OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 9, Nº. 1 (Maio-Outubro 2018), pp. 92-107
COMPREENDER A LIDERANÇA DE ERDOGAN NA EQUAÇÃO POLÍTICA DA ‘NOVA
TURQUIA
Raquel dos Santos Fernandes
fsantosraquel@gmail.com
Técnica Superior de Ensino. Doutoranda em Ciência Política e Relações Internacionais na
Universidade do Minho (Portugal), Mestre em Ciência Política (Universidade do Minho), com a
dissertação “Do Kemalismo ao Neo-otomanismo: o desenvolvimento político e a «Nova Turquia»
de Recep Tayyip Erdogan (2003-2014)». Licenciada em Ciências da Comunicação com
especialização na área de Jornalismo e Assessoria (Universidade de Trás-os-Montes e Alto
Douro). Certificado de Competências Pedagógicas, foi Consultora estagiária no Departamento de
Comunicação da Câmara Municipal de Barcelos e foi aluna do programa Erasmus em Istambul,
na Turquia, na Universidade de Bahcesehir. Trabalha o sistema político turco e a influência de
Recep Tayyip Erdogan no país. Participou no III Congresso Internacional OBSERVARE
Isabel Estrada Carvalhais
isabelestrada@eeg.uminho.pt
Professora de Ciência Política e Relações Internacionais na Universidade do Minho (Portugal).
Doutora em Sociologia (Universidade de Warwick, Reino Unido), Mestre em Sociologia
(Universidade de Coimbra) e licenciada em Relações Internacionais (Universidade do Minho).
Diretora do Programa de Doutoramento em Ciência Política e Relações Internacionais e do
Programa de Licenciatura em Ciência Política da Universidade do Minho. Membro do Centro de
Investigação em Ciência Política, FCT R&D Unit. Trabalha na interseção da política com a
sociologia, sobre inclusão política, formas de participação e estruturas de oportunidade política
dos imigrantes e cidadãos de origem migrante. Tem publicado sobre cidadania e inclusão política
de imigrantes, como autora e editora de livros, em capítulos, documentos de trabalho, relatórios
científicos e artigos científicos. As suas publicações incluem artigos em revistas como o Journal of
Ethnic and Racial Studies, Brazilian Journal of International Relations; Diversities; Sociologia,
Problemas e Práticas, Portuguese Journal of Social Science e European Journal of Social Theory.
Resumo
Em 2001, o surgimento do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) na Turquia fez
prever a emergência de uma via moderada entre a ala kemalista e a ala islâmica. Após um
primeiro mandato centrado na diplomacia com o exterior, Erdogan e o partido viram as suas
políticas ganhar internamente um amplo apoio social, reforçando a sua posição em áreas de
confronto ideológico e religioso com a oposição secular. Erdogan, entretanto eleito Presidente
da República em 2014, tem conduzido a Turquia por uma rota cada vez mais conservadora
do ponto de vista dos valores sociais, e menos democrática do ponto de vista da linguagem
política do Estado. Se Erdogan revela uma conceção de Estado que se afasta dos valores
democráticos e do ideal da Turquia laica de Ataturk, ao mesmo tempo que se centra numa
leitura islâmica-conservadora da sociedade e numa conceção autoritária do poder político, o
que explica e estimula esta estratégia? Este artigo alicerça-se na premissa de que perceber a
‘Nova Turquia’ implica atendermos ao estilo de liderança de Erdogan, mesmo que este não
esgote todas as variáveis explicativas. A partir desta premissa, é nosso objetivo identificar e
explicar os fatores internos (associados desde logo à estrutura dualista entre o centro e a
periferia da Turquia) que, a par das variáveis individuais de Erdogan (como a solidariedade
islâmica e as tendências autoritárias), o colocaram no centro da tomada de decisões na
Turquia.
Palavras-chave
Turquia, Erdogan, liderança política, sociedade civil
Como citar este artigo
Fernandes, Raquel Santos; Carvalhais, Isabel Estrada (2018). "Compreender a liderança de
Erdogan na equação política da ‘Nova Turquia’". JANUS.NET e-journal of International
Relations, Vol. 9, Nº. 1, Maio-Outubro 2018. Consultado [online] data da última consulta,
DOI: https://doi.org/10.26619/1647-7251.9.1.6
Artigo recebido em 30 de Outubro de 2017 e aceite para publicação em 5 de Janeiro de
2018
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Compreender a liderança de Erdogan na equação política da ‘Nova Turquia’
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COMPREENDER A LIDERANÇA DE ERDOGAN NA EQUAÇÃO POLÍTICA DA ‘NOVA
TURQUIA
1
Raquel dos Santos Fernandes
Isabel Estrada Carvalhais
A Turquia apresenta-se como um caso de estudo interessante no que respeita às
transformações discursivas e ideológicas que operaram a variação conservadora-liberal
para uma transversão autoritária do poder político. Grande parte dessa transformação
pode ser atribuída ao papel do Partido da Justiça e do Desenvolvimento (AKP) e do atual
Presidente da República, Recep Tayyip Erdogan (Aydin-Duzgit, 2018: 20), que através
da ultimação do paradigma kemalista de uma Turquia ocidentalizada e secular,
arremessa a implementação de uma ‘Nova Turquia’
2
que estabelece uma hegemonia
política regeneradora das perceções da sociedade turca (Gorener e Ucal, 2011: 359).
Tendo vivido de perto os desafios ao secularismo turco na década de 1970 (a fundação
do Partido da Ordem Nacional, MNP, e do Partido da Salvação Nacional, MSP, contam-se
entre esses desafios ao serem os primeiros partidos turcos de orientação islâmica que
então se formaram), Erdogan soube como capitalizar as circunstâncias económicas,
religiosas e culturais da Turquia em prol da formação de uma base de apoio leal ao seu
discurso político. Uma base constituída essencialmente pelas populações mais religiosas
e rurais, mas também pelo eleitorado neoliberal e pelos nacionalistas turcos - todos eles
tendo em comum uma leitura crítica do secularismo, ainda que movidos por razões
distintas.
A exploração da ideia de novos conflitos sociais, feita pelo discurso de Erdogan, tem
facilitado a emergência de um novo paradigma na cultura política turca que identifica o
povo como uma nação unificada a que simultaneamente se associa a ideia da sua
marginalização, da sua precariedade e do seu abandono.
No período republicano (iniciado em 1923 com a criação de um Estado moderno pró-
ocidental que contrariava o pensamento político de influência islâmica e imperial da
época), as reformas de modernização empreendidas na Turquia assumiram-se
1
This study was conducted at Research Center in Political Science (UID/CPO/0758/2013), University of Minho
and supported by the Portuguese Foundation for Science and Technology and the Portuguese Ministry of
Education and Science through national funds. The authors are very grateful to the most valuable comments
of the peer reviewers to this paper.
2
Considere-se a ‘Nova Turquia’ como a assimilação do Islamismo ao Neo-otomanismo, numa tentativa de
interpretação da reorganização política, cultural, religiosa e comportamental da Turquia. O conceito de Neo-
otomanismo remete para a Teoria da Profundidade Estratégica, formulada por Ahmet Davutoglu, ex-Ministro
dos Negócios Estrangeiros (2009-2014) e ex-Primeiro-Ministro da República da Turquia (2014-2016), a qual
influenciou significativamente a política externa do país, partindo da abordagem que o fim da Guerra Fria
proporcionou à Turquia uma oportunidade histórica para se tornar um poder global, desde que seguisse
uma política expansionista baseada na ideologia islâmica. Segundo esta, a Turquia deve dominar o Médio
Oriente, os Balcãs, a Ásia Central e a região do Cáucaso. Sobre os conceitos de Neo-otomanismo e a Teoria
da Profundidade Estratégica, ver Ozkan, 2014: 119-140.
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essencialmente como reformas orientadas para o centro, e não tanto para a periferia que
assim ficou relegada para uma posição secundária. Consciente de que a modernização
da Turquia, indissociável da presença do secularismo na vida política, significou
sobretudo a subalternizarão das periferias, Erdogan passou a explorar este aspeto,
assumindo as periferias como a geografia da autêntica Turquia, esquecida em proveito
de um paradigma de desenvolvimento que, nesta leitura, lhe é para mais culturalmente
distante (Cagaptay, 2002a; 2004). E será dessa geografia de autenticidade, chamemos-
lhe assim, que se pode então erguer, a ‘Nova Turquia’.
É certo, como Burak (2011) alega, que esta estratégia havia sido trabalhada por Turgut
Ozal
3
(Burak, 2011: 60). No entanto, enquanto este revelou uma atitude realista e focada
na economia do país, Erdogan revela uma abordagem mais emocional e centrada nas
reivindicações do povo (Heper, 2013: 155). Este projeto permitiu-lhe construir um
sistema de poder em torno dos que haviam sido excluídos pelos governos anteriores,
através de uma agenda reformista neoliberal associada a uma política islâmica, sob a
premissa de responder a muitas das preocupações sociais e atendendo aos interesses
político-económicos da população (Hadiz e Chryssogelos, 2017: 403).
Concludentemente, a práxis política de Erdogan tornou-se num fenómeno distinto pela
elevada recetividade de bases sociais bastante desiguais, o que lhe facilitou a introdução
de uma agenda político-social reformuladora do sistema político do país e, não menos
importante, do próprio regime político. Apelando à honra e ao orgulho do povo turco
(aludindo às demandas do nacionalismo turco) e ao conservadorismo religioso pró-
Ocidental, Erdogan atingiu um domínio sobre o processo político raramente visto na
história republicana turca, pese, embora, a preponderância do domínio do líder ser um
atributo subjacente à cultura política turca e ao seu sistema partidário (Gorener e Ucal,
2011: 357-58). Como a Turquia tradicionalmente tem ainda uma sociedade bastante
patriarcal, onde muitos admiram um líder forte e carismático que conduz o povo e a
Nação (Cagaptay, 2002b: 42)
4
, Erdogan passou a reunir as condições necessárias para
alterar o dispositivo conservador do Estado para uma conceção autoritária do poder
político (Ozbudun, 2014: 158), o que conduziu a um subdesenvolvimento democrático
da Turquia, quer pelo poder substancial que este detém sobre o sistema político, quer
pelas características da sua liderança individual.
Nesse sentido, é nosso objetivo explorar o nexo entre os valores e mundivisões
veiculados pela práxis política de Erdogan e a sua recetividade por parte da sociedade
civil turca, como possível fator explicativo para o sucesso da sua liderança e do que
parece ser a gradual construção de uma Turquia conservadora e autoritária. Isto é,
buscamos perceber o percurso de Erdogan no que respeita aos sucessos que realizou na
agenda político-social do país e compreender, em particular, a sua conceção de poder
político e o modo como a sociedade reage a esta proposta
5
. A capacidade oratória e
3
Turgut Ozal foi Primeiro-Ministro (1983-1989) e Presidente da República da Turquia (1989-1993). Durante
a sua governação assistiu-se a uma elevada liberalização dos domínios económicos e sociais e a sociedade
periférica passou a ocupar um lugar de destaque na política e na economia do país.
4
Esta imagem carece, todavia de nova monotorização, no sentido de se verificar se a sociedade turca
permanece fiel a esta conceção patriarcal ou se ocorreram, mais recentemente, alterações significativas na
sua cultura política que apontem para a emergência de uma nova conceção.
5
Compreender a complexidade do nexo entre o sistema partidário e a sociedade civil turca, quer as suas
elites, quer as suas periferias sociais, tem sido alvo de crescente interesse académico por parte de vários
investigadores. Entre eles, destacamos o trabalho recente de F. Michael Wuthrich (2015) que analisa a
forma como líderes e partidos moldam as suas estratégias e discursos de modo a apreenderem as dinâmicas
sociais em curso, e o trabalho de Tahir Abbas (2017) que se centra na crescente erosão de equilíbrios
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motivacional de Erdogan, aliada a um contexto social e económico favorável à sua
interpretação do poder, permitiu-lhe reformular o regime de acordo com as suas
ambições pessoais e as suas visões axiomáticas. Por conseguinte, a teoria da liderança
carismática parece-nos adequar-se aos objetivos de investigação, uma vez que realça a
influência da visão pessoal do der sobre os cidadãos. Para tanto, utilizaremos como
esteio teórico o contributo de House (1977), Weber (1978) e Trice e Beyer (1986), por
nos oferecer uma ampla análise ao papel do líder, focada nos seus traços de
personalidade e no seu comportamento.
Este artigo propõe, através de uma abordagem interpretativista sobre a atuação política
de Erdogan, verificar se a sua liderança tem produzido transformações de relevo na
sociedade turca, alterando a própria leitura que parte desta tem hoje sobre a Política e a
sua práxis.
A importância da liderança nos processos de decisão política
O debate em torno da liderança efetiva e sobre quem é líder e quem é liderado é uma
questão recorrente nos estudos sobre a liderança e a sua natureza.
Barling (2014) atenta que o controlo e a centralização do poder dominaram as definições
de liderança durante as primeiras décadas do século XX. Conquanto, devido à
necessidade de entender as características dos deres que a protagonizaram, no período
pós-Segunda Guerra Mundial, os estudos sobre a liderança passaram a focar-se nos
traços e na personalidade do líder, passando a liderança a ser encarada como a habilidade
para persuadir, centrada nos efeitos do poder e nas circunstâncias envolventes (Bass e
Bass, 2008: 15), na medida em que será a própria reivindicação de legitimidade
6
que
permitirá validar as ações dos deres (Weber, 1978: 684).
De acordo com a sociologia política de Weber, as sociedades e as suas partes
constituintes mantêm-se unidas pelo exercício do poder (Parkin, 2000: 53), mas, apenas
uma dominação baseada na autoridade, na medida em que envolve uma ordem emitida
e, consequentemente, uma aceitação da mesma, implica a submissão. Neste sentido, a
subordinação de quem é liderado transporta uma reação racional sobre os seus próprios
interesses, sujeita a circunstâncias objetivas das suas próprias ambições (Weber, 1978:
943). De um modo geral, ainda de acordo com a perspetiva weberiana, os arranjos
específicos para a dominação estão assim dependentes de um agregado populacional
acostumado a obedecer às ordens dos líderes e que possui um interesse pessoal na
continuação da dominação, em virtude da sua própria participação e dos benefícios daí
resultantes (Blaug e Schwarzmantel, 2016: 251).
Paralelamente, Abelson (1986) observou que seria errado supor que deres que
experimentem o mesmo evento político, possuam objetivos semelhantes, uma vez que
detêm interpretações, crenças e memórias distintas. E, poderíamos acrescentar, porque
de igual forma os agregados populacionais detêm também eles experiências e
expectativas que os fazem reagir de modo distinto ao apelo das lideranças. Ainda, numa
étnicos, confessionais e culturais decorrentes da interpretação da política turca empreendida por Erdogan
e pelo AKP.
6
De acordo com o pensamento weberiano, a legitimidade refere-se às reivindicações aceites e subscritas
pelos grupos subordinados. a legitimação parte das reivindicações que os grupos dominantes fazem
sobre si mesmos. Assim, enquanto a legitimidade é concedida a partir da base, a legitimação procede do
topo (Parkin, 2000: 59).
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tentativa de interpretação do nível de sucesso e de aceitação doder num determinado
ambiente, Metcalf e Robbins (2012) concluíram que, para cada condição de liderança, o
estilo adotado será diferente, visto que a tomada de decisão é afetada por objetos que
produzem escolhas que se distanciam do ideal. Nesse sentido, as formas de denominação
diferem por força do tipo de pretensão que os deres têm para a legitimidade do seu
poder (Parkin, 2000: 58), as quais, através de fundamentos de obediência, reconfiguram
a posição do líder no processo de tomada de decisão e influenciam o desenvolvimento
das sociedades.
Por esta breve incursão teórica resulta claro como as propostas de interpretação da
liderança se desmultiplicam, desde logo em função do seu tipo de enfoque, ora no sujeito
enquanto líder, ora nas circunstâncias societais que interagem com a sua proposta de
discurso e de ação. Assim, não obstante as dificuldades inerentes à identificação e
conceptualização de todos os elementos que interagem na formação da personalidade e
estilo dos deres, o estudo da liderança assume por si grande utilidade heurística, quer
seja pela perspetiva mais centrada no papel dos sistemas de valores e de crenças na
formação e condução das lideranças, quer seja pela análise centrada sobre o discurso e
ação dos deres.
Relevância da Teoria da Liderança Carismática na análise ao estilo de
Erdogan
As teorias da liderança pretendem explicar a natureza e as consequências da liderança,
possibilitando definir problemas de investigação das ciências políticas e sociais.
Com base na eficácia e na satisfação dos seguidores
7
, podem ser categorizadas em três
grupos: (1) teorias instrumentais, (2) teorias informais, e (3) teorias inspiradoras. Estas
últimas referentes às lideranças carismática, transformacional e visionária focam-se
na análise do apelo emocional e ideológico e do comportamento que apela à confiança,
ao simbolismo e à motivação concentrada ou intrínseca (Bass e Bass, 2008: 46)
8
. Tanto
a liderança carismática como a liderança transformacional dependem da capacidade do
líder em influenciar e inspirar seguidores, em motivar os indivíduos para um bem maior,
mobilizando-os para um objetivo comum. Porém, ao contrário do que acontece com os
líderes transformacionais
9
, em consequência de uma execução discursiva que apela à
paixão moral dos seus seguidores, a visão pessoal do der carismático exerce uma forte
influência nos cidadãos visados.
A partir dos elevados níveis de atração emocional e de expressividade dos deres, Max
Weber introduziu o conceito de carisma nas ciências sociais, de modo a descrever um
líder dotado de habilidades extraordinárias: autoconfiante, determinado, ativo e
energético (Bass e Bass, 2008: 50), como se fosse prendado com “uma graça divina,
7
Os seguidores estabelecem uma relação de confiança com os líderes, através de um processo mútuo de
influência. Para mais informações sobre o processo de confiança estabelecido entre líderes e seguidores,
consultar Shahzadi et al., 2017.
8
A motivação intrínseca surge perante a execução de uma tarefa motivada pela satisfação inerente que dela
decorre. Em contraste, a motivação concentrada surge quando a execução da tarefa é feita para alcançar
um resultado específico.
9
Para Bass e Bass (2008), os líderes transformacionais atuam sobre os processos de mudança das atitudes,
crenças e objetivos dos seus seguidores, articuladamente com o objetivo de que estes se consciencializem
das suas necessidades.
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uma espécie de salvador stico, narcisista e pessoalmente magnético, com capacidades
extraordinárias e que possui uma doutrina para promover” (Bass e Bass, 2008: 575).
Para Weber (1978), o carisma é autodeterminado e define os seus próprios limites, não
respondendo a qualquer forma de regulamentação ou de supervisão. O líder carismático
toma proveito da tarefa para a qual está destinado e exige que os outros o sigam em
virtude da sua missão (Weber, 1978: 1112) e dos dons heróicos e viris que lhe são
atribuídos, passando a exercer a sua denominação sobre a população (Carvalho, 2004
:124). Quando esta denominação passa a ser reconhecida, o poder do carisma
transforma-se na crença do surgimento de um novo herói que revoluciona os homens e
molda as condições materiais e sociais de acordo com a vontade revolucionária do líder
(Weber, 1978: 1116). A conceptualização weberiana do surgimento do líder carismático
foi, posteriormente, resumida por Trice e Beyer (1986), através da consolidação de cinco
elementos-chave: (1) uma pessoa extremamente dotada; (2) uma crise; (3) uma
solução radical; (4) seguidores que são atraídos pelo líder, pois acreditam que ele possui
a solução para a crise, e (5) validação dos poderes do líder através de experiências de
sucesso. Os deres carismáticos estão assim dependentes do surgimento de uma crise,
sendo que, apenas em períodos de agitação, a nos líderes sobressai e,
consequentemente, a dominação carismática passa a ser legitimada (Parkin, 2000: 66).
Ora, a tentativa de golpe de julho de 2016 ocorrido na Turquia, confere-se como um caso
ilustrativo da operacionalização destes cinco elementos-chave. De facto, se dúvidas
haveria sobre Erdogan e sobre a presença do primeiro elemento-chave no seu tipo de
liderança, as mesmas dissipar-se-iam no seguimento do modo como ele respondeu à
tentativa de golpe militar
10
. Primeiro, soube explicar discursivamente o sentimento
traumático vivido pela nação turca, permitindo assim que grande parte do país se unisse
em torno do líder, passando a reconhecer em conjunto a existência de uma ameaça
comum (Cagaptay, 2017: 10). A existência de uma sintonia entre a leitura do líder e a
da população sobre determinado cenário como cenário de crise, de ameaça, é aqui
fundamental à prossecução da ação do der. Segundo, ao garantir que o golpe havia sido
uma conspiração contra a nação e ao incutir na população a forte sensação de que esta
estava sob o ataque de inimigos internos, Erdogan passou a reunir as condições
necessárias para a imposição de severas restrições às liberdades civis, confirmando-se
assim o terceiro elemento-chave atrás enunciado. Tais sentimentos resultaram por sua
vez num maior apoio à liderança carismática de Erdogan, corroborando assim o
enunciado de House (1977) sobre o surgimento dos deres carismáticos em tempos de
crise, como potenciais salvadores que preenchem as necessidades emocionais dos seus
seguidores, submissos e obedientes.
Os deres carismáticos revelam-se assim indivíduos que exalam confiança, um sentido
de propósito e uma habilidade notável para preparar psicologicamente os seus seguidores
e que, através do uso extensivo de símbolos, reforçam o sentido de autoridade moral
sobre quem os segue (Bass e Bass: 2008: 576). O próprio discurso de Erdogan, com
referências constantes às relações dicotómicas entre o correto e o errado; o justo e o
injusto; e os vilões e as vítimas (Panayirci e Iseri, 2014: 66) é reflexo de uma perceção
da sociedade como uma comunidade moral, à qual Erdogan alude através de um discurso
10
No decorrer da tentativa de golpe, Erdogan conseguiu reunir um amplo apoio que, facilmente, lhe permitiu
derrubar o grupo de opositores. Uma repressão subsequente foi rápida e implacável e, assim, a resposta
de Erdogan à tentativa de golpe de Estado demonstrava que o controlo do poder pelo presidente permanecia
bastante sólido e que este apenas sairia fortalecido no período que se seguiria (Karaveli, 2016: 1).
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orientado para a natureza intrínseca discriminatória dos cidadãos, essencialmente visível
em períodos de crise. Se, ainda enquanto primeiro-ministro, Erdogan prometeu um novo
contrato social entre o Estado e a sociedade turca, aludindo a uma série de reformas
liberais em prol da separação de poderes, do Estado de Direito e das liberdades,
atualmente, a direção profundamente iliberal e autoritária a que conduziu a Turquia é
evidente (Karavely, 2016: 1-2).
Por ser uma abordagem conceptual que integra a cognição do der, a motivação e outros
traços da sua personalidade, consideramos que a teoria da liderança carismática se
traduz na teoria que melhor nos oferece uma análise lida à construção do perfil de
liderança de Erdogan, um der carismático e pragmático que inspira seguidores leais e
que apela às suas emoções (Gorener e Ucal, 2011: 357).
O perfil de liderança de Erdogan - do conservadorismo islâmico à
instrumentalização da retórica pró-direitos humanos
Nesta secção procederemos à identificação de algumas das marcas identitárias da
liderança de Erdogan.
Começamos pela importância do conservadorismo de matriz islâmica. Nascido em
Kasimpasa, um bairro de classe média baixa em Istambul, Erdogan cresceu consciente
dos sentimentos e das aspirações das pessoas comuns, a quem nem sempre o
secularismo defendido pelas elites urbanas lhes parecia dizer muito ou resultar em
benefícios evidentes para as suas vidas. Este contexto social e educacional dos seus
primeiros anos de vida tetido um papel importante na construção do seu discurso
político, sensível às franjas da sociedade. Ajudou-o a criar uma espécie de “economia
discursiva que facilmente se confunde com uma representação precisa da realidade,
remetendo para uma maior aproximação entre a identidade discursiva e o conceito de
poder, através da qual, enquanto agente discursivo, Erdogan consegue impor as suas
próprias versões identitárias (Aydin-Duzgit, 2018: 23).
A partir desta perspetiva, a construção discursiva de uma ‘Nova Turquia’ pode ser
discernida através dos seus discursos (Aydin-Duzgit, 2016: 46). Após as duas primeiras
vitórias eleitorais (2002 e 2007) e do referendo constitucional de 2010
11
, Erdogan
conseguiu capitalizar uma opinião pública convergente com as suas opções de política
interna para, posteriormente, após fomentar a visão generalizada de que se havia
tornado na figura mais poderosa do país (Aydin-Duzgit, 2016: 47), reforçar a sua
legitimidade política e a do governo
12
. Este aspeto, depois transportado para a política
externa da Turquia, é bem marcado pelo recurso discursivo à “honra dos turcos” que,
mesmo em períodos internacionais de crise, é utilizado para apaziguar as preocupações
11
O referendo constitucional de 2010 foi amplamente percebido como um passo importante na obtenção do
controlo governamental sobre o poder judiciário. O elevado número de processos judiciais contra militares
que, a partir de então, se registariam, conduziriam a um gradual enfraquecimento do poder militar em
relação à autoridade civil no país (Aydin-Duzgit, 2016: 47).
12
No decorrer da crise da Líbia, os partidos da oposição acusaram Erdogan de inconsistência, que a sua
posição contra o envolvimento da OTAN mudou depois da campanha ter sido lançada. Erdogan
desconsiderou as críticas e desacreditou-as como desinformação. Os seus discursos são assim moldados
pelo caminho dos desenvolvimentos internacionais com o objetivo de reforçar a honra e a moral da Turquia,
ao mesmo tempo que mantém o seu perfil de liderança carismática, tanto no país como no estrangeiro
(Panayirci e Iseri, 2014: 74).
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das bases sociais que o apoiam, com um discurso marcado pela sensibilidade ao
islamismo e ao nacionalismo (Panayirci e Iseri, 2014: 66).
O discurso de Erdogan começa, pois, por ser um que explora os sentimentos de exclusão
de franjas da sociedade, consubstanciado na apresentação de medidas que visam
responder às preocupações sociais ao mesmo tempo que se inserem na lógica de valores
islâmicos
13
mais conservadores
14
. Simultaneamente, o seu discurso permite-lhe exercer
uma forte atração emocional sob o eleitorado, apresentando um sentido de propósito e
uma nova missão para a Turquia.
Desde a sua entrada na política nacional na década de 1990, pelo Partido do Bem-Estar
(RP), que Erdogan emprega um identificador político com base na afirmação das suas
origens humildes, apresentando-se como a voz das pessoas comuns, defendendo os
interesses do povo contra os benefícios das elites (Cagaptay, 2017: 3). Este
entendimento que ele faz desde logo da política local (Phillips, 2017: 9), permitiu-lhe
transmitir a imagem de um der que elimina a distância entre o povo e o exercício do
poder político, e garantiu-lhe a integração das massas no seu projeto político.
Contudo, Erdogan cedo percebeu as limitações de um projeto conservador assente
apenas no respaldo da leitura islâmica, desde logo pelas resistências que
internacionalmente tal poderia suscitar. Condenado aliás por incitar ao ódio religioso
15
,
após ter recitado parte de um poema declamado na Guerra da Independência da Turquia,
da autoria de Ziya Gokalp
16
, durante o período em que esteve preso, Erdogan parece
então aprender a necessidade de redefinir a sua estratégia política e aquilo que viria a
ser o projeto político do AKP. Assim, em vez de definir a implementação de regras de
organização social descaradamente inspiradas numa dada leitura conservadora da
religião muçulmana, Erdogan passa a expressá-las como uma opção legítima enquanto
direito de escolha de um povo, ou seja, enquanto questão de direitos humanos e de
liberdade de expressão. Deste modo, afasta-se igualmente do fundador do RP, Necmettin
Erbakan, parecendo assim abraçar os valores ocidentais como um veículo para a
construção de um país mais liberal e mais aberto (Phillips, 2017: 10). Com esta mudança
de estratégia, pode dizer-se que Erdogan aumenta o grau de complexidade à análise que
pode ser feita sobre a sua liderança, não facilitado a sua alocação a categorias
simplificadas.
Indissociável da ação de Erdogan é a ação do próprio AKP. Com a dissolução do Partido
da Virtude (FP), partido sucessor do RP, o AKP surge em 2002 como um arauto de
mudança e do progresso, com um discurso particularmente motivador para as alas
económicas mais liberais através da criação de parcerias que lhes garantiam a
13
A ideia associada à discriminação dos fieis muçulmanos tem sido uma marca constante nos discursos de
Erdogan. Esta questão pode ser observada em narrativas como “os ocidentais não podem dizer que a
islamofobia é um crime contra a humanidade (…) porque para eles, matar um muçulmano é legítimo” (Van,
31 de julho de 2014) e “O Ocidente não está a seguir uma abordagem honesta (…) É preciso justiça para a
Palestina (…) Nós não ficaremos em silêncio e continuaremos a lutar por esta causa” (Bursa, 18 de julho de
2014).
14
Tradicionalmente, a religião e o conservadorismo são duas características paralelas à retórica da direita
turca, uma posição proeminente que remonta à era pré-republicana (Çarkoglu, 2007: 255). O grande
projeto de Erdogan, tem sido preservar uma ordem social conservadora e, para tal, o islamismo revela-se
um credo compartilhado pela maioria dos cidadãos, passando a atuar como uma força unificadora (Karaveli,
2016: 1).
15
Embora Erdogan tenha sido condenado a uma pena de dez meses de prisão efetiva, apenas viria a cumprir
quatro meses da pena aplicada. No entanto, a condenação impossibilitava-o do exercício de cargos políticos.
16
“As mesquitas são os nossos quartéis; as cúpulas os nossos capacetes; os minaretes as nossas baionetas
e os fiéis os nossos soldados”.
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oportunidade de substituir a estrutura tradicional do sistema político turco. Parece assim
salvaguardar-se a herança do secularismo ainda que apenas em matéria de
ocidentalização das ideias económicas. Simultaneamente, o AKP surge como um partido
atento às exigências de diferentes setores da população que acumulavam ressentimentos
contra a elite política por se sentirem menos representados na sua geografia (rural), na
sua condição social (os mais pobres), na sua identidade (religiosa, por exemplo). Em
paralelo, o sucesso do seu discurso e da adesão ao mesmo pela população, espelha a
fraqueza dos restantes partidos em responder às exigências da população, em particular
de uma ampla população rural historicamente longe dos circuitos do poder (Aliriza et al.,
2009: 11).
É nesta linha de aparentes contradições que o AKP, apesar das suas rzes pró-islâmicas,
se compromete publicamente com a adesão à União Europeia (UE), com os discursos de
Erdogan a reiterarem a intenção do partido em garantir a liberdade de expressão através
de um governo transparente e do fortalecimento dos governos locais, trabalhando sob a
reaproximação da sociedade ao aparelho do Estado e apresentando o AKP como um novo
tipo de partido pró-islâmico.
Ao definir o seu nacionalismo em termos da identidade étnica e religiosa da sociedade
turca, e sendo certo que o respeito pelas identidades confessionais e étnicas faz parte
integrante das liberdades civis, Erdogan soube apresentar uma visão moderada e
progressista do Islão, por contraponto à visão ‘ortodoxa’ dos partidos de inspiração laica
que historicamente pretenderam demarcar-se do Islão. Esta posição permitiu ao AKP e
a Erdogan apresentarem a proposta de um novo contrato social
17
, suportado pela
reintrodução da síntese turco-islâmica que rompe com as tradições do Estado moderno
kemalista (Karaveli, 2016: 2), transformando desta feita a relação entre Estado e
sociedade (Ozsel et al., 2013: 551).
Assumindo-se como um partido que defende a identidade muçulmana turca em prol da
justiça e ao considerar que esta é a melhor forma de conferir uma maior participação da
sociedade civil na esfera política, Erdogan e o AKP definem o trajeto do seu sucesso
(Phillips, 2017: 10) construindo uma base de apoio num eleitorado liberal que não se
revê nas opções políticas de esquerda em matéria económica; num eleitorado
conservador com destaque para as populações mais religiosas e residentes em meios
rurais e, ainda, graças à postura adotada sobre a questão do Curdistão e do Partido dos
Trabalhadores do Curdistão (PKK), num grupo heterodoxo de outros eleitores sensíveis
aos etno-nacioalismos (Karaveli, 2016: 2).
Sendo que a crise económica turca de 2001 enfraqueceu os dois grandes partidos de
centro-direita o Partido da Via Justa (DYP) e o Partido da Pátria (ANAP) o AKP, não
consegue manter a confiança dos eleitores do FP, como, simultaneamente, passa a
reunir o apoio do eleitorado de centro-direita. Pese embora o facto de na prática o AKP
ser o partido sucessor dos extintos RP e FP, o eleitorado turco não o encara como uma
força necessariamente islâmica (pelo menos não num sentido pejorativo) e a sua retórica
prova que consegue captar uma diversidade de bases sociais de apoio. Assim, ao ampliar
17
A fundação do AKP foi acompanhada pelo autorretrato de uma “democracia conservadora”. No entanto,
esta “democracia conservadora” é apresentada como uma nova interpretação da democracia liberal, todavia
ajustada às necessidades específicas da sociedade turca. Esta aproximação de dois ideários (democrático e
conservador), aparentemente opostos, vem assim ao encontro da leitura de Ahmadov (2008: 26) quando
afirma que “o campo da política deve-se fundamentar na cultura da reconciliação", uma vez que é " possível
resolver as diferenças sociais".
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o apoio eleitoral, Erdogan conduz o AKP à sua primeira vitória eleitoral na legislativas de
2002.
18
Inicialmente, o grande debate em torno da estratégia partidária do AKP pretendia apurar
se o partido seria capaz de manter um discurso moderado, deslocando-se para o centro
e se abandonaria o islamismo político. Ao contrário do seu antecessor, FP, o AKP revela-
se empenhado nessa aproximação a uma linha moderada. Ao assumir uma posição pró-
globalização e ao rejeitar a ideia de um islamismo isolado, combinando assim o
islamismo-conservador com uma perspetiva liberal e global, o AKP coloca-se numa
posição semelhante à dos partidos confessionais conservadores europeus (Kosebalaban,
2011: 147).
Erdogan promete uma Turquia novamente poderosa, projetando-a como uma das
maiores potências do Médio Oriente, capaz de competir com a Europa e outras potências
mundiais. Os tempos de glória do Império Otomano parecem assim continuar a fomentar
a criação de mitos e de objetivos para o país, inspirando um senso exagerado de
recuperação da glória perdida. E, nessa perspetiva, as justificações em torno da perda
de influência da Turquia republicana tornaram-se num combustível fértil para a
idealização do passado (Cagaptay, 2017:7).
Recorrendo vastas vezes à construção binária entre a Turquia e o Ocidente, Erdogan
empregou um discurso inspirador e motivador que estabeleceu uma transformação na
relação de poder, pela qual a Turquia passava a ser responsável.
“Durante anos, eles curvaram-se perante o Ocidente. E o que fez o
Ocidente? O Ocidente ordenou e eles obedeceram. Mas, agora, isso
não acontece. Nós sentamo-nos, falamos, tomamos e criamos as
nossas próprias decisões, porque esta é a Turquia de agora” (Elzag,
6 de março de 2014)
19
.
Neste excerto, torna-se claro que os governantes anteriores - eles” - o descritos como
demasiado submissos ao Ocidente que se quer impor à Turquia, ao passo que o AKP - o
“nós” - é representado como um agente ativo que possui o poder necessário para rejeitar
as imposições externas (Aydin-Duzgit, 2016: 51). Ao contrário dos restantes partidos -
que embora contestados pela sua atuação em nada alteraram o seu posicionamento
político - o AKP surge assim como uma alternativa aos habituais partidos do sistema
18
Em 2002, com a instituição da barreira de 10% para garantia de assento parlamentar, sete partidos não
obtiveram representação na Grande Assembleia Nacional. O AKP conquistou 34% dos votos, mas, devido a
barreira eleitoral, obtinha a maioria dos assentos parlamentares (363 em 550). O CHP, o único partido a
juntar-se ao AKP no Parlamento, conquistou 19,39% dos votos e 178 assentos parlamentares (Schofield et
al., 2011: 455). Face às eleições de 1999, a direita turca apenas registou um aumento de 1,12% dos votos
populares. À esquerda, o CHP alcançava o melhor resultado dos últimos 30 anos conquistando o eleitorado
do DSP eleito em 1999 e o Partido da Sociedade Democrática (HADEP) o melhor resultado desde a sua
fundação em 1994. Nesse sentido, a vitória do AKP não deixa de significar um voto ideológico, no sentido
que, não descurando outros fatores, o partido foi a opção de um amplo eleitorado liberal, nacionalista,
conservador e religioso. Devido à impossibilidade de Erdogan em ocupar cargos políticos, Abdullah Gul
assumiu o cargo de Primeiro-Ministro durante os primeiros meses do AKP à frente do governo. Após o
Parlamento ter aprovado, em dezembro de 2002, uma emenda constitucional destinada a suspender a
inabilitação de indivíduos condenados por delitos ideológicos, Abdullah Gul apresentou a sua demissão e, o
Presidente da República, Necdet Sezer, nomeou Erdogan para o cargo.
19
Aydin-Duzgit, 2016: 51.
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político turco (Schofield et al., 2011: 458), capaz de recuperar a grandeza da nação
turca.
Uma conceção autoritária do poder político
Nas legislativas de 2007, o AKP foi novamente o partido mais votado. Tendo obtido
46,6% dos votos populares e 340 assentos parlamentares, Erdogan reforça a sua
imagem (Schofield et al., 2011: 472), explorando a recetividade que o eleitorado parece
demonstrar à ideia de legitimar a condução e reestruturação do sistema político turco.
O discurso progressista torna-se então reflexo das intenções de reconstruir a imagem
poderosa da Turquia, conduzindo a um recrudescimento da influência turca nas regiões
do extinto Império Otomano
20
. Ao mesmo tempo, o secularismo deixa de ser apresentado
como a via para a concretização dessa agenda progressista que articula os valores
conservadores com os valores democráticos (Ahmadov, 2008: 26), ao passo que a
proposta de um sistema político-social assente nos valores islâmico-conservadores é
apresentada como aquela que mais consegue compatibilizar-se com a identidade coletiva
turca e com as aspirações de retorno a uma suposta grandeza turca, afastando o Estado
turco do processo de democratização e vinculando-o, cada vez mais com as orlas do
autoritarismo pós-moderno
21
(Ozbudun, 2014: 162).
É desta forma, que Erdogan vai introduzindo a sua visão de uma ‘Nova Turquia’,
“profundamente islâmica na sua política interna e externa, para a tornar, novamente,
numa grande potência” (Cagaptay, 2017: 8). Esta síntese de valores islâmico-
conservadores e de grandeza nacional, incrementou a popularidade de Erdogan e
consagrou-o como líder carismático da política turca (Kosebalaban, 2009: 146). Quando
em 2009, no Fórum Económico Mundial, em Davos, Erdogan protagonizou um intenso
debate com Shimon Peres sobre a guerra na Faixa de Gaza, a população turca recebeu-
o em apoteose, consagrando-o pela sua prestação, e acolheu-o como o novo herói do
país (Schofield, 2011: 472), revelando uma forte atração emocional pela sua liderança e
depositando total confiança na sua atuação no centro da tomada de decisões na Turquia.
Focando-se nas tendências religiosas dos eleitores, ao mesmo tempo que não renega os
princípios de organização laica do Estado, Erdogan consegue moldar a perceção popular
com a noção predominante da superioridade turca, que aparece aos olhos do seu
eleitorado como algo absolutamente credível, e assente em rigor histórico. Este
eleitorado olha por sua vez para a figura de Erdogan como a de um “líder defensor dos
oprimidos” (Aydin-Duzgit, 2018: 29).
A astúcia de Erdogan em conciliar no seu discurso ideias aparentemente inconciliáveis,
numa inteligente ntese entre conservadorismo e progressismo, permite compreender
porque durante a campanha para as legislativas de 2011, o AKP se compromete com a
substituição da Constituição da Turquia de 1982, alegando que o país necessita de uma
legislação mais aberta às liberdades democráticas. Em junho desse ano, garante o seu
terceiro mandato, após uma campanha eleitoral dividida entre o protagonismo de Kemal
20
A influência recuperada nos Balcãs, no Cáucaso, na Ásia Central e no Médio Oriente, associada à conceção
de uma nova ideologia política, não só representa uma tentativa de reorganização dos Estados soberanos
da região (Neo-otomanismo), como retomou a influência do islamismo na praxis política turca.
21
Outros autores consideram a Turquia um regime de autoritarismo eleitoral que se legitima a partir da
realização de eleições multipartidárias e que refuta as liberdades civis em prol do bem-estar da sociedade
(Shirah, 2015; Robinson e Milne, 2017).
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Kiliçdaroglu, der do CHP e Erdogan. Sobre o primeiro, Erdogan fez várias referências às
origens alevitas, numa tentativa de desacreditação do candidato perante o eleitorado
sunita, asseverando que o CHP era um partido despromovido de valores éticos e que se
distanciava por isso do propósito islâmico (Borco e Verney, 2016: 205). De modo
progressivo, Erdogan passa então a representar a oposição como uma ameaça para os
valores nacionais e para a identidade religiosa da Turquia, vindo posteriormente a
reprimir aqueles que o questionam (Cagaptay, 2017: 10).
Contudo, em 2013, um revés parece ensombrar a caminhada de Erdogan. Um protesto
ambiental no Parque Gezi, em Istambul, rapidamente se transformou num protesto
antigovernamental, contra o tratamento desigual das minorias. O governo surge como
sinónimo não de islão progressista, mas de veículo de islamização da sociedade (Tucker,
2015: 290) e é visto como detentor de práticas antidemocráticas inibidoras de liberdades
fundamentais. De facto, em vez de providenciar mais liberdades para a sociedade no seu
todo como prometido, Erdogan parece afinal apenas garantir esse espaço à sua base de
apoio islâmico-conservadora (Cagaptay, 2017: 10), sendo este facto contestado por uma
nova geração de jovens com expectativas de se expandir como cidadãos ativos na
sociedade e que se opõe à islamização da sociedade e ao controlo social movido pelo AKP
(Gokay e Xypolia, 2013: 36).
No seguimento destes protestos que revelam afinal as fragilidades do projeto ‘Nova
Turquia’, Erdogan apresenta o novo “pacote democrático”, referido como um exemplo de
preocupação nacional em prol da igualdade de direitos entre etnias e de resolução dos
problemas de segurança interna. O objetivo é claramente o de apaziguar o
descontentamento popular, através de um discurso virado sobretudo para a população
curda. Entre as reformas apresentadas sobressaía a promessa de uma maior autonomia
para o Curdistão, assim como a garantia de direitos civis para a sua população. Porém,
as reformas aplicadas não corresponderam, na prática, às promessas apresentadas e,
nesse sentido, o caminho traçado por Erdogan foi mais um retrocesso que um progresso
(Karaveli, 2016: 2-3).
Na mesma linha crítica, Cagaptay (2017:10) considera que Erdogan se tem revelado num
líder cada vez mais autoritário, convicto de que as suas vitórias eleitorais sustentam a
legitimação do uso indiscriminado do poder político (Cagaptay, 2017: 10). Ao mesmo
tempo, o AKP tornou-se num partido extremamente centrado em Erdogan, onde a
lealdade ao líder se faz critério de promoção (Hefner, 2016: 166).
Contudo, estas críticas esbarram com o que é paradoxalmente uma evidência: não
obstante uma postura que muitos apelidam de autoritária, e de um discurso cada vez
mais próximo da religião (Bosco e Verney, 2016: 206), pese embora as dificuldades que
as suas opções lhe parecem trazer (como visto nos protestos de 2013), e numa fase em
que poderia acusar o cansaço da governação, Erdogan vence em agosto de 2014 as
primeiras eleições presidenciais pelo voto popular. A conceção maioritária que possui da
própria democracia e a instrumentalização das urnas como a única ferramenta legítima
para a representação democrática foram acompanhadas por uma noção em torno das
manifestações anti-governo como uma tentativa da minoria em impor a sua vontade à
maioria, por meios ilícitos (Ozbudun, 2014: 157). Esta perspetiva, que coloca a periferia
no lugar desde sempre ocupado pelo centro, permitiu a Erdogan alcançar uma
popularidade eleitoral que opera a partir da própria sociedade, onde a periferia é agora
incluída e se sente parte integrante da política turca.
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Entretanto, a tentativa de golpe de Estado de 15 julho de 2016, parece confirmar a nossa
análise à liderança de Erdogan com base na exploração dos cinco elementos-chave
weberianos sintetizados por Trice e Beyer (1986). A tentativa de golpe, que terá levado
à morte de centenas de cidadãos e à detenção, suspensão e investigação de milhares
22
,
surgiu como um “incidente de crise” que proporcionou a Erdogan um contexto favorável
para a introdução de medidas autoritárias que, por um lado, o lançam como um líder
autocrático e, por outro, o fazem emergir como uma figura unificadora e salvadora da
grande nação ameaçada (Cagaptay, 2017: 12).
Nesta linha de ação, a aprovação pelo Parlamento turco de uma alteração constitucional
que retirou a imunidade parlamentar aos deputados, possibilitou a investigação a vários
deputados do Partido Republicano do Povo (CHP) acusados de insultos ao Presidente, e
a 50 dos 59 deputados do Partido Democrático do Povo (HDP), partido pró-curdo.
Encarada pela população como uma manifestação de combate ao clientelismo, a medida
possibilitou a Erdogan solidificar o seu apoio popular, ao mesmo tempo que enfraquecia
a oposição. Com a adoção da nova Constituição da República, aprovada pelo referendo
de 16 de abril de 2017,
23
Erdogan passará a controlar os orçamentos de Estado, a
nomeação de juízes e retomará a liderança do AKP.
Ao entrar em vigor apenas em 2019, e por alterar o limite de mandatos presidenciais, a
nova Constituição permitipor sua vez que Erdogan permaneça no cargo até 2029, uma
longevidade governativa sem precedentes na Turquia, que se iniciou com uma proposta
de uma via política moderada e liberal, e gradualmente se tem transformado numa
proposta conservadora e autoritária do Poder Político.
Erdogan ambicionou ser o novo “pai dos turcos”. Sendo que o futuro do país é ainda
bastante imprevisível, a única certeza que se encerra é que os turcos vivem agora num
país que, indiscutivelmente, se tornou na Turquia de Erdogan (Karaveli, 2016: 6). Uma
Turquia conservadora, nacionalista e islâmica que, sob a liderança de um der
carismático com um forte sentido de propósito, caminha, a passos largos, por uma rota
cada vez mais autoritária.
Conclusões
Erdogan, que cresceu no auge das atitudes reacionárias ao secularismo turco, soube
capitalizar as circunstâncias sociais, económicas e políticas do seu tempo, lançando como
resposta a ideia de uma ‘Nova Turquia’ que promove na sua conceção a valorização da
cultura islâmica.
Com o respaldo político necessário, tem conseguido criar as respostas legislativas e
jurídicas capazes de travar rivais, de reconfigurar o sistema político e de transformar os
pressupostos históricos, culturais e políticos da Turquia, conduzindo-a por uma rota que
vários analistas consideram cada vez mais distante do Ocidente e dos seus valores
democráticos.
22
De acordo com Karaveli (2016), o governo terá decretado ordem de prisão para dezenas de milhares de
alegados elementos do movimento religioso de Fethullah Gulen. Terá ainda conduzido à suspensão e
detenção de uma parte significativa do exército e da administração pública, encerrado meios de
comunicação e suspendido milhares de acadêmicos.
23
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2017. Disponível em http://www.huffingtonpost.com/entry/turkey-referendum-
erdogan_us_58f373dde4b0bb9638e4924b Consultado em 18 de abril de 2017.
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Sem querermos iniciar qualquer tipo de discussão em torno do sentido de democracia e
de autoritarismo, procuramos neste artigo esclarecer as circunstâncias que permitem
melhor compreender o crescente sucesso de Erdogan na construção de uma linha de
liderança que, temos de reconhecer, se encontra mais próxima do autoritarismo do que
da democracia por muito flexível que se seja quanto à elasticidade deste conceito. Esse
caminho autoritário que Erdogan seguiu o deve ser encarado, porém, como um
acontecimento que surgiu isoladamente em determinado período da sua ação política. É
certo que o seu primeiro mandato foi marcado por uma tentativa de aproximação
diplomática à comunidade internacional, mas esta pode bem ser encarada como um
mecanismo facilitador da legitimação necessária para a consolidação da sua liderança
interna.
Perante um subdesenvolvimento democrático que o coloca numa posição central e
isolada no exercício do poder político, Erdogan revela-se assim um líder carismático que
habilmente inspirou os seus seguidores em virtude dos seus propósitos, passando a
exercer o seu domínio sobre a sociedade. Contudo, importa igualmente perceber que o
sucesso de Erdogan não pode ser compreendido se separado do papel fundamental que
a sociedade tem tido nesse sucesso e nesse sentido, importa um maior investimento,
desde logo da sociologia política, para uma compreensão da sociedade turca, da sua
cultura e do comportamento político.
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