclamação surgiu em 29 de Junho de 2014, num documento intitulado
This is the Promise of Allah” produzido em vários idiomas e divulgado na internet,
onde o ISIL/ISIS/Daesh anuncia a restauração do “Califado”, que passa a designar-se
apenas “Estado Islâmico” (IS) e nomeia o seuder Abu Bakr al-Baghdadi como
“Califa”, doravante referenciando “Califa Ibrahim”:
«Here the flag of the Islamic State, the flag of tawhīd
(monotheism), rises and flutters. Its shade covers land from
Aleppo to Diyala…. The kuffār (infidels) are disgraced. Ahlus-
Sunnah (the Sunnis) are masters and are esteemed. The people of
bid’ah (heresy) are humiliated. The hudūd (Sharia penalties) are
implemented the hudūd of Allah all of them. The frontlines are
defended…. It is a dream that lives in the depths of every Muslim
believer. It is a hope that flutters in the heart of every mujāhid
muwahhid (monotheist). It is the khilāfah (caliphate). It is the
khilāfah the abandoned obligation of the era (…)
Therefore, the shūrā (consultation) council of the Islamic State
studied this matter after the Islamic State by Allah’s grace
gained the essentials necessary for khilāfah, which the Muslims are
sinful for if they do not try to establish. In light of the fact that the
Islamic State has no shar’ī (legal) constraint or excuse that can
justify delaying or neglecting the establishment of the khilāfah
such that it would not be sinful, the Islamic State represented by
ahlul-halli-wal-‘aqd (its people of authority), consisting of its senior
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figures, leaders, and the shūrā council resolved to announce the
establishment of the Islamic khilāfah, the appointment of a
khalīfah for the Muslims, and the pledge of allegiance to the
shaykh (sheikh), the mujāhid, the scholar who practices what he
preaches, the worshipper, the leader, the warrior, the reviver,
descendent from the family of the Prophet, the slave of Allah,
Ibrāhīm Ibn ‘Awwād Ibn Ibrāhīm Ibn ‘Alī Ibn Muhammad al-Bad
al-Hāshimī al-Husaynī al-Qurashī by lineage, as-Sāmurrā’ī by birth
and upbringing, al-Baghdādī by residence and scholarship. And he
has accepted the bay’ah (pledge of allegiance). Thus, he is the
imam and khalīfah for the Muslims everywhere. Accordingly, the
“Iraq and Shām” in the name of the Islamic State is henceforth
removed from all official deliberations and communications, and
the official name is the Islamic State from the date of this
declaration» (IS, 2014).
Ao proclamar-se “Califado”, o IS reinvindica que todos os muçulmanos - indivíduos,
Estados e organizações devem prestar obediência e fidelidade (bay’ah) ao “Califa
Ibrahim”:
«We clarify to the Muslims that with this declaration of khilāfah, it
is incumbent upon all Muslims to pledge allegiance to the khalīfah
Ibrāhīm and support him (may Allah preserve him). The legality of
all emirates, groups, states, and organizations, becomes null by
the expansion of the khilāfah’s authority» (ibid.). Bay’at é uma
espécie de comprometimento de obediência dado a um líder de um
grupo islâmico; para um jihadista, é como se esse compromisso
fosse com o próprio Profeta Maomé, não podendo ser desfeito sob
pena de apostasia (takfir). Logo a seguir àquele anúncio, em 1 de
Julho de 2014, no seu sermão na Grande Mesquita de Mossul, o
próprio “Califa Ibrahim” declarava que «I have been appointed to
rule over youAnd obey me so long as I obey God touching you.
If I disobey Him, no obedience is owed me from you» (al-
Baghdadi, 2014).
Inevitavelmente, a alegada obrigatoriedade de todos os muçulmanos prestarem
lealdade ao “Califa Ibrahim” e a correspondente nulidade de todos os outros Estados e
organizações perante a autoridade global do IS é repudiada pela totalidade dos Estados
islâmicos e inúmeras autoridades religiosas islâmicas, entre as quais os Grão-Muftis da
Arábia Saudita e do Egipto, respectivamente, Abdulaziz Al al-Sheikh e Shawqi Allam ou
a União Internacional dos Sábios Muçulmanos. Embora por razões distintas, essa
rejeição é expressa também por diversas organizações jihadistas: ainda antes do
anúncio do “Califado”, já a al-Qaeda central (AQ-C ou AQSL), presumivelmente a partir
do Paquistão, e também a Islamic Front e a Jabhat al-Nusrah, ambos na Síria, tinham
rejeitado publicamente o ISIS; depois da auto-proclamação do “Califado” IS, a AQ-C
voltou oficialmente a repudiar bay’at ao “Califa Ibrahim” e a promover o seu próprio
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proto-Califa, Mullah Muhammad ‘Umar, líder Talibã do “Emirato Islâmico do
Afeganistão” desde 1996; entretanto, outros sete grupos jihadistas repudiaram a
autoridade do IS - Caucasus Emirate da Rússia, General Military Council for Iraqi
Revolutionaries do Iraque, Katibat al-Imam Bukhari da Síria, Al-Qaeda Islamic Maghreb
(AQIM) da Argélia, Moro Islamic Liberation Front (MILF) das Filipinas, Harakat Ansar
Iran (HAI) do Irão e Al-Qaeda in the Arabian Peninsula do Iémen -, permanecendo até
agora neutral ao IS os Tali no Afeganistão (IntelCenter, 2015; Azamy e Weir, 2015).
Para os apoiantes do IS, contudo, a ideia de um outro “califa” a desafiar a autoridade
de Bakr al-Baghdadi é, naturalmente, refutada, e pelo menos seis grupos jihadistas
pró-IS contestaram publicamente tal manobra da AQ (Bunzel, 2015: 34). Sobretudo,
para o IS, a reivindicação da sua supremacia é não só inerente à autoridade do seu
“califado universal” como uma importante manobra ideológica e estratégica:
instrumentalizando um aspecto mítico e atraindo jihadistas, explorando desilusões e
ressentimentos e dividindo comunidades muçulmanas na região e no mundo,
inflamando ainda mais tensões e provocando violência sectária contra muçulmanos
“apóstatas”.
Estado de facto e terror
O ISIS/IS demonstrou ter capacidade para se impor a forças governamentais e a
grupos opositores (Lister, 2014: 2). À medida que se foi expandindo, procurou passar a
imagem de uma eficaz organização administrante nas áreas onde faltava, ou era frágil,
a “autoridade de Estado”. No final de Junho de 2014, o renomeado Estado Islâmico
controlava uma vasta área, de Aleppo, na Síria à província de Diyala, no Iraque, e uma
população de quase 6 milhões de pessoas. Prosseguindo na linha que vinha de trás, a
sua estratégia passou então por consolidar atributos inerentes à condição de “Estado” -
designadamente, domínio territorial (sobretudo, de localidades, rotas e infra-
estruturas) e administração política, económica e da justiça.
Administrativamente, o IS opera em diferentes wilayats ou províncias, cada um com a
sua estrutura operacional. Embora alguns wilayats do IS tenham sido, entretanto,
proclamados em territórios de outros pses, como veremos adiante, a maioria continua
a situar-se naturalmente no Iraque e naria: em meados de 2015, são vinte os
wilayats do IS, doze dos quais no Iraque (Anbar, Baghdad, Diyala, Euphrates /Furat
cobrindo este territórios tanto no Iraque como na Síria -, Fallujah, Kirkuk, Jnoub,
Ninewa, Salah al-Din, Shamal Baghdad, al-Jazeera e Tigris/ Diglah) e oito na Síria (al-
Barakha/Hasakah, Damascus, Euphrates/Furat, Halab/Aleppo, Homs, al-Khair/ Dayr az
Zawr, Raqqa e Hamah).
Logo a seguir ao “Califa” Abu Bakr al Baghdadi, suprema autoridade política, religiosa e
militar, os territórios do IS na Síria e no Iraque estão sob a autoridade de dois
respectivos “governadores”, envolvidos na estratégia militar e na governação daquelas
áreas em articulação com os conselhos locais (IEP-GTI Report 2014: 52). A estrutura
política do IS inclui quatro “conselhos” principais - sharia, shura, militar e segurança -,
replicados na cadeia de comando até ao nível local pelos diversos wilayats na Síria e no
Iraque. Na sua simples mas eficaz organização burocrática, o IS estipulou comités
religiosos, uma polícia religiosa, comités educativos, tribunais da sharia e gabinetes de
recrutamento, de relações públicas ou para os assuntos tribais, bem como
“conselheiros” e “coordenadores” para as finanças, a propaganda, a recepção dos
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“combatentes estrangeiros”, as casas de refúgio, assuntos de mulheres e órfãos ou
prisioneiros, impondo a sua forma de “governação” (Caris e Reynolds, 2014).
Paralelamente, o IS expandiu pelos seus domínios outros requisitos que o assemelham
a um Estado de facto: aparelho de segurança e militar, gestão de serviços médicos e da
“educação islâmica”, cobrança de taxas e impostos, emissão de documentos de
identificação, impressão de moeda própria, controlo de serviços e recursos (correio,
transportes, telefones, internet, recolha do lixo, abastecimento de água, electricidade,
combustível e energia) e, a partir daqui, regulação da economia e da sociedade.
O número total de membros, militantes e combatentes do IS é impreciso e difícil de
calcular, variando bastante em função da fonte e também consoante referirem apenas
militantes no Iraque e na Síria ou incluírem igualmente indivíduos e grupos a operar
noutros países e regiões. Por outro lado, além de voluntários e jihadistas sírios,
iraquianos e estrangeiros, o IS é conhecido por forçar indivíduos de outros grupos
rebeldes vencidos ou circunscritos nas áreas que domina a combaterem em seu nome
pelo que, mesmo restringindo ao território controlado pelo IS na Síria e no Iraque, é
complexo distinguir entre os seus efectivos militantes e aqueles que exercem certas
funções porque são obrigados a tal ou por temerem represálias.
Ainda assim, parece inequívoco que o número de membros e de combatentes do IS
vem aumentando continuamente ao longo dos últimos anos; cresceu subitamente
desde a proclamação do “Califado”; e é hoje bastante superior a outros grupos
jihadistas, incluindo a al-Qaeda. Quando os EUA retiraram do Iraque, em 2011, o ISI
contava com escassas centenas de membros; no início de 2015, o IS teria entre 17.000
e 31.500 combatentes - bastante acima, portanto, dos 1000 a 3000 que teria a AQ
central no seu auge no final dos anos 1990 (Gerges, 2015). Em Junho de 2014,
calculava-se entre 5.000 e 10.000 o número de militantes do ISIS na Síria e no Iraque;
no mês seguinte, esses números aumentaram pela adesão ao IS de 1.000 a 2.000
militantes de outros grupos jihadistas na Síria e no Iraque (como o Jaish al-Sahabah in
the Levant e o Faction of Katibat al-Imam Bukhari na Síria ou Ansar al-Islam no
Iraque); em Setembro, a CIA estimava entre 20.000 e 31.500 os combatentes do IS na
ria e no Iraque; no final de 2014, o Observatório Sírio dos Direitos Humanos
estimava em mais de 80.000 (50.000 na Síria e 30.000 no Iraque) os militantes do IS,
enquanto o gabinete do Presidente Curdo, Massoud Barzani, elevava para 200.000 o
número total de membros do IS, entre combatentes e pessoal de apoio, forças policiais,
milícias locais, guardas fronteiriços, pessoal paramilitar associado aos diversos grupos
de seguranças e recrutas. Cruzando fontes diversas, o número actual estimado de
combatentes do IS varia entre 35.000 e 100.000, enquanto a AQ e os seus afiliados
terá entre 5.000 a 20.000 membros.
Para financiamento das suas actividades, o IS conta com os milhões de euros e dólares
encontrados e roubados nos bancos e administrações das localidades que conquistou e
com os proveitos da venda de petróleo a partir da dúzia de poços e refinarias que
controla (durante algum tempo, negociado inclusivamente com a Turquia, os Curdos e
alguns grupos que combatia). Segundo o Global Terrorism Index Report 2014 (IEP,
2014: 52), o IS
«controls a dozen oil fields and refineries in Iraq and Syria
generating revenues of between one to three million U.S. dollars
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per day As well as oil, it is believed that ISIL has access to 40
per cent of Iraq’s wheat growing land», situação que leva K.
Johnson (2014) a afirmar que «the Islamic State is the Newest
Petrostat.
Outras importantes fontes de financiamento do IS são os “donativos” individuais, tribais
e de organizações jihadistas, a cobrança de “impostos” e “taxas religiosas” às
populações que controla, roubo e extorsão, raptos e pagamento de resgates e tráficos
de armas, de droga, de artefactos históricos e de órgãos humanos. Nesta vasta
panóplia de fontes de financiamento, calcula-se o rendimento do IS em cerca de 3 a 5
milhões de USD por dia, em 2014, sendo o total dos recursos financeiros do IS
estimado entre 1.3 e 2 mil milhões USD (Barret, 2014: 45). Ou seja, o IS passou a ser
«the richest terrorist group in the world» (Lister, 2014: 2), descrito pelo antigo
Secretário da Defesa dos EUA Chuck Hagel como
«sophisticated and well-funded as any group that we have seen.
They're beyond just a terrorist group… they are tremendously well
funded» (cit. in Keatinge, 2014).
Quanto ao poderoso armamento de que dispõe,
«the Islamic State, like many irregular forces before it, has opened
spigots from varied and far-ranging sources of supply, in this case
on a grand scale»,
incluindo armas e munições capturadas às forças iraquianas e sírias, armamentos e
equipamentos comprados, trocados ou capturados a outros grupos opositores a Bashar
al-Assad na Síria e também armas anteriormente utilizadas nas guerras da Líbia, Sudão
e Balcãs e outras produzidas pelos EUA, Rússia, China, Irão e Europa (Ocidental e do
Leste). Por outro lado, além de armas ligeiras, metralhadoras, explosivos ou granadas,
o arsenal do IS inclui armamento de guerra invulgar na posse de grupos terroristas,
desde carros de combate e veículos blindados a howitzers, drones ousseis guiados
anti-tanque (Conflict Armament Research, cit. in Chivers, 2015).
A tentativa do IS se afirmar e consolidar enquanto “Estado” tem sido implementada
pela violência e com enorme brutalidade por militantes armados que operam,
simultaneamente, como grupo terrorista, exército, polícia, guerrilha, milícia e gang
criminoso. Segundo o Global Terrorism Index Report 2014 do IEP, no ano da expansão
do ISI para a Síria, em 2013, o número de ataques terroristas no mundo subiu 61%
comparativamente ao ano anterior, provocando quase 18.000 mortos, com a Síria e o
Iraque entre os países com mais vítimas do terrorismo e sendo 66% do total mundial
das mortes da responsabilidade de apenas quatro grupos, entre os quais o ISIS (os
outros são a al-Qaeda, os Talibã e o Boko Haram). Só no Iraque, em 2013,
contabilizam-se 6362 mortos provocados por ataques terroristas (representando um
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aumento de 162% comparativamente a 2012), dos quais 77% são da responsabilidade
do ISIS (IEP-GTI Report 2014: 52).
Em linha com os seus precedentes, o IS prossegue práticas de extermínio não só
contra cristãos e judeus mas, sobretudo, contra comunidades muçulmanas,
designadamente Xiitas, Curdos, Alauitas e Yazidis, naquilo que a Amnistia Internacional
descreve como “limpeza étnica” e a ONU como “crimes contra a Humanidade”. Daí que
a expansão do IS tenha contribuído significativamente para a barbárie e a tragédia
humanitária no Iraque e naria, respectivamente, primeiro e segundo no ranking dos
países mais perigosos em termos de actividade terrorista, segundo o Country Threat
Index da IntelCenter. Só no ano de 2014, o IS terá morto 2317 pessoas; e também de
acordo com a Most Deadly Terrorist/Rebel Groups da IntelCelter, somando a esse
número os mortos provocados por outros grupos que entretanto se associaram ao IS
até meados de 2015, o número total da “rede IS”, em 2014, ultrapassa os 5000
mortos. Por isso, esta mesma fonte demonstra no seu Group Threat Index onde
examina o volume de alertas terroristas, tráfego de mensagens, vídeos, fotos, ataques
e vítimas de várias dezenas de organizações terroristas -, que o IS passou a ser o
grupo terrorista mais perigoso e letal do mundo (IntelCenter, 2015).
Na realidade, o IS não reconhece qualquer outra interpretação islâmica e jurisdão que
não as suas, impondo a sua versão brutal da sharia contra todos os que considera
“apóstatas” e “infiéis” e implementando uma política de terror que inclui execuções
sumárias e em massa, amputações, violações, imolações, decapitações ou
crucificações. A barbárie do IS é repudiada abertamente pela generalidade das
autoridades religiosas islâmicas, pela totalidade dos países islâmicos e também pela
Organização da Cooperação Islâmica (que junta 57 países Islâmicos), por exemplo,
afirmando o Secretário-Geral da OIC, Iyad Ammen Madani,
«We need to condemn, particularly and in the strongest terms, the
heinous and barbaric crime committed by the so-called IS terrorist
group» (Madani, 2015).
O terror perpetrado pelo IS levou inclusivamente o Vaticano, que tradicionalmente se
opõe ao uso da força, a emitir uma posição inédita, em meados de Março de 2015,
considerando que se não for possível alcançar uma decisão política e sem violência, «o
uso da força será necessário» contra o IS a fim de «parar este genocídio» e proteger os
cristãos e outros grupos religiosos
6
Para o IS, todavia, o “terror” é não só inerente à sua jihad contra todos os “apóstatas”
e “infiéis” mas também um vector essencial da sua estratégia de expansão, pelo efeito
“desmobilizador” que procura obter (e tem) juntos das populações e das forças
opositoras, designadamente, entre os contingentes governamentais sírios e iraquianos.
.
6
Declarações do Embaixador do Vaticano nas Nações Unidas em Geneva, Arcebispo Silvano Tomasi, numa
entrevista ao site católico norte-americano "Crux" (ver Allen, 2015). Esta posição surgiu no mesmo dia
em que a Santa Sé, a Rússia e o Líbano apresentaram no Conselho dos Direitos do Homem da ONU um
documento intitulado “Supporting the Human Rights of Christians and Other Communities, particularly in
the Middle East”, apoiado por 70 países signatários, esperando incentivar os Estados do mundo inteiro a
fornecer ajuda humanitária a cristãos e outros grupos perseguidos pelo IS.
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O alarme provocado pela extensão do “Califado” IS e as respectivas implicações sociais,
económicas, humanitárias e políticas (ver, p.ex., Adams, 2014) levou a uma alteração
súbita do xadrez geopolítico na região e motivou uma muito eclética “frente anti-IS” a
partir do Verão de 2014, incluindo a criação de uma ampla coligação internacional
liderada pelos EUA e actualmente com cerca de 64 participantes
7
e a articulação de
posições até então impensável entre, países Ocidentais, países árabes (com destaque
para a Arábia Saudita, o Egipto, o Qatar e a Jordânia), o Irão, a Turquia, o governo
iraquiano, os Pershmerga curdos, diversos grupos insurgentes a operar na Síria ou
ainda o próprio regime sírio de Bashar al-Assad…. Segundo o Departamento de Estado
dos Estados Unidos, no início de Junho de 2015, o IS controla menos 25% de território
no Iraque do que quando a “Coligação internacional” iniciou a sua campanha nove
meses antes
8
. Entretanto, na sequência da solicitação do Governo de Bagdade, a NATO
decidiu reactivar a missão de treino e assistência às forças governamentais iraquianas
para um mais eficaz combate ao IS
9
Contudo, apesar dos esforços internacionais para o conter, combater e deslegitimar, o
IS não só continua a controlar um vasto território e milhões de pessoas como lançou
inclusivamente novas ofensivas em frentes-chave. No Iraque, em Maio de 2015, o IS
apoderou-se de Ramadi, capital da província de Anbar, avançou para a refinaria
petrolífera de Baiji, a maior do país, e atacou a cidade próxima de Khalidya,
reaproximando-se de Bagdade. Na Síria, e no mesmo mês, o IS atacou Deir ez-Zor
junto ao rio Eufrates, no leste do país, passou a controlar a cidade de Tadmor e as
. Além de um número significativo de militantes do
IS, foram também mortos alguns dirigentes do IS incluindo o alegado número dois na
hierarquia, Abdul Rahman Mustafa Mohammed al-Qaduli ou Abu Alaa al-Afari e o
considerado “Emir do Petróleo”, Abu Sayyaf -, e o próprio “Califa” Abu Bakr al-Baghdadi
terá sido gravemente ferido na sequência de bombardeamentos americanos, em Março
de 2015. Cessaram, igualmente, alguns anteriores apoios estatais ao ISIS:
actualmente, nenhum Governo apoia o IS, que se colocou numa posição de inimigo de
todos os Estados da região e do mundo. Paralelamente, a indústria da internet e das
redes sociais passou a ser mais vigilante e activa no controlo e na remoção de
conteúdos de cariz terrorista e jihadista, designadamente veiculados pelo IS e seus
apoiantes. Ao longo do último ano, e por diversas vezes, também a Organização da
Cooperação Islâmica e inúmeras autoridades religiosas islâmicas denunciaram a
ilegitimidade do pretenso “Califado” e condenaram a narrativa e os actos do IS por
violarem todos os princípios do Islão.
7
Das mais de seis dezenas de participantes da “coligação internacional anti-IS”, só uma parte participa em
operações militares directas ou fornece apoio aéreo e equipamento militar: EUA, Iraque, Jordânia,
Bahrein, Arábia Saudita, Egipto, Emiratos Árabes Unidos, França, Reino Unido, Alemanha, Canadá, Reino
Unido, Austrália, Itália, Rep. Checa, Albânia, Holanda, Estónia, Hungria, Turquia, Bélgica, Dinamarca e
Líbano. Alguns “aliados” têm fornecido apenas apoio político e “auxílio humanitário” (incluindo a Liga
Árabe e a União Europeia, bem como Suécia, Kuwait, Suíça, Japão, Áustria, Nova Zelândia, Coreia do Sul,
Irlanda, Espanha, Eslováquia, Noruega, Luxemburgo, Qatar), enquanto de outros apenas se conhece a
declaração de apoio e adesão a esta coligação, participando sobretudo ao nível da partilha de informações
- Andorra, Bósnia-Herzegovina, Bulgária, Croácia, Eslovénia, Finlândia, Geórgia, Grécia, Israel, Kosovo,
Lituânia, Macedónia, Malta, Marrocos, México, Moldova, Omã, Polónia, Portugal, Roménia, Sérvia,
Singapura, Taiwan, Tunísia e Ucrânia.
8
Afirmação de Antony Blinken, US Deputy Secretary of State, num encontro em Paris, em 2 de Junho de
2015, entre representantes de 20 países para ponto de situação no combate ao IS no Iraque (ver BBC,
2015).
9
A NATO Training Mission-Iraq (NTM-I) fora estabelecida em 2004 para auxiliar o Iraque a criar efectivas
novas forças armadas depois da deposição do regime de Saddam, mas a missão fora descontinuada em
2011 por ausência de qualquer acordo que desse estatuto legal à presença dos militares da NATO a
operarem no país. Em 2014, perante o avanço do IS, o Governo de Bagdade solicitou nova missão de
assistência, formação e treino às forças governamentais iraquianas.
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ruínas da antiga cidade romana de Palmira, “Património da Humanidade”, na Síria
central, e desencadeou operações ofensivas também no Norte, nas proximidades de
Aleppo, perto da fronteira com a Turquia; no Oeste, nas províncias de Homs e Hama e
junto à fronteira com o Líbano; e no Sudoeste, visando a cidade de Quneitra, próximo
da fronteira com Israel.
A expansão internacional do IS
Por outro lado, o IS expandiu-se muito para lá da Síria e do Iraque, desenvolvendo
actividades que um relatório do Institute for the Study of War organiza em três
círculos: um “anel interior”, compreendendo, além do Iraque e da Síria, a Jordânia,
Israel, Palestina e Líbano; o “estrangeiro próximo”, abarcando Afeganistão, Paquistão,
men, Arábia Saudita, Egipto, Líbia, Turquia, Tunísia, Argélia, Marrocos e região do
Cáucaso; e o “estrangeiro distante”, remetendo para as actividades do EI na Europa,
na América do Norte, na Ásia-Pacífico e também no ciberespaço (Gambhir, 2015).
Com a auto-proclamação enquanto “Califado”, o IS intensificou a campanha de
recrutamento de “combatentes estrangeiros” para irem para a Síria e o Iraque
defenderem um ilico Estado Islâmico
10
:
«mujahideen in Europe, Australia, and Canada…O mujahideen in
Morocco and Algeria…O mujahideen in Khorasan, the Caucasus,
and Iran…O mujahideen, we call you up to defend the Islamic
State» (Abu Muhammad al-Adnani [al-Shami]
11
,
porta-voz do IS, 22 de Setembro 2014). Paralelamente, a máquina de propaganda do
IS - através de mensagens, fotos e vídeos canalizados pela web, as redes sociais
virtuais ou a sua revista oficial em inglês Dabiq - glorifica os seus “mártires”, publica
relatórios regulares sobre os “fiéis internacionais de Alá” e destaca as aptidões
combatentes dos “verdadeiros crentes vindos de terras distantes”.
O fenómeno dos “combatentes estrangeiros” jihadistas é há muito conhecido em
cenários como o Afeganistão, a Bósnia, o Kosovo, a Chechénia, o Iraque, o bano, o
Iémen, o Mali ou a Líbia. Mas nunca como na Síria e, entretanto, no território
controlado pelo “Estado Islâmico”, se envolveram tantos “combatentes estrangeiros”,
levando o Conselho de Segurança das Nações Unidas a adoptar, por unanimidade, a
Resolução 2178 durante uma reunião onde se pronunciaram mais de 50 países
12
-,
onde expressa
10
Ver também Dabiq, issue 3 A call to Hijrah.
11
Ou Taha Subhi Falaha, nome de nascença.
12
Chefes de Estado ou de Governo da Nigéria, Iraque, EUA, França, Chade, Lituânia, Ruanda, Jordânia,
Chile, Coreia do Sul, Reino Unido, Austrália, Luxemburgo, Turquia, Qatar, Bulgária, Quénia, Macedónia,
Canadá, Holanda, Marrocos, Noruega, Trinidad e Tobago e Bélgica. Representados ao nível ministerial
estiveram: China, Sérvia, Paquistão, Argélia, Senegal, Letónia, Dinamarca, Albânia, Estónia, Cazaquistão,
Rússia e Nova Zelândia. Também se dirigiram representantes de Singapura, Emiratos Árabes Unidos,
India, Espanha, Malásia, Sri Lanka e Egipto, bem como o Presidente da União Europeia e o Secretário de
Estado da Santa Sé.
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«particular concern that foreign terrorist fighters are being
recruited by and are joining entities such as the Islamic State in
Iraq and the Levant (ISIL)»
e apela a todos os Estados para cooperarem urgentemente na prevenção de fluxos
internacionais de combatentes do IS e de outros grupos extremistas, bem como de e
para zonas de conflito (UN Security Council, September 24, 2014). Igualmente
conscientes do facto dos “jihadistas europeus” constituírem uma ameaça grave para a
segurança tanto externa como interna da União Europeia, as autoridades europeias e
os Governos dos 28 Estados-Membros, sobretudo reagindo aos atentados de Paris em 7
e 8 de Janeiro de 2015, reforçaram as medidas de combate ao terrorismo, prevenção
das deslocações para associação a grupos terroristas ou detecção e monitorização das
viagens para e desde palcos de conflitualidade jihadista
13
Apesar dos esforços internacionais, o número de combatentes estrangeiros afectos ao
IS não parou de crescer significativamente, estimando-se actualmente em mais de
25.000 (comparativamente, o dobro dos que foram para o Afeganistão nos anos 1980)
- representando cerca de 70% dos jihadistas estrangeiros na Síria e a quase totalidade
no Iraque -, provenientes de quase uma centena de pses. Cerca de metade dos
“combatentes estrangeiros” do IS serão provenientes do Norte de África e Médio
Oriente (Barret, 2014: 16), designadamente da Arábia Saudita (7.000), Tunísia (2500 a
5000), Marrocos (1500 a 3000), Jordânia (1500-2000), Turquia (1000-1500) ou Egipto
(600-750) e também do Irão (50-80). Mas o IS conta igualmente com combatentes
oriundos de muitos outros países de todas as regiões do globo, incluindo Rússia (1000-
1500), Indonésia (520-550), Turquemenistão (360-400), Bósnia-Herzegovina (350),
China (300), Cazaquistão (300), Azerbaijão (100-300), Albânia, Quirguistão,
Tajiquistão e Filipinas (200 cada), Canadá (130), EUA (100-120), Austrália (80-100) ou
Índia (20-25)
.
14
. Só da Uno Europeia terão partido, até meados de 2015, mais de
6000 jihadistas para se juntarem ao IS na Síria e no Iraque (quase triplicando os que
estariam na Síria no final de 2013), oriundos de mais de vinte países, incluindo França
(cerca de 1500), Reino Unido (750), Alemanha (700), Bélgica (400), Holanda (300),
Dinamarca (250), Suécia (200), Espanha (60-100), Áustria (100-150), Itália (60),
Finlândia (50), bem como Luxemburgueses, Gregos, Eslovacos, Checos, Irlandeses,
Búlgaros, Lituanos ou Portugueses (15-20)
15
13
Entre as muitas propostas da UE, incluem-se: aprofundar o entendimento do fenómeno; apertar a
vigilância das redes sociais e maior cooperação com a indústria da Internet a fim de remover conteúdos
extremistas, criando contradiscursos eficazes; punir e penalizar a apologia do terrorismo e do extremismo
violento, bem como a intenção de se juntar a grupos terroristas e de planear ou praticar crimes co-
relacionados; impedir deslocações para associação a grupos terroristas, detectar e monitorizar as viagens
para e desde palcos de conflitualidade jihadista e travar o regresso de extremistas e de veteranos
jihadistas, designadamente com reforço dos controlos nas fronteiras externas da UE e do espaço
Schengen e com registo de identificação dos passageiros aéreos; intensificar o combate às múltiplas
formas de financiamento do terrorismo; medidas de acompanhamento e monitorização dos regressados;
o reforço dos recursos humanos e tecnológicos; a implementação de directivas anteriores e reforço do
arsenal legislativo anti-terrorismo; envio de “consultores de segurança” para representações europeias
em zonas sensíveis; aprofundar e aperfeiçoar a partilha e o intercâmbio de informações; reforçar a
cooperação entre países e serviços europeus e a colaboração com parceiros estratégicos; etc. Ver
Conselho da UE Coordenador da Luta Antiterrorista.
.
14
Números estimados a partir do cruzamento de várias fontes, nomeadamente centros de investigação
sobre terrorismo e conflitos e órgãos de comunicação social.
15
Sobre o perfil e o percurso dos “jihadistas portugueses”, a maioria luso-descendentes emigrados noutros
países europeus como França ou Inglaterra ver, p. ex., Franco e Moleiro, 2015.
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Aos seus apoiantes que não podem ouo conseguem viajar para aria e o Iraque, o
IS instrui-os a prestarem e organizarem compromissos de fidelidade (bay’ah) ao
“Califa” Abu Bakr al-Baghdadi:
«If you cannot perform hijrah (immigrate to the Islamic State) for
whatever extraordinary reason, then try in your location to
organize bay’at (pledges of allegiance) to the Khalifah Ibrahim.
Publicize them as much as possible. Gather people in the masajid,
Islamic centers, and Islamic organizations, for example, and make
public announcements of bay’ah. Try to record these bay’ah and
then distribute them through all forms of media including the
Internet. It is necessary that bay’ah becomes so common to the
average Muslim that he considers those holding pack as grossly
abnormal...if you live in a police state that will arrest you over
such bay’at, then use means of anonymity to convey your bay’ah
to the world» (Dabiq, issue 2, July 27, 2014).
E o facto é que, além dos indivíduos que por todo o mundo expressaram fidelidade ao
“Califa Ibrahim”, muitos foram também os grupos que, desde a auto-proclamação
enquanto “Califado”, se associaram ao IS. Concretamente, estão referenciados 36
grupos jihadistas fora do Iraque e daria que prestaram bay’at ou expressaram apoio
ao IS: Mujahideen Timor na Indonésia; Caliphate and Jihad Movement, Jundullah,
Tehrik-e-Khalifat e dissidentes do Tehrik-e-Taliban no Paquistão; Islamic Movement of
Uzbekistan no Paquistão e Uzbequistão; Ansar al-Khalifah, Bangsmoro Islamic Freedom
Fighters, Bangsmoro Justice Movement, Abu Sayaaf e Jemaah Islamiyah nas Filipinas;
Jund al-Khalifah, al-Huda Battalion in Maghreb of Islam e Soldiers of the Caliphate da
Argélia; Al Tawhid Battalion no Afeganistão e Paquistão; Khorasan Pledge, Heroes of
Islam Brigade in Khorasan e Leaders of the Mujahid in Khorasan, do Afeganistão; Ansar
al-Tahweed fi Bilad al-Hind da Índia; al-I'tisam of the Koran and Sunnah no Sudão;
Uqba bin Nafi battalion e Jund al-Khilafah na Tunísia; Jund al-Khilafah no Egipto;
Mujahideen Shura Council in the Environs of Jerusalem, na Faixa de Gaza e Península
do Sinai; Jund at-Tawheed Wal Khalifah no Bangladesh; Ansar Bait al-Maqdis no
Egipto; Islamic Youth Shura Council, Islamic State Libya (Darnah), Lions of Libya,
Shura Council of Shabab al-Islam Darnah e IS’s "Tripoli Province" na Líbia; Liwa Ahrar
al-Sunna in Baalbek, Líbano; Mujahideen of Yemen e Supporters for the Islamic State
in Yemen, no Iémen; Supporters of the Islamic State in the Land of the Two Holy
Mosques na Arábia Saudita; Boko Haram na Nigéria (IntelCenter, 2015).
Para além disto, o próprio Abu Bakr al-Baghdadi anunciou, em 13 de Novembro de
2014, o estabelecimento de cinco novos wilayats do IS fora da Síria e do Iraque,
concretamente na Líbia, na Argélia, no Iémen, no Sinai (Egipto) e na Arábia Saudita,
bem como a intenção de criar futuramente mais wilayats noutros locais. O mesmo
propósito foi reafirmado na quinta edição da Dabiq, intitulada propagandísticamente
“Remaining and Expanding”, onde o IS reconhece aqueles wilayats com
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«either the appointment or recognition of leadership by the
Khalifah for those lands where multiple groups have given bay’at
and merged, or the establishment of a direct line of
communication between the Khalifah and the mujahid leadership
of lands who have yet to contact the Islamic State and thus
receive information and directives from the Khalifah» (Dabiq, issue
5).
Entretanto, o IS expandiu wilayats seus no Iémen (em clara competição com a Al-
Qaeda na Península Arábica, e combatendo ambos quer as milícias xiitas Huthis e
outros rebeldes leais ao antigo Presidente Abdullah Saleh quer as forças apoiantes do
Presidente Hadi) e também na África Ocidental, aqui através da aliança que aceitou, em
Março de 2015, com o Boko Haram que há anos controla o Nordeste da Nigéria e é
também activo no Chade, no Níger e nos Camarões. Actualmente, são doze os wilayats
do IS fora daria e do Iraque: Khorasan (Afeganistão), al-Jazair na Argélia, Sinai no
Egipto, Burgah, Tarablus/Tripoli e al-Fizan na Líbia, al-Haramayn na Arábia Saudita, al-
Yaman, Sanaa, Lahij e Shabwa no Iémen e Gharba Ifriqiyah na Nigéria.
É certo que, entretanto, vários grupos jihadistas repudiaram publicamente o IS, como
referimos anteriormente. Mas a realidade é que a expansão do IS veio alterar os
equilíbrios entre os grupos jihadistas e as voláteis conexões com movimentos
insurgentes emrios outros palcos de conflito para lá da Síria e do Iraque, incluindo
na Líbia, no Líbano, no Iémen ou até no Afeganistão e no Paquistão:
«The relationship between the Taliban and the Islamic State is
emerging as the most influential factor in the future of violent
jihadi movements in the Afghanistan and Pakistan region…. If IS
were to successfully recruit influential Taliban figures, they could
upset the delicate yet volatile balance of jihadi movements and
insurgents within Afghanistan, causing realignments of anti-state
actors across the Khorasan region» (Azamy e Weir, 2015).
Ao mesmo tempo, a feroz oposição contra o IS vem reforçando o poder e o papel das
“milícias Xiitas” em vários teatros de conflito (Iraque, Síria, Líbano, Líbia ou Iémen),
situação descrita como “especialmente frágil” por um representante francês (BBC,
2015). No fundo, a expansão e a brutalidade do IS vem contribuindo para acirrar
rivalidades históricas e a conflitualidade sectária entre Muçulmanos Sunitas e Xiitas,
não apenas dentro daria e do Iraque mas igualmente no seio de outros Estados
como o Líbano onde o IS defronta o bem estabelecido Hezbollah de matriz xiita
(Holmquist, 2015) - e entre potências regionais como a Arábia Saudita sunita e o Irão
xiita, como se vê também no caso do Iémen
16
16
Na sequência da degradação da situação no Iémen e do progresso das milícias xiitas Huthis, a Arábia
Saudita montou e lidera uma “coligação” fundamentalmente composta por países árabes e que, em Março
de 2015, começou a intervir militarmente no Iémen em apoio do Presidente Abdrabbuh Mansour Hadi
contra os rebeldes xiitas Huthis e outras forças leais ao antigo Presidente Abdullah Saleh (deposto em
2011 no decorrer dos protestos associados à “Primavera Árabe”) que, por seu lado, terão o apoio do Irão.
Numa situação típica de proxy war - em que potências regionais promovem os seus interesses rivais num
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Por outro lado, o IS apela à jihad nos países em que os seus militantes se encontram
através de ataques contra os seus inimigos e outros “infiéis”. Por exemplo, numa
declaração dirigida aos “soldados do Estado Islâmico”, o porta-voz do IS, Abu
Mohammed al-Adnani [al-Shami], fez esse apelo nos seguintes termos:
«So rise O mujahid. Rise and defend your state from your place
wherever you may be…You must strike the soldiers, patrons, and
troops of the tawāghīt. Strike their police, security, and
intelligence members, as well as their treacherous agents. Destroy
their beds. Embitter their lives for them and busy them with
themselves…
If you can kill a disbelieving…including the citizens of the countries
that entered into a coalition against the Islamic State, then rely
upon Allah, and kill him in any manner or way however it may be.
Do not ask for anyones advice and do not seek anyone’s verdict.
Kill the disbeliever whether he is civilian or military, for they have
the same ruling. Both of them are disbelievers. Both of them are
considered to be waging war [the civilian by belonging to a state
waging war against the Muslims]…If you are not able to find an
IED or a bullet, then single out the disbelieving... Smash his head
with a rock, or slaughter him with a knife, or run him over with
your car, or throw him down from a high place, or choke him, or
poison him. Do not lack» (al-Adnani, September 22, 2014).
Dois meses depois, a revista Dabiq incluía expressamente referências a ataques
perpetrados por apoiantes seus na Austrália, no Canadá e nos EUA, reclamando que
«All these attacks were the direct result of the Shaykh [Adnani]’s
call to action, and they highlight what a deadly tinderbox is fizzing
just beneath the surface of every western country, waiting to
explode into violent action at any moment given the right
conditions. Suddenly the muhajidin of the Islamic State weren’t
some esoteric concept fighting in a land nobody knew or cared
about, they were on the doorstep of millions of people living in
some of the biggest, most modern cities in the western world»
(Dabiq, issue 6).
Iémen dilacerado por conflitos entre dois ramos islâmicos rivais, sunitas e xiitas, que se cruzam com
lealdades tribais no apoio ao actual Presidente ou na tentativa de repor o anterior, e a que se soma ainda
a relevante presença e disputa entre os jihadistas da Al Qaeda na Península Arábica e do Estado Islâmico
(ambos atacando quer as forças governamentais do Presidente Hadi quer os xiitas Huthis e rebeldes pró-
Saleh) - a Arábia Saudita lançou aqui a arriscada campanha “Tempestade Decisiva” com o contributo
militar dos Emiratos Árabes Unidos, do Qatar, do Sudão, do Egipto e do Kuwait e contando ainda com o
apoio expresso de Jordânia, Marrocos, Paquistão e Somália, além do alegado auxílio logístico dos EUA e
alguns países europeus a fim de proteger a população e o Governo legítimo do Iémen e salvaguardar a
legalidade internacional.
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A estes apelos acresce a ameaça do IS de “exportar” fiéis seus para outras zonas e o
“interior dos seus inimigos”, como a Europa, aproveitando os fluxos migratórios a partir
da Líbia….
Independentemente do conteúdo propagandístico deste tipo de declarações, o facto é
que ao longo do último ano foram referenciados múltiplos eventos e atentados
envolvendo jihadistas e “lobos solitários” afectos ao IS em dezenas de pses do
Afeganistão à Alemanha, passando por Arábia Saudita, Argélia, Austrália, Bélgica,
Bulgária, Canadá, China, Dinamarca, Egipto, Espanha, EUA, Filipinas, França, Holanda,
Iémen, Índia, Indonésia, Irão, Itália, Japão, Jordânia, Líbano, Líbia, Marrocos, Nigéria,
Paquistão, Reino Unido, Rússia, Sudão, Tunísia, Turquemenistão, Turquia ou
Uzbequistão… provocando vítimas por todo o mundo e obrigando ao reforço dos
alertas e dos esforços contraterroristas.
A expano do IS é particularmente visível no ciberespaço. Evidentemente, à
semelhança de todos os outros domínios e religiões, a internet abre novos horizontes
para a exposição de diferentes interpretações do Islão (Giunchi, 2014). São igualmente
bem conhecidas situações em que websites dirigidos, sobretudo, a comunidades
muçulmanas adquirem particular importância no Ocidente, como aconteceu durante a
“Primavera Árabe” ou, mais recentemente, para combater a propaganda ideológica do
IS. Mas a realidade é que o IS se mostra extraordinariamente hábil e versátil no uso do
ciberespaço e dos novos media, exponenciando o jihadismo na web.
Com efeito, o IS exibe uma eficaz máquina de propaganda, terror, radicalização e
recrutamento, orquestrada designadamente pela Al Hayat Media Center e seus vídeos e
publicações (como a já referida revista oficial em inglês “Dabiq”) mas também por
milhares de “combatentes” e militantes naria e no Iraque, tudo veiculado na internet
e através das redes sociais virtuais, designadamente YouTube, Facebook, Instagram e
Twitter. Este aspecto é particularmente relevante na “atracção” de jovens, incluindo
ocidentais: significando que, a somar às “células plantadas”, aos terroristas
provenientes “de fora” e àqueles que obtiveram nacionalidade de forma oportunista ou
fraudulenta, soma-se agora um número impressionante de “jihadistas express” mais ou
menos auto-radicalizados e nascidos e criados no “Ocidente”; do mesmo modo que à
propaganda, à radicalização e ao recrutamento nas mesquitas, nas madrassas e nas
prisões se somam essas actividades na internet numa escala sem paralelo em todo o
historial do movimento jihadista (Tomé, 2015: 13-14). Por isso, o responsável máximo
pela Segurança Interna dos EUA, Jeh Johnson, afirma que
«we’re very definitely in a new environment, because of ISIL’s
effective use of social media, the Internet, which has the ability to
reach into the homeland and possibly inspire others…. We’re very
definitely in a new phase in the global terrorist threat, where the
so-called lone wolf could strike at any moment» (cit. in ABC News,
2015).
Por outro lado, hackers afectos ao IS, como o auto-denominado “Cibercalifado”, vêm
intensificando ataques informáticos, visando todo o tipo de alvos, desde comandos
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militares a agências governamentais ou órgãos de comunicação social: por exemplo,
mais de 19.000 ciberataques atingiram websites franceses na semana seguinte aos
atentados em Paris de 7 e 8 de Janeiro de 2015; no dia 12 do mesmo mês, o
“cibercalifado” atacou as contas de Twitter e YouTube do Comando Central (CENTCOM)
dos EUA que lidera as operações da coligação internacional anti-IS; em Fevereiro, o
mesmo grupo atacou as páginas web da revista norte-americana Newsweek; e em 8 de
Abril, de novo o “Cibercalifado” atacou as páginas na Internet, as redes sociais e as
emissões do grupo de televisão francófono TV5 Monde, cujos onze canais não só
deixaram de emitir como exibiram durante algum tempo vídeos e mensagens
propagansticas e com ameaças do IS.
Conclusões
Uma vez estabelecido, o IS intensificou a sua propaganda e os seus apelos jihadistas,
encorajando os seus apoiantes a viajarem para defenderem um mítico “Califado”,
promovendo declarações de fidelidade e comunidades locais de apoio ao IS, e
instigando ataques de todo o tipo contra os “apóstatas”, os “infiéis” e os inimigos do IS.
Cerca de um ano depois da auto-proclamação enquanto “Califado”, e apesar dos
esforços locais, regionais e internacionais para o conterem, combaterem e
deslegitimarem, o IS consolidou atributos de Estado de facto, expandiu-se para lá da
ria e do Iraque e tornou-se numa das ameaças mais graves para a segurança
internacional, passando a disputar à al-Qaeda a liderança do jihadismo global.
Ao longo do último ano, aumentou significativamente o número de militantes e também
de “combatentes estrangeiros” afectos ao IS, verdadeiro “íman” nunca antes visto na
hisria do movimento jihadista. Além de engrossarem as fileiras de uma entidade
jihadista e terrorista como é o IS e do contributo para a tragédia humanitária e a
barbárie, desde logo, na Síria e no Iraque, a ameaça proveniente do fenómeno dos
“combatentes estrangeiros” resulta também dos riscos associados ao regresso aos seus
países de origem como elementos do movimento jihadista global e depois de terem
recebido doutrinamento, treino operacional (desde o manuseamento de armas e
explosivos ao planeamento de operações) e experiência de combate, com ligações
estreitas a grupos e indivíduos terroristas. Rapidamente se percebe o perigo que tal
significa. É certo nem todos os “combatentes estrangeiros” na Síria e no Iraque são
jihadistas e nem todos os jihadistas são terroristas. Evidentemente, alguns dos
regressados, ou que vierem a regressar, podem estar verdadeiramente arrependidos
ou desiludidos e até terem um papel relevante na contra-propaganda do IS. Mas
mesmo nestes casos ou de outros que regressam sem motivação para o jihadismo e o
terrorismo (com a óbvia dificuldade em distinguir as diversas situações), há os riscos
associados à exposição à violência, à desordem pós-traumática, à depressão ou ao
desenquadramento social. Tal como há o risco, quando não de planearem e executarem
atentados, pelo menos de desenvolverem actividades propagandísticas, de
recrutamento ou financiamento do terrorismo, bem como de se envolverem com
grupos criminosos e em actividades criminosas e violentas (Tomé, 2015: 13).
Por outro lado, o IS não só continua a controlar um imenso território e milhões de
pessoas como criou novos wilayats para lá da Síria e do Iraque, passou a congregar
dezenas de outros grupos jihadistas espalhados pelo mundo, inspirou inúmeros “lobos
solitários” e multiplicou o número de atentados e de vítimas, ampliando também as
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tragédias humanitárias em vários outros palcos de conflito obrigando, portanto, quer
à redefinão das estratégias de contraterrorismo, contra-radicalização e combate ao
jihadismo quer a realinhamos em vários teatros de conflito. Embora o alcance e o poder
dos grupos afiliados e dos wilayats do IS variem - encontrando mais resistência em
países consolidados ou, então, onde o jihadismo é dominado pela AQ -, o seu percurso
demonstra uma particular habilidade em aproveitar contextos de fragilidade estatal e
de conflitualidade para se expandir, como evidenciam os casos da Nigéria, do Egipto,
do Líbano, da Líbia, do Iémen, do Paquistão ou do Afeganistão. Também por isso, a
ascensão do IS vem contribuindo para acirrar rivalidades históricas e a conflitualidade
sectária entre Muçulmanos Sunitas e Xiitas no seio de vários países (além daria e do
Iraque, também Argélia, Tunísia, Líbano, Egipto, Jordânia, Paquistão ou Iémen) e,
colateralmente, entre potências regionais (designadamente, a Arábia Saudita sunita e o
Irão xiita), bem como para reforçar o poder e o papel das opositoras milícias Xiitas e
para alterar as voláteis conexões dos movimentos jihadistas e insurgentes em vários
outros palcos de conflito (como se percebe na Líbia, no Líbano, no Iémen e até no
Afeganistão).
Com a AQ, o IS vem oscilando entre a cooperação pragmática e a disputa fratricida.
Mas a competição entre as duas entidades em termos de principal “marca jihadista”
global bem como por financiamentos, recruta de jihadistas, a filiação de grupos
jihadistas ou ainda a liderança do jihadismo em certos locais -, tende a fomentar ou a
agravar conflitos violentos e a instigar atentados de grande envergadura numa lógica
de supremacia afirmativa da respectiva “omnipresença”.
Paralelamente, o IS tem mostrado uma habilidade invulgar no uso da internet e dos
novos media para efeitos de propaganda, radicalização, recrutamento e terror, a que se
somam entretanto sucessivos e poderosos ciberataques informáticos. Este aspecto,
associado ao impressionante número de militantes, “combatentes estrangeiros”, grupos
jihadistas e “lobos solitários” jihadistas que consegue atrair, torna o IS uma ameaça
não apenas para as comunidades que directamente domina e vitimiza no Iraque e na
Síria mas também para a segurança e a estabilidade dos países vizinhos e de muitos
outros por todo o mundo.
Ou seja, o IS é actualmente uma ameaça mais grave, mais difusa e mais complexa do
que há um ano atrás. Representa verdadeiramente a ameaça jihadista pós-Al-Qaeda,
pelo que a anterior estratégia de contraterrorismo talvez não seja suficiente para a
combater, como argumenta Audrey Kurth Cronin (2015).
A “vitória militar” sobre o IS pode até ser a mais simples de alcançar, apesar dos
constrangimentos decorrentes do complexo xadrez regional: afinal de contas, tem uma
base territorial onde pode e deve ser combatido e exibe um nível de barbárie a que a
comunidade internacional, a começar pelos pses islâmicos, não pode ficar indiferente.
Além disso, tem presença em Estados frágeis e instáveis que devem rapidamente ser
estabilizados, tal como instrumentaliza conflitos que têm de ser urgentemente contidos
sob pena de abrirem espaço à expansão do IS. Mas dada a projecção que o IS atingiu,
o combate ao IS é também ideológico e agora global. A estratégia anti-IS não pode ser
unívoca e requer múltiplas abordagens,ltiplos instrumentos, em múltiplas frentes e
com base em múltiplos vectores. E não deve ser apenas reactiva porque o IS é, tornou-
se, um dos maiores perturbadores da segurança e da estabilidade internacionais e uma
ameaça também “interna” em muitas sociedades de todas as partes do mundo. Por
outro lado, o combate contra o IS não pode descurar a luta contra a al-Qaeda nem
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facilitar o reforço desta e dos seus afiliados porque a AQ não é menos perigosa do
que o IS, tem provado ser astuta nas suas metamorfoses e prossegue o mesmo
objectivo de criar um “Califado” seu.
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OBSERVARE
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Notas e Reflexões
O PROCURADOR COMO MAGISTRADO INTERNACIONAL
1
Almiro Rodrigues
2
orimla50@hotmail.com
Procurador-Geral-Adjunto jubilado. Ex-juiz do Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia e
juiz internacional da Secção Crimes de Guerra do Tribunal da Bósnia-Herzegovina. Actualmente
juiz internacional no Tribunal Constitucional da República do Kosovo.
A justiça é um ingrediente indispensável do processo de reconciliação nacional.
É essencial para a restauração das relações normais e pacíficas entre as pessoas que viveram
sob um regime de terror. Quebra o ciclo de violência, ódio e vingança extrajudicial.
Assim, paz e justiça andam de mãos dadas.
Antonio Cassese, ex-presidente do TPIJ
As atribuições e competências do Procurador como magistrado internacional, em certa
medida, equiparam-se nominalmente às do Procurador como magistrado nacional. No
entanto, elas diferem substancialmente e metodologicamente no quadro da justiça
penal internacional. Os desafios face à investigação e acusação de crimes em larga
escala ou violações criminais massivas cometidos há anos num país soberano
estrangeiro são únicos e de caracter verdadeiramente singular. Assim, é ao mesmo
tempo notável e surpreendente em muitos aspectos que as ferramentas legais de
investigação à disposição do Procurador tenham mesmo assim produzido os resultados
que é possível observar e quantificar. Embora os desafios continuem, o trabalho do
Procurador como magistrado internacional representa já uma realização considerável
na luta contra a impunidade das violações graves dos Direitos Humanos e do Direito
Internacional Humanitário.
1
Artigo elaborado no contexto do projeto de investigação “A Justiça Penal Internacional: Um Diálogo entre
Duas Culturas”, em curso no Observatório das Relações Exteriores Observare / UAL, coordenado por
Mateus Kowalski e Patrícia Galvão Teles.
2
As opiniões expressas neste artigo refletem apenas o ponto de vista do autor.
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O procurador como magistrado internacional
Almiro Rodrigues
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1. Introdução
O tema "O Procurador como magistrado internacional" insere-se no projeto "Justiça
Oenal Internacional" que pretende ser um espaço de investigação que reúna
investigadores, experiências e metodologias que conceptualmente se situem nos ramos
do saber das Relações Internacionais e do Direito Internacional.
Algumas pessoas conhecem as atribuições, competências e funções do MP avel
nacional; poucas conseguem entender bem o que é o Procurador como magistrado
internacional. A própria nomenclatura do cargo provoca alguma confusão: o procurador
de justiça, o promotor de justiça, o procurador da República, o procurador, o
procurador adjunto, o procurador do Ministério Publico, o Procurador-Geral... No mundo
contemporâneo, o termo magistrado normalmente remete para o exercício do poder
judiciário, com a capacidade e a prerrogativa de julgar, de acordo com as regras
constitucionais e leis criadas pelo poder legislativo. A noção de magistratura, que em
alguns países inclui juízes e procuradores, é desconhecida como tal nos países que
pertencem à common law, que estendem estas garantias constitucionais apenas aos
seus juízes e em que o termo magistrate tem um sentido diferente. Os magistrados
(juízes e magistrados do Ministério Público) gozam das garantias constitucionais de
vitaliciedade e inamovibilidade.
2. O quadro constitucional nacional
Uma melhor compreensão das atribuições, competências e funções do Ministério
Público (MP) no enquadramento nacional poderá ajudar a um melhor entendimento da
identidade institucional do Procurador como magistrado internacional.
Toda a matéria de organização e competência do MP cabe à Assembleia da Republica.
O Artigo 163º da Constituição estabelece: “Compete à Assembleia da República,
relativamente a outros órgãos: (...)
g) Eleger, segundo o sistema de representação proporcional, (…) os membros do
Conselho Superior do Ministério Público que lhe competir designar”.
Por outro lado, o Artigo 165º determina:
“1. É da exclusiva competência da Assembleia da República legislar sobre as seguintes
matérias, salvo autorização ao Governo: (...)
p) Organização e competência dos tribunais e do Ministério Público e estatuto dos
respectivos magistrados, bem como das entidades não jurisdicionais de composição de
conflitos”.
Compete ao MP
3
3
Dispositivo idêntico está contido no Artigo 1 do Estatuto do Ministério Público.
nos termos do Artigo 219 (1) da Constituição,representar o Estado e
defender os interesses que a lei determinar, (...) exercer a acção penal orientada pelo
princípio da legalidade e defender a legalidade democrática. O mesmo Artigo 219 (2)
confere ao MP o gozo de “estatuto próprio e de autonomia”.
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Finalmente, o Artigo 219 (4) dispoe que “os agentes do Ministério Público são
magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados, e não podem ser
transferidos, suspensos, aposentados ou demitidos senão nos casos previstos na lei”. O
Artigo 219 (5) prevê que “a nomeação, colocação, transferência e promoção dos
agentes do Ministério Público e o exercício da acção disciplinar competem à
Procuradoria-Geral da República”.
Por outro lado, o Artigo 220ºda Constituição apresenta a Procuradoria-Geral da
República como sendo “o órgão superior do Ministério Público. A Procuradoria-Geral da
República “é presidida pelo Procurador-Geral da República e compreende o Conselho
Superior do Ministério Público, que inclui membros eleitos pela Assembleia da República
e membros de entre si eleitos pelos magistrados do Ministério Público”.
Os preceitos constitucionais referidos permitem derivar algumas regras e principios
fundamentais que sustentam a orgânica e funcionamento do MP. São eles o principio da
autonomia do MP, o principio da independência e o principio da legalidade da acção
penal.
O Artigo 2 (2) do Estatuto do MP
4
De facto, o MP goza de autonomia não só em relação aos órgãos do poder central,
regional e local mas também em relação à magistratura judicial. Na sua primeira
vertente, a autonomia do MP significa que nenhum órgão do poder central, regional e
local pode dirigir ordens ou instruções ao MP, nem influir no respectivo governo e
admininstração. Na segunda dimensão, a autonomia do MP significa que os
magistrados do MP estão orgânica e funcionalmente separados dos magistrados
judiciais e confere à magistratura do MP uma prerrogativa de estabilidade idêntica à
dos juízes.
dispôe que “a autonomia do Ministério Público
caracteriza-se pela sua vinculação a critérios de legalidade e objectividade e pela
exclusiva sujeição dos magistrados do Ministério Público às directivas, ordens e
instruções previstas nesta lei.
Assim, o MP é um órgão constitucional de justiça organizado como magistratura
processualmente autónoma em dois sentidos: o da independência do poder político no
exercício concreto da acção penal; o da separação e paralelismo relativamente à
magistratura judicial
5
Consequentemente, o MP é autónomo e independente no exercicio das suas
atribuições, competências
.
6
O principio da legalidade da acção penal traduz-se na obrigatoriedade de o MP
proseguir a ação penal, desde que tenha noticia do crime e não existam obstáculos que
e funções. Este princípio funda-se na idéia de que nenhum
crime deve ficar impune e, portanto, o MP é legalmente obrigado a agir.
4
Aprovado pela Lei n.º 47/86, de 15 de Outubro, republicado pela Lei n.º 60/98, de 27 de Agosto, e
alterado pelas leis n.os 42/2005, de 29 de Agosto, 67/2007, de 31 de Dezembro, 52/2008, de 28 de
Agosto, 37/2009, de 20 de Julho, 55-A/2010, de 31 de Dezembro e 9/2011, de 12 de Abril.
5
Esta concepção é reafirmada em vários passos pelo Código de Processo Penal: ao elaborar o princípio de
objectividade (artigo 53º), na aplicação aos magistrados do Ministério Público das disposições relativas a
impedimentos, recusas e escusas do juiz (artigo 54º), na obrigação do Ministério Público investigar à
charge e à décharge (artigo 262º), na exclusão do Ministério Público das regras sobre conduta de
advogados e defensores (artigo 326º) e no reconhecimento de legitimidade para recorrer no exclusivo
interesse do arguido (artigo 401º).
6
Artigo 3.º do Estatuto do Ministério Público especifica as competencias do Ministério Público e, no seu
paragrafo 3 preve que “no exercício das suas funções, o Ministério Público é coadjuvado por funcionários
de justiça e por órgãos de polícia criminal e dispõe de serviços de assessoria e de consultadoria”.
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o impeçam de agir. Este principio tem feição democrática e satisfaz as exigências de
defesa social, na medida em que submete a actuação do órgão público ao direito
constituído. Desta forma, a actuação impõe-se ao Estado não como uma simples
faculdade, mas como obrigação de realizar um dos seus fins essenciais, que é a
manutenção e reintegração da ordem jurídica. Portanto, o dever de promover a ação
penal impõe-se ao MP, sem se inspirar em critérios políticos de oportunidade ou de
utilidade social.
O exercício da acção penal é hoje a função mais importante da magistratura do MP
7
Ja foi dito que a Procuradoria-Geral da República é o órgão superior do Ministério
Público” e que o MP é ogânica e funcionalmente independente. A independência do MP
repousa num esquema organizativo-institucional através do qual se neutralizam
interferências, dependências ou condicionamentos perante os outros poderes do
Estado, tais como o Presidente da República, a Assembleia da República e o Governo.
.
Por outro lado, a gradual democratização do processo penal foi impondo o princípio
acusatório que confere ao MP uma posição de quase monopólio do exercicio da acção
penal.
Acresce que o Artigo 219 (4) da Constituição estabelece que “os agentes do Ministério
Público são magistrados responsáveis, hierarquicamente subordinados (...)”. A
subordinação hierárquica sue, pelo menos, que os agentes do MP
8
De facto, os agentes que integram o MP estão sob a égide de um único órgão superior,
a Procuradoria-Geral da República
recebam ordens e
intruções da Procuradoria Geral. Aparentemente, a subordinação hierárquica parece
contradizer o princípio da independência do MP. È necessario ter em conta que a
independência que caracteriza a estrutura e funcionamento do MP, e de que beneficia
cada agente do MP, é uma independência funcional que tem que ser vista à luz da
unidade e indivisibilidade do MP.
9
A indivisibilidade do MP surge como consequência directa da sua unidade. Assim, um
agente do MP pode ser substituído por outro, sem qualquer implicação prática, já que
os actos devem ser considerados como prataticados pelo MP e não pela pessoa do seu
agente. Quem está presente em qualquer processo é o MP, ainda que seja por
intermédio de um determinado agente individual. Por isso, a expressão "representante
, de forma a que o MP seja visto como instituição
única e sendo a divisão essencialmente funcional. Assim, o princípio da unidade tem
natureza administrativa. A organização do MP em diversos sectores apenas visa uma
divisão racional do trabalho; mas todos os agentes atuam nos diversos sectores
guiados pelos mesmos princípios e com os mesmos objectivos, constituindo assim um
único corpo institucional.
7
O magistrado é a lei que fala; a lei é um magistrado mudo (Cicero)
8
O Artigo 8.º(Agentes do Ministério Público) do Estatuto do Ministério Público dispôe:
1 São agentes do Ministério Público:
a) O Procurador-Geral da República;
b) O Vice-Procurador-Geral da República;
c) Os procuradores-gerais-adjuntos;
d) Os procuradores da República;
e) Os procuradores-adjuntos.
9
Artigo 7.º(Órgãos) do Estatuto do Ministério Público
São órgãos do Ministério Público:
a) A Procuradoria-Geral da República;
b) As Procuradorias-Gerais Distritais;
c) As Procuradorias da República.
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do Ministério Público"
10
Este princípio permite que os agentes do MP possam ser substituídos uns por outros no
processo. No entanto, a substituição não pode ser feita de maneira arbitrária. A
substituição pode ser feita nos casos e termos legalmente previstos (nos casos de
promoção, transferência, suspensão, exoneração, aposentação, morte, etc.), sem que
isso constitua ou implique qualquer alteração processual. Aliás, o Artigo 4 do Estatuto
prevê que “os magistrados do Ministério Público fazem-se substituir nos termos
previstos nesta lei”.
não é tecnicamente adequada para se referir aos agentes do
MP.
Assim, o princípio da independência funcional significa que os agentes do MP actuam de
modo independente no exercício das suas funções, pautando a sua conduta funcional
pela lei e suas convicções, podendo recusar o cumprimento de directivas, ordens e
instruções ilegais e podem recusá-lo com fundamento em grave violação da sua
consciência jurídica. Nestes termos, a subordinação hierárquica dos agentes do MP
existe no plano administrativo; não no plano funcional.
Em resumo, a autonomia do MP caracteriza-se "pela sua vinculação a critérios de
legalidade e objectividade e pela exclusiva sujeição dos magistrados e agentes do MP
às directivas, ordens e instruções "previstas na lei”.
3. O quadro institucional internacional
A apresentação e revisão do quadro constitucional nacional do MP pode facilitar a
abordagem e compreensão do Procurador como magistrado internacional já que a
percepção do nível internacional é normalmente precedida e influenciada pelo quadro
perceptivo e matriz de compreensão do nível nacional. Analisemos, agora, o quadro
institucional em que se encontra o Procurador a nível internacional, tentando a sua
identidade não tanto pelo que é, mas mais pelo processo evolutivo e circunstâncias
históricas em que se tornou e se afirmou.
O Procurador no Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia
Em 1993, o Conselho de Segurança da Nações Unidas criou o Tribunal Penal
Internacional para a ex-Jugoslávia (TPIJ)
11
10
O Artigo 4 do Estatuto do Ministério Público (Representacao do Ministério Público):
. A enorme dimensão das violações em
massa na Bósnia e Herzegovina, acompanhada de imagens de cidades destruídas e de
pessoas com ar cadavérico detidas nos “campos de concentração” de Omarska,
1 O Ministério Público é representado junto dos tribunais:
a) No Supremo Tribunal de Justiça, no Tribunal Constitucional, no Supremo Tribunal Administrativo, no
Supremo Tribunal Militar e no Tribunal de Contas, pelo Procurador-Geral da República;
b) Nos tribunais de relação e no Tribunal Central Administrativo, por procuradores-gerais-adjuntos;
c) Nos tribunais de 1.ª instância, por procuradores da República e por procuradores-adjuntos.
11
Em 25 de maio de 1993, o Conselho de Segurança das Nações Unidas aprovou formalmente a resolução
827, que institui o Tribunal Penal Internacional para a ex-Jugoslávia, conhecida como o TPIJ. Esta
resolução continha Estatuto do TPIJ que determinava jurisdição do Tribunal e estrutura organizacional,
bem como o processo penal em termos gerais. Este foi o primeiro tribunal de crimes de guerra,
estabelecido pela ONU e o primeiro tribunal internacional de crimes de guerra desde os tribunais de
Nuremberga e Tóquio. Esta data marcaria o início do fim da impunidade para crimes de guerra na antiga
Jugoslávia.
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O procurador como magistrado internacional
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Keraterm e Trnopolje
12
O Artigo 16 do Estatuto do TPIJ determina que “o procurador será responsável pelas
investigações e pelo exercício da acção penal contra os [presumidos] autores de
violações graves ao direito internacional do direito internacional humanitário (…), é um
órgão distinto no seio do Tribunal Internacional, agirá com toda a independência. Não
solicitará nem receberá instruções de qualquer governo ou de qualquer outra
proveniência.
, gerou um enorme clamor internacional e levou a comunidade
internacional a tentar a primeira experiência de justiça penal internacional desde os
julgamentos de Nuremberga e de Tóquio.
Semelhante determinação foi também aplicada ao Procurador do Tribunal Penal
Internacional para o Ruanda (TPIR), conforme Artigo 15 do estatuto do TPIR.
Acrescente-se que o paragrafo 3 deste Artigo estabelece que “o Procurador do Tribunal
Penal Internacional para a ex-Jugoslávia exerce também as funções de Procurador do
Tribunal Penal Internacional para o Ruanda (…)
13
Como se vê dos Artigos 16 e 15, respectivamente dos Estatutos dos TPIJ e TPIR, o
Procurador é independente e não solicita nem recebe instruções de qualquer governo
ou organização internacional, ou de qualquer um dos outros dois órgãos do Tribunal. O
Gabinete do Procurador do TPIJ é mandatado para investigar e processar criminalmente
os presumidos responveis por violações graves do Direito Internacional Humanitário
(DIH) cometidas no território da ex-Jugoslávia
.
14
No início de 1994, “o gabinete do Procurador teve de se inventar a si mesmo. A partir
do nada (…) foi formulado um plano de pessoal e foram recrutados funcionários
qualificados e experientes. Então, foi desenvolvido um sistema de gestão de informação
e de apoio contencioso. (…) Após o trabalho dos investigadores, a fase final da tarefa
do Procurador começará com o enquadramento das acusações e todo o processo de
julgamento que se segue”
.
15
De facto, o Gabinete do Procurador do TPIJ investigou muitas das piores atrocidades
que tiveram lugar na Europa desde a segunda guerra mundial, tais como o genocídio
de Srebrenica de 1995 e processou líderes civis, militares e paramilitares pela sua
responsabilidade por tais crimes e atrocidades. Em 2011, os dois últimos acusados pelo
Procurador do TPIJ Ratko Mladić e Goran Hadžić foram detidos e transferidos para o
Centro de Detenção das Nações Unidas em Haia, depois de muitos anos em fuga,
garantindo assim que nenhum dos 161 indivíduos acusados ficaria impune
.
16
O Gabinete do Procurador é chefiado por um procurador, nomeado pelo Conselho de
Segurança das Nações Unidas para um mandato de quatro anos renovável e por um
procurador-adjunto, nomeado pelo Secretário Geral das Nações Unidas.
.
Em conformidade com as Resoluções do Conselho de Segurança e com o Estatuto do
Tribunal, e designadamente nos termos to Capítulo VII da Carta das Nações Unidas, os
12
Situação objecto de julgamento no TPIJ, Kvočka et al. (IT-98-30/1) "Omarska, Keraterm & Trnopolje
Camps"; no Tribunal da Bósnia e Herzegovina, Mejaket al. (IT-02-65) "Omarska and Keraterm Camps"
13
Por esta razão, referimo-nos apenas ao Procurador do TPIJ.
14
Desde 1 de janeiro de 1991.
15
Relatório Anual ICTY, A/49/342, S/1994/1007, de 29 Agosto 1994.
16
Em conformidade com a estratégia de encerramento do Tribunal, as acusações finais foram emitidas no
final de 2004.
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O procurador como magistrado internacional
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Estados-Membros da ONU são obrigados a cooperar com o Gabinete do Procurador nas
investigações e procedimentos penais.
O Gabinete do Procurador organizava-se em duas divisões: uma divisão de
investigações e uma divisão de acusações. Esta última com três secções: de
julgamento, de recurso, e de informações e provas. O Gabinete do Procurador
empregava funcionários de cerca de 80 países, cuja experiência em sistemas nacionais
como polícias, investigadores, peritos forenses, analistas, advogados, advogados de
julgamento e consultores jurídicos foi caldeada num sistema único de procedimento
criminal internacional.
Quando o TPIJ começou seu trabalho pioneiro de investigar e processar os acusados de
violações graves do DIH, o estatuto apenas deu ao Procurador o poder de “iniciar
investigações” e de “questionar os suspeitos,timas e testemunhas, coligir provas e a
realizar investigões no local”
17
A situação que o Procurador do TPIJ vai enfrentar no cumprimento da sua missão é
completamente diferente daquela que o Procurador Robert Jackson encontrou no
tribunal de Nuremberga. Aqui, os arguidos estão ao alcance, os arquivos abertos e as
testemunhas disponíveis; na ex-Jugoslávia, tudo se passa bem à distância (entre Haia
e Belgrado, Sarajevo, e Zagreb) e dentro de países soberanos hostis ao Tribunal e
fechados à cooperação com o Procurador na sua função de investigação criminal e
detenção dos suspeitos.
. Ao contrário dos códigos de processo penal dos
sistemas jurídicos nacionais, o Estatuto do TPIJ contém um conjunto bastante limitado
de ferramentas legais com vista a investigar e processar crimes abrangidos pela
jurisdição do Tribunal Internacional.
No início, em 1994, mesmo aqueles que encorajaram e apoiaram a criação do TPIJ
duvidaram de que o Tribunal teria algum impacto e qualquer êxito. Quase vinte anos
mais tarde, o seu legado jurisprudencial e o seu efeito na paz e reconciliação
permanecem um tópico de debate popular e acadêmico vibrante, mas é geralmente
aceite que há um antes e um depois do TPIJ para o direito internacional, para a justiça
penal internacional e para o direito internacional humanitário, entre outros.O Tribunal
mudou irreversivelmente a paisagem do direito internacional humanitário”
18
Na sequência de Srebrenica, o Procurador deduziu acusação e mandados de captura
foram emitidos contra o presidente sérvio-
bósnio Radovan Karadžić e seu chefe de
estado-maior, general Ratko Mladić. Novamente, muitos duvidaram que eles algum dia
enfrentariam a justiça. De facto, eles foram detidos e transferidos para o Centro de
Detenção em Haia em 2008 e 2011, respectivamente.
De facto,
com a criação do TPIJ, o Conselho de Segurança esperava poder dissuadir os
funcionários civis e militares da antiga Jugosvia de cometerem mais atrocidades e, ao
mesmo tempo, enviar um sinal claro de que os responsáveis pelas atrocidades
cometidas seriam levados perante a justiça. Infelizmente, a crião do TPIJ pouco ou
nenhum efeito dissuasor produziu: o genocídio de Srebrenica em Julho de 1995, o
maior crime de todo o conflito armado da Bósnia, ocorreu já depois de o tribunal ter
sido criado.
17
O Estatuto é silencioso quanto ao modo de realizar essas tarefas e com que meios. Na verdade, existem
mais parágrafos no Estatuto em matéria de nomeação e a qualificação dos juízes que as competências e
as ferramentas de investigação.
18
http://www.icty.org/sections/AbouttheICTY.
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Como já foi dito, o TPIJ foi criado em Maio de 1993. O conflito começou em 1991 e
terminou em Dezembro de 1995 com os acordos de paz de Dayton. Mesmo antes desta
data e no decurso do conflito, o Procurador enviou várias equipas de investigação à
Bósnia.
Em 1996, o sérvio-bósnio Duško Tadtornou-se o primeiro acusado a ser julgado por
crimes de guerra e crimes contra a humanidade no TPIJ. Este processo e julgamento
forneceu um importante sinal de que o Tribunal processaria os responsáveis por graves
crimes internacionais. As provas e testemunhos recolhidos para o julgamento de Duško
Tadić mostrou-se muito útil na orientação do Procurador para outros casos, numa
estratégia ascendente que culminou em 28 de Junho de 2001 com a detenção do
antigo presidente Slobodan Milošević.
O TPIJ criou um grande e rico corpo de jurisprudência que influenciará decisivamente a
justiça penal internacional e que, em grande medida, tem sido adoptada pelo Tribunal
Penal Internacional (TPI). Durante cerca de dois anos (1996-1997), o Procurador
investigou os massacres de Srebrenica de Julho de 1995. Em 2 Novembro 1998, o
Procurador deduziu a acusação. Em 13 Março 2000, foi aberto o julgamento que
encerrou em 2 Agosto 2001. Em termos úteis, o julgamento durou 98 dias, com cinco
horas de audiência por dia. Os massacres de Srebrenica de Julho de 1995 foram
julgados pelo Tribunal como sendo um genocídio, o primeiro em toda a história da
Europa.
O objectivo mais imediato do TPIJ era acabar com impunidade e julgar os presumidos
responsáveis pelos crimes mais graves na ex-Jugoslávia; outra meta mais ambiciosa e
de longo prazo era contribuir para a paz e reconciliação na região, e proporcionar avio
às vítimas e seus familiares.
O Procurador no Tribunal Penal Internacional
Entretanto, em 17 de julho de 1998, a comunidade internacional alcançou um marco
histórico, quando 120 Estados adoptaram o Tratado de Roma, pelo qual foi aprovado o
Estatuto do TPI. O Tratado de Roma entrou em vigor em 1 de julho de 2002, após
ratificação por 60 pses, entre eles Portugal.
Um dos órgãos do TPI é o Gabinete do Procurador a quem compete receber
participações sobre os crimes que cabem na competência do Tribunal, exami-las e
eventualmente proceder criminalmente junto do Tribunal.
As raízes do Estatuto do TPI podem ser encontradas mais proximamente no Estatutos
do ICTY e do TPIR, embora com diferenças em várias características legais e
estruturais. De facto, o TPI é um órgão judicial permanente e com alcance universal
19
;
a atividade judicial do TPI destina-se a complementar os tribunais nacionais
20
19
O TPIJ E TPIR sao tribunais ad hoc, com jurisdicao territorial e temporal limitada. Pode dizer-se que o TPI
e para todos e para sempre. A diferenca entre justica ad hoc e permanente constituiu e ainda constituti
um dos grandes obstaculos a ratificacao do Tratado de Roma por alguns paises que, tendo apoiado as
solucoes de justica ad hoc (para alguns e se conveniente) sao reticentes em apoiar uma solucao de
justica permanente (para todos e sempre que).
. Além
20
A jurisdição dos TPIJ E TPIR é concorrente com a dos tribunais nacionais e têm primazia sobre os
tribunais nacionais; o TPI actua segundo o principio da complementaridade, isto é, exerce a jurisdição
apenas quando os tribunais nacionais são relutantes ou incapazes de genuinamente proceder
criminalmente..
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disto, o TPIJ e o TPIR são órgãos subsidiários do Conselho de segurança; o TPI foi
criado e é mantido pela Assembleia dos Estados partes no Tratado de Roma. O
Procurador do TPIJ e do TPIR é nomeado pelo Conselho de segurança; no caso do TPI,
o Procurador é eleito pelos Estados parte no Tratado de Roma. Uma das grandes
diferenças em relação aos dois tribunais ad hoc é a possibilidade de as vítimas
comparecerem no tribunal para expressar suas opiniões e para reivindicar reparação
para as injustiças que sofreram
21
O exercício da jurisdição do Tribunal depende da denúncia ao procurador por um
Estado Parte ou pelo Conselho de Segurança de situação em que haja indícios de ter
ocorrido a prática de um ou vários crimes da sua competência (Artigo 13 do Estatuto
do TPI). As informações recebidas pelo Procurador sobre a prática de crimes da
competência do Tribunal poderão levar a, por sua própria iniciativa, abrir um inquérito
se concluir que para tanto existe fundamento suficiente e obtiver autorização do jzo
de instrução para abertura do inquérito (Artigo 15 do Estatuto do TPI). No
desenvolvimento das suas iniciativas de inquérito, o Procurador terá que desencadear
algumas decisões preliminares sobre admissibilidade com vista a garantir o
funcionamento do princípio da complementaridade da intervenção jurisdicional do TPI
(Artigo 18 do Estatuto do TPI). Isto é, “é dever de todo o Estado exercer a respectiva
jurisdição penal sobre os responsáveis por crimes internacionais” (Preâmbulo do
Estatuto do TPI); o Procurador pode instaurar o procedimento criminal apenas no caso
de o Estado genuinamente não poder ou não querer proceder criminalmente.
.
O procurador poderá, em regra por uma única vez e antes do julgamento ou no seu
início, solicitar ao Tribunal que se pronuncie sobre questões de jurisdição ou
admissibilidade. Se for decidido transferir um inquérito para um Estado, o Procurador
poderá pedir ao Estado em questão que o mantenha informado do seguimento do
processo. Esta informação deverá ser mantida confidencial se o Estado assim solicitar.
Se o Procurador decidir, posteriormente, abrir um inquérito, comunicará a sua decisão
ao Estado para o qual foi transferido o processo (Artigo 19 do Estatuto do TPI).
O Artigo 42 do Estatuto TPI, nos seus nove parágrafos, apresenta o Gabinete do
Procurador do TPI como actuando de forma independente enquanto órgão autónomo do
Tribunal; presidido pelo Procurador coadjuvado por Procuradores-adjuntos todos de
elevada idoneidade moral; o Procurador será eleito por escrunio secreto e por maioria
absoluta de votos dos membros da Assembleia dos Estados-Parte; o Procurador e os
Procuradores-adjuntos estão sujeitos à regra da exclusividade; podem ser sujeitos a
recusa se a sua imparcialidade estiver em causa.
Uma Unidade de Apoio às Vítimas e Testemunhas será criada no âmbito da Secretaria
com vista a adoptar medidas de protecção e dispositivos de segurança, a prestar
assessoria e outro tipo de assistência às testemunhas e vítimas que compareçam
perante o Tribunal e a outras pessoas ameaçadas em virtude do testemunho prestado
por aquelas (Artigo 43 do Estatuto do TPI).
21
Nos tribunais da Jugoslávia e do Ruanda, as vítimas compareciam no Tribunal sobretudo como
testemunhas. No entanto, no estatuto do TPI, aqueles que sofreram foram elevados de um mero auxílio
em processo judicial sem interesse próprio proteger mas que do sistema de justiça Várias disposições no
estatuto de Roma estipulam o envolvimento das vítimas durante todas as fases do processo. Mais
importante ainda, as vítimas de crimes internacionais podem reivindicar reparação por violação dos seus
direitos. Eles vão fazer isso por conta própria ou através de seus representantes, não através de um
estado defendendo suas reivindicações participantes legítimos.
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O Procurador nomeará “o pessoal qualificado necessário aos respectivos serviços,
nomeadamente, (…) o pessoal encarregue de efectuar diligências no âmbito do
inquérito”. No tocante ao recrutamento de pessoal, o procurador assegurará “os mais
altos padrões de eficiência, competência e integridade”. O Procurador poderá, em
circunstâncias excepcionais, recorrer à utilização de pessoal disponibilizado a título
gratuito, pelos Estados Partes, organizações intergovernamentais e organizações não-
governamentais (Artigo 44 do Estatuto do TPI).
O Procurador, os Procuradores-adjuntos e o pessoal do Gabinete do Procurador gozam,
no exercício das suas funções ou em relação a estas, de privilégios e imunidades e das
facilidades necessárias ao cumprimento das respectivas funções (Artigo 48 do Estatuto
do TPI).
A função primordial do Procurador é investigar e proceder criminalmente contra os
autores de violações massivas dos direitos humanos e do DIH.
É possível vislumbrar algumas semelhanças entre o procedimento penal por crimes em
grande escala ou violações massivas a nível internacional e o procedimento penal por
crime organizado a nível nacional. Há, no entanto, um número de importantes
diferenças que fazem com que os dois tipos de procedimento dificilmente sejam
comparáveis. Salientam-se, pelo menos duas diferenças do procedimento penal
internacional. A primeira tem a ver com a falta de uma organização executiva que
obrigue as autoridades nacionais a realizar investigações no território de um Estado
sem sua ajuda, e a ausência de uma força para proceder a detenções, o que confere
primordial importância à cooperação do estado. A segunda é o facto de o modelo
processual dos tribunais penais internacionais ser uma mistura de elementos do
processo acusatório (common law) com elementos do processo inquisitório (civil law).
De facto, vários conceitos e procedimentos adoptados de ambas as tradições jurídicas
podem ser encontrados nos Estatutos dos Tribunais, nas Regras de Procedimento e de
Prova, bem como na abordagem do Procurador, dos advogados de defesa e de juízes à
introdução de provas e, em geral, à maneira por que o processo é conduzido.
Um dos principais exemplos disso é a aceitação da prova dos factos por meios que não
sejam a prova presencial como resultado da influência da tradição do direito civil.
Mesmo assim, alguns métodos normalmente usados em processo penal nacional podem
vir a ser úteis a nível internacional, tais como recorrer a testemunhas “insiders”.
Embora seja conhecida pelos sistemas nacionais, tal prática pode ter um significado
particular no contexto da acusação dos crimes internacionais, designadamente em que
os acusados são de elevado nível hierárquico. Também pode ser relevante em certas
formas de participação criminal (tais como a noção de empresa penal conjunta, joint
criminal entreprise). O testemunho de um insider num caso de empresa criminal
conjunta é uma das melhores maneiras de provar o propósito da empresa criminosa e
dos seus membros. Insiders podem e devem ser usados em casos criminais complexos,
porque a prova de uma complexa organização criminosa e dos seus dirigentes pode ser
extremamente difícil e consumir tempo ou recursos.
Apesar de ferramentas de investigação semelhantes poderem ser utilizadas ou
semelhantes conceitos jurídicos aplicados a nível nacional, desafios únicos surgem
quando investigando e processando criminalmente a nível internacional. Algumas são
óbvias, como a falta de uma força de polícia ou agentes de execução e outras menos
óbvias, como o impacto do processo combinado de common law/civil law.
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Tais desafios têm impacto no tipo de métodos de investigação, no recrutamento de
pessoal e ferramentas judicas usadas e sua eficácia. Apenas uma mistura de
ferramentas tradicionais e inovadoras de investigação criminal e o equilíbrio das
diferentes culturas jurídicas nacionais podem assegurar uma eficaz repressão dos
crimes internacionais.
À semelhança do que já havia acontecido com o TPIJ, o TPI adoptou o modelo
acusatório, um dos pilares fundamentais em que assenta toda a função e actividade do
Procurador. Assim, cabe ao Procurador investigar, à charge et à dècharge, as suspeitas
de existência de crimes e, se for caso disso, acusar os suspeitos. No entanto, existem
pelo menos três importantes excepções o modelo acusatório.
A primeira é que, como em Nuremberga e Tóquio, não existem regras técnicas para a
admissibilidade de provas. Consequentemente, todos os elementos de prova
pertinentes podem ser admitidos ao processo, a menos que o seu valor probatório seja
substancialmente compensado pela necessidade de garantir um julgamento justo ou a
prova foi obtida por uma grave violação dos direitos humanos.
Em segundo lugar, enquanto normalmente no sistema acusatório o tribunal deve
contentar-se com as provas produzidas pelas partes, o Tribunal pode ordenar a
produção de provas adicionais proprio motu. Isso permitirá ao Tribunal ficar
plenamente satisfeito com as provas em que baseia as suas decisões finais. Foi
considerado que, na esfera internacional, os interesses da justiça são mais bem
servidos por essa disposição e que a diminuição, se for o caso, dos direitos das partes é
mínima por comparação.
Em terceiro lugar, a conceso de imunidade e a prática da plea-bargaining não
encontra nenhum lugar nas Regras de Procedimento e de Prova. Continua a ser
inteiramente uma questão para o Procurador determinar contra quem proceder
criminalmente. A cooperação de um acusado também será tida em conta como
circunstância atenuante, bem como para efeitos de concessão de indulto ou comutação
da sentença.
O gabinete do Procurador opera independentemente dos juízes do Tribunal. Há, no
entanto, uma relação estreita e cooperativa entre o gabinete do Procurador e o resto
do Tribunal em assuntos administrativos, pessoal e outros assuntos relevantes sobre o
funcionamento do Tribunal como um todo.
A seleção de pessoal para o Procurador é um exercício exigente e demorado. Não é
exagero salientar que o sucesso do Tribunal como um todo depende muito do calibre do
pessoal de investigação do gabinete do Procurador. Ter procuradores experientes e
qualificados é importante: se as provas da acusação não são exaustivas e completas,
ou é insuficientemente preparada, o risco de falha da acusação é elevado, face ao
princípio in dúbio pro reo.
O Procurador do TPI, como nos outros casos, rege a sua actuação pelo principio da
obrigatoridade da acção penal: deve exercer a acção sempre que se verifiquem os
elementos constitutivos da conduta penalmente típica, não lhe cabendo a opção de a
exercer ou não.
O Procurador não dispôe de forças policiais ao vel internacional. Assim, o Procurador
terá que se socorrer dos agentes policiais dos Estados se necessitar de apoio policial no
cumprimento das suas funções de investigação, de acusacao e de procedimento
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criminal. Não há um quadro internacional denominado “policia judiciária”, mas o
Procurador pode contar com inúmeros outros mecanismos governamentais ou não de
investigações.
O Gabinete do Procurador é um dos órgãos que compõem o Tribunal (Artigo 34 do
Estatuto do TPI). O Artigo 42 do Estatuto do TPI garante a autonomia funcional,
dispondo que o Procurador actuará de forma independente, em separado doTPI. O
Procurador está encarregado de receber, por qualquer forma idónea, notitia criminis
acerca de crimes da competência do TPI e investigar e exercer a ação penal.
O Procurador pode também propor alterações aos elementos constitutivos dos crimes
(Artigo 9 (2) do Estatuto do TPI) e emendas às Regras de Procedimento e de Prova
(Artigo 51 (2) c) do Estatuto do TPI). Para a consecução de um TPI independente e
imparcial, o Procurador gozará dos mesmos privilégios e imunidades para o
cumprimento das suas funções no território de cada Estado-parte (Artigo 48 do
Estatuto do TPI).
O gabinete do Procurador é dirigido por um Procurador, com plenos poderes de
direcção e administração e poderá ser coadjuvado por procuradores adjuntos, de
nacionalidades diferentes e com regime de dedicação total e exclusiva. O Procurador,
bem como os procuradores adjuntos, devem gozar de alta consideração moral e
elevada competência técnica, além de extensa experiência prática no exercício da ação
penal e da sustentação em julgamento. O Procurador será eleito por votação secreta e
por maioria absoluta de votos dos membros da Assembleia dos Estados-partes para um
mandato de nove anos, sem reeleição. O Gabinete atuará de forma independente,
enquanto órgão autônomo do Tribunal, cabendo-lhe receber participações e quaisquer
outros tipos de informações devidamente fundamentadas sobre crimes da competência
do Tribunal, com o objetivo de as examinar e investigr e, se disso for caso, exercer a
ação penal junto do Tribunal.
4. O Procurador e o processo penal internacional
O processo penal internacional é diferente dos processos nacionais em vários aspectos.
Uma das diferenças mais salientes é a função simbólica do processo penal
internacional, que é considerada essencial para o processo de paz numa sociedade pós-
conflito armado; em outras palavras, em que não pode haver paz sem justiça.
No entanto, isto só será possível quando a legitimidade desses processos é conferida
pelas comunidades envolvidas, e as mensagens dos processos são recebidas e aceites
pelas respectivas comunidades. Assim, se os tribunais devem contribuir para os
esforços de reconciliação e de paz nas comunidades atingidas, eles precisam de
comunicar com as populações interessadas. Apesar de muito progresso ter sido feito na
última década, planos de outreach continuam a ser um desafio significativo para os
tribunais ad-hoc e para o TPI.
Além de obstáculos externos a esta comunicação, existem também barreiras internas.
Por um lado, há quem repetidamente peça mais recursos para as acções de divulgação
para que os tribunais atinjam os seus ambiciosos objectivos. Por outro lado, há que se
questione se é apropriado para os procuradores e juízes envolverem-se em ações de
divulgação. Afinal de contas, os tribunais penais internacionais são modelados nos
tribunais nacionais que, por regra, não assumem esse papel.
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Os procuradores e os juízes, formados nas jurisdições domésticas, focam-se
essencialmente nos elementos técnicos dos crimes e nos aspectos processuais do caso.
Além da aplicação do direito, qualquer outra actividade é considerada “política” e o
“político” é um termo tabu. Apesar disso, deve ser salientado que as funções retóricas
do direito penal internacional são fundamentalmente diferentes da legislação nacional:
há razões pertinentes para os tribunais internacionais gerirem cuidadosamente sua
imagem e avaliação pública, o que aliás deveria ser feito também a nível nacional.
Em primeiro lugar, o direito penal internacional está ainda na sua infância. O TPIJ,
como primeiro tribunal ad hoc na história recente, foi estabelecido apenas há duas
décadas. Ao contrário do direito penal interno que pode ter séculos de história e de
jurisprudência, ainda há uma falta de compreensão sobre o que são os tribunais penais
internacionais e que objectivo servem; o ICC ainda permanece desconhecido em muitas
partes do mundo.
Em segundo lugar, além deste alheamento e desconhecimento, o direito penal
internacional destina-se normalmente a comunidades com pouca experiência prévia de
um poder judicial imparcial e independente; caso contrário, eles estariam dispostos e
seriam eles próprios capazes de investigarem e processarem os crimes. Portanto, é
importante para o direito penal internacional estabelecer um novo começo para estas
comunidades e ser um exemplo para os tribunais nacionais. Isto só será possível se o
público receber uma imagem positiva e justa dos tribunais penais internacionais.
Em terceiro lugar, o direito penal internacional cuida essencialmente dos crimes de
genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra. Naturalmente, as
comunidades devastadas por estes crimes estão traumatizadas, cheias de receio e
desejosas de encontrar um culpado de quem se vingar. Por sua vez, na maioria dos
casos, os políticos locais e os seus meios de comunicação agitam estes sentimentos, o
que de pôe em risco o processo de paz e de reconciliação e nenhum outro tipo de ajuda
está disponível, a não ser a intervenção dos tribunais internacionais. O direito penal
nacional visa punir e prevenir os crimes; o direito penal internacional destina-se
também a contribuir para paz, segurança e bem-estar da comunidade internacional.
Como caso de violação em massa dos direitos humanos e do direito internacional
humanitário, o genocídio de Srebrenica apresentou desafios legais e logísticos únicos
excepcionais, devido ao grande número de timas, testemunhas, perícias médico-
legais, incidentes e documentos probatórios envolvidos
22
, bem como as complexidades
jurídicas originais dos vários crimes em questão
23
O TPIJ e o TPIR foram criados como órgãos das Nações Unidas, que até então nunca
tinha administrado justiça penal internacional. Por conseguinte, a necessidade de
estabelecer um equilíbrio entre as prioridades das operações de investigação criminal e
.
22
Na primeira instância e depois de muito decantado na preparação para julgamento, o processo teve 103
testemunhas chamadas pelo Procurador; 13 testemunhas chamadas pela Defesa (incluindo, o próprio
General Radislav Krstić). O Procurador apresentou 910 documentos (alguns dos quais extensos dossiers)
e a Defesa apresentou 183 documentos.
23
Ver ICTY, KRSTIĆ (IT-98-33) "SREBRENICA DRINA CORPS" e outros casos relacionados: BLAGOJEVIĆ &
JOKIĆ (IT-02-60) “SREBRENICA; ERDEMOVIĆ (IT-96-22) PILICA FARM”; KARADŽIĆ (IT-95-5/18)
“BOSNIA AND HERZEGOVINA” & “SREBRENICA”; MILOŠEVIĆ (IT-02-54) “KOSOVO, CROATIA AND
BOSNIA”; MLADIĆ (IT-09-92) “BOSNIA AND HERZEGOVINA” & “SREBRENICA”; NIKOLIĆ MOMIR (IT-02-
60/1) “SREBRENICA”; OBRENOVIĆ (IT-02-60/2) “SREBRENICA”; ORIĆ (IT-03-68); PERIŠIĆ (IT-04-81);
POPOVIĆ et al. (IT-05-88) “SREBRENICA”; STANIŠ & SIMATOV (IT-03-69); TOLIMIR (IT-05-88/2)
“SREBRENICA”; TRBIĆ (IT-05-88/1) “SREBRENICA.
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a detenção de suspeitos e observância de outros princípios das Nações Unidas criou
desafios legais, institucionais e operacionais específicos para o Procurador no
cumprimento do seu mandato para investigar os crimes e iniciar o procedimento
criminal no Tribunal. Tais desafios foram aumentados com a complexidade dos crimes,
sua magnitude pura, os desafios colocados pelo ambiente físico na ex-Jugoslávia, as
preocupações de segurança das potenciais testemunhas e o facto de que nos primeiros
anos as detenções dos suspeitos frequentemente precederam as investigações
24
.
5. Algumas questões
Os crimes de genocídio, contra a humanidade e de guerra (em geral, crimes de guerra)
são, por definição, de caráter massivo. Os crimes internacionais têm carácter
sistemático ou generalizado. Assim, pode inferir-se que as ações dos autores foram
coordenadas e organizadas por militares e/ou funcionários civis de alto escalão. Por
outro lado, o seu caráter massivo implica uma abordagem diferente da do nível
nacional em "selecionar", investigar, indiciar, provar, julgar, definir responsabilidades,
punir, reparar e executar sanções.
Em suma, isto significa que uma teoria criminal construída com base em casos
individuais de violação criminal não é adequada a ser aplicada como tal em casos de
violações criminais em massa. Ao todo, processar os casos de crimes de guerra não é o
mesmo, nem da mesma maneira, que processar os casos de crime comum.
Além disso, um tribunal nacional com competência para julgar crimes de guerra deve
considerar os processos como sendo de natureza urgente e ser tendencialmente
internacionalizado porque, devido às circunstâncias e à natureza das violações do DIH,
os crimes são internacionais e afectam toda a humanidade e comunidade internacional.
Na verdade, os julgamentos de crimes de guerra devem terminar o mais rapidamente
possível face às exigências do processo de reconciliação e por juízes completamente
independentes e imparciais. Os jzes nacionais, mesmo que não tenham pegado em
armas no conflito armado
25
É necessária uma estratégia para a acusação e julgamento de crimes de guerra? A
resposta é claramente sim. O Procurador precisa de actuar dentro de uma estratégia de
encerramento e conclusão: quando se observa que os crimes de guerra que se
destinam a ser julgados já foram cometidos há muito tempo; a maior parte das
operações criminosas foram investigadas e documentadas por diferentes entidades
, de uma certa forma sempre tomaram partido por uma
parte no conflito. Em princípio, quem tomou parte num conflito não pode ser
completamente independente e imparcial ou, pelo menos, publicamente não pode ser
percebido como tal. Justiça deve ser feita e deve ser vista ser feita.
24
Na investigação e procedimento criminal por violação massivas dos direitos humanos ou do direito
internacional humanitário, é extremamente importante trabalhar no sentido investigar primeiro as
suspeitas de violação, deduzir depois acusação conjunta dos suspeitos que participaram na mesma
operação criminal, e proceder àdetenção dos acusados de forma organizada. Nas violações massivas, os
suspeitos de terem cometido crimes de guerra são heróis para a outro lado do conflito e mantêm circuitos
de comunicação e redes de relações que permitem perturbar as investigações, destruir provas, intimidar
as testemunhas e organizar a fuga à detenção
25
Como se sabe, a maioria dos conflitos armados acontecidos depois da Segunda Guerra mundial, foram
conflitos não internacionais, vulgarmente conhecidos por guerras civis. Assim, a percepção pública da
independência e imparcialidade do tribunal torna-se muito importante e decisiva. Sem esta dimensão, os
julgamentos por mais justos e rápidos que sejam serão sem efeito e impacto no processo de paz e
reconciliação das comunidades.
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públicas e privadas; a maior parte dos suspeitos estão identificados; o risco de perder
provas, de cansaço e desmotivação das testemunhas aumenta com o decurso do
tempo; as novas gerações estão mais focadas no futuro do que no passado;
julgamentos rápidos e justos é a única maneira de resolver e fechar a porta do passado
e abrir a porta do futuro
26
Após ter considerado estes pontos, deve perguntar-se ao Procurador quantos casos e
qual é a estratégia
; uma resposta judicial não é a única solução para fechar o
passado e abrir o futuro; a justiça é sobre o passado e reconciliação é sobre o futuro.
27
A empresa criminosa conjunta (joint criminal entreprise) é particularmente aplicável em
circunstâncias em que altos líderes compartilham a intenção de cometer um crime e
cada um contribui para atingir o propósito criminoso. A relação entre os autores pode
ou não ser hierárquica, mas isso não é determinante
(selecionar e mapear os casos, estabelecer bancos de dados
interativos e centralizados, deduzir acusação). Há ainda que ter em conta a
disponibilidade de recursos necessários (humanos, financeiros e materiais) em
interação organizada para alcançar o objectivo comum de fechar a porta do passado...
28
É a práctica do crime em conjunto com a intenção compartilhada que define a relação.
Mesmo se praticado através de outros, os crimes são fundamentalmente os crimes dos
membros da empresa, não necessariamente daqueles indivíduos que perpetraram
fisicamente o crime. O conceito reflete a realidade em que atrocidades em larga escala
são cometidas pela actuação combinada de várias forças ou agentes, e o objectivo
criminal pode apenas ser compartilhado pelos líderes que tomam medidas para
alcançar o seu resultado.
.
Em Agosto de 2003, o Conselho de Segurança emitiu a Resolução 1503, exortando o
ICTY a “concentrar-se sobre a acusação e o julgamento dos altos dirigentes suspeitos
de serem responsáveis por crimes dentro jurisdição do TPIJ” e a transferir os outros
casos para os tribunais nacionais competentes.
A transferência de um processo de um tribunal internacional para um tribunal nacional
provou ser um assunto complexo e pôs uma série de questões legais e organizacionais
difíceis de resolver. Mas deve ser anotada a maneira eficiente e eficaz em que a Secção
dos Crimes de Guerra do Tribunal da Bósnia, em cooperação com o ICTY, lidou com a
situação
29
26
Em Sarajevo (2008) foi dito por diplomatas que a questão dos "crimes de guerra” na Bósnia foi
envenenando o ambiente político, social, econômico e o relacionamento pessoal. Era necessário limpar
este tipo de veneno e fechar a questão dos crimes de guerra tão rapidamente quanto possível.
.
27
Ver Office of the United Nations High Commissioner for Human Rights, Rule-of-Law tools for post conflict
States, Prosecution initiatives, United Nations, New York and Geneva, 2006.
28
Ao contrário, a relação hierárquica é determinante para o apuramento e estabelecimento da
responsabilidade do superior hierárquico, seja o superior civil ou militar, seja a responsabilidade de jure
ou de facto.
29
O processo de Radovan Stanković foi o primeiro a ser transferido do TPIJ para a Secção dos Crimes de
Guerra do Tribunal da Bósnia e Herzegovina. Em 10 de julho de 2002, ele foi colocado sob custódia na
unidade de detenção do TPIJ. Em 1 de setembro de 2005, o TPIJ decidiu a transferência do caso para o
Tribunal da Bósnia-Herzegovina e, em 29 de setembro de 2005, o acusado foi transferido para a Bósnia e
Herzegovina. Em 7 de dezembro de 2005, o Tribunal confirmou/aceitou a acusação. Este também foi o
primeiro “caso 11bis” finalizado no Tribunal da Bósnia e Herzegovina. De facto, em 14 de novembro de
2006, o julgamento de primeira instância do Tribunal da Bósnia e Herzegovina condenou Radovan
Stanković pelo crime contra a humanidade e aplicou a pena de prisão de16 anos. Em 28 de março de
2007, a instância de recurso modificou a sentença de prisão para 20 anos. Outros casos transferidos do
TPIJ para o Tribunal da Bosnia e herzegovina foram: Ljubičić (IT-00-41) ''Lašva Valley''; Mejakić et al.
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ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 1 (Maio-Outubro 2015), pp. 125-141
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Outros princípios jurídicos foram também desenvolvidos como resultado da
transferência de processo também merecem alise. Estes incluem o desenvolvimento
dos mecanismos de cooperação do Procurador do TPIJ com o Procurador do Tribunal da
Bósnia e Herzegovina, da noção de "factos provados" e o regime de "prova
documental" do processo do TPIJ. Tais desenvolvimentos contribuem para o património
do ICTY e, portanto, para deixar um legado duradouro para futuros tribunais a lidar
com crimes internacionais. Apesar da diferente natureza jurídica do ICTY e do TPI, essa
experiência pode ser vista como o complemento do princípio da complementaridade e é
uma aprendizagem decisiva para o futuro relacionamento entre tribunais penais
internacionais e nacionais.
Um dos objectivos do pré-projecto de investigação “A Justiça Penal Internacional” é
”suscitar novas propostas para algumas das problemáticas que atualmente se colocam
no âmbito da justiça penal internacional”.
Face ao exposto e, particularmente, tendo em conta o caráter massivo dos crimes de
genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de guerra, haverá que formular
algumas questões relevantes para a acção do Procurador como magistrado
internacional, esperando que elas se traduzam em novas propostas para algumas das
problemáticas que atualmente se colocam no âmbito da justiça penal internacional.
Assim, que tipo de consequências sobre a independência e imparcialidade de um
tribunal, pelo menos ao nível da percepção pública e sobretudo nos casos de conflitos
armados não internacionais?
Quais criminosos e crimes que devem ser julgados? Como abordar a acusação de
crimes em grande escala a nível internacional? Como desenhar a selecção dos casos
que vão ser investigados e ser apresentados a julgamento, sendo impossível julgar
todos os presumidos responsáveis pelos crimes cometidos num conflito armado?
Em que forma de participação do suspeito na accão criminosa pode o Procurador
basear-se para deduzir a acusação por crimes de grande escala ou empresas criminais
conjuntas (joint criminal entreprises)?
Como coligir as provas e que provas destinadas a construir o caso de violação massiva
para julgamento, tendo em conta que nas circunstâncias não foi possível obter provas
contemporâneas (por exemplo, escutas telefónicas, registos de vídeo e áudio) e que a
investigação depende da cooperação dos Estados nem sempre disponíveis para
cooperar?
Como enquadrar as vítimas/testemunhas no processo, como conceber a reparação das
vítimas e que contributo, se algum, da jurisprudência nacional? Que conceito de
reparação tendo em conta que as violações são de caracter massivo, que nem sempre
as pessoas desalojadas pelo conflito regressam a casa e que qualquer reparação
deveria significar uma reparação colectiva e a reconstrução da vida em comum?
Como articular as investigações e procedimento criminal ao nível internacional e
nacional, tendo em conta que o tipo legal contém elementos gerais (chapeau elements,
v.g., widespread or systematic attack) e elementos mais específicos (underlying
criminal ofenses, v.g. murder)?
(IT-02-65) "Omarska and Keraterm Camps"; Stanković & Janković (IT-96-23/2) "Foča"; Todović &
Rašević (IT-97-25/1) "Foča"; Trb (IT-05-88/1) "Srebrenica"
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Como transferir do tribunal internacional para o tribunal nacional os factos dados como
provados e os respectivos meios de prova e como partilhar recursos técnicos, humanos
e materiais de investigão criminal?
Que tipo de provas se têm demonstrado ser útil para processar violações sérias do
DIH? Quais os desafios que afectam a recolha de elementos de prova relevantes? Como
optimizar a apresentação dos meios de prova, designadamente recolhendo e
estabilizando o depoimento de testemunha com vista a ser utilizado nos diferentes
processos? Por exemplo, porque sujeitar umatima de violação sexual a diferentes
depoimentos em diferentes processos, em diferentes lugares e datas? Será necessário
e admissível traumatizar as vítimas em nome da justiça e reconciliação?
Quais são os meios mais eficazes de lidar com os fatores externos que influenciam a
investigação e procedimento criminal em suspeita de violações do DIH?
6. Conclusão
O Procurador como magistrado internacional é um órgão que integra a composição do
Tribunal Internacional, com autonomia no exercício das suas atribuições e
competências. As suas atribuições e competências, em certa medida, equiparam-se
nominalmente às do Procurador como magistrado nacional. No entanto, tais atribuições
e competências diferem substancialmente e metodologicamente no quadro da justiça
penal internacional. A experiência requerida ao nível nacional como requisito de
recrutamento ajuda, mas claramente não chega para um eficiente e efectivo
desempenho da função. Como especial requisito exige-se uma boa compreensão da
dinâmica das violações massivas dos direitos e consequente aproximação do ponto de
vista da investigação, procedimento criminal e algumas especificidades do processo
penal internacional. Os desafios face à investigação e acusação de crimes em larga
escala ou violações criminais massivas cometidos há anos num país soberano
estrangeiro são únicos e de caracter verdadeiramente singular. Assim, é ao mesmo
tempo notável e surpreendente em muitos aspectos que as ferramentas legais de
investigação à disposição do Procurador tenham mesmo assim produzido os resultados
que é possível observar e quantificar. É importante lembrar que essas ferramentas
legais de investigação foram desenvolvidas em um ambiente mesclado de contribuições
provenientes do sistemas de common law e civil law, e sempre orientadas no sentido
de responder à questão essencial de saber como obter um processo justo e rápido (fair
and expeditious trial). Embora os desafios continuem, o trabalho do Procurador como
magistrado internacional representa já uma realização considerável na luta contra a
impunidade das violações graves dos Direitos Humanos e do Direito Internacional
Humanitário.
Como citar esta Nota
Rodrigues, Almiro (2015). "O procurador como magistrado internacional". Notas e Reflexões,
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 6, N.º 1, Maio-Outubro 2015. Consultado
[online] em data da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol6_n1_not1