OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 8, Nº. 2 (Novembro 2017-Abril 2018), pp. 95-108
MEDIA, DIVERSIDADE E GLOBALIZAÇÃO NA ERA DIGITAL
Francisco Rui Cádima
frcadima@fcsh.unl.pt
Professor Catedrático do Departamento de Ciências da Comunicação da Faculdade de Ciências
Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa (FCSH/NOVA, Portugal). Investigador
Responsável do CIC.Digital - Centro de Investigação em Comunicação, Informação e Cultura
Digital. Coordenador do curso de Doutoramento em Ciências da Comunicação e membro do
Conselho Científico da FCSH/NOVA.
Resumo
As questões da diversidade cultural e da pluralidade das vozes no atual ambiente digital
global, estão a levantar novos problemas, para além dos identificados no contexto de
migração do campo dos média clássicos para a galáxia da Internet. Se, com os media
tradicionais, imperou uma lógica de fechamento sobre o “mesmo”, com o digital acreditou-
se, num primeiro momento, na “apoteose do sonho da diversidade” (Curran, 2008). Mas a
verdade é que a eliminação dos antigos filtros de seleção e distribuição da informação não
parece estar a acontecer. O novo “gatekeeping” contorna a própria intervenção humana,
sendo que os atuais sistemas de disseminação da informação têm base algorítmica e
intervenção de inteligência artificial e de robots”, enviesando, desde logo, o acesso às
matérias noticiosas, e reduzindo o espaço da diversidade cultural ou censurando mesmo a
pluralidade das vozes e das expressões culturais.
Palavras-chave
Media, Cultura, Diversidade, Globalização, Digital
Como citar este artigo
Cádima, Francisco Rui (2017). "Media, diversidade e globalização na era digital". JANUS.NET
e-journal of International Relations, Vol. 8, N.º 2, Novembro 2017-Abril 2018. Consultado
[online] em data da última consulta, DOI: https://doi.org/10.26619/1647-7251.8.2.7
Artigo recebido em 1 de Junho de 2017 e aceite para publicação em 4 de Julho de 2017
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Media, diversidade e globalização na era digital
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MEDIA, DIVERSIDADE E GLOBALIZAÇÃO NA ERA DIGITAL
Francisco Rui Cádima
The power we will gain in the twenty-first century
may well upgrade us into gods,
but we will be very dissatisfied gods.
Yuval Noah Harari
Introdução
O que significa hoje, em plena era das grandes plataformas digitais e da Internet, analisar
o problema da diversidade da diversidade cultural, da diversidade de expressões
culturais e do pluralismo, no contexto global? Num primeiro momento parece um
contrassenso, aparenta fazer pouco sentido face à massa de informação circulante na
galáxia Internet. Porém, num segundo tempo, constata-se que nesta era da
reprodutibilidade e dos automatismos da técnica algorítmica, problemas novos emergem,
entre os quais as “fake news”, que nunca haviam sido motivo de grande preocupação na
era dos média, embora existissem de há longo tempo a esta parte.
Por outro lado, o pós-mediático e os novos e complexos contextos da era digital, quando
pensados globalmente em todas as extensões do conceito evidenciam, por exemplo,
a emergência daquilo a que podemos chamar o cibercidadão”, isto é, o cidadão do
ciberespaço, ou, pelo menos, de um “produser” do mundo digital, que se caracteriza, em
geral, pelo facto de não estar sujeito nem a fronteiras físicas nem a velhos modelos de
produção ou de distribuição, que se têm vindo a esbater e a reconverter. O mesmo, aliás,
sucede com o espaço e o território, cada vez mais sem estanquicidades, quer na
economia e na finança, quer na política, quer no âmbito climático, quer inclusivamente
na (des)informação geral que alastra e curto-circuita o processo de mediação, seja ele
nos media tradicionais ou no digital.
A nossa questão de partida tem, por assim dizer, dois pontos prévios. Em dois artigos já
publicados no âmbito genérico desta temática, analisámos, numa primeira abordagem
(Cádima, 2010), casos demonstrativos de diferentes fraturas de um hipotético modelo
mediático de comunicação global, designadamente no âmbito televisivo, modelo esse
que, na realidade, em termos de conteúdos propriamente ditos, não existe, sobretudo
porque ele é, na prática, fundamentalmente local ou regional quer na lógica de
distribuição de sinal, quer pela lógica geopolítica e geoestratégica. Por outras palavras,
mesmo quando as condições tecnológicas o permitem, as condições políticas e os grupos
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de pressão e de interesse impedem uma estratégia editorial local/global claramente
autónoma e independente.
Numa segunda abordagem (Cádima, 2016), deixámos o contexto global e pensámos o
espaço europeu e as dinâmicas específicas da União Europeia, procurando demonstrar
que a falta de coesão do projeto europeu, designadamente desde a criação da Diretiva
Televisão Sem Fronteiras (1989) até à atualidade, assentou, em boa parte, na falência
do espírito da lei e do projeto e ideário estratégico europeu, vertido, na origem, nessa
mesma Diretiva. Quer do ponto de vista das estratégias de comunicação, quer do ponto
de vista das políticas públicas para o audiovisual europeu, em particular as políticas e a
monitorização direcionadas para os sistemas de serviço público de rádio e televisão na
Europa, é para nós evidente e procurámos demonstrá-lo nesse artigo , que a Europa
sucumbiu às suas próprias e, aparentemente insanáveis, contradições, incapaz de
afirmar num espaço de excelência o serviço público de media a sua herança cultural
e o seu projeto de unidade e coesão transfronteira na diversidade das suas experiências
e culturas.
Na pesquisa de que daremos conta de seguida, procurámos, de forma complementar aos
trabalhos anteriores, encontrar respostas para duas questões: por um lado, saber se
desde a emergência da Internet, sensivelmente desde meados da década de 90 do século
passado, se se encontrou, no plano global, um modelo verdadeiramente alternativo
àquilo a que se chama os media “mainstream”, por vezes também referidos, de modo
mais crítico, como os media hegemónicos”; por outro lado, procurar compreender o
fenómeno pós-mediático no seu conjunto, também no contexto global, e refletir sobre se
os diferentes sistemas de comunicação em presença desde os sistemas locais da era
analógica às redes e plataformas digitais globais, passando pelos sistemas de
broadcasting transcontinentais se todo este complexo sistema de comunicação s-
mediática atual tem sido compatível com essa outra ideia/modelo de globalização e de
convergência cultural que a todos tem atingido, de certo modo, neste planeta nas últimas
décadas.
Globalização e regressão
Procurando enquadrar historicamente a emergência da globalização e dos seus contextos
culturais, recuemos a um dos textos fundadores do debate nos anos 80, da autoria de
Fredric Jameson (1984). A sua proposta, crítica das tendências da altura relativas à crise
das grandes narrativas como tendência marcante do pós-modernismo, levou-o a
caracterizar o novo conceito como algo que teria emergido num contexto de crise de
historicidade:
"There no longer does seem to be any organic relationship between
the American history we learn from schoolbooks and the lived
experience of the current, multinational, high-rise, stagflated city of
the newspapers and of our own everyday life" (Jameson, 1984: 22).
A questão, para ele, colocava-se de modo paradoxal e algo ambivalente, ou seja,
considerava a evolução cultural no quadro do “capitalismo tardio” simultaneamente como
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catástrofe e como progresso. Dualidade que reaparece noutros textos seus, cerca de
vinte anos mais tarde
1
, aproximando-se agora do tema da resistência política à
globalização e da sua análise, quer nas suas interdependências económicas, políticas e
tecnológicas, alertando para a diluição do cultural no económico, quer invocando essa
“dissociação histórica” entre dois mundos distintos: um que expõe aquilo que ele
considera ser a “desintegração do social” e o outro, o das sociedades da abundância, em
boa parte potenciadas pela tecnologia.
As consequências do mercado aberto, designadamente para o emprego e a democracia,
estavam identificadas no final do século passado por diversos autores, entre outros,
Schumann e Martin (1998). Era óbvio então que os mercados globais estavam a gerar
cada vez mais desemprego, deixando sérias dúvidas sobre o tipo de desenvolvimento
económico gerado. De certa maneira, pela primeira vez na história do capitalismo não
estava a ser gerado emprego, aparecendo assim os primeiros custos humanos da
globalização. Nesta lógica de livre comércio cresciam os sistemas económico-financeiros,
mas a distribuição da riqueza da máquina económica global deixava de fora novos
exércitos de deserdados da terra. Em acréscimo, face à crise das velhas estruturas
sociais, face à crise de solidariedades, emergiam agora ondas de aversão contra
estrangeiros e contra grupos economicamente fracos da população. Daqui à emergência
dos protecionismos e nacionalismos foi um passo curto. O próprio projeto Europeu
procura, hoje, refazer-se deste primeiro embate, no pós-Brexit. Por isso mesmo seria útil
relembrar aqui Bourdieu, recordado apropriadamente por Schumann e Martin (1998:
241):
“Só podemos combater eficazmente a tecnocracia se a desafiarmos
no seu terreno de eleição, o das ciências económicas, e se
opusermos ao pensamento mutilado a que ela recorre um saber que
respeite as pessoas e as realidades que estas enfrentam.”
Neste contexto, era óbvio que a transformação da globalização da injustiça num processo
de mútuas compensações, procurando dessa forma que os ganhos em eficiência
atingissem todos os cidadãos, poderia ainda ambicionar a legitimação, por assim dizer,
das vantagens do mercado aberto. O problema é que em cima desta vaga de capitalismo
tardio acrescia agora uma dinâmica tecnológica nova, não completamente detetada
inicialmente nos seus impactos.
Para Vidal-Beneyto, justamente, a associação entre a criação de riqueza e o aumento da
desigualdade é consequência também de um desenvolvimento tecnológico desregulado
e sobretudo das disfunções económicas evidentes e das determinações estruturais do
sistema global na emergência do novo século. Em todo o caso, segundo Beneyto, os
movimentos de cidadãos transnacionais e as iniciativas da cidadania, que se constituem
no plano global como espaços com alguma autonomia espaços de interação e de
promoção de solidariedades, emergem agora como uma nova perceção neste mundo
global de equilíbrios frágeis e precários, configurando-se naquilo que ele designa por uma
“sociedade civil global” (2004: 22). Vidal-Beneyto considera, no entanto, que é através
1
Ver sobretudo Fredric Jameson (2000). “Globalization and Political Stategy”. New Left Review 4, July-August
2000; e (2004) “Te Politics of Utopia”. New Left Review 25, January-February 2004.
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dos novos sistemas de mediação, também eles globalizados, que essa sociedade civil
global pode ser potenciada e afirmar-se, quer no contexto de políticas deslegitimadas
pelos “mercados”, quer face a uma globalização desregulada.
Visão diferente de Jameson ou Beneyto, por exemplo, é a de Appadurai (2004), que
considerou, na sua perspetiva antropológica, que face nos novos contextos da
globalização, nas complexas interações entre o global, o nacional e o local, não se verifica
necessariamente uma homogeneização no plano cultural, nem tão pouco se pode
considerar que através dos novos processos de mediação, eletrónicos ou digitais, se
configura qualquer tipo de sistema de media hegemónico, pelo que a globalização da
cultura é sobretudo determinada pela “canibalização” da semelhança e da diferença, que
interagem reciprocamente, e pela desterritorialização das identidades culturais, o que
não é de todo a mesma coisa que a homogeneização de fluxos globais. É óbvio assim,
para Appadurai, que apesar de haver ainda uma certa resistência por parte dos Estados-
nação em procurarem manter nos seus espaços territoriais identidades unas e contínuas,
a verdade é que essa realidade está hoje ultrapassada, quer pelas dinâmicas migratórias
intercontinentais, quer pelos novos sistemas tecnológicos de intermediação, quer ainda
pelas plataformas digitais. Assim, basicamente, estamos sobretudo perante
transversalidades comunicacionais e identidades bridas, sendo que já no âmbito do
digital se reconfiguram e reciclam traços identitários de comunidades que não têm uma
pertença territorial precisa, mas nalguns casos virtual. Era essa aliás a perceção de
Neil Barrett (1997) na sua obra sobre a “cibernação”, onde propunha, justamente, que
a “velha” especificidade moderna do Estado-nação confrontar-se-ia irremediavelmente,
doravante, na era da Internet, com os seus próprios limites.
A atualização do problema da globalização, feita entretanto por Appadurai, num texto
intitulado significativamente “Une fatigue de la démocratie” (Appadurai et altri, 2017),
vem recolocar a questão da perda de soberania económica e/ou política por parte dos
Estados modernos, agora reconvertida de novo em princípio de exclusão e também em
estratégia de conquista de uma soberania “etno-nacional”, asfixiando as dissidências
intelectuais e culturais internas. Na mesma obra, Zygmunt Bauman considera, no
entanto, que a esfera da cultura tem tendência para se tornar progressivamente em traço
característico definitivo enquanto “heterogeneidade culturalsem que isso signifique o
fim da exclusão ou da regressão social desta era da incerteza. Outras propostas desta
obra de referência destes novos tempos de brasa, de Krastev a Van Reybrouck, de
Streeck a Nancy Fraser, entre outros, vêm remeter fundamentalmente para aquilo que
parece ser uma recusa liminar do modelo de mercado global instituído, dada a reversão
populista que se tem vindo a verificar, a recusa do “outro”, do estrangeiro, recusa de
participação nos processos eleitorais, sobretudo por parte de uma opinião blica
“desorientada”, e cada vez mais tima dos seus próprios medos culturais, religiosos,
demográficos e laborais, que de certa maneira tem vindo a transformar o voto numa
espécie de arma contra a democracia. Consolidam-se assim novas hegemonias das
velhas maiorias, em novos contextos, sejam os que resultam de uma “síndrome de fadiga
democrática”, sejam aqueles que se reconfiguram no “pós-factual” e na fraude política,
que subsumem já essa hegemonia como uma era “pós-democrática”, no dizer de
Wolfgang Streeck. Novos dados conhecidos através do recente World Values Survey
2
,
tornam este cenário um pouco mais arrepiante: menos de metade dos jovens europeus
não considera essencial viver em democracia... Desconstruir esta mundialização, a par
2
WVS, Wave 6 (2010-2014). http://www.worldvaluessurvey.org
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de uma evidente crise, em curso, do próprio projeto europeu, parecem ser assim, no
atual contexto de “pós-verdade” e de “regressão global”, as palavras de ordem com
maior potencial de audiência. Mas a grande questão permanece a da incerteza, isto é,
saber se os radicalismos e populismos são de facto uma nova tendência que esteja já a
pôr em causa a continuidade da democracia liberal tal como a conhecemos desde o século
XVIII.
Diversidade na era digital
A nossa perspetiva, nesta pesquisa, é avaliar sobretudo a dimensão da diversidade
comunicacional e cultural da globalização não perdendo de vista as dimensões do
pluralismo cultural e pós-mediático , e também procurar compreender esse contexto
que é marcado essencialmente pela nova era digital e pelos seus impactos. Vejamos,
num primeiro tempo, como se foi afirmando esse impasse complexo no domínio do
pluralismo e das culturas da diversidade na emergência do digital, procurando configurar
em última instância o modelo de globalização assente naquilo a que podemos chamar o
“algorithmic turn” Big Data, IA, Machine Learning, etc., com implicações deveras
complexas nos diferentes níveis da sociedade, mas sobretudo nos âmbitos
economia/emprego; e ciência/conhecimento e informação.
Num primeiro momento, veja-se a questão da genealogia do pluralismo e da diversidade
no contexto europeu, em particular no âmbito da missão e das práticas do serviço público
de televisão, a quem compete, por excelência, fazer a diferença face à oferta televisiva
em geral. A dualidade ou “tensão” cultura vs. economia/comércio (Lowe & Bardoel, 2007;
Cádima, 2007; Novak, 2014), se sempre foi muito penalizadora na experiência
audiovisual europeia, tem sido altamente crítica sobretudo para os países em
desenvolvimento. O reconhecimento da diversidade, de facto, nunca ascendeu à
dignidade nem de “património comum da humanidade” nem, tão pouco, de herança
cultural europeia no espaço audiovisual da UE. De um modo geral, mesmo no contexto
comunitário, a diversidade cultural e mediática, sempre estiveram relativamente
silenciadas, submetidas às leis do livre-comércio, e não tanto às identidades, aos valores
e aos sentidos, ou melhor, raramente estiveram suscetíveis de promover efetivamente a
diversidade das expressões culturais, inclusive nos sistemas públicos de media. Na
verdade, como considerava Mattelart (2006: 16)
“as visões (da Unesco) de cultura, de identidade e de heteronomias
culturais, interpelam a visão conservadora e patrimonial dos ‘valores
europeus’ que marcou a construção do mercado único”.
Políticas culturais e políticas de media não podem assim estar separadas na medida em
que o princípio básico continua a ser o da diversidade, quer das fontes de informação,
quer da propriedade dos media, quer da independência do serviço público.
Estará o digital a ser diferente dos media clássicos em matéria de diversidade, utilizando
aqui o conceito em sentido lato, no espectro cultural, socioeconómico e político? Mais em
particular, no âmbito da diversidade das vozes na rede, da diversidade política e da
“polarização”, do grau de concentração de plataformas de notícias no digital, e no âmbito
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do que é específico estritamente do digital, mas que interfere gravemente com as
questões da liberdade e da dignidade da pessoa humana, na questão do rastreamento,
do controlo da pegada digital e finalmente da (des)proteção de dados pessoais?
Em ntese, poder-se-ia dizer que em matéria de diversidades das vozes, pensando desde
logo nos movimentos sociais dos “indignados” e nas primaveras áraabes, concordamos
com Castells (2012) que veio defender que o fundamental é reconhecer a dimensão social
e histórica desses movimentos e os seus impactos, isto, na nossa perspetiva, para se
perceber até que ponto podemos falar de “vozes libertadas” ou de abertura à pluralidade
e diversidade das vozes das comunidades de cidadãos nestes novos contextos. Para todos
os efeitos, nas redes haverá sempre uma forma imperfeita de representatividade, quanto
mais não seja pelo facto de estarmos perante plataformas filtradas por algoritmos. Daí
que se trate, ainda, de “vozes condicionadas”. Como referimos (Cádima, 2015), são
condicionadas no acesso no digital divide, na questão da neutralidade da rede, mas
também porque são monitorizadas por sistemas de “tracking”, “bots”, por dispositivos
analíticos de informação, e ainda porque se cruzam com falsos perfis, “fake news”,
sistemas de bloqueio, censura, etc., tornando-se estas vozes mais rapidamente presas
do controlo do virtual, do que absolutamente livres na galáxia Internet.
Também no que respeita à questão da concentração da propriedade de empresas de
media e plataformas digitais na Internet, os primeiros dados conhecidos não eram nada
favoráveis. Hindman (2009: 18) referia existirem “poderosas hierarquias” que
formatavam o digital, para além de barreiras à entrada, de concentração económica e de
conteúdos, no tráfego, nos motores de busca, software, etc. Pelo que, concluía, “news
and media consumption is more concentrated online than off-line” (2009: 96). Ainda em
termos de concentração, e face aos dados conhecidos, pode dizer-se que a diversidade
dos media e dos conteúdos no contexto da migração para os new media, a par da
consolidação de uma esfera blica “incluída”, ampla e autónoma, e da questão da
participação e da colaboração da cidadania no âmbito de uma Internet “aberta” e
enquadrada pelos princípios da “net neutrality”, são ainda tópicos não totalmente
assimilados pelas atuais práticas correntes na rede.
Refira-se ainda que as netvigilâncias e outras modalidades intrusivas de controlo virtual
aumentaram dramaticamente nos últimos anos, expondo, por vezes publicamente, a
informação privada dos cidadãos, denunciando assim sobretudo as debilidades das
sociedades democráticas (Mattelart, 2010) que, de facto, soçobraram perante as novas
lógicas securitárias globais e as suas ligações aos grupos de interesse e aos poderes
políticos e económicos pouco transparentes. As novas lógicas de captura e controlo de
dados convertem desta forma o utilizador, os cibercidadãos do mundo, de um modo
geral, numa espécie de terminal “IoT”, amorfo, ou seja, num recetáculo físico,
desumanizado, exposto a um sistema complexo de controlo perfeitamente invisível. As
consequências desta reconversão do “humano” em sujeito estatístico na era do Big Data
é, por isso mesmo, extremamente crítica.
Dataism e polarização
Hoje, no plano global, em matéria de media, plataformas digitais e informação, discute-
se e procura compreender-se os impactos das “fake news”, da informação distorcida e
dos “bots”, fala-se das consequências das redes sociais, do Facebook e do Twitter, mas
também da Google e da Microsoft, que têm efetivamente uma responsabilidade particular
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na formatação e “editoria” do atual discurso público e no seu impacto na esfera política
e eleitoral. De qualquer forma, pesar do cerco imposto pelos novos discursos
encapsulados na era da “pós-verdade”, para académicos como Jonhattan Zittrain ainda
estamos a tempo de repensar o que está verdadeiramente em jogo e, por assim dizer, a
tempo de dar um passo atrás:
There are thoughtful proposals to reseed a media landscape of
genuine and diverse voices, and we would do well to experiment
widely with them as the clickbait architecture collapses on its own
accor” (Zittrain, 2017).
Computação, informação, biotecnologia, dados, inteligência artificial, estão a recompor
de forma dramática a paisagem humana no planeta e a geopolítica, levando cientistas
como Stephen Hawking
3
a encurtarem também dramaticamente as suas previsões
relativamente à “esperança de vida” da humanidade neste novo contexto. A estimativa
para os próximos cem anos é de que o planeta atravessará provações difíceis,
nomeadamente perigos resultantes das alterações climáticas, sobrepopulação,
epidemias, subemprego, possíveis guerras nucleares e inclusive embates de asteroides
na Terra, sendo possível voltarmos a ter períodos de extinção em massa, pelo que a
colonização de outros planetas é fundamental para assegurar a sobrevivência da espécie.
Esta é uma das revisões da matéria por Hawking, ainda que a sua previsão tenha sido
bem diferente num passado recente. Em 2017, num documentário em que participa para
a série da BBC Tomorrow's World Expedition New Earth, considera que o homem
criou tecnologia suficiente para destruir o planeta, mas não para escapar dele...
No campo da computação sucede um pouco o mesmo: as tecnologias, os algoritmos e o
“machine learning” vão progressivamente fazendo o seu caminho, sem que haja
verdadeira regulação, nem garantias claras de que esse caminho seja um dia vedado ao
“criador”, ou, pelo menos, de que o homem possa ficar tranquilo e confortável face a
qualquer imprevisto. Aliás, hoje isso já acontece em áreas tão importantes como a da
informação, nomeadamente quando pensamos nos rankings de notícias que os feeds das
plataformas digitais, os agregadores de notícias ou os motores de busca organizam de
acordo com o perfil de cada navegador/leitor. O “dataism” será uma espécie de nova
narrativa de legitimação da era da pós-verdade (Harari, 2017), uma ficção abrangente e
“sacrossanta” que na opinião do autor de Homo Deus (2017a) terá como embraiadores
dicursivos os non-conscious algorithms”: “If you leave it to market forces to choose
between intelligence and consciousness, the market will choose intelligence”. Ora, são
justamente estes algoritmos “sem consciência”, ou, pelo menos, com “consciência de
mercado”, que são motivo de reflexão e, sobretudo, de preocupação, uma vez que estão
a configurar aquilo a que alguns autores chamam o “algorithmic turn” na ciência e no
conhecimento, dito de outra forma, uma “física da cultura” (Slavin, 2011) que pode ir do
entretenimento à finança, ou do retalho ao jornalismo.
3
Veja-se: Stephen Hawking now says humanity has only about 100 years to escape Earth”. Chicago Tribune,
May 5, 2017. http://www.chicagotribune.com/news/nationworld/science/ct-stephen-hawking-escape-
earth-20170505-story.html
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O termo “data-ism” começou por ser “cunhado” por um analista norte-americano, David
Brooks (2013). Foi justamente Steve Lohr, do NYT, que publicou em 2015 um livro em
torno do tema. Partindo de estudos de caso e não descurando um pressuposto reflexivo
o que configura em si mesmo uma crítica ainda que velada, neste caso, ao próprio
fenómeno Big Data , Lohr descreve essencialmente esta nova era em que vastos
conjuntos de dados são usados pela ciência, ou pelos mercados, potenciando a previsão
e a decisão em praticamente todos os campos, analisando desafios, perigos e impactos
que o dataism comporta em si. No limite, esta extensão, ou “remediação” da informação
computacional em pleno contexto digital anuncia um novo patamar da inflexão
algorítmica que tem a ver, precisamente, com a possibilidade de o poder da computação
na gestão de grandes massas de dados biométricos poder autonomizar-se relativamente
ao humano em matérias tão sensíveis como processos eleitorais, fluxos financeiros, ou
gestão da informação noticiosa, isto é, “processamento” humano dessas bases de dados
é cada vez mais uma miragem:
Nobody understands the global economy, nobody knows how
political power functions today, and nobody can predict what the job
market or human society would look like in 50 years.” (Harari,
2017a).
É justamente esse “shift”, essa tensão entre o criador e o seu “Frankenstein”, entre a
computação e os seus algoritmos, que hoje deve merecer toda a atenção por parte da
ciência e do sistema jurídico-político em geral, de forma a prevenir consequências
certamente dramáticas que resultariam da perda desse controle , desde logo para a
humanidade no seu conjunto. Isto porque, quer os gurus da tecnologia, quer os profetas
Silicon Valley estão a criar uma “narrativa universal”, ou mesmo um “credo”, que tem
vindo a legitimar a lógica intrínseca do Big Data (Harari, 2016):
“Just as free-market capitalists believe in the invisible hand of the
market, so Dataists believe in the invisible hand of the dataflow”.
Um dos efeitos atuais mais dramáticos do dataism tem a ver com aquilo a que se chama
a polarização na esfera da política e da participação cívica, que é, para todos os efeitos,
uma antítese da diversidade em política. Daí que pensar hoje a política implique começar
por ver as consequências das novas estratégias de comunicação online que passaram a
utilizar as chamadas “filter bubbles”, filtros de opinião, “câmaras de eco”, etc., e ainda
toda o campo tóxico das “fake news”, cujas fontes são muito diversas. A nova paisagem
política norte-americana (tal como o Brexit, ou as presidenciais em França em 2017) es
assim envolvida neste turbilhão complexo de (des)informação, onde naturalmente as
redes sociais, motores de busca, agregadores de informação e, em geral, as plataformas
online estão claramente envolvidas.
Estas câmaras de eco das redes sociais são, por assim dizer, um fortíssimo polo de atração
dos utilizadores que acabam por corresponder naturalmente aos algoritmos que
reorganizam a informação em função dos perfis, dos interesses e das crenças desses
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mesmos utilizadores. O que significa que uma forte tendência dos utilizadores para
promover e redistribuir fundamentalmente as suas narrativas favoritas e, portanto,
formar grupos polarizados através daquilo a que se pode chamar a contínua criação de
“cascatas de informação” polarizada, temática. E uma vez dentro da “bolha” será muito
difícil sair dela. Na investigação desenvolvida pelo grupo do IMT de Estudos Avançados de
Lucca (Bessi, 2016), que analisou o comportamento de 12 milhões de utilizadores do
Facebook e do YouTube, entre 2010 e 2014, a equipe de investigação seguiu os "gostos",
partilhas e comentários nos vídeos do Youtube, mas também incorporados em 413
diferentes páginas do Facebook, considerando que havia fundamentalmente dois tipos de
categorias: “conspiração” e “ciência”, sendo que em geral quase todos os utilizadores se
tornaram altamente polarizados, isto é, mais de 95% dos comentários, partilhas e
"gostos" estavam numa única categoria de conteúdo, numa “câmara de eco ideológica”,
sendo que uma vez polarizados, os utilizadores tendem a tornar-se ainda mais
polarizados, ou seja, o utilizador deixa de ter opiniões adversas, outras perspetivas, ou
qualquer tipo de discussão sobre as questões em jogo, que lhe possam trazer outras
perspetivas.
Podemos identificar vários tipos de assimetrias em matéria de informação e notícias no
contexto da convergência inicial dos media tradicionais e já em plena era digital.
Basicamente, falamos dos diversos perfis e mutações que a “espiral de silêncio” da era
mediática apresenta na sua eterna luta com as formas abertas da liberdade de expressão
e de informação, com o pluralismo, a diversidade de conteúdos e vozes e a censura. Das
falsas notícias e da contra-informação, ao fait-divers, sensacionalismo e aos “factos
alternativos”, todos estes temas da era clássica dos media reaparecem agora no digital,
sendo que, atualmente, é em boa parte através das partilhas nas redes sociais que se
validam as notícias falsas. Ora este é um dado novo, que está a configurar uma deslocação
da “fonte” clássica para a origem da partilha, isto é, a fonte original de uma notícia parece
estar cada vez mais subalternizada ao autor, à “popularidade” e ao número de partilhas
online (AAVV, 2017). Mais dramático é que, em geral, na altura de confirmar e partilhar,
as pessoas não distinguem entre fontes conhecidas ou desconhecidas, ou, pior ainda,
inventadas. Veja-se, por exemplo, sobre a diversidade no contexto da informação
noticiosa tradicional, que alguns estudos apontam justamente para uma diminuição do
pluralismo e da diversidade quando a oferta cresceu exponencialmente sobretudo após
a massificação da Internet nos finais dos anos 90 do século passado. É o caso de um
estudo sobre os jornais da Flandres, na Bélgica (Walgrave, S. et al., 2017). Tendo por
base uma análise de conteúdo longitudinal de nove jornais flamengos em quatro
momentos verifica-se que ao longo do tempo, jornais de perfil semelhante, ou jornais
pertencentes aos mesmos grupos de media, tornaram-se menos diversificados no que
respeita às notícias que cobrem.
Ora, justamente, o problema da diversidade e do pluralismo reemerge de forma dramática
no atual contexto das novas assimetrias da era digital, onde as redes sociais e os
“gatekeepers” digitais se substituem aos velhos editores de imprensa, para reorganizarem
a informação pela lógica do “clickbait”, e onde o grau de concentração na indústria digital
é superior ao que sucedia na indústria dos media tradicionais (Hindman, 2009).
Problemático é ainda o facto de 51% dos utilizadores online preferirem as redes sociais
para acederem às notícias, em geral via telemóvel, em detrimento dos media tradicionais,
de acordo com um estudo do Instituto Reuters para o Estudo do Jornalismo (Newman, N.
et al., 2016), da Universidade de Oxford, com base em mais de 50 mil entrevistas em 26
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países, sendo aqui o Facebook a plataforma mais utilizada no consumo de notícias
havendo muitos utilizadores preferem a seleção de notícias feitas por algoritmos, às que
são tradicionalmente feitas por editores ou jornalistas.
No caso da polarização da informação, que é mais específica nos períodos eleitorais, esta
acaba por atravessar todo o ciclo de produção/recepção das notícias, em geral. E no caso
dos media, em particular na sua relação com os novos intermediários digitais, o acesso à
informação por parte do utilizador/leitor, adquire uma nova complexidade, ainda que a
polarização aqui seja na mesma determinada pelos algoritmos das mesmas plataformas,
agora transformados, portanto, em “gatekeepers” das notícias. Esta intermediação
comporta em si novos riscos para o sistema democrático, não apenas na esfera política
ou eleitoral, como vimos atrás, mas no quotidiano informativo das populações em geral.
Nielsen, R. K., e Ganter S. A. (2017) chamam a atenção precisamente para as relações
dos media tradicionais com os intermediários digitais, referindo que o ciclo informativo
está cada vez mais dependente das plataformas, pelo que emergem claramente
responsabilidades acrescidas para estes intermediários, como o Facebook ou a Google,
face ao poder que têm atualmente neste domínio. No seu estudo conclui-se que as
relações entre empresas de media e plataformas são de um modo geral caracterizadas
por uma tensão entre oportunidades operacionais de curto prazo e preocupações
estratégicas de longo prazo, mas mais em particular marcadas por uma relação de forças
e por uma assimetria que evidenciam sobretudo o risco que os media mainstream correm
de se tornarem cada vez mais secundários relativamente aos intermediários digitais.
Conclusão
Desinformação, polarização, desorientação, incerteza, são hoje alguns dos conceitos
recorrentes que estão a caracterizar os tempos que correm, as “etnopaisagens” do
presente, como referido por Appadurai (2004). Se essa é a configuração da política do
tempo, no plano da cultura e da informação vemos, por um lado, as questões da
diversidade e da pluralidade das vozes estarem indexadas às lógicas algorítmicas,
filtradas e rastreadas por complexos sistemas de controlo da Internet e/ou dos
operadores de rede, o que, em última análise, determina sobretudo uma censura das
vozes e não uma “liberdade” de expressão e das expressões. Por outro lado, o velho
modelo de “agenda-setting”, face à reciclagem e realinhamento da matéria informativa
por parte das plataformas digitais, difundida em função do perfil de cada utilizador,
aparenta ser hoje um processo com um impacto cada vez mais limitado no contexto dos
fluxos de informação globais.
No plano da informação, a forte penetração da Internet no plano global e o crescimento
exponencial de websites noticiosos e de plataformas digitais, desde praticamente finais
dos anos 90 do século passado, acabou por o se constituir em modelo de comunicação
alternativo ao tradicional discurso dos media clássicos, uma vez que a evolução verificada
começou por indexar a informação segundo o modelo do “winner taks it all(Hindman,
2009), para passar depois às “filter bubbles” (Pariser, 2010) e acabar no “gatekeeping
dos algoritmos das grandes plataformas como a Google e o Facebook (Bessi, 2016).
Do lado da receção, por parte dos públicos e em particular dos públicos mais jovens,
designadamente nos países mais desenvolvidos, tem vindo a verificar-se na migração
para o digital, não somente uma cada vez menor politização (Prior, 2007), como, em
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acréscimo, uma tendência crítica de maior polarização política. Mais grave ainda, é nas
faixas etárias mais jovens, sobretudo entre adolescentes e jovens adultos, que se verifica
uma outra tendência problemática atribuindo-se uma maior credibilidade às redes de
amigos e partilhas do que às fontes credíveis de informação.
Cosmopolitismo e interconectividade global (Woodward, 2008), a par da experiência da
cidadania, das suas redes físicas e virtuais, expõem ainda outras fraturas do digital, por
exemplo no plano individual, nas comunidade das periferias, ou em culturas isoladas
geograficamente (Norris, 2008), através de formas de identificação, comportamentos e
pertenças que transcendem fronteiras, por rutura ou convergência cultural entre o local
e o global e por um conjunto alargado de ameaças, sobretudo, e algumas oportunidades
abordadas ao longo desta reflexão.
Ainda que a paisagem mediática e digital esteja cheia de nuvens negras no horizonte, a
verdade é que o potencial da era digital não pode deixar de ser considerado como
estratégico para a cidadania global. As ameaças são um facto, mas existem também
algumas “oportunidades”, alguns interstícios de liberdade, justamente no campo da
diversidade cultural, para que diferentes comunidades se deem a conhecer e a interajam
no contexto global. Importa não menosprezar esse potencial para a salvaguarda
permanente da diversidade cultural, da tolerância e de uma cidadania intercultural
(Zayani, 2011), nesta fase crítica da globalização. Poderá ser um registo ainda de utopia
face às distopias do digital e da globalização, recuperadas agora de Orwell ou de Huxley,
mas se, como dizia Jameson (1984), ainda existe uma função social para essa entidade
peculiar que é a utopia, é justamente para que a dissociação histórica entre dois mundos
distintos a referida dualidade catástrofe/progresso que a globalização acabou,
porventura, por acentuar, possa ter também a sua inflexão. A verdade é que, pela
“arqueologia” conhecida até agora, a -la, será certamente individual ou local,
dificilmente sê-lo-á no plano global.
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