OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 8, Nº. 1 (Maio-Outubro 2017), pp. 126-150
CONSTITUIÇÃO E RELIGIOSIDADE DA/NA ORDEM CONSTITUCIONAL
DO IMPÉRIO NACIONAL-SOCIALISTA
Pedro Velez
pedrorbavelez@hotmail.com
Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa/FDUNL
(Portugal). Doutor em Direito pela FDUNL, na especialidade de Ciências Políticas (tese intitulada:
Constituição e Transcendência: os casos dos regimes comunitários do entre-guerras). Nos
últimos anos, tem-se dedicado à investigação e ao ensino, leccionando disciplinas de direito
público (Introdução ao Direito Público; Direito Constitucional e Direito Constitucional Português;
Direito Administrativo), na Escola de Direito da Universidade Católica Portuguesa-Porto, na
FDUNL e na Universidade Europeia. Tem também leccionado (FDUNL) disciplinas histórico-
jurídicas História das Instituições (Portuguesas); História do Estado em co-regência com o
Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral.Áreas de interesse: tipos históricos de Estado, formas
políticas, regimes políticos/formas de governo e sistemas de governo, constitucionalismo,
relações entre o político-constitucional e o religioso.
Resumo
Neste artigo, analisar-se o regime nacional-socialista enquanto realidade político-
constitucional. Fá-lo-emos a partir de uma nova maneira de olhar os fenómenos político-
constitucionais, interpretando-os como inscritos num terreno de religiosidade.
Procurar-semostrar que o regime nacional-socialista se caracterizou por ter identificado a
comunidade política uma comunidade política racialmente interpretada e elevada a Absoluto
com uma personalidade histórica empírica tida como personalidade eminentemente
comunitária. Sugerir-se-á que nisso e por isso constitui um caso sui generis, quer num mapa
de regimes convencionalmente classificados como “autoritários e/ou totalitários de direita”,
quer no mapa maior da política contemporânea.
Palavras-chave
Nacional-socialismo; III.º Reich; Constituição; Religião; Cristianismo
Como citar este artigo
Velez, Pedro (2017). "Constituição e religiosidade da/na ordem constitucional do império
nacional-socialista". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 8, N.º 1, Maio-
Outubro 2017. Consultado [online] em data da última consulta,
http://hdl.handle.net/11144/3036
Artigo recebido em 5 de Abril de 2016 e aceite para publicação em 22 de Março de 2017
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Constituição e religiosidade da/na ordem constitucional do império nacional-socialista
Pedro Velez
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CONSTITUIÇÃO E RELIGIOSIDADE DA/NA ORDEM CONSTITUCIONAL
DO IMPÉRIO NACIONAL-SOCIALISTA
Pedro Velez
No que segue deter-nos-emos na estruturação constitucional do regime nacional-
socialista. Almejar-se-á mostrar que o regime nacional-socialista se caracterizou por ter
identificado a comunidade política, racialmente interpretada e elevada a Absoluto, com
uma personalidade histórica empírica tida como personalidade eminentemente
comunitária; e que nisso e por isso se constitui como um caso constitucional sui generis
no mapa da política contemporânea.
Perspectivas analíticas
Analisaremos a estruturação constitucional nacional-socialista a partir de uma nova
maneira de olhar o político-constitucional, uma maneira que se não atém tão-só a formas
ou instituições, ou se limita apenas a sondar uma ocasião favorável ou uma eventual
ocasião social-política “determinante”, ou se fica pela “captação” de uma materialidade
axiológica “fundadora” de baixa intensidade (“demasiado humana”, digamos assim)
momentos do constitucional certamente “reais” e importantes.
Na interpretação das formas constitucionais, tomaremos como grande “hipótese de
trabalho directora” a ideia segundo as “formas das coisas blicas”
1
exprimem e se
reconduzem a escolhas de um “Bem supremo”, ou “Bem Soberano”. Admitiremos ainda
que o Supremo Bem possa ser determinado em termos de distintas intensidades e
abrangências valorativas (“axiofânicas”); assim, poderá ou não ser interpretado como
um Absoluto, como fonte única, exclusiva, ilimitada, incondicional de toda a
normatividade/de todos os valores/de toda a autoridade axiológico-normativa, podendo
eventualmente ser erigida a substância de uma forma de vida ou mesmo de uma ordem
universal-civilizacional.
Olharemos, pois, à luz uma certa “(re)visão teórica”, o político-constitucional como
“lugar” de religiosidade, de res sacrae
2
, de instanciações ou determinações do “religioso”
ou do “sagrado”.
1
Apropriamo-nos aqui de um conceito alheio de filiação aristotélica e cujo sentido (constituição como forma
fundamental da comunidade política) não deixamos, aliás, de incorporar neste estudo Maria Lúcia Amaral,
A Forma da República: Uma introdução ao estudo do direito constitucional, reimp. 1.ª ed., Coimbra Editora,
Coimbra, 2012.
2
Para utilizar uma expressão cara ao conhecido jusconstitucionalista e jusadministrativista Ernst Forsthoff
vide Ernst Forsthoff, Res sacrae, Archiv des öffentlichen Rechts, vol. 31, 1940, pp. 209 a 254.
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Não deixaremos também de ter presente a intuição de Carl Schmitt segundo a qual o
político constitucional moderno não pode deixar de ser compreendido como lugar de
«coisas mistas» («res mixtae»), como decisão (“negociação”) sobre as fronteiras entre
a política propriamente moderna e a “religião-tradicional
3
.
Adoptamos um tal quadro analítico não porque se afigura o método mais apto a captar
a “estrutura profunda” dos fenómenos constitucionais em geral, mas também, e
sobretudo, porque olhar os também chamados regimes não democráticos de direita” do
entre-guerras de um modo que sugerimos permitirá aumentar a capacidade analítica
disponível para sobre eles fazer luz.
Vejamos então o fácies político-constitucional nacional-socialista, tentando captar o
núcleo da sua específica estruturação constitucional.
Ocasião favorável
Em 1918, o Reich alemão é um Estado-Nação recente e ainda in fieri. Nesse mesmo ano,
o Kaiserreich é refundado em moldes liberais-democráticos (República de Weimar)
4
.
No período do entre-guerras, a sociedade alemã regista um complexo de crises
económicas, financeiras, políticas , que vão “produzindo” uma crise existencial latente
e difusa. Em tal contexto, vai emergindo e cristalizando um movimento de massas
veiculando uma visão de uma «ordem nova» integralmente construída a partir da ideia
de «comunidade nacional do Povo Alemão» o movimento nacional-socialista
5
.
A partir de 1930, sob a égide do Presidente von Hindenburg, são ensaiadas tentativas de
superação dos impasses weimarianos; tentativas entre a ditadura comissarial, a
repetição (não-idêntica) do esquema de ordem do II.º Império e a construção de um
novo Estado «Nacionalista», baseado na instituição presidencial, no exército e na
Administração Pública
6
.
Goradas tais tentativas, uma parte da classe governativa ligada ao executivo e de
ideologia Nacionalista, cooptaria o movimento nacional-socialista para o Poder.
Iniciava-
se a «Revolução Nacional»(-socialista). Também aqui emergia «um novo estado para
sustentar o Estado» (Voegelin). Em Janeiro de 1933, o Presidente do Reich, Marechal
3
Vide Carl Schmitt, Political Theology II, The Myth of the Closure of any Political Theology, Polity, Cambridge,
2008 (1970) [Ver também Carl Schmitt, Political Theology: Four Chapters on the Concept of Sovereignty,
The MIT Press, Cambridge, Massachusetts/London, England, 1985, obra publicada originalmente em 1922
e reeditada com um prefácio novo em 1934]. Para uma fundamentação do quadro analítico apresentado no
corpo do texto, ver Pedro Velez, Constituição e Transcendência: os casos dos regimes comunitários do
entre-guerras, Dissertação de Doutoramento, FDUNL, 2013; cfr. também Pedro Velez, Sobre a ordem
constitucional no/do fascismo italiano, em Janus.net, e-journal of international relations, Vol. 7, Nº. 2, Nov.
2016-Abril 2017, pp. 70 e ss.
4
Sobre o pano de fundo subjacente à emergência da constituição nacional-socialista vide: Folko Arends e
Gerhard Kümmel, Germany: From Double Crisis to National Socialism, em Conditions of Democracy in
Europe, 191939, cit., 184 a 212; Hans Mommsen, The Rise and Fall of Weimar Democracy, University of
North Carolina Press, Chapel Hill/London, 1995; Eric D. Weitz, Weimar Germany, Promise and Tragedy,
Princeton University Press, Princeton/Oxford, 2007.
5
Sobre este contexto ver também Carl Schmitt, State Ethics and the Pluralist State (1930), em Arthur J.
Jacobson, Bernhard Schlink (ed..), Weimar A Jurisprudence of Crisis, University of California Press,
Berkeley/Los Angeles/London, 2000, pp 300 a 312.
6
Referimo-nos às tentativas dos governos de iniciativa presidencial (Brüning, von Papen, von Schleicher) de
reconstruir a ordem constitucional weimariana na base da instituição presidencial. Sobre este período
político-constitucional, pode ver-se David Cumin, Carl Schmitt: Biografie politique et intellectuelle, Les
Éditions du Cerf, Paris, 2005, pp. 93 e ss.
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Paul von Hindenburg,
nomearia Chanceler do Império, seguindo as formas
constitucionais, o chefe do movimento nacional-socialista, Adolf Hitler
7
.
A «Revolução Nacional»
A referida nomeação abriria um tempo de refundação constitucional
8
; um estado de
excepção possibilitador de desvios e esvaziamentos em relação à Constituição de
Weimar, e, simultaneamente, da cristalização de um soberano capaz de decidir (e sair)
do mesmo (para evocar aqui também a teoria constitucional de Carl Schmitt, neste
aspecto contemporânea e celebremente “actualizada” por um Giorgio Agamben).
A 21 Março de 1933, por ocasião da abertura do novo Reichstag em Postdam, Adolf Hitler
anunciaria os objectivos do Governo a que presidia, dito «de recuperação nacional»
«Queremos restaurar a unidade de espírito e de vontade da Nação Alemã. Queremos
preservar a nossa personalidade étnica, com todos as energias e valores inerentes, como
a eterna fundação da nossa vida», diria o Chanceler. Em 23 Março de 1933 declinaria de
novo um «Programa de reconstrução da Nação alemã», visando o estabelecimento de
uma «verdadeira comunidade nacional», apoiada na «unidade na liderança da Nação»
(implicando a «supressão do marxismo» e uma geral «eliminação de elementos
oposicionistas»). As incursões “pela filosofia do direito” que tiveram lugar nesta ocasião
eram sumamente eloquentes:
«o objecto primário da nossa organização jurídica é o servir para
manter a existência da comunidade nacional. Não o indivíduo, mas
a Nação inteira deve ser a principal preocupação do direito. A única
base possível do direito só pode ser a existência da Naçã
9
.
7
Nas eleições legislativas de Setembro de 1930, o NSDAP recolheria 18,3 % votos (107 assentos
parlamentares). O seu líder, Adolf Hitler, obtém 30 % votos na primeira volta e 37 % na segunda volta das
eleições presidenciais disputadas em Março-Abril de 1932. Neste último ano também, nas eleições
legislativas de Julho de 1932, o movimento torna-se o maior partido parlamentar (38 % dos votos e 230
assentos no Reichstag). Bloqueada a ascensão de Hitler à governação e decretada a dissolução do Reichstag
por von Hindenburg, logo em Novembro de 1932 teriam lugar novas eleições legislativas. A partir da posição
representativa nelas conquistada 33, 1 % votos e 196 assentos , e ainda que esta não espelhasse uma
trajectória ascensional, o NSDAP viria então a ser chamado ao Poder.
8
Sobre a “reconstrução” do politico-constitucional levada a cabo pelo nacional-socialismo, vide: W. Jellinek,
Le Droit Public de l’Allemagne en 1933, em Annuaire de l’Institut International de Droit public-1934, 1934,
pp. 43 e 76 e Le Droit Public de l’Allemagne en 1934, em Annuaire de l’Institut International de Droit public-
1935, 1935, pp. 350 a 363; Carl Schmitt, I caratteri essenziali dello Stato Nazional Socialista, em Oreste
Ranelletti/Gaspare Ambrosini/Carl Schmitt, Gli Stati europei a partito politico único, Panorama, Milano,
1936, pp. 17 a 52 e State, movement, people: the triadic structure of the political unity (1933), vers.
inglesa, em Carl Schmitt; Simona Draghici (trad.), State, movement, people: the triadic structure of the
political unity (1933); The question of legality (1950), Plutarch Press, Corvallis, OR., 2001, pp. 3 a 52;
Martin Broszat, L’État hitlérien, L’origine et l’évolution des structures du troisième Reich, Fayard, Paris,
1985; R. C. van Caenegem, Uma Introdução Histórica ao Direito Constitutional Ocidental, vers. portuguesa,
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2009, pp. 332 e ss.; Os principais dispositivos jurídicos que
concretizaram a revolução constitucional descrita neste capítulo podem ser vistos nos volumes de 1934,
1935 e 1936 do Annuaire de l’Institut International de Droit Public, pp. 76 e ss., 364 e ss., e 89 e ss.,
respectivamente [entrada «Allemagne»].
9
Cesare Santoro, Hitler Germany as seen by a foreigner, 3.ª edição inglesa, Internationaler Verlag, Berlim,
1939, pp. 35 e ss. Sob proposta do Chanceler Hitler, o Presidente do Reich decretaria a dissolução do
Reichstag a partir de 1 de Fevereiro de 1933, tendo ficado estabelecido que as novas eleições teriam lugar
a 5 de Março de 1933. Um decreto de 4 de Fevereiro para a «Protecção do Povo Alemão» facilitaria a sua
preparação, permitindo a suspensão de jornais e ajuntamentos eleitorais contrários ao NSDAP. O conhecido
«Decreto para a protecção Povo e do Estado» Verordnung zum Schutz von Volk und Staat»), o decreto
presidencial de 28 de Fevereiro de 1933 emanado, ao abrigo do artigo 48.º da Constituição de Weimar, na
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Com a aprovação, pelo Reichstag, da Lei de 24 de Março de 1933, «Lei para a supressão
da miséria do Povo e do Reich» Gesetz zur Behebung der Not von Volk und Reich»),
conhecida como «Lei Habilitadora» ou «Lei de Plenos Poderes» (Ermächtigungsgesetz),
o Governo passa a poder emanar leis em sentido formal e leis de modificação da
Constituição, afastando-se a estrutura institucional do modelo do governo parlamentar
10
.
A nova posição constitucional permitiu à chefia nacional-socialista actuar uma série de
transformações constitucionais.
A nova liderança alemã acabaria a construção estatal-
nacional alemã, com a «gleichschaltung» das organizações e dos poderes não nacionais
socialistas.
O Bundesstaat daria rapidamente lugar a um Einheitsstaat, com a supressão do
federalismo, dos Estados alemães enquanto realidades estaduais.
A Lei de
«harmonização do Reich» de 31 de Março de 1933 e a Lei de 7 de Abril de 1933 «sobre
os Governadores do Reich» (Reichsstatthalter) afectariam num sentido centralizador a
forma de organização político-administrativa do Reich. A Lei de 30 de Janeiro de 1934,
dita de «reconstrução do Reich», emanada pelo Reichstag nacional-socialista, privaria os
Estados-federados alemães de estadualidade, “administrativizando-os” (ex vi art. 3.º)
11
.
A Lei de 14 de Fevereiro de 1934 relativa à supressão do Reichsrat poria um termo à
existência da segunda câmara. A Lei sobre os Governadores do Reich de 30 de Janeiro
de 1935 e a Lei de 30 de Janeiro de 1935 sobre o Governo Municipal desenvolveriam e
completariam tal linha de desenvolvimento constitucional.
É posto um fim ao «Estado pluralístico de partidos» (C. Schmitt), sendo o Partido
Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães erigido a sede institucional de suporte e
segregação da liderança política, da nova classe governativa, a base institucional de
defesa, desenvolvimento e divulgação de uma nova teologia civil referida à comunidade
política alemã. Uma Lei de 14 de Julho de 1933, «sobre a interdição da fundação de
novos partidos», declararia o NSDAP o único partido político existente na Alemanha
(§1.º). A Lei de 1 de Dezembro de 1933 sobre «a identidade entre Partido e Estado»,
por sua vez, viria a inserir positivamente o Partido no Estado. O Partido Nacional-
Socialista era declarado representante da «ideia estatal Germânica» e como estando
«indissoluvelmente fundido com o Estado» (§1.º/1), a tulo de «corporação de direito
sequência do célebre incêndio do Reichstag, previa um estado de emergência de longa duração, destinado,
nos seus próprios termos, a proteger o Estado contra os actos de violência comunistas que o colocavam em
perigo, suspendendo direitos fundamentais como: o direito à liberdade pessoal, o direito a não ser detido,
as liberdades de expressão, de imprensa, de reunião, de associação, os direitos à inviolabilidade da
correspondência e comunicações, da propriedade e do domicílio.
10
Traduzindo a estratégia hitleriana de «revolução legal», o seu preâmbulo referia expressamente que a lei
«cumpria os requisitos estabelecidos para a emanação de legislação emendando a Constituição». O referido
acto normativo fazia do governo um legislador normal: previa, no seu art.1.º, que «as leis podiam (…) ser
igualmente editadas pelo Governo do Reich» (as leis podiam pois ser «Regierungsgesetze»); as leis editadas
pelo governo deviam ser promulgadas pelo Chanceler e publicadas no Reichsgesetzblatt (art.3.º). Depois
da emanação deste acto normativo, muito poucas leis seriam emanadas pelo Reichstag durante o Terceiro
Reich o Reichstag aprovaria, designadamente, as leis de renovação da Lei de Plenos Poderes, a Lei de
Reconstrução do Reich de Janeiro de 1934, bem como as denominadas Leis de Nuremberga de 1935. A Lei
de Plenos Poderes operava também (ex vi art. 2.º) a transferência do poder de emenda da Constituição
para o governo, criando, porém, garantias de preservação de certas instituições: as leis emanadas pelo
governo não poderiam afectar as instituições do Reichstag e do Reichsrat enquanto tais, bem como os
poderes do Presidente do Reich. Nos primeiros tempos, houve quem, na comunidade jurídica, visse em tal
acto uma espécie de “constituição transitória”. A vigência de tal acto legislativo viria a ser sucessivamente
confirmada e prolongada, como já se sugeriu e adiante se verá.
11
Um decreto de 2 de Fevereiro transmitiria, porém, aos antigos Estados federados alemães uma parte dos
direitos soberanos para os exercerem em nome do Reich.
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público» (§1.º/2). Tal instrumento jurídico punia também quem tentasse manter a
organização de um outro partido político ou formar um novo partido político. Nele se
previa, outrossim, que o “Vicário”/“Delegado” do Chefe do Partido, que o substituiria na
gestão corrente do partido, bem como o chefe do estado-maior da força paramilitar
partidária então existente (Secções de Assalto), fossem membros do Governo do Reich
12
.
Para assegurar «a mais estreita colaboração dos serviços do Partido e das SA com o
serviço blico», os membros do “complexo” NSDAP foram investidos de «deveres
superiores» o em face do seu Chefe (do Führer), mas também do «Povo-Nação
(Volk)» e do «Estad §3.º/1
13
. Mais tarde, a Lei de 26 de Janeiro de 1937
(Beamtengesetz) estabeleceria que uma pessoa nomeada para um cargo na função
pública deveria estar «imbuída de um ponto de vista Nacional-Socialista»; em tal acto
normativo, o NSDAP era definido «como porta-voz da vontade do povo», como «força
vital por trás do conceito do Estado alemão», Estado por ele «transportado». Com a «Lei
sobre a bandeira do Reich», aprovada no célebre Congresso de Nuremberga, o emblema
do partido nacional-socialista é erigido a símbolo da comunidade política; nas palavras
de Carl Schmitt:
«[O] Reich alemão tem agora uma única bandeira a bandeira do
movimento nacional-socialista e esta bandeira não é composta
apenas de cores, mas também tem um grande, verdadeiro símbolo:
o símbolo da suástica que evoca o povo»
14
.
O mundo laboral seria também reorganizado numa base comunitária nacional-estatal.
Os sindicatos seriam suprimidos logo em Maio de 1933 (decreto de 2 Maio de 1933). A
empresa seria posteriormente “reinstitucionalizada” como comunidade empresarial
(Betriebsgemeinschaft), para incremento do «bem empresarial e do bem comum do Povo
e do Estado», com a emanação da Lei de 20 Janeiro de 1934 sobre a «Organização do
Trabalho Nacional»
15
. Um decreto de 24 de Outubro de 1934 criaria a «Frente Alemã do
Trabalho» (Deutsche Arbeitesfront), organização unitária de empregadores e
trabalhadores, visando a «formação de uma verdadeira comunhão nacional/popular e
laboral de todos os alemães», de modo a que cada um pudesse estar em «condições
intelectuais e físicas de ocupar o seu posto na vida económica da Nação» (art.2.º)
16
.
Esboçar-se-ia também a criação de “corpos” e câmaras profissionais
17
. Ficou, porém,
claro que, para utilizar os termos constantes do preâmbulo de uma lei de 22 de Setembro
de 1933, «a instituição de grupos profissionais não é, no seu conjunto, a edificação de
12
Caberia ao Chefe do NSDAP, ao Führer, decidir sobre o seu estatuto (§1.º/2)
13
Previu-se a existência de uma jurisdição especial do Partido e das Secções de Assalto para o conhecimento
de casos relacionados com a lesão de tais deveres §3.º/2.
14
Cfr.
Carl Schmitt, The constitution of Freedom (1935), em Arthur J. Jacobson, Bernhard Schlink (ed.),
Weimar A Jurisprudence of Crisis, cit., p. 325.
15
A empresa-comunidade organizar-se-ia em torno de um chefe, o proprietário da empresa (tipicamente), e
do seu séquito, empregados e operários. Junto do chefe da empresa, deveria funcionar um conselho, com
a incumbência de desenvolver a confiança recíproca no interior da comunidade empresarial,
designadamente. O regulamento empresarial, a “lei interna da empresa”, deveria servir «o bem da empresa
e da comunidade nacional». Funcionários estatais comissários (Treuhänder) tutelariam” a empresa-
comunidade.
16
No seio da Frente, funcionaria a célebre Kraft durch Freude, encarregue da bildund nacional-comunitária
das massas trabalhadoras, ocupando-se da organização do seu tempo recreacional.
17
Note-se também que na Frente Alemã do Trabalho se admitia o enquadramento interno dos seus membros
por profissões (art.5.º).
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um Estado num Estado nem mesmo ao lado dele, mas é o Estado ele próprio na sua
forma nova» A ideia da existência de um senado corporativo (reunindo os reitores das
universidades, o alto clero, designadamente) na ordem nacional-socialista, proposta por
Wilhelm Frick (Ministro do Interior de 1933 a 1943), e que recordava o detestado
“pluralista” Gran Consiglio del Fascismo, seria explicitamente posta de lado.
«Novos modos e ordens»
A comunidade política receberia uma ordenação especificamente nacional-socialista.
O corpo político foi sendo reconstruído a partir do ideal de uma comunidade nacional (-
popular) de base racial. A Lei de 7 de Abril de 1933 sobre a reorganização da função
pública, bem como as leis de Outubro de 1933 sobre a profissão de jornalista e a profissão
de advogado (leis de 4 de 7 de Outubro, respectivamente), incorporando um princípio de
exclusividade racial alemã no acesso à função pública e às referidas profissões, ou a Lei
de 14 Julho de 1933 sobre portadores de doenças hereditárias autorizando a sua
eliminação do processo de reprodução, marcariam os primeiros tempos de um tal
processo.
Com a emanação da «Lei sobre os cidadãos do Reich», uma das célebres Leis de
Nuremberga de 15 de Setembro de 1935, estabelecer-se-ia definitivamente um
destinguo entre dois círculos de cidadania, atendendo-se simultânea e cumulativamente
ao que era tido como uma pertença nacional-racial e a uma exigência de demonstração
de pietas em face da comunidade política. Num rculo geral, mais do que cidadãos,
reentrariam súbditos: segundo o § 1.º do referido dispositivo jurídico
«[É] cidadão do Estado (Staatsbürger) aquele que pertence à
associação de protecção do Reich alemão e está por isto
particularmente obrigado em relação a este».
Um segundo e restrito círculo exprimia uma pertença propriamente dita à civitas
germanica no § 2.º lia-se:
«É somente cidadão do Reich o nacional alemão que é de sangue
alemão ou aparentado e que prove pela sua conduta que tem a
intenção e a qualidade requeridas para servir fielmente o povo e o
Reich alemães». Declinando um idêntico princípio, a «Lei para a
protecção do sangue alemão e da honra alemã» uma outra lei de
Nuremberga , evocando «a pureza do sangue alemão» como «a
condição da manutenção do povo alemão» e «uma vontade
inflexível de assegurar para sempre o futuro da Nação alemã»,
interditava «os casamentos entre judeus e nacionais alemães de
sangue alemão ou aparentado»
18
.
18
De acordo com informação de Ernst Rudolf Huber, em 1941 o Grande Reich Alemão articulava-se
distinguindo as seguintes posições jurídicas subjectivas e comunitárias, da seguinte forma: i) portadores
de sangue alemão membros do Povo (Volkszugehörige), súbditos do Estado (Staatsangehörige) e cidadãos
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Por outro lado, o poder político foi sendo progressivamente transferido para a
personalidade histórica de Adolf Hitler, Führer do movimento nacional-socialista;
transferência em que também parece ter pesado um movimento bottom-up de
construção de ordem relativamente espontâneo, com a difusa projecção pelas “massas
alemãs” na figura de Adolf Hitler do idem sentire de republica e de uma visão
monárquica-sacral do Poder
19
. Atente-se, por exemplo, na generalização, de baixo para
cima, da designação «mein Führer», apropriada enquanto “símbolo-político” significando
algo distintivamente alemão.
Em 1933 pairava no ar a compreensão da nova ordem em gestação como
«Führerstaat», como ordem pessoal, uma ordem “consubstanciada”, não numa norma
ou instituição impessoal, mas numa pessoa concreta
20
. Na purga “aniquiladora” da
liderança das SA de 30 de Junho de 1934, justificando os actos que conduziram à
“domesticação” das SA como actos de ordem, como actos de autodefesa do Estado
dimanando de autoridade originária, A. Hitler proclamar-se-ia «enquanto Führer,
Supremo Juiz do Povo Alemão»
21
.
O artigo 4.º da Lei de 30 de Janeiro de 1934 relativa «à reconstrução do Reich», lei
aprovada no Reichstag por unanimidade, havia conferido ao Governo a plenitude do
poder constituinte. Com base nisso, a «Lei sobre o Chefe do Estado» de 1 de Agosto de
1934, promulgada na véspera da morte de Paul von Hindenburg como devendo entrar
em vigor no momento da morte do Presidente (vide § 2.º da referida lei), o que
efectivamente veio a acontecer a 2 de Agosto de 1934, estabeleceria a transferência das
funções e competências do Presidente do Reich para o «Führer e Chanceler do Reich»
Adolf Hitler; segundo a letra do seu §1.º: «as antigas competências do Presidente do
Reich passam ao Führer e Chanceler do Reich Adolf Hitler». Por ordem expressa de Hitler
via carta de 2 de Agosto dirigida ao Ministro do Interior do Reich , o título oficial do
incumbente do novo “cargo” devia ser precisamente «Führer und Reichskanzler»
22
. Todos
os funcionários públicos, todos os soldados e todos os hierarcas do Partido Nacional-
do Reich (Reichsbürger), compondo o “núcleo duro” do Reich; ii) portadores de sangue de espécie
aparentada considerados como membros do Povo, súbditos do Estado e cidadãos do Reich (Vênedos,
Mazures, por exemplo); iii) portadores de sangue de espécie aparentada não integrados na
Volksgemeinschaft mas permanecendo súbditos do Estado alemão e cidadãos do Reich (grupos nacionais
polacos e dinamarqueses no território do antigo Reich); iv) portadores de sangue de espécie aparentada
não aceites na Volksgemeinschaft mas considerados súbditos do Estado alemão (valões, Malmedy e Eupen);
v) portadores de sangue de espécie aparentada que eram somente considerados súbditos do Reich alemão
(polacos nos territórios de leste); vi) portadores de sangue de espécie aparentada súbditos de um Estado
subordinado ao Reich caso dos checos no protectorado; vii) portadores de sangue alemão súbditos de um
Estado estrangeiro (não são cidadãos do Reich; grupos nacionais alemães no estrangeiro); viii) membros
de grupos raciais «estrangeiros» considerados súbditos do Estado mas não cidadãos do Reich (judeus no
território do antigo Reich); ix) membros de grupos raciais estrangeiros não tendo o status nem de súbditos
do Estado nem de cidadão do Reich (judeus nos territórios orientais e em Eupen e Malmedy). Cfr. Ernst
Rudolf Huber, Form and Structure of the Reich (1941), em Arthur J. Jacobson, Bernhard Schlink (ed.),
Weimar A Jurisprudence of Crisis, cit., pp. 330 a 331.
19
Ian Kershaw, Le Mythe Hitler, Image et realité sous le III.e Reich, vers. francesa, Flammarion, 2006.
20
Horst Dreier, Die deutsche Staatsrechtslehre in der Zeit des Nationalsozialismus, em Veröffentlichungen der
Vereinigung der Deutschen Staatsrechtslehrer Heft 60, Walter de Gruyter, Berlin, New York, 2001, p. 48 e
49, muito em especial nota 190.
21
Tais actuações extraordinárias seriam, no entanto, normalizadas posteriormente em termos formais, pela
«Lei relativa às medidas de defesa nacional» de 03. 07. 1934. Esta lei continha os seguintes dizeres
expressivos: «as medidas executadas a 30 de Junho e a 1 e 2 de Julho para suprimir os ataques de alta
traição são legais como legítima defesa do Estado». Sobre este episódio da história constitucional do III.º
Reich e o seu significado, vide Carl Schmitt, Le Führer protège le droit. À propos du discours d’Adolf Hitler
au Reichstag du 13 juillet 1934, em Cités, n° 14, 2003, pp. 165-171.
22
Em tal carta, Hitler ordenava também a submissão a referendo da referida lei de reunião das funções de
Chefe de Estado e de Chanceler.
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socialista deviam prestar um juramento de fidelidade pessoal ao Führer und
Reichskanzler Adolf Hitler. A partir da emanação de tal lei, a designação da ordem
nacional-socialista como «hrerstaat» (ou «völkischer Führerstaat») “democratiza-se”.
A concentração de poder operada pelo referido instrumento jurídico atingiu o ponto limite
em que o Poder começa a transcender regras jurídico-formais, pondo-se a sua autoridade
directa e imediatamente como Grundnorm. A ordem jurídica era cada vez mais
dominantemente interpretada em termos da ideia de ordem que emanava da estrutura
de Poder e não já em termos de validade processual intra-sistemática da normatividade
constitucional weimariana ou em termos de uma nova legalidade formal em gestação. O
Ministro do Reich Dr. Frick, numa conferência de imprensa realizada em 9 de Janeiro de
1935, afirmaria, referindo-se a Hitler: «todos os poderes estão concentrados na sua
pessoa enquanto ele próprio é apenas responsável perante a Nação». Em 30 de Janeiro
de 1936 podia ler-se no oficialíssimo Völkischer Beobachter:
«O Führer, escrevia Wilhelm Stuckart, reúne nas suas os todos
os direitos e obrigações de Chefe de Partido, de Chanceler do
Império e de Presidente do Império. Mas dizer tal não basta; na
realidade, a função de Führer und ReichsKanzler ultrapassa em
muito a esfera de competência dos dois antigos cargos. A evolução
constitucional fez de Hitler o chefe político supremo do Povo, o chefe
supremo da Administração, o juiz supremo do Povo e o comandante
supremo do exército. O poder legislativo pertence-lhe
exclusivamente. O hrer und ReichsKanzler é juridicamente
também, de acordo com a prática dos últimos anos que criou um
direito costumeiro, a fonte do nosso direito»
23
.
A “constituição” nacional-socialista: a Volksgemeinshaft e o Führer
como Absolutos
A partir de 1935/36, o desafio constitucional parecia ter recebido resposta definitiva. «As
tentativas para codificar constitucionalmente o Estado nacional-socialista» foram
definitivamente bloqueadas por A. Hitler em tal período
24
. Depois disso, Hitler o
deixaria, porém, de fazer promessas aos sectores nacionais-conservadores quanto a uma
futura “formalização jurídica do político”. No seu grande discurso de 30 de Janeiro de
1937, declararia:
«E finalmente a tarefa do futuro se a de selar para sempre e
eternamente, por uma Constituição, a vida verdadeira do nosso
povo, tal como ela se organizou politicamente, e deste modo fazer
dela a lei fundamental imperecível de todos os Alemães»
25
.
23
Jacques Maupas, L’État National-Socialiste, em Sciences Politiques, 53.º Ano, n.º 11, 1938, p. 516.
24
Vide: Martin Broszat, L’État hitlérien, L’origine et l’évolution des structures du troisième Reich, cit., p. 19.
25
Apud Marcel Cot, La conception hitlérienne du Droit, Bibliothèque de l’Institut de Droit comparé de Toulouse
vol. IV, Duchemin, Paris, 1938, p. 247.
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A continuidade com a legalidade e a legitimidade constitucionais formais weimarianas
não seria jamais interrompida. A vigência da Lei de Plenos Poderes viria a ser
sucessivamente confirmada e prolongada em leis votadas pelo Reichstag a 30.01. 1937
e a 30.01. 1939. Em 10 de Maio de 1943, a “lei de delegação de poderes” seria declarada
lei de duração ilimitada por decreto do Führer.
A Constituição de Weimar, se nunca chegou a ser em globo formalmente abolida o que
aconteceria se uma nova Constituição fosse emanada , foi, porém,
desconstitucionalizada, perdendo a antiga e superlativa força formal que lhe era própria,
e ab-rogada enquanto ordem principiológica. Na Alemanha do Terceiro Reich, cristalizaria
uma nova ordem constitucional, uma ordem directamente e imediatamente material
26
.
No dizer descritivo e apologético de um intérprete coevo do ordenamento constitucional
nacional-socialista (Ernst Rudolf Huber):
«[A] nova Constituição do Reich alemão não é uma constituição no
sentido formal, como era típico do século XIX. O novo Reich não tem
declaração constitucional escrita, mas a sua constituição não escrita
existe na ordem política básica do Reich (…) A vantagem de tal
constituição não escrita sobre uma constituição formal é que os
princípios básicos não se tornam rígidos, mas permanecem num
movimento de contínuo devir. Não são instituições mortas, mas
princípios vivos que determinam a natureza da nova ordem
constitucional»
27
.
Acompanhando e reforçando as linhas de força dos processos de transformação
constitucional com a produção de uma nova linguagem em sede de teoria e direito
constitucionais, um novo discurso jurídico-público articularia os «princípios vivos» da
26
No termo do processo de transformação constitucional actuado pelo nacional-socialismo, os enunciados
linguísticos fragmentários subsistentes do texto weimariano podiam, por exemplo, ser modificados por lei
governamental, por lei do Reichstag ou podiam ser pelo governo ou pelo poder judicial considerados
incompatíveis com o sistema ideológico nacional-socialista. Sobre o “destino” do dispositivo jurídico
weimariano, vide Karl Loewenstein, Dictatorship and the German Constitution: 1933-1937, em The
University of Chicago law Review, vol.4, n.º 4, 1937, pp. 545 e ss. Certos actos legislativos (Lei de 24 de
Março de 1933, por exemplo) chegariam a ser reconhecidos, oficialmente e na comunidade jurídica, como
fundamentais, mas foram-no pela importância de que se revesti(r)am na construção da nova ordem
material de poder pessoal Michael Stolleis, A History of Public Law in Germany 1914-1945, vers. inglesa,
Oxford University Press, Oxford, 2004, pp. 333 e 334.
27
Ernst Rudolf Huber, Constitution (1937), vers. inglesa, em Arthur J. Jacobson, Bernhard Schlink (ed.),
Weimar A Jurisprudence of Crisis, cit., p. 329. Tem sido argumentado que Hitler desejava que a ordem
constitucional in fieri evoluísse “organicamente”, como na Inglaterra, e que nutriria uma aversão especial
a juristas e regras jurídicas. Cfr. também Joseph Goebbels, Journal 1943-1945, Tallandier, Paris, 2005, p.
284, para um testemunho revelador da visão dos dirigentes máximos nacionais-socialistas sobre os juristas
e a sua forma mentis. A propósito de personagens como H. Frank (Presidente da Academia do Direito
Alemão, de 1933 a 1945, e Ministro sem pasta do Reich de 1939 a 1945), Thierack Presidente do Tribunal
do Povo (1936) e Ministro da Justiça do Reich (1942-1945) , Gürtner (Ministro da Justiça de 1932 a 1941),
e Roland Freisler (secretário-geral no ministério da justiça do Reich desde 1933 e presidente do Tribunal do
Povo de 1942 a 1945), Hitler e Goebbels podiam comentar: Frank «reconcilia(-se) com a mulher, mas à
maneira de um jurista»; Thierack, «ainda que melhor que Gürtner, não se despojou dos seus preconceitos
de jurista», pois que «os juristas serão sempre juristas»; Freisler faria pensar que «os juristas estão mais
à vontade quando ocupam o posto situado imediatamente abaixo do posto mais elevado», ocupado o qual
podiam tornar-se nacionais-socialistas fanáticos.
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ordem. A nova ordem assentaria num princípio nacional-comunitário princípio que os
símbolos Volk/Volksgemeinshaft evocavam e, como implicação desse princípio, num
princípio de poder pessoal corporizado no Führer (Führerprinzip)
28
.
Volk/Volksgemeinshaft
Segundo o constitucionalista nacional-socialista Ernst Rudolf Huber:
«[N]ão há povo sem uma unidade objectiva, mas também não o há
sem uma consciência comum de unidade (…) O novo Reich alemão
procede do conceito de povo político, determinado pelas
características naturais e pela ideia histórica de uma comunidade
sobre si. O povo político é formado através da uniformidade das
suas características naturais. A Raça é a base natural do povo. Como
povo político, a comunidade natural torna-se consciente da sua
solidariedade e luta para se formar a si própria, para se desenvolver
a si própria, para se defender a si própria, e se realizar a si própria.
O "Nacionalismo" é essencialmente este esforço de um povo que se
tornou consciente de si mesmo em direcção à sua auto-direcção e
auto-realização, em direcção a um aprofundamento e renovação das
suas qualidades naturais»
29
.
A ordem política nacional-socialista identificar-se-ia ou aspirava a identificar-se com uma
comunidade nacional Volk/Volksgemeinshaft interpretada como assente numa base
de homogeneidade rácica, étnica e espiritual; a (relativamente) original (em termos da
história do Estado) determinação racial da comunidade política pareceu, no entanto,
tender a ser interpretada de acordo com uma linha holístico-espiritualística («nós não
concluímos da capacidade de um homem a partir do seu tipo sico, mas sim dos seus
feitos a sua raça», salientaria Hitler no começo dos anos 30), bem como em termos
de comunhão de raças aparentadas, tendo como elemento director a raça nórdica-
ariana
30
.
28
Sobre a nova construção da ordem fundamental da comunidade política e sobre estes dois princípios vide:
Horst Dreier, Die deutsche Staatsrechtslehre in der Zeit des Nationalsozialismus, cit., pp. 9 a 72; Oliver
Lepsius, The Problem of Perceptions of National Socialist Law or: Was there a Constitutional Theory of
National Socialism?, em Christian Joerges/Navraj Singh Ghaleigh (eds.), Darker Legacies of Law in Europe,
Hart Publishing, Oxford, 2003, pp 19 a 41; Roger Bonnard, Le Droit et l’État dans la doctrine Nationale-
Socialiste, Librairie Général de Droit & de Jurisprudence, Paris 1936; Marcel Cot, La conception hitlérienne
du Droit, cit.; Carlo Lavagna, La Dottrina Nazionalsocialista del Diritto e dello Stato, Giuffrè, Milano, 1938;
Flaminio Franchini, Lineamenti di diritto amministrativo tedesco in regime nazionalsocialista, em Archivio
Giuridico «Filippo Serafini», Quinta Serie, V., vol VIII, 1942, pp. 115 a 141 la nuova concezione giuridica
tedesca»).
29
Ernst Rudolf Huber, Verfassungsrecht des grossdeutschen Reiches, Hanseatische Verlagsanstalt, Hamburg,
1939, pp. 153-155.
30
Sobre a concepção racial que constituía parte e parcela da doutrina político-constitucional nacional
socialista, vide: Ulrich Scheuner, Peuple, État, Droit et Doctrine Nationale-Socialiste, em Revue de droit
public et de la science politique, tomo 54, 1937, pp. 44 ss e A. James Gregor, National Socialism and Race
em The European, n.º 11, 1958, pp. 273-91. Para uma “genealogia” da ideia racial, vide Eric Voegelin, The
Growth of the Race Idea, em The Review of Politics, vol. 2, n.º 3, 1940, pp. 283-317.
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A comunidade nacional-popular constituía «o específico e originário valor» (Huber)
31
.
Uma tal comunidade era considerada fonte de verdade e valor, de juridicidade e justiça,
e fim de si própria. Da divulgação na doutrina jurídico-pública de ximas como: «a
utilidade colectiva tem preeminência sobre a utilidade individual», «[O] teu povo é tudo,
tu és nada»
32
, «Direito é o que beneficia o povo; não-Direito, o que o lhe causa dano»
33
«Direito é o que convém ao Povo e à Raça» (Robert Ley)
34
, «Justo é o que convém ao
Povo alemão» (Roland Freisler), «o propósito do direito é a manutenção da pureza e da
existência, bem como a protecção e o avanço, do Povo Alemão» (Oberlandesgericht de
Jena). No “discurso constitucional espontâneo” do Poder, o Volk podia ser descrito, com
recurso a linguagem que na metafísica ocidental designava o Realissimum, como
«Substância» (Hitler), e «coisa em si» (Goebbels)
35
.
O carácter comunitário da imaginação político-constitucional-axiofânica nacional-
socialista exprimia-se, pela negativa, numa fundamental “recusa” axiomática do discurso
dos direitos subjectivos («de direitos inatos e inalienáveis do indivíduo (…)», de
«liberdades pessoais do indivíduo que se situem fora da esfera do Estado e que devam
ser respeitadas pelo Estado»)
36
. O estatuto dos membros individuais do Povo
(Volksgenossen) era agora compreendido em termos de posições jurídicas na
comunidade e de serviço à comunidade (nas quais «os direitos devem ser considerados
como deveres-direitos
»)
37
.
Führer
No último manual de direito constitucional dado à estampa no Terceiro Reich podia ler-
se:
«O Reich do Führer do Povo [Alemão] é fundado no reconhecimento
de que a verdadeira vontade do povo não pode ser revelada através
de votos parlamentares e plebiscitos, mas que a vontade do povo
na sua forma pura e incorruptível só pode ser expressa através do
Führer. (…)
O Führer reúne em si toda a autoridade soberana do Reich; toda a
autoridade pública no Estado, bem como no movimento, é derivada
da autoridade do Führer. Devemos falar não da autoridade do
Estado, mas da autoridade do Führer, se queremos designar o
carácter da autoridade política dentro do Reich correctamente. O
Estado o detém a autoridade política como uma unidade
impessoal, mas recebe-a do Führer como o executor da vontade
31
Ernst Rudolf Huber, Verfassungsrecht des grossdeutschen Reiches, cit., p. 164.
32
A primeira das referidas máximas podia aliás ler-se no ponto 24.º do programa do Partido Nacional-
Socialista o programa do Partido Nacional-Socialista pode ser consultado em Martin Broszat, op. cit.,
(anexo documental) pp. 573 a 576. A segunda era também lema presente nas moedas do Reich.
33
Hans Frank, em Hans Frank (ed.) Nationalsozialistisches Handbuch für Recht und Gesetzgebung,
Zentralverlag der NSDAP., F. Eher nachf., g.m.b.h., Berlin, 1935, p. XIV.
34
Vide Le Droit national-socialiste: Conférence internationale tenue à Paris les 30 Novembre et 1er Décembre
1935, Librairie Marcel Rivière, Paris, 1936, p. 63.
35
Klaus Vondung, National Socialism as a Political Religion: Potentials and Limits of an Analytical Concept, em
Totalitarian Movements and Political Religions, vol. 6, n.º 1, 2000, p. 90 e p. 94, nota 18.
36
Ernst Rudolf Huber, Verfassungsrecht des grossdeutschen Reiches, op. cit., p. 361.
37
Idem, pp. 365-366.
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nacional. A autoridade do Führer é completa e abrangente, une em
si todos os meios de direcção política, estende-se a todos os campos
da vida nacional, abrange todo o povo, que é vinculado ao Führer
na lealdade e obediência. A autoridade do Führer não é limitada pela
verificação e controlo por órgãos autónomos ou por direitos
individuais, mas é livre e independente, omnicompreensiva e
ilimitada. Não é, no entanto, egoísta ou arbitrária e os seus vínculos
estão dentro de si. É derivada do povo, ou seja, é confiada ao Führer
pelo povo. Ela existe para o povo e tem a sua justificação no povo,
é livre de todos os laços exteriores porque está na sua natureza
mais íntima firmemente ligada com o destino, o bem-estar, a
missão, e a honra do povo.
O Führer nada tem em comum com o funcionário, o agente, ou o
mandatário que exerce um mandato delegado e que está vinculado
à vontade daqueles que o nomearam. O Führer não é
“representante” de um grupo particular cujos desejos deva realizar.
Ele o é um “órgão” do Estado no sentido de um mero agente
executivo. Ele é antes em si mesmo o portador da vontade colectiva
do povo»
38
.
Na imaginação constitucional nacional-socialista, a comunidade nacional encarnava no
Führer nisso e por si se constituindo ou se actualizando em comunidade política
39
. A
Volksgemeinschaft implicaria a segregação-epifania comunitária de um condutor, de um
guia, do Povo alemão, possuidor, num grau qualitativamente superlativo, do espírito
objectivo, da essência da Comunidade que investia todos os seus membros (Volksgeist),
e capaz de exprimir a vontade objectiva do Volk.
O Führer era intérprete autêntico do
espírito do povo, portador do «Espírito eterno da Alemanha» (Hans Frank), «a fonte e o
representante do direito» (Hans Frank)
40
: «a vontade do hrer, [tal] é o Direito»,
38
Ibidem, pp. 164 e 230.
39
Note-se que em sectores de uma “nova dogmática” (Reinhard Höhn, por exemplo) que expurgava
inteiramente o discurso jurídico-público de categorias jurídico-dogmáticas (e jurídico-teoréticas) herdadas,
construindo novos conceitos operativos a partir dos símbolos políticos nacionais-socialistas, a palavra
Estado, tida como intrinsecamente associada a um sentido burocrático-administrativo, não era utilizada
para designar a comunidade política (o «povo político»), preferindo-se os conceitos de Volk ou de Reich
para designar a unidade política vide Carlo Lavagna, La Dottrina Nazionalsocialista del Diritto e dello Stato,
cit., pp. 164 e ss. [Sobre as linhas de fractura no campo da doutrina do Estado e do direito público no
nacional-socialismo, vide Michael Stolleis, A History of Public Law in Germany 1914-1945, cit., pp. 335]. No
discurso constitucional do Poder e da doutrina nacionais-socialistas, não era, porém, infrequente uma
utilização da palavra Estado, dando-se-lhe precisamente o sentido de comunidade nacional politicamente
organizada, actual e viva («forma política de um povo»), e não o de aparelho (Apparat) burocrático veja-
se, por exemplo, Karl Larenz, La Filosofía Contemporánea del Derecho y del Estado, vers. castelhana,
Editorial Revista de Derecho Privado, Madrid, 1942, pp. 163 e ss. Sobre esta problemática cfr. António José
de Brito, O Totalitarismo de Platão, em António José de Brito, Ensaios de Filosofia do Direito, Imprensa
Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 2006, pp. 157 e 158, nota 7.
40
Marcel Cot, La conception hitlérienne du Droit, cit., p. 156 e Hans Frank, Fondamento Giuridico dello Stato
Nazionalsocialista, vers. italiana, Dott. A. Giuffrè Editore, 1939-XVII, pp. 68 e 29.
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proclamou Goering
41
; a sua vontade, sentenciaria e sintetizaria Schmitt, “é hoje o nomos
do povo alemão
42
.
Como a “sede” e a “manifestação” da autoridade mesma da comunidade nacional, a
autoridade do Führer constituiria uma autoridade pessoal originária exclusiva e absoluta.
Estava em causa uma autoridade «livre e independente, omnicompreensiva e ilimitada»,
para retomar expressivas palavras de Ernst Rudolf Huber já citadas. No nacional-
socialismo, o Indivíduo-Comunidade, parece, na imaginação da ordem, por transposição
ou transferência, ocupar o lugar estrutural e possuir as características do indivíduo do
liberalismo. o há aqui lugar a uma norma substantiva superior e exterior à vontade do
Führer. Em tema de qualificação racial, por exemplo, a vontade do Führer definia em
última análise auto-referencialmente o conteúdo da ordem: medite-se por exemplo no
fenómeno dos chamados decretos de arianização. Uma específica combinação de
ordinalismo/institucionalismo comunitário e decisionismo soberano-pessoal, de ordnung
e gestaltung sincretismo coerente, pelo menos do ponto de vista interno à ideia
ordenadora nacional-socialista, mas comportando ligas de fuga potencialmente
antagónicas , tem sido identificada como gramática profunda do nacional-socialismo
43
.
O Führer exerceria os seus poderes de uma maneira conforme ao espírito do povo ao
seu sentimento jurídico, designadamente. Apenas se admitia a existência de limites
internos à Führung, limites ligados à natureza mesma do seu modo de ser, ou seja, à
sua configuração e à sua teleologia. Enquanto garantias pensáveis e admissíveis da
afectação funcional da Führung figuravam tão-as qualidades inerentes à pessoa do
Führer: penetração do espírito do povo em grau superlativo na pessoa do Führer por
definição o Führer era indivíduo-comunidade como nenhum outro dos seus companheiros
de sangue e qualidades morais do Führer. Como K. Larenz assinalaria expressivamente
(numa imagem como que “crístico-pagã”):
«[A] autonomia relativa do indivíduo é superada no Führer. Ela não
obedece a uma norma que lhe estivesse destinada, mas à lei vital
da comunidade que nele adquiriu carne e osso. A sua vontade é uma
com a da comunidade, porque nele o homem privado é
completamente apagado e ele nada mais quer se não o interesse
comum. Toda a responsabilidade lhe é confiada porque, para ele e
através dele, a comunidade é a mais viva realidade»
44
.
No interior do sistema de pensamento constitucional nacional-socialista, se o Führer
deixasse de agir em conformidade com o espírito do povo transformar-se-ia em ditador.
Como garantia limite, a possibilidade existencial/fáctica de epifania comunitária de um
41
Goering, Discurso, em Deutsche Justiz, n.º 28, 1934, p. 881, apud Marcel Cot, La conception hitlérienne du
Droit, cit., p. 243.
42
Apud Olivier Jouanjan, “Pensamento da Ordem Concreta” e Ordem do Discurso “Jurídico” Nazista: Sobre
Carl Schmitt, em Revista Eletrônica do Curso de Direito PUC Minas Serro, n. 2, 2010, p 34.
[http://periodicos.pucminas.br/index.php/DireitoSerro/article/view/1330].
43
Cfr. Olivier Jouanjan, Justifier L’injustifiable, em Astérion, n.º 4, 2006, pp. 123 a 156.
44
K. Larenz, Deutsche Rechtserneuerung und Rechtsphilosophie, Mohr,Tübingen, 1934, p. 44, apud Olivier
Jouanjan, Justifier L’injustifiable, cit., p. 150.
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novo Führer afastar um Führer que houvesse degenerado em ditador ou tirano (que, por
essa sua qualidade, podia de jure afastar o ditador)
45
.
A ordem Nacional-Socialista assentava na instituição pessoal Führer
46
. Daí que Huber
entendesse que «[O] Führer não une os antigos cargos de Chanceler e Presidente lado a
lado dentro de si, mas um novo e unificado cargo»
47
.
E que para o jurista eminentemente
nacional-socialista R. Höhn nem mesmo o conceito de cargo, porque associável a um
universo técnico-burocrático (a uma «unidade hospitalar» «Anstaltseinheit» , por
exemplo), fosse adequado para designar a sede pessoal da ordem nacional-socialista
48
.
A aventada formação junto ao Führer de um senado que o auxiliasse e aconselhasse e
eventualmente pudesse eleger o seu sucessor permaneceria sempre no plano das
hipóteses
49
. Apesar da “multiplicação” da figura do chefe no(s) rearranjo(s) nacionais-
socialistas da civitas germanica (o fenómeno do Unterführer), jamais em tal mimetização
esteve em causa a constituição de figuras dotadas de auctoritas própria autónoma.
Em termos formais-institucionais, a natureza pessoal da ordem implicava também que
quer os tradicionais poderes e funções estatais, quer os poderes “pontualizados” nas
novas instituições especificamente nacionais-socialistas, deveriam ser vistos como
dimanando da auctoritas do Führer. O Governo Reichsregierung (ReichsKabinett) foi
reconceptualizado como conselho do Führer, vocacionado para a discussão de leis e
directrizes políticas (por ele nomeados, os Ministros do Reich mantinham com ele uma
relação jurídico-administrativa), e o Reichstag redefinido como órgão de adesão à
vontade do Führer. A Administração, as Forças Armadas e o NSDAP (Bewegung)
constituíam meios de actuação da Führung
50
. As leis formais eram compreendidas, de
um modo não legal-racional, como típicos actos de Führung, como expressão da vontade,
como comandos, do Führer segundo a definição de Schmitt, a lei é «plano e vontade
45
Sobre a conceptualização do tema da limitação do poder no nacional-socialismo, vide Roger Bonnard, op.
cit, pp. 81 e ss.
46
Minoritariamente, podia conceptualizar-se uma tal instituição como «órgão do Estado». Contra o pano de
fundo de uma construção do nacional-popular, do político-estadual e do jurídico-normativo-formal que os
representava como realidades coincidentes, com a utilização da categoria órgão procurava-se significar que
o Führer “existiria” e “viveria” (ainda) no interior de uma certa ordem normativa jurídico-formal (daí
também que nestes sectores se continuasse a utilizar a expressão Rechtsstaat na caracterização da ordem
Nacional-Socialista). Tal era o caso de um Otto Koellreutter, por exemplo. Na “nova dogmática”
quintessencialmente nacional-socialista, o momento político-jurídico era, num sentido inverso, como que
“dissolvido” na auctoritas do Führer. Vide Carlo Lavagna, La Dottrina Nazionalsocialista del Diritto e dello
Stato, cit., pp. 137 e ss. Cfr. também Peter Caldwell, National Socialism and Constitutional Law: Carl
Schmitt, Otto Koellreutter, and the debate over the nature of the Nazi State, 1933-1937, em Cardozo Law
Review, 16, 1994, pp. 339 a 427.
47
Ernst Rudolf Huber, Verfassungsrecht des grossdeutschen Reiches, op. cit., p. 208. Para o autor a expressão
«posição de chefe do Estado» («Stellung des Staatsoberhauptes») da Lei de 1 de Agosto de 1934 deveria
ser interpretada como significando «cargo de Führer do Reich e do Povo alemães» Amt des Führers des
Deutschen Reiches und Volkes») apud Flaminio Franchini, Lineamenti di diritto amministrativo tedesco in
regime nazionalsocialista, cit., p. 151, nota 1 (rementendo para E. R. Huber, Reichsgewalt und
Reichsführung im Kriege, em Zeitschrift für die gesamte Staatswissenschaft, 1941, p. 539).
48
Cfr., de novo, Flaminio Franchini, Lineamenti di diritto amministrativo tedesco in regime nazionalsocialista,
cit., p. 151, nota 1 (que remete para Höhn, Volk und Verfassung, em Deutsche Rechtswissenschaft, 1937,
p. 209 e ss).
49
Na “conversa à mesa” de 31 de Março de 1942, Hitler formularia a mesma ideia Hitler's Table Talk, 1941-
1944: His Private Conversations, Enigma Books, New York, 2000, pp. 385 e ss. Joseph Goebbels antevia a
futura existência de um Sacro Colégio reunindo a elite nacional-socialista (recrutada com base no êxito
individual, na pureza racial e, num tempo futuro, na hereditariedade, vindo então tal colégio a representar
umas centenas de famílias que à semelhança do Império Britânico governariam o Reich ad aeternum)
cfr. Joseph Goebbels, Journal 1943-1945, cit, pp. 280 e 281.
50
Num primeiro momento, distinguiu-se «Führung» e «Leitung», este último termo significando poder dirigir
por meio de ordens e comandos e de ser tempo obedecido no quadro do Estado-Administração. Tal
distinção esbater-se-ia progressivamente. A Juventude Hitleriana, “ departamento“ do Reich directamente
dependente do Führer-Hitler, era dirigida por um Führer (lei de 1 de Dezembro de 1936).
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do Führer» (d que a generalidade não fosse entendida como sua propriedade
necessária)
51
. A vontade decisional Führer, como vontade comunitária objectiva, podia
exprimir-se para além de qualquer meio formal por ordens orais, por exemplo. Segundo
proclamava uma “personagem representativa”, o Presidente-Chefe do Tribunal de Apelo
hanseático, «o direito nasce do hrer; cada conversa, cada declaração do Führer é em
si mesma uma fonte de direito»
52
.
Afigura-se simbolicamente significativa da estrutura da ordem nacional-socialista, a
reformulação, corrente no Terceiro Reich, do lema do Reich bismarckiano e guilhermino:
«Ein Reich, Ein Volk, Ein Gott (II.º Reich)»Ein Volk, Ein Reich, Ein Führer» (III.º Reich).
Como tem sido assinalado, para a doutrina jurídica sob o nacional-socialismo (Larenz,
Binder, por exemplo), o hrer, tido como único partícipe do absoluto (comunitário),
deveria ser compreendido como personalidade dotada de natureza semi ou quási divina.
Nela se podia evocar explicitamente a ideia de uma «missão divina do Führer» die
göttliche Sendung des Führers», W. Sauer), representando o seu nus (hrertum)
como «missão divina originada do espírito da Nação» der aus dem Geiste der Nation
geborene göttliche Beruf»; Julius Binder)
53
.
A afirmação progressiva da Constituição Nacional-Socialista; do
Ordnungsstaat ao Estado pós-legal-racional
Pelo decreto de 4 de Fevereiro de 1938, o Führer atribui-se o comando directo das forças
armadas. A 1 de Setembro de 1939, o Führer, em discurso no Reichstag, estabeleceria
quem lhe deveria suceder, fazendo-o «como se fosse a coisa mais natural do mundo»
(Carl Schmitt)
54
. No acto de modificação Änderungsgesetz de 16 de Setembro de
1939 reaparecia como «supremo justiceiro e juiz» oberster Gerichtsherr und Richter
sendo-lhe reconhecida a prerrogativa de anular uma sentença criminal passada pelos
tribunais. Uma lei de 26 de Abril de 1942 do Grossdeutsche Reichstag reconhecia-lhe,
designadamente, o direito de demitir os juízes pelos canais administrativos normais.
51
Em tese, a vontade legiferante do Führer podia revelar-se por via das chamadas Regierungsgesetze, de leis
“governamentais” (emanadas de acordo com o art. 1.º da Lei de 24. III. 1933, a que anteriormente
aludimos), por meio de Reichstagsgesetze, actos legislativos aprovados pelo Reichstag segundo formas
previstas na Constituição de Weimar, bem como via Volksbeschlossenes gesetze, leis “aprovadas” em
plebiscito (nos termos da Lei de 14 de Julho de 1933 relativa ao plebiscito). Note-se que a diversidade de
“fontes” normativas (designadamente, a tradicional especificidade da fonte normativa Lei) era sempre
anulada (pelo menos parcialmente) pelo facto mesmo de o Führer poder escolher “arbitrariamente”, ao
dizer o direito, de entre um conjunto de várias fontes normativas (nominalmente diversas).
52
Vide Le Droit national-socialiste: Conférence internationale tenue à Paris les 30 Novembre et 1er Décembre
1935, cit., p. 48.
53
Ver Massimo La Torre, La “lotta contra il diritto soggetivo”: Karl Larenz et la dottrina giuridica
nationalsocialista, Dott. A. Guiffrè Editore, Milano, 1988, p. 414, nota 132, de onde retirámos as citações
de Sauer e Binder.
54
Carl Schmitt, Apropos the question of the position of Reich Minister and Chief of the Reich Chancellery:
Observations from the standpoint of constitutional law (1947), em Telos, n.º 72, 1987, p. 122. Acaso os
sucessores designados pelo Führer viessem a morrer, o Reichstag deveria nomear o seu sucessor,
escolhendo o mais digno e valoroso de entre os seus membros. Segundo Huber, um tal discurso constituiria
uma das mais importantes leis (assim mesmo, apesar de não estar aqui em causa a forma lei) do nacional-
socialismo cfr. Flaminio Franchini, Lineamenti di diritto amministrativo tedesco in regime
nazionalsocialista, cit., p. 128, nota 4.
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«Não pode haver dúvidas de que (…) o Führer tem de ter o direito
de fazer tudo o que sirva ou contribua para o alcance da vitória. Ele
tem, portanto, enquanto hrer da Nação…supremo justiceiro e líder
do Partido, de estar na posição de, sem ter de seguir os
procedimentos previstos, poder dar o merecido castigo…a cada
alemão…que não cumpra os seus deveres, independentemente dos
chamados direitos adquiridos»
55
.
O hrer passa a legislar, com normalidade, por via de fontes normativas outras que não
a lei formal. O Decreto do Führer Führer-erlasse , nova fonte de direito com origem
na prerrogativa do Presidente do Reich, inicialmente vocacionado para questões
organizativas, é utilizado na determinação e modificação da substância das leis, como
instrumento de delegação de poder legislativo, por exemplo. No seu dizer o direito, o
Führer manifesta-se mesmo para além de constrangimentos formais “clássicos”: não
raro, em actos jurídicos que podiam (ser assinados mas) não ser publicados, sendo
transmitidos às autoridades superiores do Reich por via hierárquica; em assuntos
secretos de Estado, as suas ordens e instruções puderam assumir carácter oral. Desde o
final de 1942, a titulatura hrer figuraria em exclusivo agora também nos actos
normativos não-militares emanados por Hitler.
No ar constitucional que envolveu e acompanhou a inicial “engenharia constitucional
nacional-socialista, apresentada então como «revolução legal», pairava, como imagem
de ordem interpretativa-antecipatória do sentido processo em curso, a imagem de um
Ordnungsstaat. Pareceu mesmo poder estar em causa a cristalização de uma organização
hierárquica do Poder que fosse uma organização hierárquica legal-racional de criação de
direito. O tipo ideal de sistema jurídico hierárquico tinha, em certo sentido, recebido
actualização em grau superlativo. A existência de um centro de Poder unificado por detrás
da produção normativa, em particular da produção legislativa, bem como a própria
entrada de tal produção em regime de normalidade, pareciam até anunciar a introdução
de acréscimos de racionalização da ordem jurídica
56
. A ideologia jurídica rechstaatlish de
certos sectores de disposição nacional-alemã ou “nacional-conservadora” do mundo da
política, da alta administração, ou de uma parte da comunidade jurídica era também
parte e parcela do “encontro nacional-socialista com o constitucional” naquela situação
histórica
57
.
No contexto da actualização da constituição nacional-socialista, de uma juridicidade
fundamental simbólica-material de natureza pessoal-biopolítica, emergiria mesmo um
novo paradigma de Estado moderno, uma organização de poder funcionando em termos
55
Cfr. R. C. van Caenegem, Uma Introdução Histórica ao Direito Constitutional Ocidental, cit., p. 340.
56
Como observou Eric Voegelin em Hitler and The Germans, the collected works of Eric Voegelin volume 31,
University of Missouri Press, Columbia/London, 1999, pp. Cfr. também Franz Neumann, Behemoth: The
Structure and Practice of National Socialism, 1933 1944, Harper and Row, New York, 1966.
57
Em tema de identidade da referida “ideologia jurídica” de um certo mundo burocrático, veja-se, sobre um
personagem centralíssimo da burocracia do Ministério da Justiça o Secretário de Estado Franz
Schlegelberger (com a qual parecia estar, aliás, em sintonia a “ideologia jurídica” do primeiro Ministro da
Justiça do Reich, Franz Gürtner), e documentando um modo de pensar o direito na qual o jurídico
(“formalisticamente” representado) aparecia como meio indispensável e insubstituível de domínio do Estado
sobre a sociedade, cfr. Eli Nathans, Legal Order as Motive and Mask: Franz Schlegelberger and the Nazi
Administration of Justice, em Law and History Review, vol. 18.º, n.º 2., 2000, pp. 281-304.
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“neo-feudais” e em termos de uma burocracia não rígida (“líquida”), com a recriação
contínua de hierarquias de pessoas, com as formas e as instituições impessoais a
assumirem uma dimensão epifenomenal em tal fluxo
58
. Se o lugar estrutural do direito
positivo formal se tornaria intrinsecamente soft, dada a relativização da sua lógica
sistémica interna, relativamente autónoma e independente, nem por isso, porém, estaria
em vias de desaparecer. Em resposta ao que via como utópicos desejos de ir além do
Direito, ou pelo menos de uma ordem de regras e formas fixas, numa futura instanciação
integral do projecto comunitário nacional-socialista (anseios expressos em sectores que
se auto-interpretavam como quintessencialmente nacionais-socialistas), K Larenz
assinalaria
«[A] Comunidade popular não pode existir sem o seu direito.
Comunidade e direito são originários assim como conteúdo e forma.
A Comunidade dá forma ao seu direito e mediante isto a si própria;
essa existe somente nesta sua auto-organização. (…) A vida não é
pensável sem forma e figura, e assim até a comunidade do povo
desapareceria se não desse à sua existência a sua forma e figura no
direito»
59
.
Da omnicompreensividade da constituição Nacional-Socialista
Do princípio da Volksgemeinschaft que informava o regime nacional-socialista, decorria
que todas as áreas da vida se deveriam regular por uma métrica comunitária tendo como
referente o bem da Civitas Germanica, para utilizar uma expressão que adquiriu foros de
cidade na linguagem dos juristas nacionais-socialistas
60
. Daí que, por exemplo, no
conjunto dos saberes jurídicos, uma linguagem teorético-jurídica e dogmática
originalmente nacional-socialista tendesse a substituir os conceitos teoréticos e jurídico-
dogmáticos tradicionais que pressupunham, ou eram vistos como pressupondo, um
substrato metafísico-ideológico liberal e individualista
61
.
58
Ver Carl Schmitt, Apropos the question of the position of Reich Minister and Chief of the Reich Chancellery,
cit., pp 116 a 123; John H. Hertz, German Administration under the Nazi Regime, em The American political
science review, vol 40, n.º4, 1946 46, 682-702; Robert Koehl, Feudal Aspects of National Socialism, em
The American Political Science Review, vol. 54, n.º 4, 1960, pp. 921-933.
59
Apud M. La Torre, La lotta contra il diritto soggetivo, cit., p. 27, nota 71. Como assinalou E. Forsthoff, as
necessidades existenciais de organização do Estado Moderno tornavam indispensável o nível do direito
positivo (escrito, exterior e formal). Para uma descrição do Estado Nacional-Socialista, precisamente como
Estado Dual, vide (embora escrita em 1941, note-se) Ernst Fraenkel, The Dual State, Oxford University
Press, New York, London, Toronto, 1941/The Lawbook Exchange, Ltd., Clark, New Jersey, 2006.
60
Ainda que a referida métrica comunitária pudesse ser interpretativamente “apropriada” no sentido da
conservação de soluções jurídicas “tradicionais”. Assim, por exemplo, pôde entender-se in foro, em tema
de responsabilidade civil, que o dano provocado deve ser reparado não no interesse da parte lesada, mas
no interesse da comunidade, na medida em que um tal dano geraria perturbação na comunidade,
perturbação a que a consideração dos interesses da parte lesada poria cobro (decisão do Tribunal
Superior Administrativo da Saxónia de 18. 1. 1935).
61
Michael Stolleis, Community and National Community (Volksgemeinschaft) Reflections on legal terminology
under National Socialism em Michael Stolleis, The Law under the Swastika, Studies on Legal History in Nazi
Germany, vers. inglesa, The University of Chicago Press, Chicago/London 1998, pp. 64 a 83. Novos modos
genéricos de pensamento jurídico (adequados à ecologia constitucional nacional-socialista) adquiriram foros
de cidade: atente-se, por exemplo, na teoria da ordem concreta de Carl Schmitt (konkretes
Ordnungsdenken) que marca uma inflexão institucionalista do decisionismo do ilustre pensador ou no
“método” dos conceitos concretamente gerais (konkret-allgemeine Begriffe) de Karl Larenz (uma
combinação de neo-hegelianismo metodológico com conteúdo nacional-socialista); sobre estes novos
modos genéricos de pensamento jurídico, vide Oliver Lepsius, The Problem of Perceptions of National
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Também aqui esteve in fieri um novo e abrangente paradigma existencial fundado na
identificação (completa) do indivíduo com a comunidade política. A nova ordem nacional-
popular exigia a instituição de um modo de subjectividade comunitário, de uma
«personalidade comunitári Gemeinschaftspersönlichkeit»), de indivíduos-
comunidade
62
.
O seguinte parágrafo de E. Forsthoff, em Der totale Staat de 1933, e que se referia à
figura que o novo Estado deveria assumir, parece dar bem conta da dimensão abrangente
do Terceiro Reich:
«[O] Estado total deve ser um Estado de responsabilidade total.
Representa o envolvimento total de cada indivíduo ao serviço da
nação. Tal recrutamento remove a privacidade da existência
individual. Todos são responsáveis em tudo, na sua actividade e
manifestações públicas, como no seio da família e da casa, pelo
destino da nação. Não é o facto de o Estado decretar as suas leis e
comandos até às mais pequenas células da vida do povo que é
importante (esse é o Estado quantitativo total, “social”); é o facto
de também poder fazer valer uma responsabilidade, poder pedir
contas ao indivíduo que não submete o seu próprio destino ao da
nação»
63
.
Uma concepção de estruturação da ordem internacional
Para além do mencionado, se é certo que na experiência nacional-socialista se não acha
uma componente verdadeiramente análoga à dimensão de universalidade ideológica-
abstracta ínsita à experiência político-constitucional fascista, nela se detecta, porém, um
momento de universalidade concreta: a comunidade nacional-popular na sua unidade e
totalidade não era concebida como limitada por fronteiras territoriais-geográficas. Como
assinalaria E. R. Huber:
«[O] povo alemão forma uma comunidade fechada que não
reconhece fronteiras nacionais. É evidente que um povo não esgotou
as suas possibilidades simplesmente na formação de um Estado
nacional, mas representa uma comunidade independente que vai
além de tais limites»
64
.
Socialist Law or: Was there a Constitutional Theory of National Socialism?, cit., pp. 36 e 37; Carl Schmitt,
La science allemande du droit dans sa lutte contre l'esprit juif (1936), em Cités, n° 14, 2003, pp. 173-180.
62
Reinhard Höhn, Staat und Rechtsgemeinschaft, em Zeitschrift für die gesamte Staatswissenschaft, vol. 95,
n.º. 4., 1935, p. 676. No discurso constitucional nacional-socialista, tal perspectiva comunitária não
implicaria desconhecer «o valor da personalidade»: «[A]o contrário, na política, na arte e na vida
económica, ele reclama personalidades fortes e livres», salientaria, por exemplo, Ulrich Scheuner, Peuple,
État, Droit et Doctrine Nationale-Socialiste, cit., p. 50.
63
E. Forsthoff, Der totale Staat, Hanseatische Verlagsanstalt, Hambourg, 1933, p. 42 (apud Olivier Jouanjan,
Justifier L’injustifiable, cit., p. 137).
64
Ernst Rudolf Huber, Verfassungsrecht des grossdeutschen Reiches, op. cit., p. 158.
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Daí a adopção das seguintes ideias-força: reunião de todos os alemães num mesmo ente
político a constituição em 1938, com o fim da Áustria como Estado Independente, de
um Reich Grande-Alemão seria disso parte e parcela maior; constituição de um futuro
Reich Germânico (Hitler dixit) que deveria integrar o que se entendia constituirem
populações objectivamente pertencentes ao Volk (Holanda; Noruega), tudo sob liderança
do seu núcleo original e maximamente consciente sedeado na Alemanha; expansão do
alemão para um novo «espaço vital» imperial
65
.
Emergirá mesmo, também a tulo de derivação da ideia de Reich, um pensamento sobre
a ordem internacional e o direito internacional (e também sobre uma Europa alemã),
designadamente: a teoria dos Grandes Espaços (Grossraumlehre) de um Carl Schmitt,
colhendo inspiração na doutrina Monroe e apontando para uma ordem internacional
assente na constituição de impérios liderando grandes espaços e mantendo relações
entre si assentes num principio de não intervenção em esfera alheia; e uma teoria do
espaço vital (Lebensraum), de inspiração haushoferiana, sustentando o direito da nação
à conquista do território necessário para satisfazer as necessidades da sua população
(teoria com impacto maior na grande estratégia nacional-socialista de expensão a leste
e não sem relação com o racialismo nacional-socialista)
66
.
Comunidade política e cristianismo
O regime adoptou inicialmente o cristianismo como ethos (de formação) nacional-estatal,
tendo procurado cooptar as confissões cristãs no estabelecimento de cima para baixo de
um consenso nacional. Em 23 de Marco de 1933, o Chanceler Hitler declararia ao
Reichstag:
«[O] Governo Nacional considera as duas confissões cristãs factores
essenciais para a manutenção da nossa personalidade étnica. (…)
Mas ao mesmo tempo o Governo espera que a tarefa de
reconstrução nacional e moral a que se propôs seja devidamente
apreciada. (…) O único objectivo do Governo é garantir uma sincera
colaboração entre Igreja e Estado. A luta empreendida pelo Governo
contra o materialismo e o esforço para criar uma verdadeira
comunidade nacional servem ao mesmo tempo os interesses da
nação alemã e os da religião cristã»
67
.
Num tal quadro, apontando-se para uma paz civil estatal-nacional e não sem memória
da Kulturkampf bismarckiana, seria celebrada, a 29 Julho de 1933, uma concordata com
65
Ver: Hitler's Table Talk, 1941-1944: His Private Conversations, cit., pp. 401 e ss.; Reinhard Höhn, Reich,
Sphere of influence, Great power, em Arthur J. Jacobson, Bernhard Schlink (eds..), Weimar A Jurisprudence
of Crisis, cit., pp. 332 e 333.
66
Sobre estas temáticas, ver, por exemplo, os seguintes artigos em Christian Joerges/Navraj Singh Ghaleigh
(eds.), Darker Legacies of Law in Europe, cit.: Ingo J Hueck. ‘Spheres of Influence’ and ‘Völkisch’ Legal
Thought: Reinhard Höhn’s Notion of Europe, pp. 71 a 85; John P McCormick, Carl Schmitt’s Europe: Cultural,
Imperial and Spatial, Proposals for European Integration, 19231955, pp. 133 a 141; Christian Joerges,
Europe a Großraum? Shifting Legal Conceptualisations of the Integration Project, pp. 167 a 191.
67
Cesare Santoro, Hitler Germany, as seen by a foreigner, cit., p. 36.
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a Igreja Católica
68
. Patrocinar-se-ia, durante um certo período de tempo, uma tentativa
de estabelecer uma Igreja protestante do Reich
69
.
Estava também em causa um movimento de enquadramento do universo simbólico
cristão na mundividência nacional-socialista, de acordo com ideia segundo a qual a ordem
deveria dar corpo a um conceito de «cristianismo positivo», a um cristianismo em moldes
nacionais-socialistas. No seu ponto 24.º, o Programa do Partido Nacional Socialista havia
já consagrado um tal conceito:
«[O] partido, enquanto tal, sustenta o ponto de vista de um
cristianismo positivo, sem ligação confessional a uma crença
determinada. O partido combate o espírito judeu-materialista em
nós e fora de nós»
70
.
Numa parte da galáxia nacional-socialista, campearia um «sincretismo racista que
arianizava e germanizava Cristo e Deus» (E. Gentile)
71
.
Um sector da classe governativa favoreceria mesmo explicitamente a substituição do
cristianismo por um novo mythos alemão (Alfred Rosenberg, Heinrich Himmler)
72
. Hitler
distanciar-se-ia explicitamente de um tal projecto, negando publicamente (em 1938, por
exemplo) uma interpretação do nacional-socialismo como movimento cúltico místico,
apresentando-o tão-como movimento portador de uma filosofia política völkisch de
natureza racista
73
.
O Führer permaneceria ainda estritamente liberalmente… ligado à “clareza” da
divisão entre o domínio do Estado e o domínio espiritual das igrejas. Em 1942, Hitler
teorizava assim sobre o espaço próprio dos representantes das igrejas na vida da
comunidade alemã:
«[E]nquanto se preocuparem com os seus problemas religiosos, o
Estado não se preocupa com eles. Mas, assim que tentem, por
68
O texto da concordata pode ser visto em The Persecution of the Catholic Church in the Third Reich, facts
and documents translated from the German, Burns Oates, 1940, pp. 516 a 522.
69
«O Führer não desistiu do plano de criação de uma Igreja Imperial que tinha sido prosseguido, ele
agora rejeita o plano inteiramente», assinalaria Rudolf Hess a Hermann Göring em 18 de Abril 1940. Vide
Hans Mommsen, National Socialism as a political religion, em Hans Maier e Michael Schäfer (ed.),
Totalitarianism and Political Religions: Concepts for the comparison of dictatorships, Volume II, Routledge,
London/New York, 2007, p. 158 e p. 162, nota 18.
70
Sobre o «cristianismo positivo» nacional-socialista, Richard Steigmann-Gall, The Nazis 'Positive
Christianity': a Variety of 'Clerical Fascism'?, em Totalitarian Movements and Political Religions, vol. 8 n.º
2, 2007, pp 315 a 327; cfr., também do mesmo autor, The Holy Reich, Nazi conceptions of Christianity,
1919-1945, Cambridge University Press, Cambridge New York, 2003.
71
Emilio Gentile, New idols: Catholicism in the face of Fascist totalitarianism, em Journal of Modern Italian
Studies, vol 11, n.º 2, 2006, p. 148. Karla Poewe, New Religions and the Nazis, New York/London,
Routledge, 2006; Karla Poewe e lrving Hexham, The Völkisch Modernist Beginnings of National Socialism:
Its Intrusion into the Church and Its Antisemitic Consequence, em Religion Compass, vol. 3, n.º 4, 2009,
pp. 676696; Doris L. Bergen, Twisted Cross: The German Christian Movement in the Third Reich, University
of North Carolina Press, Press, Chapel Hill, 1996.
72
Roger Eatwell, Reflections on Fascism and Religion, em Totalitarian Mouvements and Political Religions, vol
4.º, n.º 3, 2003, p. 157. Sobre o tema da genealogia ocultista-pagã do Nacional-Socialismo, ver Nicholas
Goodrick-Clarke, Raízes Ocultistas do Nazismo, cultos secretos arianos e sua influência na ideologia nazi,
1ª ed. Portuguesa, Terramar, 2002.
73
Emilio Gentile, New idols: Catholicism in the face of Fascist totalitarianism, cit., p. 148.
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qualquer meio por Cartas, Encíclicas, ou outros , arrogar-se
direitos que pertencem ao Estado apenas, forçá-los-emos a
regressar à sua específica actividade espiritual, pastoral. Não têm
nenhum título para criticar a moral de um Estado. Pela moral do
Estado Alemão e do povo alemão, os dirigentes do Estado alemão
serão responsáveis»
74
.
Também à maneira dos liberais do século dezanove, o Führer esperaria mesmo, não sem
um resíduo deísta, que o progresso da ciência e da sua eficácia social viesse a significar
o desaparecimento gradual do cristianismo
75
.
Seja como for, e decisivamente, pela intensidade valorativa posta no quid que
determinou como supremo bem e pela abrangência mesma da sua Ideia, era insíta à
ordem nacional-socialista a possibilidade ou a virtualidade de um ethos comunitário
substituir o cristianismo como paradigma existencial, como gramática da existência
colectiva. Um observador exterior do “sistema” nacional-socialista notaria:
«[N]ão é que o movimento nazi seja anti-religioso. O perigo é antes
o de ter uma religião própria que não é a da ortodoxia cristã. Esta
religião não tem o carácter dogmático do credo comunista, é uma
coisa fluida e incoerente que se expressa em diferentes formas.
o neo-paganismo do elemento pan-germânico extremo, o
cristianismo arianizado e nacionalizado dos cristãos alemães, e há o
idealismo racial e nacionalista que é característica do movimento
como um todo, e que, se é não religioso em sentido estrito, tende a
desenvolver uma mitologia e uma ética próprias que podem
facilmente tomar o lugar da teologia cristã e da ética cristã»
76
.
Eis dois exemplos desta última realidade essencial: «Uma vez que lhe atribuímos
existência eterna, o Volk é a encarnação do valor. As Religiões só têm valor se servirem
para preservar a substância viva da humanidade», afirmaria Hitler (1937, no Congresso
do Partido Nacional-Socialista)
77
; segundo Hans Frank:
«Para nós Nacionais-Socialistas o povo é por si mesmo um
ordenamento primário, dado por Deus. O Jus Divinum das Igrejas,
enquanto direito divino originário, é em si uma errónea aplicação do
conceito de direito. Mais clara é a formulação do complexo das leis
74
Apud Emilio Gentile, New idols: Catholicism in the face of Fascist totalitarianism, cit., p. 147.
75
Sobre estas dimensões do pensamento do Führer, ver Eric Voegelin em Hitler and The Germans, the
collected works of Eric Voegelin volume 31, cit., pp. 121 a 129 e Roger Eatwell, Reflections on Fascism and
Religion, cit..
76
Referimo-nos ao historiador Christopher Dawson vide Christopher Dawson, Religion and the Totalitarian
State, em The Criterion, vol. 14, n.º 54, 1934, p. 8.
77
Apud Ernst Fraenkel, The Dual State, cit., p. 120.
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naturais, enquanto possam tocar a vida comum de um povo, aquele
direito que a natureza ensina»
78
.
Contra um tal pano de fundo, para além de dimensões “pragmáticas”, se entende
também os conflitos que se faziram sentir com a Igreja Católica; a rede de organizações
católicas foi quase completamente desarticulada, com supressão progressiva das escolas,
das instituições e da imprensa católicas, a que acresceu uma difamação sistemática dos
princípios e das instituições da Igreja
79
. Em 1937, a encíclica Mit brennender Sorge de
Pio XI, ainda que condenando aspectos centrais da concepção de ordem associada ao
regime nacional-socialista e não directamente um regime, parecia responder, em última
análise, à cristalização de um novo absoluto secular abrangente:
«Se a raça ou o povo, se o Estado ou alguma das suas emanações,
se os representantes do poder estatal ou outros elementos
fundamentais da sociedade humana possuem, na ordem natural,
um lugar digno de respeito, quem, contudo, os desprende desta
escala de valores terrenos, elevando-os à categoria de suprema
norma de tudo, mesmo dos valores religiosos, divinizando-os com
culto idolátrico, perverte e falsifica a ordem criada e imposta por
Deus, está longe da verdadeira fé em Deus e de uma concepção da
vida conforme a ela»
80
.
Em tempos de nacional-socialismo em guerra total, nas célebres «conversas à mesa»,
Hitler não deixaria de esclarecer:
«Quando o nacional-socialismo tiver governado o tempo suficiente,
não será ser possível conceber uma forma de vida diferente da
nossa. No longo prazo, o nacional-socialismo e a religião não mais
poderão coexistir»
81
.
78
A ideia de que «o povo era por si mesmo um ordenamento primário dado por Deus» era depois interpretada
de acordo com uma interpretação racista do natural-popular. Ver Hans Frank, Fondamento Giuridico dello
Stato Nazionalsocialista, cit. pp. 24 e 25 (maxime nota 9).
79
Uma notória disputa simbólica entre o crucifixo e o retrato de Hitler nas escolas da Baviera de 1937 a 1941
seria parte e parcela de um tal cenário conflitual (por imposição “de baixo para cima”, e em tempo de
guerra, a proibição da exibição do crucifixo em escolas públicas seria levantada em 1941). Sobre as relações
entre o Reich alemão e a Igreja Católica, ver Guenter Lewy, The Catholic Church and Nazi Germany, 2.ª
ed., Da Capo Press, Boulder, Colo, 2001.
80
Vide: http://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_14031937_mit-
brennender-sorge_it.html). Heinz-Albert Raem, Pius XI und der Nationalsozialismus. Die Enzyklika "Mit
brennender Sorge" vom 14 März 1937, Schöningh, Paderborn, 1979.
81
Os considerandos que se seguiam a uma tal afirmação eram também significativos: «É uma simples questão
de honestidade, à qual tudo finalmente se resume. Em Inglaterra, o estatuto do indivíduo no que respeita
à Igreja é governado por considerações de Estado. Nos Estados Unidos, é tudo puramente uma questão de
conformismo. A qualidade especial do Povo Alemão é a paciência; e é o único dos povos capaz de realizar
uma revolução neste domínio. Poderia fazê-lo, mesmo que tão-só pela razão de que apenas o Povo Alemão
fez da lei moral o princípio que rege a sua acção. O golpe mais pesado que atingiu a humanidade foi a
vinda do cristianismo. (…)». Cfr. Hitler's Table Talk, 1941-1944: His Private Conversations, cit., p. 6-7 (15
Julho de 1941).
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Num tal quadro, se entenderá outrossim a desvinculação/descomprometimento do
regime nacional-socialista em relação às fontes e ao ethos mais infra-estrutural da ordem
concreta da sociedade onde emergiu.
Conclusões
Parece resultar evidente do atrás exposto que o regime nacional-socialista se
caracterizou por ter identificado a comunidade política uma comunidade política
racialmente determinada e elevada a Absoluto com uma personalidade histórica
empírica tida como personalidade eminentemente comunitária. As seguintes afirmações
de Martin Heidegger, contidas num apelo aos estudantes alemães de 3 de Novembro de
1933, talvez traduzam a substância última da ordem nacional-socialista:
«[E]estudantes Alemães! A Revolução Nacional-Socialista traz uma
completa reviravolta à nossa vida alemã. Não deixem que dogmas
e “ideias” sejam as regras do vosso ser. O Führer ele próprio e só
ele é a realidade, presente e futura, do Povo Alemão e a sua lei»
82
.
Quanto ao Reich Nacional-Socialista, talvez se deva falar numa formação constitucional,
em última análise, sem paralelo na modernidade política
83
.
Tal como nos regimes do entre-guerras habitualmente classificados como «regimes não-
democráticos de direita» em geral, também no caso alemão, é certo, a Comunidade
política considerada em si e por si foi elevada a referente primeiro e último de construção
de ordem (igualmente se tomando o religioso-tradicional como parte e parcela do
nacional). Tal como em alguns desses regimes, máxime no fascismo italiano, a
comunidade política pôde também ser nele interpretada como Absolutum abrangente. A
fórmula constitucional nacional-socialista não pode, porém, ser essencialmente
assimilada a um tal quadro “genérico” e sub-genérico”: dele se destaca, sobretudo e de
modo eminentemente singular e sui generis, pela sua construção da ordem constitucional
por referência a uma comunidade política concretamente absolutizada em termos da sua
personificação numa figura humana, num “indivíduo-comunidade”
84
. Ao longo do
82
Martin Heidegger, Political Texts (1933-1934), em Richard Wolin (ed.), The Heidegger Controversy: A
Critical Reader, The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, e London, England, 1993, pp. 46 e 47.
83
A ideia de que a personificação da comunidade política num indivíduo-comunidade constitui dimensão
nuclear, senão mesmo a dimensão central, do regime nacional-socialista pode encontrar-se nos escritos de
alguns autores, embora não raro se aponte o caso nacional-socialista com um caso, entre outros, em que
um tal fenómeno de “encarnação comunitária” se verifica superlativamente ou por excelência. Veja-se, por
exemplo: Klaus Vondung, National Socialism as a Political Religion: Potentials and Limits of an Analytical
Concept, cit., pp. 58795; Marcel Gauchet, À l'épreuve des totalitarismes, L'avnement de la Dmocratie
III, Bibliothque des sciences humaines, Gallimard, Paris, 2010, pp. 464 e ss. Cfr. também os pioneiros
escritos de Claude Lefort (primacialmente focados no estalinismo, mas referindo-se também ao nacional-
socialismo e ao fascismo) sobre a figura do «Egocrata» como figura característica do totalitarismo: Claude
Lefort, la logique totalitaire e l’image du corps et le totalitarisme, em Claude Lefort, L’invention
démocratique: les limites de la domination totalitaire, Fayard, Paris, 1981, pp. 85 a 106 e pp. 159 a 176,
respectivamente.
84
Sobre as realidades constitucionais referidas no corpo do texto, ver: Pedro Velez, Das Constituições dos
Regimes Nacionalistas do Entre-guerras, ICS, Lisboa, 2016 e Pedro Velez, Sobre a ordem constitucional
no/do fascismo italiano, cit., pp. 69-96. Eis as várias decisões constitucionais fundamentais (ou
constituições materiais) que nelas concretamente reconhecemos: (i) elevação da comunidade política a
Absoluto (fascismo italiano); (ii) designação da comunidade política como Bem Proeminente, mas não
claramente como principio exclusivo de ordem (diversos projectos de ordem articulados
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vinténio fascista cristaliza um Estado quintessencialmente “mono-árquico”, é certo, mas
não propriamente uma doutrina constitucional similar à doutrina alemã do Führerstaat.
Ao contrário do sucedido na Alemanha Hitleriana, o constitucional não identificado com
a autoridade originária de uma pessoa comunitária
85
.
A distância em relação à tradição liberal-constitucionalista terá sido aqui máxima pelo
menos à superfície (dada uma certa permanência última da categoria do indivíduo, com
a sua “transferência” para um plano comunitário – para uma comunidade política
postulada como macro-indivíduo e para o indivíduo-comunidade). Algo de idêntico
poderia ser dito, sem qualificação, em relação a uma certa tradição político-constitucional
cristã de vinculação do poder político a um direito a ele anterior e superior. Esteve em
causa uma claríssima manifestação de «religião política», de evocação de um Bem
Absoluto canalizando toda a autoridade axiológico-normativa para a ordem e/ou o poder
políticos.
A experiência constitucional Nacional-Socialista como que reeditou o paradigma dos
Governantes Divinos, paradigma constitucional de origem pré-cristã ou pré-judaico-
cristã, reactivado no final da idade média, princípios da idade moderna, com as teorias
do direito divino dos Reis (padrão teológico-político nos termos do qual um centro
“soberano” instancia (e difunde) o poder/a vontade divina)
86
. A tal não terá sido estranho
o começo da articulação do Estado-Nação alemão num tempo pós-cristão e pós-
idealista
87
. O lastro milenarista/messiânico/apocalíptico da sociedade alemã, porventura
reactivado na conjuntura hiperdisruptiva weimariana, terá sido também sua condição de
possibilidade
88
.
“constitucionalisticamente”, máxime por via da emanação de novas constituições escritas como na
Polónia, na Estónia e na Lituânia, etc…); (iii) vontade de uma ordem estatal-nacional monista de identidade
católica (Espanha sob Primo de Rivera; primeiro franquismo); (iv) definição de uma ortodoxia pública de
radicação cristã, na qual o cristianismo se inscreve não mais do que como elemento nacional-civil (Hungria
restaurada por Horthy; o «Estado Francês»); (v) concepção de uma comunidade política etnocêntrica como
nec plus ultra exclusivo e incondicional (absorvendo em si o religioso-tradicional local) («Estado
Independente Croata», ao «Estado Nacional-Legionário» romeno, por ex.); vi) elevação da comunidade
política a Bem Supremo, mas com submissão da mesma a “uma invariante moral” concretamente cristã-
católica (franquismo cristalizado, em primeira linha; no «Estado Austríaco» e Estado Novo português).
85
Ver, de novo, Pedro Velez, Sobre a ordem constitucional no/do fascismo italiano, cit.
86
Sob o paradigma dos Reis-Divindades ver: Eric Voegelin, The Collected Works of Eric Voegelin Volume 14:
Order and History Volume I, Israel And Revelation, University of Missouri Press, Columbia/London, 2001,
primeira parte The Cosmological Order of the Ancient Near East»). Sobre esse paradigma e a sua
“repetição” nos começos da modernidade, ver Francis Oakley, Kingship: The Politics of Enchantment,
Blackwell, Malden, MA/Oxford, 2006, pp. 108 e ss, e Catherine Pickstock, After writing: on the liturgical
consummation of philosophy, Blackwell, Oxford, 1998.
87
Vide Eric Voegelin, Race and State (1935), em Eric Voegelin, Published Essays 19341939, The Collected
Works of Eric Voegelin Volume 9, University of Missouri Press, Columbia/London, 2001, pp. 40 a 53; Eric
Voegelin, The Growth of the Race Idea, cit.
88
Vide Norman Cohn, The Pursuit of the Millennium: Revolutionary Millenarians and Mystical Anarchists of the
Middle Ages, revised and expanded, Oxford University Press, Oxford/London/New York 1970; Klaus
Vondung, The Apocalypse in Germany, vers. inglesa, University of Missouri Press, Columbia, MO, 2000.