OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 8, Nº. 2 (Novembro 2017-Abril 2018), pp. 1-14
PASSADO, PRESENTE E FUTURO DA ‘RESPONSABILIDADE DE
PROTEGER’: UM PERCURSO ATRIBULADO
Vítor Manuel Ramon Fernandes
vrf@sapo.pt
Professor Auxiliar de Relações Internacionais na Universidade Lusíada de Lisboa (Portugal).
Membro e Visiting College Research Associate, Wolfson College, University of Cambridge. Em
2015-16, esteve como Professor Visitante na Universidade de Cambridge, no Department of
Politics and International Studies. Doutorado em Relações Internacionais pela Universidade Nova
de Lisboa. Mestre em Economia (University of Kent, Canterbury, Reino Unido) e em Gestão de
Empresas (ISCTEIUL). Licenciado em Economia (Faculdade de Economia da Universidade Nova
de Lisboa). Auditor do Curso de Defesa Nacional do Instituto de Defesa Nacional. Foi Diretor
(Vice President) no banco J.P. Morgan, inicialmente como economista em Paris, na Divisão de
Global Markets e, posteriormente, no Departamento de Corporate Finance em Madrid. Foi
Consultor Associado na McKinsey & Co em Lisboa e Administrador de várias empresas, onde se
incluem a OGMA Indústria Aeronáutica de Portugal, SA e a IDD, SA, na área da defesa, e o
Diário de Notícias, SA, na área dos media. É autor do livro “Paz e Guerra em Raymond Aron:
Ontologia e Epistemologia da Ordem Internacional”, publicado pelas Edições Instituto da Defesa
Nacional em 2016.
Palavras chave
Responsabilidade de Proteger; Intervenção Humanitária; ICISS; CSNU; Soberania
Resumo
O presente artigo pretende rever a temática da ‘Responsabilidade de Proteger’ em termos do
que tem sido a sua evolução desde o ano de 2000 e do que se pode esperar em relação ao
seu futuro, tendo em consideração, simultaneamente, a necessidade de proteger populações
vítimas de determinado tipo de agressões e a necessidade de preservar a ordem internacional.
O artigo analisa também as principais críticas de que esta doutrina tem sido alvo, bem como
alguns dos seus impactos na comunidade internacional e, significativamente, algumas das
dificuldades que têm surgido no seu desenvolvimento, num processo que tem sido
controverso e atribulado. São analisados alguns dos principais riscos e incertezas que pesam
sobre o seu futuro, particularmente considerando que um conjunto de países emergentes
discordantes da ordem liberal ocidental pretende ter uma participação mais ativa nos assuntos
internacionais. O argumento fundamental é que, o futuro desta doutrina deverá continuar a
ser conturbado e repleto de incertezas, e que para que ocorra uma evolução favorável será
necessário que, por um lado, exista uma cooperação multilateral genuína por parte dos
membros do Conselho de Segurança da Organização das Nações Unidas, por forma a acautelar
as alterações que se estão a operar na ordem internacional e, por outro, os Estados
considerem este tipo de crimes como uma questão essencial de segurança internacional e
como uma parte integrante dos seus interesses.
Como citar este artigo
Fernandes, Vítor Manuel Ramon (2017). "Passado, presente e futuro da ‘responsabilidade de
proteger?: um percurso atribulado". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 8,
N.º 2, Novembro 2017-Abril 2018. Consultado [online] em data da última consulta, DOI:
https://doi.org/10.26619/1647-7251.8.2.1
Artigo recebido em 29 de Maio de 2017 e aceite para publicação em 3 de Setembro de
2017
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Passado, presente e futuro da ‘responsabilidade de proteger’: um percurso atribulado
Vítor Manuel Ramon Fernandes
2
PASSADO, PRESENTE E FUTURO DA ‘RESPONSABILIDADE DE
PROTEGER’: UM PERCURSO ATRIBULADO
Vítor Manuel Ramon Fernandes
Introdução
Apesar dos inúmeros exemplos de violência atroz contra populações inocentes é com
toda a probabilidade durante os anos noventa, com o genocídio no Ruanda ocorrido em
1994 e com os cerca de 8.000 Bósnios mortos em Srebrenica em 1995, que a comunidade
internacional, de uma forma alargada e atenta, toma verdadeiramente consciência da
necessidade de debater o tema da intervenção humanitária.
1
A estas ocorrências acresce
a intervenção da Organização do Tratado do Atlântico Norte (OTAN) em março de 1999
com um bombardeamento na antiga República Jugoslava para proteger a população
albanesa no Kosovo de ser alvo de uma limpeza étnica. Na altura, a intervenção da OTAN
foi considerada legítima mas ilegal”.
2
Legítima, pela sua necessidade tendo em
consideração os horrores cometidos e, nesse sentido, justificada num plano moral, mas
ilegal na medida em que o Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU) não a tinha
autorizado e, consequentemente, consistiu numa violação do Direito Internacional. Estes
acontecimentos inspiraram o debate sobre o interesse de clarificar todo um conjunto de
questões relativas à necessidade de intervir em determinadas situações específicas, o
que se veio a consubstanciar na doutrina da ‘Responsabilidade de Proteger’ (RdP)
3
, mas
de forma a permitir ultrapassar toda a controvérsia em redor da problemática da
intervenção humanitária (Holzgrefe e Keohane, 2003; Welsh, 2006). O debate tem
envolvido os Estados que argumentam em favor de intervenção para terminar com
determinado tipo de conflitos e outros que bloqueiam esse tipo de ação através de
argumentos políticos e legais, relacionados com o respeito pela soberania dos Estados.
É significativo o facto de se ter alterado a linguagem de forma a procurar um afastamento
da noção de ‘direito de intervir’ passando a fazer-se referência a uma ‘responsabilidade
de proteger’.
4
1
No presente texto, utiliza-se a expressão “Intervenção humanitária” fazendo referência essencialmente “[…]
à ameaça ou ao uso de força transfronteiriço, por um Estado (ou grupo de Estados), com o objetivo de
prevenir ou de por termo a violações disseminadas e graves dos direitos humanos fundamentais de
indivíduos que não os seus cidadãos e sem a autorização do Estado em cujo território a força está a ser
aplicada” (Holzgrefe, J. L. e R. Keohane (eds.), 2003: 18). No original, “[…] the threat or use of force across
state borders by a state (or group of states) aiming at preventing or ending widespread and grave violations
of the fundamental rights of individuals other than its own citizens, without the permission of the state
within whose territory force is applied”. Assim definida, intervenção humanitária é um ato coercivo de
proteção através do uso da força com a intenção de proteger direitos fundamentais.
2
No original, “illegal but legitimate”. Independent International Commission on Kosovo, The Kosovo Report:
Conflict, International Response, Lessons Learned, Oxford University Press, 2000: 4.
3
No original em inglês, a sigla utilizada é, normalmente, R2P ou RtoP.
4
A interpretação do conceito de soberania em termos de responsabilidade e, consequentemente, da
formulação ‘responsabilidade de proteger’ foi inicialmente proposta por Francis Deng (1993, 1995), tendo
servido de inspiração para o relatório produzido mais tarde pelo International Commission on Intervention
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3
O objetivo deste artigo é analisar a evolução da RdP no sentido de se entender até que
ponto se pode esperar que, para prevenir ou evitar este tipo de crimes e atrocidades, “a
nova norma da ‘responsabilidade de proteger’ demonstrará ser a solução” (Evans, 2008:
11)
5
. São analisados alguns dos impactos desta doutrina na comunidade internacional e
apontam-se alguns riscos e incertezas que pesam sobre o seu futuro. O argumento
fundamental é que, tendo em consideração as diferentes visões relativamente à ordem
internacional e que se têm vindo a acentuar, o desenvolvimento da RdP está repleta de
incertezas. Assim sendo, através de uma cooperação multilateral genuína por parte
dos membros do CSNU e com os Estados a considerarem este tipo de crimes como uma
questão essencial da segurança internacional, é que será possível fazer progredir a
doutrina da RdP, particularmente em termos da sua implementação.
O ponto de partida com o relatório do ICISS
6
Na 54ª sessão da Assembleia Geral da ONU em 1999, Kofi Annan, então Secretário-Geral
da organização, lançou o desafio para que fosse encontrado um consenso relativamente
à questão da intervenção humanitária dando lugar à criação do ICISS em setembro de
2000 com o apoio do governo do Canadá. O relatório terminado em dezembro de 2001,
descreve o mecanismo de intervenção previsto em casos de determinadas agressões,
muito especificamente, crimes de genocídio, crimes de guerra, crimes contra a
humanidade e limpeza étnica. Para além disso, detalha várias responsabilidades
associadas separando-as em ‘responsabilidade de prevenir’, ‘responsabilidade de reagir’
e ‘responsabilidade de reconstruir’.
7
O conceito que subjaz a estas responsabilidades é o
da ‘segurança humana’ e tem por base o princípio de que a intervenção, inclusive militar,
apenas é legítima quando ocorram, ou estejam na eminência óbvia de ocorrer,
determinados crimes em que o Estado em causa não esteja em condições, voluntária ou
involuntariamente, de por fim aos mesmos (ICISS, 2001: 15-16).
A intenção prioritária é tentar uma resolução por meios diplomáticos como forma de
implementar a RdP evitando uma intervenção de tipo militar (Pattison, 2015: 936) e de
ter um órgão o CSNU com as responsabilidades de procurar antever potenciais
conflitos de forma a evitar determinado tipo de crimes, idealmente sem uma intervenção
militar direta, a menos que tal se torne absolutamente inevitável, ou até desejável de
maneira a evitar uma escalada da violência. Por essa razão, a ‘responsabilidade de
prevenir’ é a mais importante de todas devendo sempre ser levada até à exaustão antes
de outras opções serem consideradas (ICISS, 2001: xi). Foi também essencial atenuar a
importância da dimensão militar de forma a fazer avançar o debate em termos políticos
porque uma concentração excessiva na intervenção teria levantado grandes
preocupações por parte de certos países e dado lugar a uma maior oposição às discussões
necessárias para atingir consensos.
and State Sovereignty (ICISS), The Responsibility to Protect: Report of the International Commission on
Intervention and State Sovereignty (Ottawa: International Development Research Centre, 2001), apesar
de tal não ser explicitamente referido no dito relatório.
5
No original, “[…] the new norm of ‘the responsibility to protect’ will prove to be the solution”.
6
International Commission on Intervention and State Sovereignty (ICISS), The Responsibility to Protect:
Report of the International Commission on Intervention and State Sovereignty (Ottawa: International
Development Research Centre, 2001). Optou-se por deixar o acrónimo no original, mas em português
traduzir-se ia como “Comissão Internacional sobre a Intervenção e a Soberania dos Estados”.
7
No original, “Responsibility to prevent”, “Responsibility to react” e “Responsibility to rebuild”,
respectivamente.
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Relativamente à ‘responsabilidade de reagir’, a principal dificuldade coloca-se na tensão
entre o respeito pela soberania dos Estados e a necessidade de intervir. Para as
intervenções militares, o relatório estabelece seis princípios baseados na doutrina da
Guerra Justa
8
(ICISS, 2001: 32): 1- Autoridade com legitimidade; 2- Justa causa; 3-
Intenção legítima; 4- Último recurso; 5- Proporcionalidade dos meios empregues e 6-
Razoáveis perspetivas de sucesso.
No que respeita à ‘responsabilidade de reconstruir’, é feita referência a uma
responsabilidade moral e a uma necessidade de existir um plano estratégico relativo à
forma de proceder à reconstrução na fase pós-conflito, mas sem concretizar em matéria
de operacionalização (ICISS, 2001: 39-45).
Principais críticas apontadas ao relatório do ICISS e à RdP
Existem fundamentalmente três tipos de críticas: 1) As que consideram que o relatório é
excessivo nas suas ambições; 2) As que consideram que, contrariamente, as ambições
não vão suficientemente longe; 3) As que criticam o seu carácter vago e ambíguo. No
primeiro caso, considera-se que a ordem internacional no Pós Guerra-Fria é muito
favorável às ideias liberais do Ocidente, e particularmente aos EUA, que têm sido os
países mais favoráveis à intervenção. Esta situação pode conduzir a uma tentativa de
legitimação moral de determinadas práticas ocidentais dando lugar “à convergência entre
a moralidade e a realpolitik, expressada enquanto ‘responsabilidade de proteger’ ou ‘luta
contra o terrorismo’”
9
(Chandler, 2004: 75). Assim sendo, do que se trata,
essencialmente, é de uma diminuição dos direitos de soberania e de jurisdição dando-
lhe um sentido mais fácil de aceitar. Como resultado, o domínio destas teses liberais da
paz constituiriam mais uma alteração da balança do poder em favor do Ocidente no
contexto da ordem internacional do que uma alteração de foco em relação à questão dos
direitos de soberania. Por essa razão, Chandler (2004: 64-65) considera que, do que se
trata fundamentalmente, é de reformular o ‘direito a intervir’ numa perspetiva moral e
ética que justifica e legitima a intervenção ao mesmo tempo que a torna compatível com
a soberania dos Estados. Mas a soberania acaba por se encontrar até diminuída. Nesse
âmbito, e apesar de ser um adepto da RdP, Bellamy (2005) não deixa de questionar se
a doutrina da RdP não é um novo “Cavalo de Troia” dos Estados mais poderosos. Outros
argumentam que a doutrina da RdP possibilita um aproveitamento para determinadas
práticas por parte das grandes potências e que o relatório do ICISS “levanta o espectro
de um regresso a hábitos colonialistas por parte das maiores potências ocidentais”
10
(Ayoob, 2002: 85). A ideia é que as grandes potências poderiam, ou tenderiam, a intervir
em alguns Estados com objetivos próprios de política externa tendo por base argumentos
humanitários.
A intervenção em 2003 no Iraque foi considerada por alguns como corroborando estes
últimos argumentos. Mas não parece legítimo fazer uma ligação entre a guerra do Iraque
e a RdP, porque a justificação para essa intervenção foi a luta contra o terrorismo após
os eventos de 11 de setembro de 2001 nos EUA. Para além disso, tinham ocorrido
8
Baseado em St. Agostinho (354-430). Para referências mais recentes ver, designadamente, Lee (2012) e
Rengger (2013).
9
No original, “[…] the convergence of morality and Realpolitik, whether expressed in the ‘responsibility to
protect’ or the ‘war against terrorism’”.
10
No original, “[…] raises the spectre of a return to colonial habits and practices on the part of the major
Western powers”.
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várias intervenções anteriormente onde “a retórica do humanitarismo tinha sido usada
de forma estridente em situações em que o motivo humanitário era mais fraco”
11
(Weiss,
2007: 37). Mas esse conflito pôs a nu algumas das questões mais problemáticas quando
se realizam intervenções militares desta natureza, desde logo, no que concerne a forma
como é visto nos países de origem o envio de tropas para intervir e todas as
consequências que estão associadas à fase pós-conflito militar.
Quem considera que as ambições do relatório não vão suficientemente longe aponta
críticas ao facto da questão da intervenção apenas ser considerada em determinados
tipos de situações extremas, o que resultou de um compromisso entre aqueles que,
respetivamente, tinham uma visão mais abrangente ou restrita sobre intervenção (Weiss,
2004: 139).
Sobre a natureza ambígua e vaga das conclusões do relatório, não parece que seria
expectável que um tal relatório pudesse ser absolutamente exaustivo e detalhado. Este
não conseguiu articular de uma forma coerente e inovadora as diferentes
responsabilidades prevenir e reconstruir de forma a retirar o foco sobre a questão da
intervenção militar e reduzir a oposição à ideia de RdP. Por outro lado, ao colocar
demasiada responsabilidade no CSNU em relação à autorização para intervir acaba por
não especificar uma solução para os casos em que possa ocorrer um impasse no seio
deste órgão (Bellamy, 2009: 62-63). Para obstar a esse tipo de situações, o CSNU
necessitaria de se tornar mais eficiente e de ser reformado tornando essa reforma uma
necessidade imperativa para o estabelecimento da RdP e não apenas uma opção (Etzioni,
2006: 80). Uma fraqueza do relatório é a falta de clareza quanto à forma como seria
materializada a componente da prevenção (Roberts, 2003: 149). Nesse âmbito, Bellamy
(2009: 63) refere que o mesmo pode ser dito sobre a componente da reconstrução, em
que Alley (2004: 159) sublinha que nada é mencionado em relação a intervenções nessa
matéria por parte de instituições como o Banco Mundial e o Fundo Monetário
Internacional.
A Cimeira Mundial de 2005
12
Motivado pela atenção que a intitulada ‘guerra ao terror’ atraiu no seguimento dos
atentados de 11 de setembro em 2004/05 é que o relatório do ICISS começou a ter
realmente algum impacto na comunidade internacional, mas sem nunca haver
unanimidade por parte dos diferentes países. Países como o Canadá, o Reino Unido e a
Alemanha foram grandes apoiantes do relatório enquanto outros, como a Argentina, a
Austrália, a Colômbia, a Croácia, a Nova Zelândia, a Noruega, o Perú, a República da
Irlanda, o Ruanda, a República da Coreia, a Suécia e a Tanzânia, apenas deram um apoio
vago. Os países asiáticos e vários países membros permanentes do CSNU desaprovaram
do mesmo relatório. Nesse contexto, merecem relevo as posições da Rússia, mas
também da China, motivadas pela perda de poder dos membros permanentes no CSNU,
enquanto os EUA se opuseram ao compromisso de terem de comprometer forças
militares em situações em que os seus interesses não estejam em causa e decidiram
limitar-se a resoluções de condenação (Welsh, 2006: 185).
11
No original, “[…] the rhetoric of humanitarianism had been used most stridently in cases where the
humanitarian motive was weakest”.
12
No original, “2005 World Summit”.
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Foi largamente devido aos esforços de Kofi Annan, Secretário-Geral da ONU de 1997 a
2006, e particularmente com a convocação do High-Level Panel on Threats, Challenges
and Change
13
(HLP), que se estabeleceu a RdP como uma ‘norma emergente’, associada
a uma responsabilidade de proteger que deve ser exercida pelo CSNU (United Nations,
2004: parágrafo 203). O relatório do HLP reconhece que existe uma ligação entre
responsabilidade e soberania, e apresenta um conjunto de orientações relativas ao uso
da força e às responsabilidades da Assembleia Geral das Nações Unidas e, muito
particularmente, do CSNU.
Na Cimeira Mundial de 2005 foram apresentadas as recomendações do Secretário-Geral
da ONU, enformadas pelo relatório de 2004. O evento marcou um momento essencial
relativamente à RdP do ponto de vista normativo porque é nesta reunião da Assembleia
Geral da ONU que todos os países aceitaram, de forma unânime, a noção de existir uma
responsabilidade de proteger as suas respetivas populações de determinado tipo de
agressões. Mas, por forma a obter o consenso desejado e o resultado alcançado, o texto
aprovado na Cimeira em 2005 difere substancialmente dos textos anteriores, muito
particularmente do relatório do ICISS, sendo muito menos exigente. É apenas através
da inclusão dos parágrafos 138 e 139
14
, que especificam que cada Estado tem a
responsabilidade de proteger as suas respetivas populações mas também,
subsidiariamente, a comunidade internacional de acordo com os Capítulos VI e VII da
Carta das Nações Unidas, que a temática ganha relevo. Os parágrafos acima referidos
demonstram uma vontade comum de agir relativamente aos crimes enunciados, mas o
seu carácter é genérico. Não existe nenhuma referência específica para o uso da força
no âmbito da ONU e muito menos fora dele, como por exemplo no âmbito de
organizações regionais. A natureza do texto é fundamentalmente normativa e ideológica,
e o enfoque está na promoção e na assistência aos Estados em relação à implementação
de normas de comportamento coerentes com os direitos humanos.
Ocorreram também importantes concessões e simplificações de algumas ideias crucias
para que fosse possível progredir (Bellamy, 2006: 155). É também dessa forma que foi
possível incluir a terminologia ‘Responsabilidade de Proteger’ nos parágrafos 138 e 139
do documento final. Por um lado, o facto de explicitar que qualquer intervenção carece
de autorização pelo CSNU implica que o âmbito das intervenções fica bastante restrito e
condicionado. Isto, para além de não existir no texto qualquer obrigação de intervenção
militar. A argumentação subjacente à doutrina de RdP assenta fundamentalmente numa
lógica de o-intervenção fiel aos princípios de respeito da soberania que estão
estabelecidos na Carta da ONU. Adicionalmente, os membros permanentes do CSNU não
perdem qualquer dos seus privilégios enquanto tal, podendo obstar a uma tal intervenção
através do seu poder de veto. Apesar disso, entendeu-se que o mesmo não seria utilizado
em casos de emergência humanitária e quando não estão em causa interesses
nacionais.
15
A Cimeira de 2005 conseguiu atingir vários dos seus objetivos, mormente, no que
respeita à adoção dos princípios subjacentes ao relatório do ICISS, à intervenção por
13
United Nations. (2004). Report of the Secretary-General’s High-Level Panel on Threats, Challenges and
Change. A More Secure World: Our Shared Responsibility. A/59/565, December 2, New York. Doravante
designado por HLP. Optou-se por deixar o acrónimo no original, mas em português traduzir-se ia por ‘Painel
de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudanças’.
14
United Nations. (2005). 2005 World Summit Outcome Document: Resolution. A/RES/60/1, October 24, New
York.
15
Importa referir que, apesar de tudo, tal não ficou explícito no texto final da Cimeira Mundial de 2005.
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parte de CSNU em determinadas circunstâncias e a restringir o poder de veto dos seus
membros permanentes (Bellamy, 2006: 153). Mas houve compromissos entre as várias
partes envolvidas que não são desprovidos de consequências e a legitimidade para
intervir fora do quadro do CSNU ficou seriamente limitada. Ainda assim, Wheeler (2005:
105) considerou que existem razões para um otimismo comedido em relação à
capacidade de se poder evitar casos como ocorreram no Ruanda. Isto é, os países
membros do CSNU terão mais dificuldade em ignorar determinadas situações
humanitárias embora, a menos que haja vontade política, muitos dos compromissos
assumidos serão de pouco efeito. Diferentemente, Weiss (2007: 127) vai ao ponto de
considerar que se tratou de um passo atrás “porque a intervenção humanitária tem de
ser aprovada pelo CSNU”.
16
Assim sendo, o que a RdP significa realmente é o que está
definido como tal na Resolução da Assembleia Geral da ONU A/RES/60/1, 24 de
Outubro, o que está bastante aquém do que consta no relatório do ICISS de 2001.
O debate em 2009 na Assembleia Geral da ONU e o relatório de Ban Ki-
moon
A partir de 2006, vários países fizeram oposição à RdP por diversas razões,
designadamente, preocupações com intervenções militares, algumas delas relacionadas
com as consequências da invasão do Iraque em 2003 (Bellamy, 2011: 28-33). Daí que,
a 15 de Julho de 2008 o Secretário-Geral Ban Ki-moon (2008) tenha fornecido um novo
ímpeto à RdP referindo-se a esta como estando assente em três pilares.
17
Após esse discurso e um debate de três dias na Assembleia Geral da ONU, a 23, 24 e 28
de Julho de 2009, onde Ban Ki-moon reforçou a ideia de que a doutrina da RdP tinha sido
aceite na Cimeira de 2005 pelos Estados e consiste num compromisso não negociável, é
redigido o relatório Implementing the Responsibility to Protect em janeiro de 2009
(United Nations, 2009). Este relatório e as suas conclusões o alteram a natureza dos
crimes já elencados e não estabelece nenhuma sequência de implementação em relação
aos três pilares, nem que um deles é mais importante do que outro (Nações Unidas,
2009: 2). Além disso, baseia-se nos trabalhos anteriores mas é, essencialmente, definido
tendo em consideração os parágrafos 138 e 139 resultantes da Cimeira Mundial de 2005
no sentido de reforçar a ideia de que as conclusões dessa Cimeira não o renegociáveis,
reforçando assim o que fora acordado anteriormente. Citando Edward Luck, Conselheiro
Especial para a RdP do Secretário-Geral da ONU Ban Ki-moon, “para as Nações Unidas e
os seus Estados-Membro o princípio da responsabilidade de proteger é o que está contido
nos parágrafos 138 e 139 do Relatório Final (da Cimeira Mundial de 2005), nada mais e
nada menos”
18
(Bellamy, 2011: 33).
16
No original, “[…] because humanitarian intervention has to be approved by the Security Council”. A
expressão utilizada por Weiss no texto mencionado é que a RdP se transformou em “RdP lite”, isto é numa
RdP versão leve. Este comentário vem no seguimento de outras considerações, acima relevadas, em que
este autor referia que as ambições da RdP não iam suficientemente longe.
17
O primeiro dos três refere-se à responsabilidade de proteção dos Estados às suas populações contra os
crimes referidos na doutrina da RdP; o segundo à responsabilidade da comunidade internacional de ajudar
os Estados a cumprirem essas obrigações de prevenção e proteção, e o terceiro pilar ao compromisso de
ação decisiva e em tempo útil de forma consistente com a Carta da ONU. São os três pilares em que se
baseia a RdP, de acordo com o Secretário-Geral Ban Ki-moon, enunciados num discurso a 15 de julho de
2008 em Berlim, organizado pela Managing Global Insecurity e a Bertelsmann Foundation. Ver também
United Nations (2009).
18
No original, “[…] for the UN and its Member States the principle of a responsibility to protect is what is
contained in paragraphs 138 and 139 of the Outcome Document, nothing more and nothing less”.
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Desenvolvimentos recentes da doutrina e prática da RdP
Apesar da atenção que a RdP tem recebido, os desenvolvimentos desde 2005 têm sido
problemáticos e acidentados no que concerne a aplicação da doutrina, quer em termos
de prevenção quer de reação. Isto apesar de terem existido alguns casos de sucesso,
dos quais se salientam os exemplos da Guie do Quénia. Mas têm sido mais os casos
em que a comunidade internacional não tem intervindo de forma a evitar catástrofes
humanitárias e atrocidades, como foi o caso no Darfur e no Sudão. Apesar disso, Bellamy
(2015: 182) salienta que “Nos primeiros dez anos, a RdP emergiu como uma norma
internacional. À exceção de apenas uma pequena mão-cheia de Estados, todos aceitam
que fizeram um compromisso com a RdP e concordam com as suas componentes
fundamentais”.
19
O caso mais recente de uma intervenção militar que tem sido objeto de bastante atenção
é o da intervenção na Líbia, ocorrida em 2011. Aqui, a comunidade internacional decidiu
intervir de uma forma decisiva para por termo a uma escalada de violência contra a
população civil. Essa intervenção foi designada durante algum tempo como um caso de
sucesso, senão o maior, de aplicação da RdP e um exemplo da eficácia do CSNU em
termos de capacidade de decisão nos momentos cruciais.
Concretamente, no seguimento da proposta apresentada pelo Reino Unido, pela França
e pelo bano, contando também com o apoio da Liga Árabe e da União Africana, a
Resolução 1973, relativa a uma intervenção na bia, foi aprovada pelo CSNU a 17 de
março de 2011 com dez votos a favor e nenhum contra, cinco abstenções, da China, da
Rússia, da Índia, da Alemanha e do Brasil. De referir também que, anteriormente, a
26 de fevereiro de 2011, o CSNU tinha aprovado a Resolução 1970 relativa à situação na
Líbia com uma referência ao Tribunal Penal Internacional e impondo um embargo de
armas ao regime de Khadafi. No dia 19 de março, iniciaram-se bombardeamentos aéreos
pelos EUA mas cujo controlo foi assumido a 31 de março pelas forças da OTAN.
20
Estando
essa intervenção largamente documentada e analisada (Hehir e Murray, 2013; Hehir e
Pattison, 2016), a questão fundamental no presente contexto é que, embora de acordo
com o entendimento de vários países que votaram a favor, ou que se abstiveram, os
objetivos da Resolução 1973 fossem de proteger a população contra as agressões do
regime de Khadafi as forças da OTAN interpretaram o mandato de uma forma bastante
mais ampla e acabaram por agir como forças opositoras ao regime líbio, prestando auxílio
às forças contrárias ao regime de Trípoli. O resultado final foi a queda do regime líbio a
20 de outubro desse ano, com Khadafi capturado e morto pelas forças da oposição que
tinham beneficiado do apoio da OTAN.
A intervenção na Líbia foi considerada por muitos como um excelente exemplo da
aplicação da RdP, mas a sua implementação foi controversa sublinhando a necessidade
de regras de aplicação mais claras (Thakur, 2013: 61). Mais ainda, é largamente devido
à interpretação feita do mandato com a sua implementação através da intervenção da
OTAN que se pode explicar a não-intervenção na ria. Países como a Rússia e a China
19
No original, “In the first ten years R2P has emerged as an international norm. With only a tiny handful of
exceptions, states accept that they have made a commitment to R2P and agree on its fundamental
components”.
20
Para uma análise detalhada e crítica em relação à intervenção na Líbia ver, designadamente, Hehir e Murray
(2013).
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expressaram o seu desacordo com a interpretação feita do mandato para a Líbia e a
futuras decisões relativamente a intervenções em 2011 e 2012 na ria. É também o
argumento ideal para os detratores da RdP aproveitarem para tentar descredibilizar a
doutrina da RdP dificultando seriamente as possibilidades de ocorrerem intervenções
invocadas através de RdP no futuro (Morris, 2013: 1265-1266).
Apesar disto, e quando era um dos membros não-permanentes do CSNU, o Brasil
apresentou em 2011 uma nova noção intitulada a “Responsabilidade ao proteger”.
21
O
documento reforça a ideia de que as matérias de paz e segurança internacionais são da
competência do CSNU e considera necessário melhorar os procedimentos relativos ao
controlo pelos responsáveis na matéria. Reforça também a necessidade de prestar mais
atenção à utilização de métodos não-coercivos e de haver uma utilização mais judiciosa
da força de maneira a não causar mais danos do que benefícios à situação em apreço.
Dessa forma, o Brasil pretendeu dar um contributo à doutrina, mas também posicionar-
se relativamente ao P5 de uma forma construtiva e sem ser revisionista na medida em
que a RwP é complementar à RdP. Mas sendo positivo em termos de promoção do debate
não parece ter tido até à data os efeitos esperados em termos de ter conduzido a um
avanço substancial da RdP, tendo sido alvo de grandes preocupações e objeções,
particularmente em relação à questão do uso da força e seu controlo (Stuenkel, 2016:
9-11). Por isso, tendo estes acontecimentos como pano de fundo, que são críticos, aos
quais acresce a situação política internacional atual relativamente às relações entre
alguns membros permanentes do CSNU, dificilmente se poderá antecipar uma nova
Resolução do CSNU aprovada para uma intervenção no âmbito da RdP. Isto, apesar de o
tema não perder atualidade, tal como relevou Seybolt (2008: 1) quando referiu que se
“no passado os casos de intervenção militar por razões humanitárias eram considerados
como uma aberração na política internacional, presentemente trata-se de uma questão
de política externa obrigatória”.
22
Que futuro para a RdP?
Recentemente, Bellamy (2015: 161) referia que, “na primeira década, a RdP passou de
um conceito controverso e indeterminado a uma norma internacional utilizada quase de
forma habitual”.
23
Mas a realidade pode muito bem ser outra e a possibilidade de a RdP
continuar o seu percurso de forma atribulada é elevada. Se, por um lado, é geralmente
aceite que a RdP é a referência atual relativa a discutir e ter em consideração a
necessidade de proteger timas de determinado tipo de violência e, assim sendo,
dificilmente se poderá falar de intervenção humanitária sem ser no âmbito desta
moldura, existem várias questões que merecem atenção e poderão criar entraves ao
desenvolvimento da RdP. O que ocorreu com a intervenção na bia poderá impedir que
outras autorizações sejam decididas pelo CSNU, até porque a situação após a intervenção
é considerada por muitos como sendo pior em termos da segurança internacional na
medida em que a bia de Khadafi agia como uma zona de tampão em relação a
determinados grupos extremistas mais a sul. Cada vez mais os países prestam mais
21
No original, “Responsibility while Protecting”, vulgarmente designada por RwP.
22
No original, “Once considered an aberration in international affairs, humanitarian intervention is now a
compelling foreign policy issue”.
23
No original, “In the first decade R2P has moved from being a controversial and indeterminate concept
seldom utilized by international society to a norm utilized almost habitually”.
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atenção às consequências de intervenções e, tendo receio das consequências, tenderão
a opor-se às mesmas.
Os progressos em termos conceituais e de princípio têm sido consideráveis, e importa
salientar que a doutrina da RdP é perfeitamente coerente com a ordem internacional
vestefaliana. O facto de os Estados partilharem e seguirem normas e procedimentos
mutuamente acordados gera um sentimento de legitimidade e de partilha de princípios
comuns que é importante do ponto de vista normativo no relacionamento entre os
Estados (Welsh, 2004: 177; Franck, 1990: 24). O ser acordado através de uma
organização como a ONU tem também um valor acrescido (Claude, 1966: 374).
No entanto, continua também a existir debate e controvérsia em relação à RdP e à
intervenção de uma forma geral. Nesse sentido, o problema não é apenas em relação à
sua implementação e operacionalização. A adoção de normas internacionais tem
frequentemente subjacente princípios com os quais esses países emergentes, na maior
parte divergentes da ordem liberal, não concordam (Newman, 2013: 235-236). Em
termos da teoria das Relações Internacionais
24
, esta questão pode também inscrever-se
no contexto do debate entre pluralismo e solidarismo, em relação às potencialidades da
sociedade internacional no que respeita à partilha de normas, regras e instituições entre
os Estados (Buzan, 2004: 45).
25
Este é um debate importante e que, por essa razão,
merece destaque. Na sua essência, esta questão revela visões diferentes sobre a ordem
internacional. E a ordem internacional está em evolução com a ocorrência de transições
de poder, o que poderá também ter consequências importantes para o desenvolvimento
e operacionalização da RdP. Importa relembrar também que os EUA nunca estiveram
muito recetivos à ideia de terem de comprometer forças militares em intervenções
quando os seus interesses não estão em causa. O Congresso norte-americano não
declarou guerra oficialmente desde a entrada dos EUA na Guerra Mundial e os EUA
têm tido alguma liberdade em decidir quando empregar força militar em vários países.
É também expectável que, crescentemente, existam tensões na ordem internacional e
alterações na balança do poder à medida que determinados países procuram ter uma
maior influência nos assuntos internacionais, designadamente, a China, a Rússia e a
Índia. O que está em causa é uma necessidade de maior representação e reciprocidade
nas decisões, muito particularmente ao nível do CSNU, na medida em que a atual
composição desse órgão não reflete princípios de representação, mas resulta
fundamentalmente de uma política baseada no poder que foi determinada em 1945
(Keohane, 2006: 60). A China e a Rússia são membros permanentes do CSNU mas, por
exemplo, a Índia não é e existem outros países que pretendem ter uma participação mais
ativa.
Existe também uma grande preocupação com a seletividade com que é frequentemente
implementada a RdP. A esse respeito, os casos abundam sendo particularmente óbvia a
24
São utilizadas maiúsculas por se estar a referir à disciplina académica propriamente dita.
25
Sobre este tema ver também Mayall (2000). Este autor define pluralismo como […] a perspetiva de que
os Estados, tal como os indivíduos, podem e têm interesses e valores diferentes e, consequentemente, a
sociedade internacional encontra-se limitada à criação de um mecanismo que permite que estes coexistam
em relativa harmonia” (Mayall, 2000:14). No original “[…] the view that states, like individuals, can and do
have differing interests and values, and consequently that international society is limited to the creation of
a framework that will allow them to coexist in relative harmony”. Da mesma forma, define solidarismo
como, “[…] a perspetiva de que a humanidade é apenas uma, e que a tarefa da diplomacia é transformar
esta solidariedade de interesses e valores latente, ou imanente, em realidade (Mayall, 2000:14). No original,
“[…] the view that humanity is one, and that the task of diplomacy is to translate this latent or immanent
solidarity of interests and values into reality”.
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crise na Costa do Marfim em 2010 e 2011, que opôs as forças do candidato vencedor das
eleições presidenciais de 2010, Alassane Ouattara, às de Laurent Gbagbo, anterior
presidente derrotado nessas eleições. Apesar da aprovação da Resolução 1975 pelo
CSNU
26
, e de o seu parágrafo preambular 9 condenar a série de violações e abusos do
Direito Internacional, juntamente com violência odiosa contra civis, não houve uma
intervenção semelhante à da Líbia.
27
Muitos países sentem desconforto com esta
seletividade de critérios e consideram que, do que se trata verdadeiramente, é das
grandes potências ocidentais adquirirem um direito de intervenção de acordo com os
seus interesses.
Para além disso, “considerações de carácter humanitário podem ter um papel na
motivação para intervir por parte de um governo mas os Estados não utilizarão a força a
menos que considerem que estão em causa interesses vitais” (Wheeler, 2000: 30).
28
Isto
é, mesmo para os países que se sintam na obrigação de intervir, tal estará sempre
dependente de interesses nacionais, o que tenderá a causar suspeitas aos demais. E
independentemente de se procurar conciliar num quadro geral comum as questões
relacionadas com obrigações humanitárias, respeito pela soberania, ordem internacional
e utilização da força em termos adequados (Wesley, 2005: 55). A intervenção na bia
em 2011 é demonstrativa de que as respostas às crises que ocorrem no interior dos
Estados estão largamente dependentes, e são determinadas, por interesses geopolíticos
(Hehir, 2013: 157-158). O que isto significa, e implica, é que independentemente de
todos os outros fatores acima mencionados, para intervirem os Estados necessitam de
considerar que os seus interesses estão em jogo, quanto mais não seja por uma questão
de segurança internacional.
Conclusão
O percurso de evolução da doutrina da RdP tem sido, no mínimo, atribulado. Mas têm
sido alcançados progressos significativos ao longo dos anos. É inegável que os Estados
têm diferentes visões da ordem internacional e que muitas delas serão sempre difíceis
de compatibilizar. Por isso, tendo por base o que tem sido a evolução da RdP e sem
colocar em causa todo o progresso conseguido em termos de direitos humanos, o seu
futuro deverá continuar repleto de incertezas. Subsistem várias questões de natureza
conceptual e de princípio que são de difícil resolução por razões históricas, e há também
que considerar as consequências resultantes da intervenção na Líbia em 2011 e a
situação internacional no presente, que em nada favorecem o desenvolvimento da RdP,
muito pelo contrário.
As questões que se prendem com os processos de decisão e de controlo nas organizações
internacionais, muito particularmente de órgãos como o CSNU, deverão também estar
cada vez mais na agenda e com uma importância acrescida. Do que se trata é de
acautelar a evolução que se tem vindo a observar na ordem internacional em relação à
emergência de um conjunto de países e de transições de poder que necessitam de ser
tidas em consideração. Esta questão é particularmente relevante para os países que não
26
A aprovação da Resolução 1975 relativa à Costa do Marfim ocorreu a 30 de março de 2011 e a Resolução
1973 para a Líbia a 17 de março do mesmo ano.
27
Apesar de terem estado forças de manutenção da paz presente no terreno.
28
No original, “[…] humanitarian considerations can play a part in motivating a government to intervene, but
states will not use force unless they judge vital interests to be at stake”.
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se identificam (ou apenas parcialmente) com os valores liberais ocidentais e que têm
demonstrado desacordo em relação ao domínio da RdP pelos países liberais ocidentais.
Assim sendo, para a doutrina ser operacionalizada e implementada será necessária uma
cooperação multilateral genuína por parte dos membros do CSNU, muito particularmente
dos seus membros permanentes, o que não é fácil. Além disso, estará também, com toda
a probabilidade, dependente de os Estados considerarem a preocupação com este tipo
de crimes como uma questão essencial de segurança internacional e como uma parte
integrante dos seus interesses.
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