OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 8, Nº. 2 (Novembro 2017-Abril 2018), pp. 15-31
DAS CIDADES-ESTADO ÀS CIDADES-GLOBAIS: O PAPEL DAS CIDADES NA
GOVERNANÇA GLOBAL
Domingos Martins Vaz
dvaz@ubi.pt
Sociólogo, professor no Departamento de Sociologia da Universidade da Beira Interior (UBI,
Portugal) e investigador integrado do CICS.NOVA (Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais da
Universidade Nova de Lisboa). Tem desenvolvido investigação sobre temas urbanos e rurais,
mobilidades e desenvolvimento territorial, sobre os quais tem publicado.
Liliana Reis
lilianareis@ubi.pt
Professora auxiliar da Universidade da Beira Interior (UBI, Portugal) e diretora da Licenciatura
em Ciência Política e Relações Internacionais e do Mestrado em Relações Internacionais da
mesma instituição e investigadora do Centro de Investigação em Ciência Política da Universidade
do Minho e Universidade de Évora. Licenciada em Relações Internacionais pela Universidade do
Minho, mestre em Relações Internacionais e Ciência Política pelo Instituto de Estudos Políticos da
Universidade Católica Portuguesa e doutorada em Ciência Política e Relações Internacionais na
Universidade do Minho. Tem desenvolvido investigação sobre a UE e governança global e
participado em várias conferências nacionais e internacionais.
Recebeu recentemente a menção honrosa do Prémio José Medeiros Ferreira.
Resumo
A governança global alterou a arquitectura institucional e as condições sistémicas e
institucionais sob as quais se dá o exercício do poder, bem como as características do sistema
político, a forma de governo e o sistema de intermediação de interesses. Porém, e apesar de
ter ultrapassado a dimensão estatal do poder, criou novas dimensões inter-estatais e novas
relações entre os poderes, nomeadamente ao nível das cidades. As cidades têm ajudado a
resolver problemas comuns de uma forma mais eficiente e eficaz, facilitando o intercâmbio
de conhecimentos, a partilha de soluções e recursos, construindo capacidades para
implementação e monitorização do progresso no sentido de alcançar metas acordadas
colectivamente, numa abordagem bottom-up. As cidades têm a virtude de garantirem o
contracto social e político mais directo entre as sociedades e a noção de autoridade. Procura-
se, pois, reflectir sobre esta governança emergente, menos hierárquica e rígida, para
enfrentar os complexos desafios globais como as alterações climáticas e demográficas, taxas
de criminalidade crescentes, tecnologia disruptiva e pressões sobre recursos, infra-estruturas
e energia. Como interface global/local, as cidades podem assegurar soluções eficazes para os
actuais desafios e agir em conjunto, em domínios em que a agenda global está paralisada.
Palavras-chave:
Actores sub-nacionais; Ameaças e riscos; Globalização; Governança multinível;
Redes de cidades
Como citar este artigo
Vaz, Domingos Martins; Reis, Liliana (2017). "Das Cidades-Estado às Cidades-Globais: o papel
das cidades na governança global". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 8,
N.º 2, Novembro 2017-Abril 2018. Consultado [online] em data da última consulta, DOI:
https://doi.org/10.26619/1647-7251.8.2.2
Artigo recebido em 7 de Julho de 2017 e aceite para publicação em 11 de Setembro de
2017
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Das Cidades-Estado às Cidades-Globais: o papel das cidades na governança global
Domingos Martins Vaz e Liliana Reis
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DAS CIDADES-ESTADO ÀS CIDADES-GLOBAIS: O PAPEL DAS CIDADES NA
GOVERNANÇA GLOBAL
Domingos Martins Vaz
Liliana Reis
1. Introdução
A proporção da população global a viver em cidades tem crescido rapidamente,
observando-se, actualmente, maciças concentrações espaciais de pessoas numa escala
até agora julgada inconcebível, levando à formação de sistemas urbanos mundiais com
rápidos efeitos de transformação nas sociedades e no funcionamento da economia e da
política global. Como consequência destas transformações os desafios que se colocam
hoje às cidades aproximam-nas, em certas situações, da ideia de “cidades-estados”
1
,
quer do ponto de vista da concentração de actividades diversas e da inovação, quer de
actuação no âmbito de redes e sua relevância na compreensão do fenómeno da
governança global.
O artigo analisa e replica o papel das cidades e a descentralização do locus de poder ao
nível da governação nacional e internacional, consequência do próprio processo de
globalização. A abordagem holística apresentada proporciona uma contribuição para a
melhoria da análise dos atuais processos de governança global, enfatizando o papel das
cidades como actores com capacidade para gerar respostas aos riscos e ameaças globais
(terrorismo, alterações climáticas, criminalidade, entre outras), não ignorando que
muitos destes têm génese urbana. Assim, na primeira secção é avaliado o papel das
cidades no processo de globalização, a cidade como centro de poder e a globalização
enquanto fenómeno multidimensional. Na segunda secção é abordada a formação e o
papel das redes de cidades e a questão da governance, nomeadamente a dimensão da
governação multinível. Na terceira secção, são referenciados os principais desafios e
problemas recenseados por entidades internacionais e, que, também defrontam as
cidades, perspectivando-se o papel destas como actores sub-nacionais para o
enriquecimento e a maturação do processo de governança global. Concluímos que as
1
A origem do termo é inglesa, data do século XIX e abrange as cidades do mundo greco-romano e da Itália
medieval. Ainda que esta concepção de Estado remonte às civilizações pré-clássicas do Crescente Fértil (da
Fenícia à Mesopotâmia, nomeadamente na Suméria), atingiu o seu máximo esplendor entre os séculos V e
IV a. C., na época da Grécia Clássica, enquanto sistema político constituído por uma cidade independente
que exerce soberania sobre um território circundante, atuando como centro político, económico e cultural,
destacando-se Atenas, Esparta e Tróia. As necessidades de conquista ou de sobrevivência continuam a ser
as hipóteses explicativas para o aparecimento desta forma de organização política nas cidades gregas
espalhadas pelo Mediterrâneo (Cidade-estado, 2003-2017). Hoje, a globalização, a descentralização do
poder dos Estados e a necessidade local de soluções globais vêm provocando uma alteração no contexto
dominado pelos Estados nacionais. A política externa de muitas urbes já não se limita à simples promoção
comercial ou cerimónias de geminação. Muitas cidades e regiões assumem-se como atores no âmbito de
redes com interesses comuns, e, enquanto atores sub-nacionais, desenvolvem acções paradiplomáticas no
cenário internacional.
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redes de cidades são uma nova forma de actuação compostas por actores sub-nacionais,
antes excluídos do cenário internacional, e representam uma nova realidade mundial com
as suas próprias estruturas e modos inovadores de equacionar e interagir no sistema
internacional.
2. Cidades e Globalização
2.1 A Cidade como centro de poder
Ao longo da História uma cidade foi sempre um centro de poder. Ela nasce de um
processo de sedentarização, e indissociável à sua existência material está a sua
existência política. Sede de poder e administração, lugar de produção de mitos e
símbolos, como local cerimonial é na cidade que se localizam os templos, onde moram
os deuses capazes de garantir o domínio sobre o território (Rolnik, 1994)
2
. Desde a
Antiguidade, dos sumérios aos gregos, que o papel das cidades como pontos fulcrais de
interesses e decisões vincularam comunidades de cidadãos. Assumiram e equiparam-se
com funções de Estado. As cidades gregas de Esparta e Atenas, como unidades políticas,
tiveram um papel de relevo no domínio das relações “internacionais”, no âmbito da
defesa com a formação de alianças entre cidades-estado, que se vieram a enfrentar na
Guerra do Peloponeso.
A cidade é também um dos primeiros grupos sociais aberto “a todos os estranhos”
3
, ao
contrário da aldeia ou do clã, o que provoca efeitos dinâmicos evidentes. Permitiram, e
permitem, o encontro, a partilha, a inovação. Daí que ainda hoje sejam identificadas com
a «civilização», ou o cosmopolitismo. Na cidade concentram-se não só muitos indivíduos
diferentes, como indivíduos provenientes de lugares muito diferentes. O intercâmbio que
daqui resulta (a vel de ideias e informações) permite que a cidade seja o fulcro da
mudança (Mumford, 1989). Respondem a toda a espécie de anseios, conjugam economia
e conhecimento, segurança e poder.
Na História encontramos inúmeros exemplos de transformações germinadas nas urbes,
enquanto pontos de encontro, entrepostos, escalas de «muitas e desvairadas gentes»,
como foi Lisboa, a cidade renascentista e do império de que foi capital.
4
Ou Florença com
o Renascimento e Birmingham com a revolução industrial. As cidades são os motores da
produção de conhecimento e do progresso e agentes de protagonismo.
2
E hoje, não estão estas características ainda presentes na metrópole contemporânea? Não representam as
suas torres brilhantes de vidro e metal os centros de decisão dos destinos de Estados, países, do mundo?
Não são os seus outdoors, vitrinas e telas de TV os templos dos novos deuses? Parece-nos que nestas
metrópoles acentradas (cidades sem centro ou cidades multicentradas) nunca o poder urbano foi tão
centralizado, a instantaneidade do computador e da imagem de vídeo suportam sistemas de controlo
organizados em estruturas fortemente centralizadas e hierarquizadas, sem que isso implique
necessariamente concentração espacial.
3
Para Mumford (1989: 133), a cidade é um dos primeiros grupos sociais aberto “a todos os estranhos”, ao
contrário da aldeia ou do clã, o que provoca efeitos dinâmicos como fonte de inovação e do progresso
técnico, por contraposição ao campo.
4
É assim mostrada como cidade global, multicultural, miscigenada e como um centro comercial do século
XVI, na exposição «A Cidade Global», Museu de Arte Antiga. “Esta cidade tinha o mundo cá dentro e andar
pela Rua Nova dos Mercadores, que era o centro do comércio, mostra isso mesmo. Não há muitas capitais
europeias do Renascimento onde pudéssemos comprar araras, macacos e civetas [africanas], onde
houvesse dedais do Ceilão [actual Sri Lanka] para vender, onde a variedade de loiças da China e do Japão
fosse tão grande como aqui”, diz Gschwend, que partilha com a historiadora Kate Lowe o comissariado da
exposição, Jornal Público, 23 de Fevereiro de 2017.
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Pode mesmo admitir-se que, na actual situação de enfraquecimento ou fragilidade dos
centros de decisão política tradicionais, como os Estados, outros actores afirmam
protagonismo, como é o caso das organizações internacionais, empresas transnacionais,
mas também das cidades. O actual panorama internacional favorece o papel das cidades
e chega a admitir-se a possibilidade de se caminhar para um sistema de tipo hanseático,
face ao que ocorreu na vasta área ribeirinha do Mar Báltico, a partir dos finais da Idade
Média, em que, na ausência de um poder político unificador, a gestão dessa zona era
assegurada por uma aliança de cidades (Lubeck, Bergen, Hamburgo, Riga…) e por uma
liga de mercadores, a Liga Hanseática (Moita, 2017).
Alguma analogia pode ser estabelecida com tal experiência, embora de modo não
artificial, dado o peso crescente na governação global das empresas multinacionais e das
grandes metrópoles. Mas isso não se explica apenas pela recente emergência de
autênticas Cidade-Estado como Hong-Kong e Singapura, nem pela expansão de
megacidades que, nos vários continentes, são classificadas de «cidades globais» (Sassen,
1991, 2002, 2005, 2007). Na realidade os poderes locais, sobretudo o das grandes
concentrações urbanas, afirmam-se hoje como actores da própria vida internacional e
desenvolvem uma intervenção activa que interfere nos processos de globalização actuais.
A investigação de âmbito nacional e internacional que tem sido produzida no domínio das
Relações Internacionais sobre a centralidade das cidades no actual sistema internacional
isso demonstra (Curto et al, 2014; Tavares, 2016; Santos, 2017).
A intensidade da urbanização contemporânea tem para isso contribuído,
inexoravelmente. Todos os anos segundo o National Intelligence Council dos EUA, 65
milhões de pessoas juntam-se à população urbana mundial, o que equivale à edição de
mais sete cidades do tamanho de Chicago ou de mais cinco do tamanho de Londres. Esta
dinâmica tem na China e na Índia os principais motores (National Intelligence Council,
2012). Também a África, nomeadamente a Nigéria, tem dado um grande contributo. Os
relatórios da ONU (2014;2017) sobre a urbanização mundial evidenciam bem a força do
fluxo migratório. De 1990 até ao ano de 2014, as cidades com mais de 10 milhões de
habitantes passaram de 10 para 28, a maioria na Ásia. A maior parte da população
mundial vive em áreas urbanas. Calcula-se que, em 2050, mais 2,5 mil milhões de
pessoas façam crescer para 66% a população urbana.
5
Na Europa mais de dois terços da população europeia vivem em áreas urbanas e essa
participação continua a crescer.
6
O desenvolvimento das cidades determinará o futuro
desenvolvimento económico, social e territorial da União Europeia.
7
Isso mesmo está
5
Em 1950 menos de um terço (30%) da população mundial vivia em espaços urbanos (Harvey, 2004).
6
Na “Europa dos 28”, em 2017, 74,5% da população vive em áreas urbanas mas essa participação continua
a crescer, embora de modo muito mais moderado. Ao longo da segunda metade do século XX, a população
urbana cresceu progressivamente assumindo um papel cada vez maior na estrutura demográfica europeia.
Enquanto em 1950 a população europeia rural ainda era maior do que a urbana, actualmente mais de dois
terços da população da Europeia vive em áreas urbanas (Eurostat, 2016), embora ocupando apenas um
17% do total do território europeu (PBL, 2016). Nesse sentido, as Nações Unidas têm sublinhado que no
cenário do ano de 2050, a Europa terá uma população urbana que rondará os 80% (UN, 2014). O
desenvolvimento das cidades determinará o futuro desenvolvimento económico, social e territorial da União
Europeia.
7
Em vários documentos oficiais, desde 2004, a UE tem enfatizado que as cidades desempenham um papel
crucial como motores da economia, como locais de conectividade, criatividade e inovação, e como centros
de serviços para os seus arredores. Entre os documentos mais relevantes da ação europeia relativamente
ao papel das cidades, destacam-se:
O Urban Acquis of 2004, o qual reconhece “a importância que a contribuição das cidades poderá ter
para o sucesso económico, social e ambiental da Europa”;
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plasmado nos objectivos da Estratégia Europa 2020 solicitando uma verdadeira parceria
com as zonas urbanas europeias, cidades e vilas na sua implementação, continuando a
reforçar o apoio público a políticas urbanas sustentáveis em toda a UE.
As grandes cidades emergiram como um lugar estratégico para inúmeros tipos de
operações em diferentes áreas temáticas, dado que “multiple globalization processes
assume concrete localized forms, electronic networks intersect with thick environments
(whether financial centres or activist meetings” e “new subjectivities arise from the
encounters of people from all around the world” (Sassen, 2012). A vinculação entre estas
cidades e a globalização torna-se uma evidência. Autores como Dollfus (1998) avançam
com a ideia da criação de um “arquipélago megapolitano mundial”, formado por
conjuntos de cidades que contribuem para dirigir o mundo, sendo isso um dos mais fortes
símbolos da globalização aliada à concentração das actividades de inovação e de
direcção. Isto porque os novos processos de urbanização se materializam nas tendências
recentes de apropriação da cidade por interesses empresariais globais, redefinindo os
diferentes territórios e a sua relação com agentes com poder de transformação.
Em muitas geografias, o poder está a mudar dos governos centrais para os governos
regionais e locais. É por isso que a política externa de muitas urbes não se limita à
mera promoção comercial ou às cerimónias de geminação. O economista americano
Stephen J. Kobrin diz que já há muitas cidades e regiões que começam a sentir-se mais
livres dos governos centrais e que “está a nascer uma versão moderna da ordem
medieval das cidades-Estado”.
8
Em termos históricos, pode dizer-se que, enquanto o território mais estável nas
sociedades tradicionais era em geral fragmentador e excludente em relação a outros
grupos culturais mas profundamente integrador e holístico no que se referia ao interior
do grupo social, no mundo contemporâneo a globalização territorial é uma necessidade
vital para a reprodução do sistema, resultando uma forma de organização territorial,
cada vez mais moldada pela mobilidade, pelos fluxos e pelas redes. Uma tendência
importante é aquela que propõe a rede como um elemento do território ou como uma
das formas do território se apresentar.
2.2 Uma globalização multidimensional
A globalização pode ser sintetizada pela ideia de que muitas realidades locais fazem parte
de fenómenos mais latos, com alcance e significado mundiais. Pela noção de que há um
complexo de relações sociais a transcenderem os territórios nacionais, ao ponto de aquilo
que se passa num dado local ser influenciado por eventos ocorridos a grande distância
(Giddens, 2001). O modo de funcionamento global envolve domínios muito díspares, daí
O Acordo de Bristol de 2005 o qual sublinha a importância de comunidades sustentáveis para o maior
desenvolvimento da Europa e identificando as características dessas comunidades sustentáveis
A Carta de Leipzig sobre as Cidades Europeias Sustentáveis referindo a importância do maior uso
integrado do desenvolvimento urbano para as abordagens políticas
A Agenda Territorial de 2007 colocando as questões enfrentadas pelas cidades e zonas urbanas no
contexto da coesão territorial;
A Declaração de Marselha de 2008, solicitando a aplicação dos princípios da Carta de Leipzig através do
desenvolvimento de um Quadro de Referência Europeu para as Cidades Sustentáveis;
A Declaração de Toledo de 2010, reconhecendo o papel que as zonas urbanas europeias e que as cidades
podem desempenhar na consecução do objectivo de crescimento inteligente, sustentável e inclusivo
prosseguido na Estratégia Europa 2020.
8
Stephen J. Kobrin citado em A. J. Teixeira (2015: 11).
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que se fale em dimensões da globalização no plural, como faz Appadurai (1996) ao
sugerir que o mundo actual se caracteriza pela existência de cinco «paisagens fluidas»,
constituídas por fluxos de indivíduos, media, tecnologia, capital e ideologia. Deste modo,
podemos dizer que a principal característica desse novo “arranjo” do social é estabelecer
novas coordenadas nas relações de espaço-tempo, provocando aqueles múltiplos fluxos
novas formas de organização da vida humana.
Entender esta nova realidade exige inovação na teoria para se compreender o fenómeno
da globalização segundo uma abordagem que além de uma visão estritamente
económica e que privilegie, sobretudo, a dimensão política e cultural das mudanças
contemporâneas. Existe certamente uma diferença entre uma orientação que privilegia
as estruturas e uma realidade onde a mobilidade, a circulação e a inserção em múltiplas
pertenças são centrais. O que caracteriza o mundo contemporâneo são os fluxos de toda
a natureza que o recriam e lhe dão vitalidade permanentemente. A teoria tradicional
parece ter subalternizado a proliferação «rhyzomica», segundo a expressão de Deleuze
e Guattari (1980), preferindo os referentes estáveis: territórios, organizações,
instituições, Estado. Ora hoje o planeta inteiro é atravessado por fluxos incessantes de
vária natureza: financeiros, comércio, informação, população, e esta situação nova
interpela o ponto de vista do observador e convida ao seu reordenamento.
9
Uma alternativa às teorias economicistas e geopolíticas da globalização, e que interpele
a dimensão geocultural na perspectiva desenvolvida por Appadurai (1996: 2004), ganha
acrescido interesse. Este autor evidencia a crise do Estado-nação tradicional e releva o
impacte da circulação dos indivíduos e das informações no mundo contemporâneo. Os
meios de comunicação social (de massas) e as migrações (de massas) têm, segundo
Appadurai (1996), um efeito decisivo sobre a obra da «imaginação», e esta imaginação
é, para ele, a característica constitutiva da subjectividade moderna, isto é, os
"sentimentos de identidade" de cada um. Na sua análise da globalização o autor atribui
um lugar central à «imaginação» à maneira da noção de representação colectiva de
Durkheim. Podemos encontrar aqui um paralelismo com a reflexão de Anderson (1991)
sobre a formação do Estado-nação e o ingrediente principal que é a «comunidade
imaginada». Andersen evidencia o papel das novas cnicas de comunicação ligadas à
invenção da imprensa na estruturação de Estados-nações centralizados que concentram
o exercício da soberania e o monopólio da violência legítima num território com fronteiras
bem delimitadas. Com a «imaginação» de Appadurai (1996) é a ideia de invenção que
prevalece, num contexto onde os media ocupam um papel determinante, não só
9
A ligação do mundo em rede aumentou a capacidade de processamento de informação indispensável ao
desenrolar da actividade económica e social e passou a estar disponível em tempo real. Da crescente
movimentação internacional de viajantes com impacto económico e cultural, refere-se: i) Viagens e turismo;
ii) Administração de negócios globalizados; iii) Estudar noutros países; iv) Participação em eventos
científicos e congressos; v) Fluxo de migrantes internacionais. A título de exemplo, podemos afirmar que
no domínio do comércio internacional, este, na maioria dos países, representa uma grande percentagem
do PIB e, a sua importância económica, social e política tornou-se crescente nas últimas décadas. O avanço
industrial, dos transportes, a globalização, o surgimento das empresas multinacionais, o outsourcing,
tiveram grande impacto no incremento deste comércio. O volume do comércio mundial aumentou vinte
vezes desde 1950 até hoje. Este aumento de bens manufacturados ultrapassa o aumento da taxa de
produção dessas mercadorias em três vezes. A EU-28 representa cerca de 15 % do comércio mundial de
mercadorias. Entre 2006 e 2016, a evolução das exportações de mercadorias da UE-28 por principal parceiro
comercial variou consideravelmente. Entre os principais parceiros comerciais, a taxa de crescimento mais
elevada foi registada nas exportações para a China que quase triplicaram, enquanto as exportações para a
Coreia do Sul quase duplicaram. As exportações para a Noruega e o Japão registaram um crescimento mais
lento e foram 26 % e 30 % superiores em 2016 às verificadas em 2006, ao passo que não se registou
alteração no nível das exportações da UE-28 para a Rússia no período em consideração (Eurostat, 2017).
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difundindo como modelando e flexibilizando os processos culturais. O elo entre a
determinação de espaços de soberania, as modalidades de circulação da informação e a
sua difusão por um dispositivo de tecnologias apropriadas permite recontextualizar o
Estado-nação e reequacionar a questão da soberania.
A globalização tem, pois, dois efeitos muito precisos: em primeiro lugar, no quadro
geopolítico, o Estado-nação enquanto referente estável tinha uma importância muito
vincada que conferia aos membros da sociedade o seu ponto de ancoragem privilegiado.
O discurso sobre a nação opunha dicotomicamente semelhança e diferença, pertença e
exclusão, que era próprio da cultura moderna (Anderson, 1991). Um contexto onde os
processos de indução identitária se produziam no âmbito de uma dinâmica permanente
de oposição entre o «nós» e «eles», entre o interior e o exterior. Ora, as migrações, por
um lado, e os fluxos mediáticos pelo outro abalaram este quadro outrora dominante. As
condições da modernidade tardia têm colocado dificuldades ao pensamento binário,
criando nos Estados-nações cenários que Anderson (1991) definiu como a «crise do
hífen», sendo hoje difícil a muitos Estados equacionarem-se como nações unitárias.
Em segundo lugar, num mundo marcado pelo «poder da imaginação», Appadurai (1996)
não deixa de por a questão da relação entre o local e o global. Numa certa medida, o
autor reage à visão pessimista segundo a qual a globalização significa a longo prazo a
desaparição das especificidades culturais próprias do mundo territorializado de outrora.
O “fim dos territórios” estaria associado à crise que abala os Estados cujas soberanias
são postas em causa com a proliferação dos fluxos económicos e a constituição de novos
conjuntos transnacionais. A globalização marcaria, então, em grande medida o declínio
de uma civilização onde a transmissão e a tradição jogavam um papel preponderante, e
onde o sujeito se definia a partir de uma localidade, região e nação.
A proliferação de grupos desterritorializados, a diversidade das diásporas observadas um
pouco por todo o lado, tem por efeito a criação de novas solidariedades translocais
(Appadurai, 1996). Vimos emergir construções identitárias que ultrapassam o quadro
nacional. As políticas estatais contribuem à sua maneira para manter esta situação e
provocar movimentos migratórios. Appadurai (1996) insiste na grande heterogeneidade
destas formas de circulação. Os refugiados, os trabalhadores especializados de empresas
e organizações internacionais, os turistas, os estudantes, representam tipos muito
diferentes de migrantes e constituem à sua maneira uma «transnação» deslocalizada.
Nestas condições, estaremos doravante a entrar na era do pós-nacional? As novas formas
de organização que desempenham um papel político de primeiro plano em domínios tão
diversos como o ambiente, a economia, e as relações humanitárias, apresentam uma
fluidez, uma flexibilidade que contrasta com as estruturas rígidas dos aparelhos estatais
tradicionais. A afirmação das cidades na governança global, as organizações não-
governamentais (ONG) que se desenvolvem, muitas vezes em ligação com situações de
crise, são bem representativas de um novo modelo político mais directamente ancorado
na sociedade civil que transcende claramente as fronteiras nacionais. A
transnacionalidade que caracteriza cada vez mais o universo mundializado impõe novas
solidariedades em rede e modos de acção mais flexíveis. Assim, podemos interpretar as
soberanias s-nacionais emergentes, e a própria ideia de patriotismo não perde de todo
valor na medida em que faz sentido que falemos de um patriotismo «móvel plural e
contextual». Esta é mais uma noção que defronta as concepções clássicas de Estado-
nação que não admitem que possam existir formas veis de soberania às quais
corresponde um novo tipo de compromisso dentro do qual a acção cívica e política faz
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“implodir” o quadro nacional.
10
Também a formação de conjuntos institucionais
transnacionais, de que a União Europeia é caso paradigmático, têm confrontado o quadro
tradicional de soberania.
3. Redes de cidades e Governance
3.1 As redes de cidades
Enquanto a globalização progride e a urbanização se intensifica, a economia globalizada
estrutura o espaço de fluxos teorizado por Castells (2005)
11
, que se materializa numa
organização espacial em torno de centros de controlo e comando, aquilo que corresponde
à ideia de Sassen (2012) de “cidade global”, em que algumas cidades mundiais dominam
as finanças internacionais e grande parte dos serviços de consultadoria e empresariais,
de âmbito internacional. É a partir destas cidades que a economia mundial é dirigida, que
são emanadas políticas e estratégias internacionais cujo principal desafio é alargar as
dinâmicas de crescimento em todos os sectores de actividade. Trata-se de um processo
que não afecta apenas as cidades mundiais que se situam no topo da hierarquia, mas
todas as cidades que vão fazendo parte da rede global.
É interessante, pois, analisarmos a actuação das redes de cidades e sua importância
crescente na compreensão do fenómeno da governança global, configurando uma nova
realidade no cenário internacional. Este processo desenvolve-se a partir das décadas de
1980 e 1990 dadas as mudanças ocorridas que propiciaram o reaparecimento e a
expansão da paradiplomacia no mundo (Curto et al, 2014; Neves, 2010; Moita, 2017;
Santos, 2017).
12
Desde a intensificação da globalização, a emergência do Estado-rede,
isto é, o Estado que compartilha a sua autoridade ao longo de uma rede, o fim da Guerra-
Fria e a subsequente queda do sistema bipolar (Borja & Castells, 1997; Lecours, 2008;
Araújo, 2011). Neste contexto as cidades e as regiões assumiram novos papéis
económicos e políticos no quadro internacional, em função do declínio de uma hierarquia
que tinha o Estado como detentor único do poder, e da descentralização que confere a
10
São disso testemunho as manifestações que mobilizam as organizações que incarnam causas tão diversas
como as que se desenvolvem em torno da questão ambiental, das desigualdades ou da contra-globalização
hegemónica.
11
Este autor propõe que uma nova forma espacial característica das práticas sociais que dominam e
moldam a sociedade em rede: o espaço de fluxos. Por fluxos, Castells entende serem as sequências
intencionais, repetitivas e programáveis de intercâmbio e interacção entre posições fisicamente
desarticuladas, mantidas por actores sociais nas estruturas económica, política e simbólica da sociedade.
Nesta rede, nenhum lugar existe só por si mesmo, já que as posições são definidas por fluxos.
Consequentemente, a rede de comunicação é a configuração espacial fundamental: os lugares não
desaparecem, mas sua lógica e seu significado são absorvidos na rede.
12
A partir de Neves (2010) e Moita (2017) entende-se por paradiplomacia como a capacidade de atores não
estatais para estabelecer acordos de cooperação internacional, a partir dos seus próprios interesses,
independentemente da atuação do Estado. Este é um processo em expansão devido à lógica da globalização
económica de potenciar a competitividade, e face à dinamização dos processos de internacionalização
cultural. Esta realidade tem levado à proliferação de parcerias internacionais e à disseminação de redes de
vário tipo. É de destacar o papel das cidades, dada a intensificação do processo de urbanização, mas
também por se terem afirmado, de forma crescente, como importantes “nós” de redes muito diversas
globalizadas, ambicionando influenciar a agenda internacional, ter voz activa junto de organizações
multilaterais, sendo hoje pólos fundamentais de internacionalização e agentes relevantes da nova
“diplomacia” não estatal, a paradiplomacia.
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agentes sub-nacionais graus de autonomia para actuarem como actores globais (Araújo,
2011; Curto et al, 2014; Tavares, 2016; Santos, 2017).
13
As redes de cidades remontam à antiguidade, desde as cidades-Estado gregas até à
América espanhola que fora organizada como uma grande rede articulada de cidades. A
organização em redes implica autonomia e uma cooperação das cidades com outros
municípios horizontalmente, possibilitando o acesso a informações e recursos mais
directamente e com menos burocracia. Podemos sistematizar a partir de Araújo (2011),
que as principais características destas redes são:
A ausência de hierarquia na relação entre os seus membros;
Terem alcance geográfico global;
A agilidade, tanto para as tomadas de decisão quanto para o intercâmbio de
informações;
A multiplicidade de actores;
A democratização do conhecimento através da inclusão de municípios de diversas
características geográficas, económicas e sociais.
As redes são tanto uma consequência da governança global como uma causa, uma vez
que contribuem para o seu amadurecimento. Por governança entende-se um fenómeno
que prescinde de governo, na medida em que governo implica actividades apoiadas por
uma autoridade formal com poderes coercitivos, enquanto na governança os objectivos
são atingidos não necessariamente através de uma autoridade formal, mas através de
metas comuns e compartilhadas por todos os que fazem parte do sistema (Rosenau,
2000). A governança é, por conseguinte, mais abrangente do que o governo e os seus
objectivos e as formas de os atingir são mais duradouros. Assim, as redes de cidades
são exemplos de governança sem governo, na medida em que neste tipo de organização
não existe uma autoridade central e a relação entre os seus membros é horizontal, e são
os seus objectivos comuns e a cooperação simétrica que viabilizam a sua existência.
As redes de cidades enquadram-se no conceito de governança de duas formas diferentes,
embora podendo diferir o seu espaço de actuação. Em primeiro lugar, a cooperação
horizontal, a tomada de decisão por consenso e a ausência de hierarquia entre os
membros e, consequentemente, de uma autoridade central, demonstram como a
governança funciona como uma organização, e uma forma de ordem. As redes globais,
como a CGLU Cidades e Governos Locais Unidos focam-se em questões mais amplas
na actuação no quadro internacional, enquanto as redes regionais, como a Mercocidades,
se esforçam por encontrar soluções para problemas regionais e locais. Estes dois
exemplos também demonstram a intenção e os objectivos das redes em manterem a
cooperação horizontal e sem hierarquias de qualquer natureza, sejam elas políticas,
económicas ou culturais.
14
Por outro lado, o desenvolvimento das redes de cidades no
13
Resultando, designadamente, a constituição de associações de cidades e governos locais; a criação de
acordos bilaterais e de programas de cooperação técnica internacional entre cidades; o irmanamento entre
cidades; as missões comerciais; e as redes internacionais de cidades (Araújo, 2011).
14
Por exemplo, segundo o Estatuto Social da Rede Mercocidades, as decisões do Conselho da rede, formado
por duas cidades de cada país membro do Mercosul e por uma cidade de cada país associado, além da
Comissão Directiva, devem ser sempre tomadas por consenso. na CGLU, ainda que as decisões sejam
tomadas por maioria simples, define-se o número de representantes de cada governo local no Conselho
Mundial e na Mesa Executiva segundo a população e o engajamento político dos seus membros. Além disso,
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cenário internacional demonstra a existência da governança global enquanto ordem
internacional. Se a actuação interna das cidades e sua maior autonomia no quadro
doméstico é resultado de descentralização do poder federal ou nacional, no âmbito de
redes, as cidades passam a exigir maior afirmação a fim de influenciarem as decies
dos governos e das organizações internacionais por eles lideradas.
3.2 Governança e Governança Multinível
A expressão governança surgiu, a partir de reflexões conduzidas principalmente pelo
Banco Mundial, a partir de 1992 “com o objectivo de aprofundar o conhecimento das
condições que garantiriam um Estado eficiente” (World Bank, 1992: 1). A introdução do
conceito resulta da incapacidade do termo “governo” ou “governabilidade” capturar as
novas dinâmicas emergentes após o fim do período bipolar da Guerra-Fria e dos Estados
como principais actores do sistema internacional. O Conceito de governança propunha-
se, assim, deslocar o centro da atenção, da acção estatal para uma visão mais ampla,
envolvendo não uma abordagem holística da gestão pública sub-nacional, nacional e
internacional, mas também intersectando as dimensões económica, política, social,
ambiental e cultural.
Segundo o documento “Governance and Development” do Banco Mundial (Ibidem: 3-5),
o paradigma da governança deveria incluir “padrões de articulação e cooperação entre
actores sociais e políticos e arranjos institucionais que coordenam e regulam transacções
dentro e através das fronteiras do sistema internacional” incluindo-se aí “não apenas os
mecanismos tradicionais de agregação e articulação de interesses, tais como os partidos
políticos e grupos de pressão, como também redes sociais informais, hierarquias e
associações de diversos tipos”. Assim, o formato institucional do processo decisório
deveria ser aberto à participação de todos os actores interessados.
Keohane e Nye (1974: 41) usaram pela primeira vez o termo "trans-governamental"
para descrever interacções entre "subunidades de governos" em resposta à "maior
complexidade" de governança. Também Risse-Kappen (1995: 17) definiu as redes trans-
governamentais como “as subunidades de governos nacionais que agem
independentemente das políticas estabelecidas. E, Slaughter (2004: 26) reconheceu as
funções de troca de informações e coordenação política das cidades através de "uma
rede densa de contactos”. Esta autora defenderia, mesmo, uma nova ordem mundial
baseada na existência e no funcionamento de redes transgovernamentais, capazes de
permitir que os governos se beneficiem da flexibilidade e descentralização dos actores
não-estatais, mas ao mesmo tempo fortalecendo o Estado como actor principal no
sistema internacional.
Ora, esta lógica de descentralização da governação para os veis supranacional, mas
fundamentalmente, sub-nacional abriu espaço para que as cidades assumissem um papel
central não apenas na governação, mas também na gestão e partilha das
responsabilidades na resolução dos problemas dos Estados, de um ponto de vista
endógeno e exógeno. Na verdade, tem surgido vários autores (Curtis, 2016; Hershell &
Newman, 2002) a apontar as cidades como as unidades mais próximas entre governados
e governantes. No plano das relações internacionais, as cidades têm o potencial de
segue-se o princípio de que nenhuma região do mundo deve ter mais do que um quarto do número total
de cadeiras nem mais do que o dobro do número de cadeiras alocadas a qualquer outra parte do mundo.
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resolver os desafios globais na medida em que muitos deles se precipitam do nível local
e não se circunscrevem aos limites da cidade. Como encontramos na Declaração de Haia
da criação do Global Parliament of Mayors (GDP, as cidades têm o direito de "agir em
conjunto, além fronteiras, em domínios em que a agenda global está paralisada" (2016:
2).
A institucionalização de uma rede de cidades fornece não apenas um canal para cidades
que enfrentam desafios semelhantes e uma plataforma para compartilhar conhecimentos
e recursos, mas também uma oportunidade para abordar e mitigar os muitos desafios e
problemas que o mundo enfrenta (Barber, 2013).
Contudo, de acordo com as teorias tradicionais o estado-nação é visto como o principal
locus da autoridade os governos sub-nacionais actuam sob a (única) influência e
direcção dos governos nacionais.
15
Ora, desta forma a conceptualização da governação
seria, maioritariamente, top down derivando do nível internacional para nacional e deste
para o nível regional e local, de modo que o papel dos governos locais como relevantes
agentes de governança global primários seria ao longo dos tempos marginalizado.
Em contrapartida, para a governação multinível existe uma variedade de métodos na
concepção das políticas blicas e internacionais. Na governação multinível é feita uma
distinção entre o Estado como uma instituição e o Estado como executivo, o qual
persegue os seus próprios interesses o que não significa exatamente por definição
“interesse nacional”. Além do mais, o estado como ator principal está agora envolvido
numa complexa rede de relações ao vel internacional tal como a vel da política interna
(Marks, 1996: 26). A teoria da governação multinível considera relevantes todos os
atores envolvidos nas várias etapas do processo de tomada de decisão. Essa será então
a componente racionalista desta teoria todas as pessoas e grupos envolvidos nesta
política terão tanta ou mais influência sobre o atual impacto, como aqueles que iniciaram
ou legislaram sobre esta política. De fato, quem formula e quem implementa, poderá
ser, como poderá não ser o mesmo ator.
16
Assim, uma premissa subjacente à governação multinível diz respeito a the world turned
inside out and outside in (Anderson, 1996: 135). Com a diluição hierárquica ou pelo
menos a redução de estruturas de autoridade do Estado e a própria subversão da
soberania tradicional do Estado, existem outros atores sub-nacionais que resgatam,
paradoxalmente, a própria soberania estatal os governos locais. Nesse sentido, as
instituições supranacionais são mais que somente a soma das partes que a compõem e
as instituições sub-nacionais são mais que a administração do governo central. Assim, a
abordagem multinível não sentencia a morte dos Estados. Com a diluição hierárquica ou
pelo menos a redução de estruturas de autoridade do Estado e a própria subversão da
ordem hierárquica tradicional do Estado, os estados procuram o seu reposicionamento
no sistema internacional e uma melhor adequação da governação interna, através de
agentes regionais e locais.
Sob esta concepção de governança multinível, emerge a concepção de Governança
"glocal" que assenta numa ligação vertical entre cidadãos locais e políticas globais, que
15
Considerando como teorias tradicionais das relações internacionais: o realismo e neo-realismo; e o
liberalismo e neoliberal-institucionalismo.
16
Esta ideia encontra-se relacionada com um elemento chave da governação multinível: a erradicação da
tradicional distinção entre a política interna e a política externa, ou seja, entre o plano doméstico dos
Estados e o plano internacional emerge como metodologicamente imprescindível no quadro teórico deste
modelo.
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não advoga a substituição dos Estados por cidades, mas a posição privilegiada das
cidades para vincular os seus cidadãos com as políticas globais (Robertson, 1995). A
governança "glocal", com os governos municipais como ator principal, serve como elo
vertical e preenche essa lacuna
17
. Para Robertson e White (2003: 14) "Em vez de se falar
de uma tensão inevitável entre o local e o global, pode ser possível pensar nos dois como
não sendo opostos, mas sim como sendo lados diferentes da mesma moeda”,
apresentando-se a "glocalização" como a conexão do local com o sistema global.
4. Ameaças e Riscos: Respostas Glocais
As cidades contribuem tanto para as actuais ameaças e riscos como para as suas
soluções. Este ilogismo observa-se na caracterização das zonas urbanas, frequentemente
relacionadas com elevadas concentrações de actividade económica, emprego e riqueza,
taxas elevadas de alfabetização entre os residentes, com o fluxo diário de passageiros,
o que sugere que abundância de oportunidades nestes centros de inovação,
distribuição e consumo (Eurostat, 2017; United Nations, 2014). No entanto, as cidades
caracterizam-se, também, por uma série de desigualdades sociais e é comum encontrar
pessoas que desfrutam de uma vida confortável, vivendo em proximidade com outras
que enfrentam desafios consideráveis, por exemplo, em relação à habitação, ao
desemprego e ao crime. Estas oportunidades e desafios polarizados estão
frequentemente em forte contraste, uma vez que os padrões de desigualdade nas cidades
são geralmente mais difundidos do que os observados para os estados como um todo.
Enquanto a concentração da atividade económica nas cidades pode contribuir para atrair
uma força de trabalho altamente qualificada em busca de oportunidades diversas, a
reunião de um grande número de pessoas também leva a uma série de externalidades
negativas, incluindo a criminalidade (Eurostat, 2016: 46; Zukin, 2010).
18
Pese embora as cidades sejam geradoras de crescimento e desenvolvimento, também as
maiores ameaças o encontradas nas cidades, o que se pode denominar o “paradoxo
urbano”. (por exemplo: não obstante as cidades serem indutoras de crescimento, as
maiores taxas de desemprego são, também, encontradas nas cidades (Eurostat, 2016;
Curtis, 2016). A globalização levou à perda de empregos - especialmente no sector
secundário - e isso foi ampliado pela crise económica. Muitas cidades enfrentam uma
perda significativa de poder e coesão inclusivos e um aumento da exclusão, segregação
e polarização.
Actualmente, o quadro de ameaças que se coloca ao sistema internacional e,
particularmente, aos estados encontra-se difuso e interdependente. Com efeito, nos
dados mais recentes de 2017 do World Economic Forum (2017), encontram-se os
seguintes riscos:
17
Como uma das principais modernas teorias democráticas, Robert Dahl (1956) argumentou que os Estados-
nação e as organizações internacionais baseadas no Estado não tinham conseguido responder aos desafios
que enfrentavam.
18
Em 2014, a percentagem de pessoas na UE-28 que viviam numa área com problemas relacionados com a
criminalidade, a violência ou o vandalismo era consideravelmente mais elevada entre os residentes nas
cidades (19,9%) do que nos habitantes das cidades e subúrbios (11,8%) ou áreas rurais (7,3%). Os
habitantes das cidades da UE-28 eram, em média, 2,7 vezes mais prováveis do que as pessoas que vivem
em áreas rurais a viver numa área com problemas relacionados com o crime, a violência ou o vandalismo.
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Riscos geopolíticos (fracasso da governança global e regional; colapso dos estados;
fracasso das estruturas de governação nacionais; proliferação de armas de destruição
maciça; ataques terroristas, conflitos inter e intra-estatais);
Riscos societais (migração involuntária em larga-escala; crise alimentar e crise de
água; instabilidade social profunda; spread de doenças contagiosas, fracasso do
planeamento urbanístico);
Riscos económicos (choque nos preços da energia; comércio ilegal, desemprego;
crises fiscais, deflação, fracasso das infraestruturas críticas; fracasso dos mecanismos
e instituições financeiras);
Riscos ambientais (Desastres ambientais, perda da biodiversidade e colapso dos
ecossistemas, eventos extremos ao nível do clima, fracasso da mitigação das
alterações climáticas e a respetiva adaptação, desastres ambientais provocados pelo
Homem e os desastres naturais)
Riscos tecnológicos (ciberataques; consequências adversas de avanços tecnológicos,
quebra das infraestruturas críticas de informação, fraude e roubo de dados).
Este quadro de ameaças ampliado e diversificado defronta e ultrapassa, duplamente, as
competências do Estado vestefaliano. Por um lado, exige respostas globais, dada a
natureza globalizada das ameaças e riscos e, por outro, requer da investigação a
consideração de respostas, também, oriundas de “dentro” dos estados, numa esfera sub-
nacional. Relativamente, ao quadro de riscos e ameaças elencados pelo World Ecomic
Forum, vários autores têm convergido na possibilidade de respostas das cidades aos
problemas globais. Relativamente aos riscos geopolíticos alguns autores (Graham, 2004;
Dickson, 2002) afirmam que apenas as cidades conseguem responder ao novo quadro
de ameaças internacionais uma vez que muitos desses riscos se encontram dentro das
próprias cidades (desemprego, exclusão social; recrutamento para grupos terroristas;
prostituição; tráfico de droga; criminalidade organizada...). Relativamente aos riscos
societais é também no plano urbano que encontramos, quer o maior conhecimento dos
problemas como as respostas (Saunders, 2010, Zukin, 2010). Quanto aos riscos
ambientais, vários autores (Taedong, 2015 ; Betsill & Bulkeley, 2005) têm insistido que
a mudança climática apesar de, tradicionalmente, considerada como uma questão global
tornou-se um desafio local urgente. As cidades são responsáveis por mais de 70 por
cento das emissões de gases com efeito de estufa e por 80 por cento do consumo de
energia. Estando 90 por cento situadas ao longo do litoral, as cidades enfrentam as
ameaças climáticas comuns como o aumento do vel do mar e tempestades costeiras.
Esta problemática justifica a necessidade do arranjo "glocal", com a imbricação entre
assuntos locais e globais. Como Rosenau (2000: 4) escreveu: "O que é doméstico
também é internacional e o que é internacional também é doméstico"
Assim, a governança global democrática deve afastar-se da estrutura nacional,
exclusivamente, vinculada na soberania nacional e avançar para autoridades locais
descentralizadas e próximas. Como a antiga democracia ateniense e a "esfera pública"
de Habermas (1962) sugerem, as cidades o o lugar onde os cidadãos podem-se
comprometer no processo político em curso e influenciar a política que afeta suas vidas
e responsabilizar diretamente as autoridades perante eles. No âmbito da governança
"glocal", os governos municipais assumem-se como o elo vertical que permite aos
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cidadãos participar na formulação de políticas globais através das instituições locais e as
autoridades nacionais. Com a diplomacia da cidade e a governança "glocal", a tomada
de decisão internacional pode ser, também, mais democrática.
5. Conclusão
Na história da humanidade, nunca antes se registou uma aceleração de alterações o
forte como no decorrer do último século e, sobretudo, ao longo dos últimos 50 anos.
Estamos perante um mundo de cidades tendo a globalização dado um grande impulso à
urbanização. A abordagem compreensiva sobre o papel das cidades na governança global
leva-nos a destacar os conceitos de governança global e de redes de cidades, pela
crescente importância que assumem na agenda internacional.
A governança diz respeito aos meios e aos processos que são utilizados para produzir
resultados eficazes. o pode ser acção isolada da sociedade civil procurando maiores
espaços de participação e influência. Pelo contrário, o conceito compreende a acção
conjunta de Estado e sociedade na busca de soluções e resultados para problemas
comuns. E é inegável que o surgimento de actores não-estatais é central para o
desenvolvimento da prática da governança. A actuação de cidades globais emerge como
novo tipo de autoridade que vem, gradativamente, adquirindo importância, assumindo-
se como uma nova forma de organização, mais horizontalizada, com ausência de poder
central e pela inexistência de hierarquia entre os seus membros.
As redes de cidades o uma forma de governança e assumem hoje novas competências
na paradiplomacia, mas a sua formação não é um fenómeno novo, como tivemos
oportunidade de observar. Na actualidade, elas têm-se desenvolvido pela necessidade
sentida pelos governos locais de dialogarem entre si na busca de soluções para os
problemas comuns que enfrentam. Um dos objectivos principais da organização em redes
é alcançar melhores resultados do que aqueles que se conseguiriam se os agentes
envolvidos trabalhassem separadamente, como é o caso dos municípios. Ao trabalharem
em rede estão melhor posicionados face a situações que envolvem actores internacionais,
além de a organização em rede facilitar a interacção e a troca de experiências entre os
membros.
Concluímos que as redes de cidades são uma nova forma de actuação composta por
actores sub-nacionais e constituem atores com um poder crescente na resolução de
muitos dos desafios actuais ao sistema internacional.
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