JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 8, Nº. 1 (Maio-Outubro 2017), pp. 126-150
Constituição e religiosidade da/na ordem constitucional do império nacional-socialista
Pedro Velez
novo Führer afastar um Führer que houvesse degenerado em ditador ou tirano (que, por
essa sua qualidade, podia de jure afastar o ditador)
.
A ordem Nacional-Socialista assentava na instituição pessoal Führer
. Daí que Huber
entendesse que «[O] Führer não une os antigos cargos de Chanceler e Presidente lado a
lado dentro de si, mas um novo e unificado cargo»
.
E que para o jurista eminentemente
nacional-socialista R. Höhn nem mesmo o conceito de cargo, porque associável a um
universo técnico-burocrático (a uma «unidade hospitalar» – «Anstaltseinheit» – , por
exemplo), fosse adequado para designar a sede pessoal da ordem nacional-socialista
.
A aventada formação junto ao Führer de um senado que o auxiliasse e aconselhasse – e
eventualmente pudesse eleger o seu sucessor – permaneceria sempre no plano das
hipóteses
. Apesar da “multiplicação” da figura do chefe no(s) rearranjo(s) nacionais-
socialistas da civitas germanica (o fenómeno do Unterführer), jamais em tal mimetização
esteve em causa a constituição de figuras dotadas de auctoritas própria autónoma.
Em termos formais-institucionais, a natureza pessoal da ordem implicava também que
quer os tradicionais poderes e funções estatais, quer os poderes “pontualizados” nas
novas instituições especificamente nacionais-socialistas, deveriam ser vistos como
dimanando da auctoritas do Führer. O Governo – Reichsregierung (ReichsKabinett) – foi
reconceptualizado como conselho do Führer, vocacionado para a discussão de leis e
directrizes políticas (por ele nomeados, os Ministros do Reich mantinham com ele uma
relação jurídico-administrativa), e o Reichstag redefinido como órgão de adesão à
vontade do Führer. A Administração, as Forças Armadas e o NSDAP (Bewegung)
constituíam meios de actuação da Führung
. As leis formais eram compreendidas, de
um modo não legal-racional, como típicos actos de Führung, como expressão da vontade,
como comandos, do Führer – segundo a definição de Schmitt, a lei é «plano e vontade
Sobre a conceptualização do tema da limitação do poder no nacional-socialismo, vide Roger Bonnard, op.
cit, pp. 81 e ss.
Minoritariamente, podia conceptualizar-se uma tal instituição como «órgão do Estado». Contra o pano de
fundo de uma construção do nacional-popular, do político-estadual e do jurídico-normativo-formal que os
representava como realidades coincidentes, com a utilização da categoria órgão procurava-se significar que
o Führer “existiria” e “viveria” (ainda) no interior de uma certa ordem normativa jurídico-formal (daí
também que nestes sectores se continuasse a utilizar a expressão Rechtsstaat na caracterização da ordem
Nacional-Socialista). Tal era o caso de um Otto Koellreutter, por exemplo. Na “nova dogmática”
quintessencialmente nacional-socialista, o momento político-jurídico era, num sentido inverso, como que
“dissolvido” na auctoritas do Führer. Vide Carlo Lavagna, La Dottrina Nazionalsocialista del Diritto e dello
Stato, cit., pp. 137 e ss. Cfr. também Peter Caldwell, National Socialism and Constitutional Law: Carl
Schmitt, Otto Koellreutter, and the debate over the nature of the Nazi State, 1933-1937, em Cardozo Law
Review, 16, 1994, pp. 339 a 427.
Ernst Rudolf Huber, Verfassungsrecht des grossdeutschen Reiches, op. cit., p. 208. Para o autor a expressão
«posição de chefe do Estado» («Stellung des Staatsoberhauptes») da Lei de 1 de Agosto de 1934 deveria
ser interpretada como significando «cargo de Führer do Reich e do Povo alemães» («Amt des Führers des
Deutschen Reiches und Volkes») – apud Flaminio Franchini, Lineamenti di diritto amministrativo tedesco in
regime nazionalsocialista, cit., p. 151, nota 1 (rementendo para E. R. Huber, Reichsgewalt und
Reichsführung im Kriege, em Zeitschrift für die gesamte Staatswissenschaft, 1941, p. 539).
Cfr., de novo, Flaminio Franchini, Lineamenti di diritto amministrativo tedesco in regime nazionalsocialista,
cit., p. 151, nota 1 (que remete para Höhn, Volk und Verfassung, em Deutsche Rechtswissenschaft, 1937,
p. 209 e ss).
Na “conversa à mesa” de 31 de Março de 1942, Hitler formularia a mesma ideia – Hitler's Table Talk, 1941-
1944: His Private Conversations, Enigma Books, New York, 2000, pp. 385 e ss. Joseph Goebbels antevia a
futura existência de um Sacro Colégio reunindo a elite nacional-socialista (recrutada com base no êxito
individual, na pureza racial e, num tempo futuro, na hereditariedade, vindo então tal colégio a representar
umas centenas de famílias que – à semelhança do Império Britânico – governariam o Reich ad aeternum)
– cfr. Joseph Goebbels, Journal 1943-1945, cit, pp. 280 e 281.
Num primeiro momento, distinguiu-se «Führung» e «Leitung», este último termo significando poder dirigir
por meio de ordens e comandos – e de ser tempo obedecido – no quadro do Estado-Administração. Tal
distinção esbater-se-ia progressivamente. A Juventude Hitleriana, “ departamento“ do Reich directamente
dependente do Führer-Hitler, era dirigida por um Führer (lei de 1 de Dezembro de 1936).