OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 9, Nº. 2 (Novembro 2018-Abril 2019), pp. 48-63
O CONFRONTO ENTRE TRADIÇÃO E MODERNIDADE: A PROCLAMAÇÃO DA
REPÚBLICA EM PORTUGAL
Luís Alves de Fraga
alvesdefraga@gmail.com
É doutor em História, mestre em Estratégia, licenciado em Ciências Político-Sociais e coronel
reformado da Força Aérea Portuguesa. É, também, professor na Universidade Autónoma de
Lisboa (Portugal).
Resumo
Temos usufruído do prazer de ver discutida a proclamação da República em Portugal das mais
variadas maneiras e, salvo qualquer lapso involuntário, aquele trabalho mais profundo, que
nos impressionou pela multiplicidade de perspectivas foi o da investigadora Alice Samara,
levado a cabo na sua dissertação de doutoramento (Samara, 2010). Ali, ela levanta várias
hipóteses explicativas para os diferentes entendimentos da República, segundo as
perspectivas e os momentos pelos quais se olha o regime e a ideia republicana.
Também, recentemente, foi publicado um excelente artigo de Jorge Pais de Sousa, sobre
Afonso Costa, que nos dá a possibilidade de compreender a República segundo um ponto de
vista até agora quase não identificado (Sousa, [s.d.]).
A nossa perspectiva não procura fazer um juízo crítico, parcelar, da legislação e dos
comportamentos políticos e partidários durante os dezasseis anos de regime, entre 1910 e
1926, para concluir sobre a vitória ou derrota do pensamento republicano neste ou naquele
domínio particular; interessa-nos, focando a atenção em todo o período, perceber e explicar
a República antes e depois da proclamação em função do confronto entre o grupo social
defensor do salto para a modernidade, para o novo, para o diferente, e o grupo defensor da
manutenção da realidade existente, da tradição, do conservadorismo.
Palavras chave
1ª. República, Modernidade, Conservadorismo, Portugal, Revolução.
Como citar este artigo
Fraga, Luís Alves de (2018). "O confronto entre a tradição e a modernidade: a proclamação
da República em Portugal". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 9, N.º 2,
Novembro 2018-Abril 2019. Consultado [online] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.9.2.4
Artigo recebido em 5 de Março de 2017 e aceite para publicação em 13 de Julho de 2018
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O confronto entre tradição e modernidade: a proclamação da República em Portugal
Luís Alves de Fraga
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O CONFRONTO ENTRE TRADIÇÃO E MODERNIDADE: A PROCLAMAÇÃO DA
REPÚBLICA EM PORTUGAL
Luís Alves de Fraga
1
Introdução
no passado houve estudos que procuraram compreender a 1.ª República (Wheeler,
1978) ou explicar alguns dos insucessos republicanos (Lúcio; Marques, 2010) ou, indo
um pouco mais a fundo em determinadas especificidades, tais como a educação,
quiseram demonstrar a pouca eficácia política dos republicanos, naquela época
(Candeias, 2003); outros quiseram relacionar a questão religiosa com a questão social,
demonstrando o anticlericalismo republicano (Catroga, 1988).
aqui que explicar, para o tornar operacional, o conceito de moderno/modernidade,
por um lado, e, por outro, o de tradição.
Segundo Hans Ulrich Gumbrecht, citado por João Feres Júnior (Feres Júnior, 2010: 31),
moderno/modernidade pode ter o significado
«(…) de “novo” e oposição a “velho”: nesse caso se tem o embrião
de uma consciência epocal onde moderno define um espaço de
experiência presente que se quer distinto do passado. Esse uso
geralmente está ligado a um esquema temporal mais ou menos
explícito de hierarquização das eras, ou seja, é fortemente
valorativo.»
É nessa perspectiva que nós utilizamos o termo modernidade o qual está, como o
sociólogo afirma, em oposição a velho ou tradição. Esta noção de modernidade e de
tradição também está patente na Antropologia Cultural (Titiev, 1969: 176-183).
Usaremos mais um conceito, que nos servirá de apoio e que tem a sua origem na
Estratégia: o de conflito (Fiéviet, 1993: 51; 57; 81-82) como motor de mudança, ou
seja, a oposição dialéctica, afirmada ou latente, entre os grupos sociais em confronto.
Pode parecer quase despiciendo o nosso objectivo, no entanto, porque temos certezas
quanto à lentidão das mudanças comportamentais colectivas e mais profundas das
sociedades humanas, defendemos que os fios condutores culturais e sociológicos se
transmitem quase sem alteração de geração para geração, definindo comportamentos
1
O autor escreve segundo o Antigo Acordo Ortográfico Português.
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colectivos condicionantes das escolhas políticas e das mudanças que elas, em si mesmas,
transportam. Não se trata de um determinismo, mas do desequilíbrio ou, se se preferir,
do confronto permanente entre Apolo e Dionísio (Benedict, [s. d.]), entre a ordem e a
desordem, entre o convencional e o não convencional. E esse ficar e partir é de sempre,
variando somente em função da força de cada um dos elementos opostos e em confronto.
A escolha da mudança de regime monárquico para republicano possibilita-nos o
observatório ideal que nos leva à compreensão da dinâmica das forças em constante
diálogo dialéctico pré-conflitual ou mesmo em conflito declarado.
Desmontaremos a ideia republicana para perceber até que ponto ela se cumpriu em
Portugal tanto no período imediatamente anterior como posterior à mudança de regime
ocorrida em 1910. Vão ficar muitos lapsos, muitos aspectos por abordar, mas faremos
uma afirmação-tese, que, esperamos, não seja entendida como um lugar-comum.
O nosso trabalho divide-se em duas partes. Na primeira, pretendemos perspectivar o que
de revolucionário conteve a ideia e a realidade republicanas em Portugal; na segunda,
mais curta em pormenores, vamos tentar perceber como é que a República defraudou
os republicanos ou, se se preferir, como é que os republicanos não foram capazes de
cumprir a República e o que ela transportava em si mesma, se é que alguma coisa
transportava de diferente, para além de aparências, que não existisse na Monarquia.
1. A República: uma perspectiva revolucionária
Na Europa, a concepção de República foi, desde a Idade Moderna, revolucionária.
Compreende-se a razão de assim ser: à Monarquia está associado o poder divino como
processo legitimador do monarca. O teocentrismo medieval tinha de se reflectir no trono
para o justificar e dar-lhe superioridade ao lado de todos os poderes senhoriais de então.
Mas, no Iluminismo do Século XVIII, percebeu-se a necessidade do salto em frente,
fazendo transitar da aristocracia para a burguesia estudiosa e trabalhadora a sustentação
do poder de governar. A Revolução Francesa, tendo bebido nos teóricos, que sobre a
vontade popular discerniam princípios governativos, aprendeu, na prática, com a
Revolução Americana, que os povos não careciam de monarcas para a soberania ser um
valor pertença de todos. Aprendeu-se que a nova aristocracia provinha não do berço,
mas somente do aproveitamento das oportunidades. Essa foi a lição chegada do Novo ao
Velho Mundo.
No século XIX, os sucessos e insucessos da República na Europa resultaram da
articulação entre a Revolução Industrial e a Revolução Liberal, pois a primeira gerou o
caldo de cultura necessário à consciencialização do poder residir no Povo, ainda que nem
sempre os detentores do capital aceitassem estender a todos a capacidade de decisão
política (Obsbawm, 2001). Foi em França que se deu a primeira viragem definitiva para
a República. Uma França cheia de tradições revolucionárias, de contrastes sociais e
abismos entre grupos da população. Todavia, a par desta viragem, a França tinha
aprendido com Napoleão Bonaparte que a exportação da revolução não se devia impor
para fora das fronteiras, porque isso geraria guerras e a perda poderia ser maior do que
o ganho (Kissinger, 2015: 62). Por seu turno, as Monarquias na Europa, aceitando a
República em França, perceberam que se preservavam através de uma convivência
pacífica e tolerante. Contudo, depois da França, foi no Estado mais improvável que a
República se instalou, em segundo lugar, para ficar para sempre. Improvável, porque,
sendo essencialmente agrícola, sem indústrias significativas, parecia não possuir as
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condições políticas e sociológicas para despejar a Monarquia e, em seu lugar, pôr a
República. Esse Estado foi Portugal.
É nesta perspectiva que se tem de tentar perceber a razão da República num velho
Estado, monárquico por tradição de cerca de oitocentos anos. Nesse aspecto, julgamos,
têm de se escolher diversos pontos de observação para chegar a um resultado inteligível.
1.1. Um país de analfabetos
No censo levado a cabo em 1911 -se que 75% da população portuguesa era analfabeta
(Marques, 1980: 83), mas do relatório dos acontecimentos em 5 de Outubro de 1910
data da vitória republicana percebe-se que os mais empenhados na luta contra a
Monarquia foram os homens da rua e os soldados de algumas unidades militares de
Lisboa e, nem uns nem outros, eram, de certeza, gente letrada e erudita. Os analfabetos
deviam prevalecer em grande número. Mas fizeram a revolução!
Como se explica este aparente contra-senso? Valerá a pena tentar perceber que o
analfabetismo era transversal a toda a sociedade e tinha maior prevalência na população
rural agrícola. Por outro lado, é neste segmento social que mais fundo estava enraizada
a influência clerical católica, a qual se afirmava, então, verdadeiramente obscurantista e
politicamente conservadora. Assim, temos no mesmo grupo o dos analfabetos duas
posturas políticas diametralmente opostas: uma, a rural e agrícola, conservadora e
alienada e, outra, urbana, radical e, no limite, anticlerical.
A população analfabeta rural suportava, quase sem queixumes, toda a carga de
exigências feitas por uma Monarquia exangue e desnorteada. Era dela, e do seu trabalho,
que os médios e grandes proprietários agrícolas viviam na cidade, gastando em
suficiência para gozarem os prazeres de nada fazerem ou da associação das rendas
recebidas com os parcos rendimentos de um emprego dependente do orçamento, sempre
deficitário, do Estado. Esses pobres analfabetos guardavam em si a infinita capacidade
de tudo suportarem a troco da promessa de uma salvação eterna após a morte. E disso
se encarregava o pároco da aldeia, visita da casa dos maiorais onde era recebido com
honras que lhe inchavam o ego tanto mais magro quanto a sua origem social era,
também, rural, agrícola e provinciana.
Mas, nas cidades, em especial as maiores Lisboa, Porto e Coimbra os analfabetos
conviviam com aqueles que sabiam ler, escrever e contar. Ouviam o que se dizia nas
ruas, nas tabernas local de encontro para beber o copo de vinho com efeitos calóricos
suficientes para suprir uma alimentação quase sempre deficitária e nos bairros de ruas
estreitas, insalubres e miseráveis. E estes analfabetos, ainda que crentes na religião de
seus pais, tinham da acção clerical uma visão bastante mais crítica do que a dos rurais.
A vivência na cidade possibilitava-lhes a percepção das diferenças e, mais do que tudo,
das injustiças. Assim, eram empurrados para os terrenos da revolta, sendo presa fácil da
esperança sebastianista, messiânica, taumatúrgica.
1.2. Um país messianista
O cruzamento de culturas quando ainda não havia Portugal Portugal nasceu no final
da primeira metade do século XII , nomeadamente a islâmica com a judaica e a cristã,
deu características específicas ao comportamento dos Portugueses quanto ao divino e,
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em particular, quanto à esperança nas soluções divinas. O messianismo cuja origem
é comum às três religiões cruzadas no espaço português assumiu, no final do século
XVI, uma tonalidade específica depois da batalha de Alcácer-Quibir, quando o rei D.
Sebastião desapareceu engolido pelo furor dos combates individuais. O messias divino
transfigurou-se, aos olhos populares, no messias político que tomaria a figura de D.
Sebastião para reivindicar o trono que era seu e estava ocupado pelo tio, Filipe II de
Espanha. De um facto verdadeiro o desaparecimento do jovem rei surgiu a lenda
maravilhosa do salvador capaz de resgatar o seu povo de todos os infortúnios que a má
gestão faz cair sobre os Portugueses. O sebastianismo tornou-se na religião nacional
portuguesa, a esperança nos momentos de falta de esperança. E foi-se repetindo ao
longo dos tempos, empurrando para o domínio do miraculoso aquilo que o trabalho,
a vontade e a determinação são capazes de solucionar (Quadros, 1982).
Nos últimos vinte anos de Monarquia de 1890 a 1910 foi notória a acentuação do
desgoverno em Portugal. Vivia-se de empréstimos, porque as receitas públicas não
chegavam para as despesas. Os proventos das alfândegas eram dados como garantia de
pagamento e cada vez mais crescia o número de funcionários do Estado a quem se
pagava pouco num país onde toda a gente ganhava mal, mas fazia todos os possíveis
por esconder essa miséria endémica, refugiando-se atrás de títulos nobiliárquicos ou
não, quase sempre nada valendo nem quanto ao mérito de quem os possuía nem ao de
quem os concedia ou de prebendas honoríficas sem importância ou estatuto. Na
sociedade urbana, dessa época, as classes médias viviam a fazer de conta, tal como nos
mostra Gervásio Lobato, num romance que fez furor por causa da cáustica ironia das
situações descritas (Lobato, 1898).
O Partido Republicano Português (PRP), que começou a ganhar força e créditos por volta
de 1880, aquando das comemorações do terceiro centenário da morte de Luís de
Camões, era ainda, por essa altura, uma oposição incipiente à Monarquia e um
agrupamento político sem fundamentos populares, girando à volta de alguns jovens
intelectuais burgueses estudantes em Coimbra ou empregados em Lisboa. Todavia,
nele militavam alguns dos nomes que, em 1910, virão a ser figuras gradas da República.
É uma década mais tarde, em 1890, que o PRP alcança destaque e começa a mobilizar
adeptos para o novo regime na sequência do traumático ultimato britânico a Portugal. E
é conveniente que aqui nos detenhamos para perceber as transmutações sociológicas,
consequência das práticas políticas da Monarquia, operadas na altura.
Ainda que não fosse totalmente verdade, os Portugueses com alguma ilustração e aqui
excluímos a população rural trabalhadora agrícola, analfabeta e ignara das aldeias e vilas
perdidas no interior do país acreditavam que os territórios africanos onde colonos,
poucos, haviam hasteado a bandeira nacional eram uma herança do passado glorioso
e glorificado algures do tempo dos Descobrimentos. Acreditavam, de maneira dorida,
nessa quase lenda, tal como ainda sofriam, em silêncio, a recente perda da imensa
colónia do Brasil. E, para compensar a independência da grande colónia americana,
desenhou-se, primeiro entre uns quantos idealistas e, depois, em significativa massa de
gente carecida de sentir um Portugal grande e respeitado, o desejo de alcançar em África
um outro Brasil limitado, a ocidente, pela costa atlântica de Angola e, a oriente, pela
costa de Moçambique banhada pelo Índico. Este sonho encontrava explicação prática nas
decisões da Conferência de Berlim de 1884-1885, que estipulavam levar a cabo a
ocupação efectiva dos territórios às potências ambiciosas de serem coloniais. Mas o
sonho português contundia com a realidade britânica de ligar a cidade do Cabo, na África
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austral, ao Cairo. Embora Lisboa tivesse adoptado como política diplomática o silêncio
perante as repetidas chamadas de atenção de Londres, foi despertado pela brusca
ameaça feita pela Inglaterra, que não temeu intimidar, com o uso da força, um Estado
cuja capacidade militar era nula ou quase. A gente em Portugal não esperava tão alarve
manifestação de poder, ainda por cima, vinda da velha aliada, porque, mais do que um
problema político e diplomático, o que se sentiu em Portugal foi o peso da bofetada
sofrida sem capacidade de resposta. Foi o trauma do deficiente brutalizado pelo indivíduo
sem escrúpulos, sem moral e sem princípios de cordialidade. Os Portugueses sentiram-
se abalados nos pergaminhos poeirentos de um passado de grandeza. Foi como se todos
fossem anciãos quase inválidos e obrigados a estugar o passo até atingirem a exaustão.
O Portugal de sonho acordou bruscamente para uma realidade desconhecida: o interesse
esmagador do poderoso incapaz de poupar os andrajos viris arrastados por um
desgastado e velho impotente. Neste despertar Portugal culpou, finalmente, a Monarquia
e os seus Governos, sem se aperceber que a governação resultava das suas escolhas e
era a si mesmo que devia culpar. Assim, ainda que contrariada pelo estudo positivista
republicano (Andrade, 2014: 120-128), veio à tona a submersa ideia messiânica e
faltava encontrar o messias capaz de enfrentar, com grandeza, honra e poder, a mão
que tinha empunhado o açoite e humilhado a velha Pátria parideira de mundos dados ao
Mundo. O messias ergueu-se, na nossa opinião, numa perspectiva popular e não
consciencializada pelos políticos republicanos, na figura do PRP. A República era a
salvação e o salvador (Marques, 1978: 544-545). havia que alimentar o fogo capaz
dessa epopeia taumatúrgica. E repudiou-se a pérfida Albion, os seus produtos, a sua
língua, que deixou de se ensinar nas escolas do país, a sua amizade, a sua frieza, a sua
hipócrita pontualidade. Compôs-se um hino que se cantou como marcha patriótica. E os
Portugueses deixaram-se embalar pelos teóricos do republicanismo.
quem olhe e explique o messianismo de maneira diversa da que deixamos exposta
(Anes, s.d.: 14-16), associando-o à prática da religião católica e ao renascer do esplendor
nacional ou, até mesmo, nacionalista, embora o ligue, também, a uma certa prática
política. Julgamos não ser condenável fazer uma leitura diversa, colocando o
sebastianismo como motor de salvação de Portugal através da redenção de situações
calamitosas. Para tal, quando o associamos à proclamação da República e ao
republicanismo, temos presente Teixeira de Pascoaes, Jaime Cortesão, Augusto Casimiro,
todos eles republicanos e sebastianistas, mentores da sociedade Renascença Portuguesa
e da revista Águia.
1.3. Um país de republicanos
Se é verdade que o PRP resultou da vontade de gente erudita, sabedora dos ideais e fins
de uma República, não é menos verdade, também, que a mais forte adesão ao novo
ideário político se fez entre a população urbana tanto da média burguesia como dos
fracos grupos operários existentes então. No PRP, depois de 1890, soube fazer-se um
discurso ambivalente que tanto agradava à média burguesia desejosa de sair do impasse
económico e social para o qual a Monarquia não tinha saída, como agradava ao
operariado, pois eram usados ingredientes socialistas e socializantes. E foi aqui que
tiveram importância as ideias defendidas por Afonso Costa, expressas na sua tese de
doutoramento (Costa, 1895), pois nelas se revelavam a revolução que veio a ter corpo
na legislação de 1911 (Sousa, [s. d.]: 7-19). A onda de captação de adeptos cresceu e
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o PRP conseguiu eleger três deputados para as Cortes, em 1890, depois de se arrastar
com um único desde há várias décadas. Mas convém dizer, para não se ficar com a falsa
ideia de que, afinal, eram poucos os republicanos, os partidos monárquicos, receosos da
antipatia sempre crescente dos militantes do PRP, tudo fizeram para que, alterando a
geografia dos círculos eleitorais, os resultados parecessem ridículos.
Se, nas aldeias e vilas das províncias, dominavam as eleições os caciques monárquicos,
gerando uma ilusão de plena simpatia pela coroa, nas cidades mesmo algumas
distantes de Lisboa e encravadas em redutos da Monarquia um grande número de
eleitores era republicano.
Só se percebe esta disparidade urbana se tivermos em conta o afogamento vivido pelas
classes médias de parcos recursos financeiros, dependentes do orçamento do Estado ou
de um pequeno comércio a viver da falta de dinheiro dos compradores. A República
constituía a possibilidade de alteração, julgava-se, de elementos que vieram a
demonstrar, mais tarde, serem estruturais. Sendo agrícola, Portugal vivia de uma
agricultura pobre e de pouca rentabilidade. A maior indústria era, nas cidades, a da
construção civil. Depois, não tinha grandes fábricas, mas proliferavam oficinas familiares
onde se fazia um pouco de tudo. O comércio era, internamente, a forma de angariar
sustento. As exportações de vinho, azeite e pouco mais faziam-se, em primeiro lugar,
para o Brasil, depois para as colónias e de seguida para a Grã-Bretanha. Era deste país
que vinha quase tudo o que se consumia em Portugal e que aqui não era produzido. A
dependência do comércio britânico era total. Mas a grande fonte de receitas, a que ainda
conseguia viabilizar a economia e as finanças nacionais, era a remessa de dinheiro dos
emigrantes, que, nesses tempos, procuravam, em primeiro lugar, o Brasil e, depois, a
Argentina e os Estados Unidos da América.
No contexto descrito é natural que a República fosse sentida, pelo grupo que nela
acreditava, como a fórmula mágica que tudo resolveria. Ela era mais uma miragem do
que um projecto efectivo de mudança. E a verdade é que a propaganda republicana
assentava essencialmente na crítica à governação monárquica do que na definição de
um projecto concreto de mudança (Catroga, 1991, I vol.), facto que fazia do PRP uma
frente política e não exactamente um partido como normalmente é uso considerá-lo. E,
contudo, entre os mais destacados membros do PRP, havia quem soubesse como iniciar
um processo de modernização em Portugal. Mas era conveniente não lhe dar grande
publicidade, porque só medidas radicais poderiam resultar no futuro. Não lhe dar
publicidade, porque, tal como refere Jorge Pais de Sousa, Afonso Costa o defensor do
socialismo integral, a corrente que, mais tarde, foi apelidada de radical entendia que
as diferentes sensibilidades deviam manter-se unidas até à possibilidade de haver uma
mudança política que as separasse, autonomizando-as.
1.4. Um país à espera da revolução
Na sequência do ultimato inglês e como rescaldo, um ano depois, no Porto, em 31 de
Janeiro de 1891, eclodiu uma revolução militar chefiada essencialmente por sargentos
do Exército e incentivada por republicanos civis. Da varanda da Câmara Municipal foi
proclamada a República aplaudida pela populaça que esperava o acontecimento. Mas foi
uma tentativa falhada em poucas horas, visto ter sido reprimida a tiro de canhão pela
Guarda Municipal. Seguiram-se prisões feitas sem critério, julgamentos sumários e
deportações. O trono dos Bragança tremeu, mas não caiu. D. Carlos, monarca ainda
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jovem, poderia viver mais dezassete anos a imaginar soluções políticas duras e pouco
liberais, que veio a concretizar no fim da vida.
Do episódio ficou uma lição para o directório do PRP: a mudança de regime tinha de
envolver mais do que alguns regimentos revoltados; tinha de ser apoiada e executada
pelo Povo em conjugação com a tropa. Este era o entendimento da ala revolucionária do
PRP, porque, a par dela, outra ganhou forma: a da mudança pela via eleitoral. Assim, os
anos foram passando e dando oportunidade à sucessiva degradação dos Governos
monárquicos que, ao invés de resolverem a crise portuguesa, iam-na agravando mais.
O perigo espreitou, em 1898, quando em Lisboa correram suspeitas, quase tendo a
certeza, de que a Grã-Bretanha e a Alemanha se haviam entendido para, cedendo um
largo empréstimo a Portugal, partilhar entre si as colónias por falta de pagamento do
devedor. Salvou-se do esbulho a velha pátria lusitana graças à intervenção da França
republicana, que em excelentes condições concedeu o empréstimo, evitando o
enriquecimento colonial dos Estados rivais.
A viragem do século deu força aos republicanos. Mas a propaganda continuou a fazer-se
contra a Monarquia sem perspectivar claramente um programa para além do derrube do
rei e da casa reinante. Não era por acaso que tal acontecia; importava, acima de tudo,
garantir a adesão ao PRP ainda que ela se fizesse por mera oposição ao trono, depois,
sabia-se que dois pilares fundamentais para a existência de Portugal não se conseguiam
alterar: a dependência quase total da Grã-Bretanha e a incapacidade produtiva (Marques,
2010). Assim, no plano internacional, os republicanos tinham de esconjurar dois perigos:
por um lado, a antipatia inglesa com a causa republicana e, por outro, garantir que
Londres não dava carta branca, após a proclamação da República, a Madrid para proceder
ao velho sonho de união ibérica. Convenhamos que manter o espírito revolucionário
numa conjuntura destas era ter de saber equilibrar, com grande habilidade,
antagonismos perigosos. Essa constituía, talvez, a razão para o programa do PRP ser
difuso quanto ao futuro; essa era a razão para haver, no seio do PRP, uma corrente que
esperava chegar à República pela via eleitoral.
Ora, à medida que a política monárquica se degradava, mais se levantavam as vozes
republicanas contra a Monarquia. Para satisfazer a frente interna havia que preparar a
revolução e foi isso que se fez, em 1908: com uma pequena manobra menos clara, no
congresso do PRP, em Setúbal: elegeu-se um directório com forte pendor revolucionário,
ao mesmo tempo que se criaram comités revolucionários civis e militares.
Mas, para ir mais longe na compreensão desta mudança de atitude, que perceber
como já antes se estava a estruturar a força revolucionária.
1.5. Uma cidade de carbonários
De há muito Lisboa era o centro de toda a acção política e, também, sede do PRP. A
mudança de regime, quando se operasse, muito excepcionalmente não deveria ocorrer
nesta cidade. Tudo se estava a preparar, desde antes de 1908, para que Lisboa fosse o
palco da queda do trono.
Na Maçonaria, nas lojas onde os membros eram afectos ao republicanismo, discutia-se a
desejada revolução, mas não era ali que se movimentavam forças para tal. Cabia à
Carbonária esse papel, essa acção de armas em punho (Ventura, 2004). O recrutamento
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foi sendo feito junto das camadas populares menos abastadas, vivendo em alguns dos
bairros mais pobres de Lisboa. A organização era celular, evitando-se a prisão e denúncia
dos cabecilhas. A iniciação fazia-se seguindo rituais de terror e de ameaça de morte para
os traidores e, para dar mais realismo ao acto, escolhiam-se locais soturnos, em noites
escuras. Os homens usavam capuzes que lhes cobriam os rostos para não serem
reconhecidos e exibiam-se punhais e pistolas como elementos de vingança contra todo
aquele que fraquejasse na hora da prisão e da tortura.
A Carbonária cresceu em pouco tempo e radicalizou-se no ódio à Monarquia, mas
nisso e em mais nada! O fim último era o derrube dos Bragança e não a construção de
uma República marcada por um programa, por muito ou pouco radical que fosse.
O regicídio, em Fevereiro de 1908, foi, tanto quanto se sabe na incerteza histórica, um
acto isolado da Carbonária. Não se tratou de um assassinato no mais puro e singelo
sentido do termo; foi, isso sim, a execução de uma sentença muito ditada pelo
comportamento político de D. Carlos. Daí que, por o ser, os funerais dos regicidas
tiveram o aplauso de uma população enraivecida contra a Monarquia. A morte dos
carrascos foi o derradeiro estertor de uma casa reinante incapaz de erguer o sonho de
um povo, de lhe levantar o moral, de lhe dar alento para enfrentar a modernidade. A
Carbonária havia ocupado todo o espaço onde se poderia movimentar a tolerância
política. Pouco tempo antes da proclamação da República julgava-se, talvez com algum
exagero, militavam nas fileiras daquela agremiação secreta e revolucionária cerca de
vinte mil homens, todos possuindo, pelo menos, uma arma de fogo.
Assim, em Lisboa, concentrava-se o grosso da força revolucionária, que fabricava
bombas artesanais para serem usadas no momento próprio. Estes homens sabiam o que
fazer na altura adequada e a sua acção ia desde o ataque à retaguarda das forças leais
ao trono, quando estas estivessem dispostas a esmagar a revolta, até ao
entrincheiramento nos locais de resistência para liquidar de vez com a Monarquia,
passando pelo serviço de estafetas entre núcleos de ataque ou pelo assalto a quartéis do
Exército e da Armada para conseguirem armas e munições de guerra (Fraga, 2010).
A Carbonária, com o apoio do Exército e da Marinha de Guerra, conseguiu a vitória
republicana na manhã de 5 de Outubro de 1910, mas há uma pergunta que tem de ficar
no ar:
Mas que República se proclamou?
Como ressalta, julgamos, do que dissemos antes, a realidade sociológica da República
proclamada em 1910 é um amarfanhado de ideias sem outro fio condutor que além
do desejo de derrube da Monarquia para conseguir mudanças capazes de projectar
Portugal nos domínios da modernidade, seja isso o que for ou isso até onde for. Assim,
ter-se-á, para perceber o que foi e o que representou a proclamação da República, de ir
mais além, entrando na própria República e desmontar as forças e as dinâmicas nela
presente desde o dia do derrube da Monarquia.
2. Uma República Ambiguamente Libertadora
Proclamada a República, pode dizer-se que nesse mesmo dia se iniciou o processo de
fractura entre republicanos, pois, o herói da Rotunda, Machado Santos, oficial da Armada
e um dos mais altos responsáveis pela Carbonária, considerou-se traído uma vez que os
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políticos do PRP, que em nada haviam contribuído para a vitória, tomaram conta do
processo e, sem lhe darem as explicações que, julgava, tinha direito, avançaram para a
formação do Governo Provisório (Santos, 2007). Esta fractura, para além de nos explicar
o temperamento de Machado Santos, dá-nos a, quanto a nós, magnífica indicação de
como se encarava a mudança de regime: a República tinha de ser tutelada pelo homem
de armas que comandara a revolta; não estava em causa o regime, mas quem o alterara;
não estava em primeiro plano o Povo, mas as individualidades empenhadas na alteração
havida. O individualismo começou a gritar mal tinha sido parida a República em Portugal!
O Governo Provisório teve o encargo de fazer aprovar a mudança de Monarquia para
República em todo o país, e não é raro haver historiadores que, em ar de chacota,
afirmam ter sido feita essa proclamação pelo telégrafo. Foi-o, de facto, mas em nada
mingua a vitória republicana! Se o país aceitou a República, proclamada e implantada
deste modo, é porque ou era republicano ou não via motivos para defender a Monarquia,
que, assim, podemos considerar, estava, então, podre e à espera de quem a
derrubasse. Mas também esta conclusão está errada! E vejamos o motivo.
Os monárquicos alguns monárquicos , quase no dia seguinte à aclamação da
República, começaram a conspirar. Não era o cidadão anónimo monárquico por hábito
ou convicção que conspirava! Eram todos aqueles que sabiam quanto ia representar para
eles a mudança para a República. Esses iniciaram reuniões, conciliábulos para estudar
como se havia de repor o trono e o rei no seu lugar. Um ano depois, após treinos mal
feitos na Galiza, bem junto da fronteira portuguesa e com o conhecimento e
consentimento das autoridades espanholas, uma força mal armada, comandada por um
monárquico fiel à Monarquia, mas não muito crente no seu rei, invadiu uma povoação do
Norte e proclamou a restauração do velho regime. Mas foi por pouco tempo. Algumas
horas apenas. Teve de fugir. Acreditava que bastaria este acto insólito para gerar uma
onda de repulsa no país, originando a revolta contra a República. Enganou-se, em
absoluto (Fraga, 2012: 367-401).
A conspiração continuou pelos anos fora (Samara, 2010: 381) mas sempre fraca e
incapaz de um retorno. Seriam republicanos os Portugueses? Ou simplesmente
indiferentes? É o que tentaremos perceber de seguida.
2.1. O Governo Provisório ou a verdadeira revolução
Após a proclamação da República, quando se entrou em normalidade, tomou posse o
Governo Provisório. A legislação começou a sair em catadupas. Em Portugal
desenhavam-se e lançavam-se as bases da mudança. Essa mudança era, afinal, a
revolução. Sendo provisório, o Governo o se limitou a fazer gestão corrente! Ele foi
revolucionário. A revolução não foi no dia 5 de Outubro de 1910; a revolução durou
enquanto durou o Governo Provisório (Ferrão, 1976), mas este não governava sozinho;
semanalmente reunia-se com o directório e a junta consultiva do PRP. A República estava
a impor-se. É esta dependência e esta ligação que fazem da legislação um corpo
revolucionário. É certo que também a Carbonária ainda mantinha pressões junto do
Ministério da Guerra; ela era contra as greves que se começam a desencadear um pouco
por todo o lado. As reivindicações aumentavam de tom como nunca se tinha visto na
Monarquia. E a Monarquia dizia-se liberal!
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Logo desde o início verificaram-se, dentro do Governo, tendências políticas
correspondentes às diferentes sensibilidades existentes no PRP. A mais radical resultou
da ligação entre Bernardino Machado, Afonso Costa e alguns dos oficiais do Exército que
mais empenhados estavam com a República. Esta aliança vai subsistir até depois do final
da Grande Guerra e encontrou eco em grande parte da população. Mas é neste particular
que as clivagens, que nos importam, se fazem; elas ocorrem ao vel popular
especialmente por causa da publicação da Lei da Separação das Igrejas do Estado
(Decreto-Lei de 20 de Abril de 1911) e de toda a legislação anticlerical proposta por
Afonso Costa, ministro da Justiça, e aprovada. Ele foi, quanto a nós, a alma da revolução
republicana em vários momentos no Governo Provisório, no seu primeiro Governo, o
mais estável de toda a República, em 1913, no segundo, em 1915, quando consegue a
beligerância na Grande Guerra, no de União Sagrada e subsequente, em 1916 e 1917 e,
finalmente, quando ficou na Conferência da Paz e na Sociedade das Nações a zelar pela
possibilidade de Portugal sair altamente beneficiado, do ponto de vista financeiro, da
Grande Guerra, ganhando a possibilidade de se lançar na actividade comercial marítima
em boas condições de competitividade nem sempre bem compreendidos na sua época
e hoje ainda.
Foi por causa da Igreja Católica e do clero reaccionário que Portugal, na prática se dividiu
quase ao meio. A Norte, o grande peso da religião foi determinante para afastar as
populações rurais da República, sem, todavia, as aproximar da defunta Monarquia. As
populações estavam divididas entre a percepção das intenções dos republicanos radicais
e o repúdio por elas. Na ruralidade das aldeias e pequenas vilas a ira do pároco tinha
fortes reflexos nas famílias, mas o mesmo não acontecia nas cidades onde
preponderava uma maior tolerância, por se perceber, ou julgar perceber, o alcance das
medidas governamentais (Moura, 2004). Porque, realmente, a grande luta republicana
ia contra a influência do clero e não contra a religião, como se quis fazer crer na altura.
O efeito da legislação mais agressiva em relação à tradição fez sentir-se, em sucessivas
ondas de choque de menor intensidade ao longo do tempo, até depois do golpe militar e
ditatorial de Maio de 1926.
Mas, para além das leis anticlericais, que outras houve, dimanadas do Governo
Provisório, para lhe darem o cunho revolucionário?
Ademais da criação das universidades de Lisboa e do Porto, que, de uma vez por todas,
romperam com o monopólio do ensino superior universitário em Coimbra, rejeitando a
hegemonia da velha academia em Portugal (recorde-se que, em 1837, quando se quis
criar a universidade de Lisboa, os lentes coimbrões conseguiram fazer cair o Governo)
deve mencionar-se, como sendo um logro para os trabalhadores, a publicação do decreto
regulamentador da greve, pois dava ao patronato direitos que nunca foram aceites pela
classe obreira. E foi neste particular aspecto que maior contestação teve, logo no primeiro
ano de vida, a República, pois, como deixámos vagamente referido, o número de
greves cresceu exponencialmente se comparado com as do tempo da Monarquia. Ora,
não foi só por haver maior liberdade que tal aconteceu! Foi porque, de facto, a República
defraudou as espectativas dos trabalhadores, deixando bem marcado que era um regime
vocacionado para a pequena e média burguesias, que a revolução levada a cabo pelo
Governo Provisório, nas suas várias vertentes, definiu como meta a modernidade
pequeno-burguesa.
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Mas o foi nos níveis anteriores que o Governo Provisório deixou a sua marca
indelevelmente revolucionária. Na verdade, um outro aspecto altamente significativo foi
a reforma do Exército. Com efeito, a 25 de Maio de 1911, foi publicado o Decreto-Lei que
estabelecia novas bases para o serviço militar, transformando o antigo sistema
permanente em miliciano com larga inspiração no modelo suíço. Era uma tentativa para
alterar, em poucos anos, a mentalidade dos cidadãos masculinos, gerando-lhes um
sentimento de pertença e de total integração na Pátria (Fraga; Samara, 2014: 93-115).
Curiosamente, esta ideia teve proveniência, não nos jovens turcos como é vulgar ler-se
e referir-se, mas em Afonso Costa, que a expôs com toda a clareza na sua tese de
doutoramento (Sousa, [s.d.]: 15-16).
Como se pode perceber, há, no plano social, profundas contradições nas posições
assumidas pelo Governo Provisório da República, em Portugal, pois, umas vezes,
desenha rupturas abruptas e quase insanáveis e, noutras, procura a todo o transe
amalgamar esse tecido à volta de um conceito que se pretende refazer com orgulho do
passado histórico.
Mas a revolução republicana gerada pelo Governo Provisório abriu brechas entre os
próprios republicanos. A primeira, foi criada pelo princípio de facilitar a adesão ao PRP a
quem, havia pouco tempo, militava nas fileiras monárquicas, designando-os por
adesivos. A segunda, resultou de alguns republicanos históricos quererem que houvesse,
logo a seguir a Outubro, eleições para uma assembleia constituinte, travando-se a acção
legisladora do Governo Provisório. A terceira, e mais grave, deu-se aquando da eleição
do Presidente da República, que juntou, a um lado, a ala moderada e mais conservadora
dos republicanos os bloquistas e, a outro, a mais radical chefiada por Afonso Costa…
foi o começo do fim da aparente unidade republicana.
Ao chegar ao término do seu mandato o Governo Provisório tinha, efectivamente, lançado
os alicerces da revolução republicana, faltando completá-la noutras frentes, mas
politicamente, as esperanças existentes na República, antes de ter sido proclamada,
estavam perdidas. O sonho, porque era isso mesmo, desfez-se após o despertar,
originando uma profusão de conflitos abertos e latentes, que uma análise fria, antes
de Outubro de 1910, seria capaz de detectar. Se alguém a detectou calou-se para o
atrapalhar o derrube da Monarquia. Portugal ganhou alguma coisa com a República? O
Povo beneficiou com a mudança de regime? A tendência para a modernidade venceu e
colocou Portugal na senda da Europa? A soberania portuguesa saiu reforçada com a
República?
São perguntas cujas respostas ensaiaremos nas páginas seguintes.
2.2. A Grande Guerra e o cerne da verdadeira revolução
Quando a República foi proclamada e se escolheram os mbolos nacionais portugueses
a bandeira tradicional foi substituída e, também, como era natural, o hino. Ambos os
mbolos têm um fundamento que transporta uma história, mas, mais do que isso, um
significado não imediatamente visível ou compreensível.
Passando ao hino nacional republicano, verificamos que, com a ligeira alteração de um
verso, se adoptou o hino escrito e composto aquando do ultimato inglês de 1891. Será
necessário acrescentar mais para se perceber que, na política externa, a República, não
sendo por mera conveniência de momento antibritânica, era defensora do fim da
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tutela inglesa, na medida em que tal fosse possível? Foi este aspecto que continuou a
revolução, em 1914, pois, contrariando os desejos da Grã-Bretanha, a ala mais radical
de todos os republicanos os companheiros políticos de Afonso Costa tudo fizeram
para levar Portugal à guerra a pedido da Inglaterra, provando, assim, ao mundo, que a
soberania nacional portuguesa valia tanto quanto a soberania nacional britânica (Fraga,
2012). Todavia, as intenções de uma certa facção republicana, defensora das rupturas
comportamentais conservadoras, no último ano de guerra e nos que se lhe seguiram até
28 de Maio de 1926 data do golpe militar instaurador da longa ditadura vigente até
25 de Abril de 1974 foi sendo contestada através de golpes sucessivos, políticos ou
militares, fazendo crescer, na massa apoiante da República e junto daqueles para quem
ela foi implantada a pequena e a modesta média burguesias ,o desejo de paz social,
tranquilidade no viver, ainda que sacrificando o caminho para a modernidade. Deste
modo, o conservadorismo venceu a inovação. A tradição impôs-se à revolução,
esmagando-a, porque, por um lado, as rupturas foram fundo em excesso no tecido social
português ao gerar conflitos sobre conflitos em sectores antagónicos, mas minoritários,
desejosos de atingirem a governação e, por outro, a população apoiante da República
cansou-se das desgastantes quezílias políticas. Sobre estas duas razões sobrepuseram-
se mais elementos: a desorganização económica da Europa, o atraso industrial
português, a fraca rentabilidade da agricultura praticada e, mais do que tudo, a
baixíssima taxa de investimento em novos sectores produtivos. Em suma, tudo, em
Portugal, tendia para a tradição super conservadora. Mas, por trás desta tendência ou a
justificá-la havia, muito, um conceito que ganhava espaço entre algumas elites
fossem católicas, monárquicas e, até, republicanas. Esse conceito entrou no léxico
político português no pós-Grande Guerra, logo nos primeiros anos da década de vinte,
quando se fundou, em 1923, o Partido Republicano Nacionalista (Leal, [s.d.]: 35). A
tradição ganhava uma forma de se designar: nacionalismo (Leal, 1999).
A ascensão política de António de Oliveira Salazar e do fascismo português, a partir de
1928, resultou de um jogo que ele soube jogar entre interesses em oposição, praticando
equilíbrios muito instáveis, mas sempre cautelosamente geridos no sentido da tradição
campesina, aldeã e rural (Curto, 2016). A República deixou de ser revolucionária, deixou,
quase, de ser República para ser um regime político de um homem que até podia ser rei
sem se sentar num trono e sem mudança nominal do regime.
A República de 1910 não morreu com a entrada em vigor da Constituição Política de
1933, mas com a tomada de posse de Salazar como Presidente do Ministério, em 1932.
Foi a tradição, o conservadorismo, apelidado de nacionalismo, quem assumiu as rédeas
da governação. Portugal recuou uma trintena de anos, regressando aos comportamentos
mentais do começo do século XX. A mão férrea da censura prévia, da polícia política e a
exaltação de um catolicismo próximo da crendice colocaram a população da cidade e do
campo fora de todo e qualquer movimento de modernidade que pudesse chegar da
Europa, já então a viver, também ela, os contornos das ditaduras fascistas e nazis.
O regime político que vigorou, em Portugal, até 1974 somente no nome teve alguma
ligação à anterior República, no resto, repudiou caminhos, fins e políticas. Naturalmente,
a República renascida em 25 de Abril de 1974 foi herdeira da que havia sido proclamada
em 1910 num tempo e num contexto completamente diferentes e também quis ser
revolucionária, contudo, buscando outros trilhos e visando outros objectivos, foi somente
na liberdade e na prática democrática que encontrou ligeiros pontos de contacto.
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Conclusão
Procurámos, ao longo das páginas anteriores, descrever, com a brevidade possível, o
processo de mudança de regime monárquico para republicano em Portugal.
Realçámos vários aspectos do tecido social português do final do século XIX até ao
começo do século XX e destacámos, também, como se processou a mudança da
Monarquia para a República nesse tecido face às rupturas provocadas pelas decisões
revolucionárias do Governo Provisório o mais revolucionário de todos os Governos
republicanos no pós-República e deixámos, julgamos, bastante clara a ideia de que o
PRP, não tendo um programa que fosse muito mais além do que o mero repúdio da
Monarquia, tinha, contudo, um sector o chefiado por Afonso Costa cujo objectivo
prioritário era romper com tradições e anciloses, levando Portugal para a modernidade
europeia da época.
Tentámos ligar realidades sociais com disposições legislativas onde prevalecia a fractura
sobre a continuidade e mostrámos que o elemento conservador na sociedade portuguesa
foi mais resistente à mudança, acabando por anular os esforços inovadores
representados por uma ala dos republicanos. Demos alguma atenção ao elemento que
espoletou, depois do fim da Grande Guerra, o desejo do regresso à paz social com o
consequente retorno aos limites do conservadorismo. Estamos em condições de rematar
esta deambulação pelos anos do fim do século XIX e começo do século XX, quando, em
Portugal, se viveu o republicanismo e se proclamou a República.
Em jeito de remate conclusivo, podemos afirmar que o confronto entre a tradição, em
Portugal, agindo dialecticamente sobre a inovação, travou, desde o início, o processo de
abertura à modernidade europeia do começo do século XX, mas, mais ainda, levou à
degeneração da República, que, sendo democrática, liberal e pequeno-burguesa, mas
com afirmações marcadamente socializantes, acabou transformando-se numa República
ditatorial fascista com uma longa duração de quarenta e oito anos.
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