OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 8, Nº. 1 (Maio-Outubro 2017), pp. 47-64
A CONSOLIDAÇÃO DA PAZ: PRESSUPOSTOS, PRÁTICAS E CRÍTICAS
Teresa Almeida Cravo
teresacravo@ces.uc.pt
Professora Auxiliar de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra (Portugal) e Investigadora do Centro de Estudos Sociais. É atualmente co-coordenadora
do programa de Doutoramento CES-FEUC “Democracia no século XXI”. Concluiu o Doutoramento
no Departamento de Política e Estudos Internacionais da Universidade de Cambridge.
Resumo
A consolidação da paz tornou-se num princípio norteador do intervencionismo internacional
na periferia desde a sua inclusão na Agenda para a Paz da Organização das Nações Unidas,
em 1992. O objetivo de criação de condições para uma paz auto-sustentável de forma a
prevenir um retorno ao conflito armado está, no entanto, longe de ser fácil ou consensual.
Não a sua conceção enquanto paz liberal se revelou particularmente limitada e
inevitavelmente controversa, como a realidade das sociedades devastadas pela guerra provou
ser bastante mais complexa do que a antecipada pelos atores internacionais que assumem
hoje atividades no âmbito da promoção da paz em contextos de pós-conflito. Com uma
trajetória repleta de sucessos contestados e alguns fracassos flagrantes, o modelo vigente
tem sido alvo de duras críticas e de um ceticismo generalizado. Este artigo analisa
criticamente a trajetória teórica e prática da consolidação da paz, explorando a ambição e
também as debilidades do paradigma adotado pela comunidade internacional a partir da
década de 1990.
Palavras chave
Consolidação da paz; Intervencionismo; Paz liberal; Galtung; Críticas
Como citar este artigo
Almeida Cravo, Teresa (2017). "A consolidação da paz: pressupostos, práticas e críticas".
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 8, N.º 1, Maio-Outubro 2017. Consultado
[online] em data da última consulta, http://hdl.handle.net/11144/3032
Artigo recebido em 12 de Janeiro de 2017 e aceite para publicação em 6 de Fevereiro de
2017
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A consolidação da paz: pressupostos, práticas e críticas
Teresa Almeida Cravo
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A CONSOLIDAÇÃO DA PAZ: PRESSUPOSTOS, PRÁTICAS E CRÍTICAS
Teresa Almeida Cravo
Introdução
A consolidação da paz tornou-se num princípio norteador do intervencionismo
internacional na periferia desde a sua inclusão na Agenda para a Paz da Organização das
Nações Unidas, em 1992. Tendo como objetivo a criação de condições para uma paz
auto-sustentável de forma a prevenir um retorno ao conflito armado, a consolidação da
paz está orientada para a erradicação das causas profundas da violência e é
necessariamente um projeto multifacetado, envolvendo instituições e práticas
securitárias, políticas, legais, económicas, sociais e culturais, entendidas como
complementares e que se reforçam mutuamente.
A transição da violência armada para uma paz duradoura não tem sido, porém, um
caminho fácil ou consensual. Não a sua conceção enquanto paz liberal se revelou
particularmente limitada e inevitavelmente controversa, como a realidade das sociedades
devastadas pela guerra provou ser bastante mais complexa do que a antecipada pelos
atores internacionais que assumem hoje atividades no âmbito da promoção da paz em
contextos de pós-conflito. Com uma trajetória repleta de sucessos contestados e alguns
fracassos flagrantes, o modelo vigente tem sido alvo de duras críticas e de um ceticismo
generalizado.
Este artigo analisa criticamente a trajetória teórica e prática da consolidação da paz,
explorando a ambição e também as debilidades do paradigma adotado pela comunidade
internacional a partir da década de 1990. Nesse sentido, começa por apresentar as
origens intelectuais do conceito, para posteriormente se centrar no momento da sua co-
optação enquanto cânone de atuação da organização mundial. A exploração da
consolidação da paz enquanto padrão institucionalizado do intervencionismo
internacional divide-se em três partes: pressupostos, prática institucional e apreciação
crítica. Discute-se assim, em primeiro lugar, os seus princípios e objetivos, seguindo-se
uma breve explicação da sua implementação no terreno, ao nível das quatro dimensões
militar e de segurança, político-constitucional, socioeconómica e psicosocial. Por fim, o
artigo reflete sobre as críticas recorrentes e mais contundentes apontadas à consolidação
da paz, realçando os problemas e as limitações que têm assolado este modelo de
intervenção ao longo dos últimos vinte anos.
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1. Johan Galtung e as origens intelectuais da consolidação da paz
O conceito de consolidação da paz (peacebuilding) foi introduzido no léxico académico
muito antes de se ter tornado consensual no mundo do policy-making. Johan Galtung, o
norueguês considerado fundador dos Estudos para a Paz, apresentou pela primeira vez
este termo no seu artigo de 1976, “Three Approaches to Peace: Peacekeeping,
Peacemaking and Peacebuilding”, dando o mote para a exploração teórica e operacional
que se seguiria uns anos mais tarde e que se mantém prolífica até hoje.
Para entendermos as origens do conceito em análise, temos, no entanto, que dar um
passo atrás relativamente ao contributo teórico deste autor. As três abordagens à paz
desenvolvidas no artigo estão íntima e diretamente relacionadas com a sua proposta
inovadora de redefinição de paz e violência, apresentada ainda na década de 1960
1
.
Galtung define paz como ausência de violência; e define violência como todas as
situações em que os seres humanos estão a ser influenciados de forma às suas
realizações somáticas e mentais reais estarem abaixo do seu potencial (1969: 168). Esta
definição pretendia, na altura, ir muito além da noção dominante de violência enquanto
ato deliberado por parte de um ator identificável de incapacitação de outrem, que o autor
considerava demasiado limitada: “se violência é apenas isto, e paz a sua negação, então
muito pouco é rejeitado quando a paz é apontada como um ideal” (Ibid.).
Num esforço de clarificação conceptual, Galtung começa por explorar uma definição dual
de paz: a paz negativa, enquanto ausência de violência e de guerra, e a paz positiva,
enquanto integração da sociedade humana (1964: 1-4). A investigação para a paz seria,
nesta perspetiva, o estudo das condições que nos aproximariam da indispensável
articulação entre ambas, que em última instância produziria o que Galtung apelida de
“paz geral e completa” (Ibid.: 2).
Esta conceptualização não ficou isenta de críticas nomeadamente por ser considerada
demasiado vaga e sem utilidade prática e Galtung apresenta pouco depois o que pode
ser considerado o seu maior contributo para os pressupostos teóricos dos Estudos para
a Paz: a identificação do triângulo da violência e o respetivo triângulo da paz. No triângulo
da violência o autor distingue três vértices: o da violência direta, o da violência estrutural
e o da violência cultural os dois primeiros conceitos apresentados ainda em 1969 e este
último já em 1990. Para o autor, a violência direta é então o ato intencional de agressão,
com um sujeito, uma ação visível e um objeto. a violência estrutural é indireta, latente,
decorre da própria estrutura social que organiza seres humanos e sociedades por
exemplo, a repressão, na sua forma política, e a exploração, na sua forma económica
(Galtung, 1969). E, por último, a violência cultural é o sistema de normas e
comportamentos subjacente a e legitimador das violências estrutural e direta; ou
seja, a cosmologia social que nos permite olhar para a repressão e a exploração como
normal ou natural e, por isso, mais difícil de desenraizar (Galtung, 1990).
Com esta formulação, Galtung aponta os problemas e as limitações das definições de
violência que abrangem apenas conflitos sociais de larga-escala (guerras), e incita ao
entendimento de paz no seu sentido mais amplo como paz direta, estrutural e cultural,
que exponha e estude as dinâmicas estruturais globais de repressão e exploração e a
1
Para uma análise mais detalhada do contributo conceptual de Galtung, ver Almeida Cravo, 2016b.
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violência simbólica que existe na ideologia, na religião, na língua, na arte, na ciência, no
direito, nos media ou na educação.
Não é de estranhar, por isso, que a etapa seguinte no percurso conceptual do autor
norueguês tenha sido a de confrontar este entendimento com a prática concreta do
intervencionismo internacional, especificamente no artigo em que desenvolve os
conceitos de manutenção da paz (peacekeeping), restabelecimento da paz
(peacemaking) e consolidação da paz. Segundo Galtung, a manutenção da paz constituía
uma abordagem “dissociativa”, cujo objetivo era a promoção da distância e de um “vácuo
social” entre os antagonistas, através da assistência de uma terceira parte (1976: 282).
Esta estratégia pecava por entender o conflito como uma interrupção do status quo e por
prescrever o retorno ao status quo ante como solução. Não questionava, portanto, se
esse status quo ante devia efetivamente ser recuperado e preservado, visando apenas a
manutenção da ausência de violência direta entre os atores em conflito e contribuindo
inadvertidamente para manter uma situação de violência estrutural (Ibid.: 283-284).
Sendo que a preservação da violência estrutural promove, em última instância, a
violência direta e, assim, o provável retorno ao conflito aberto a longo prazo (Ibid.:
288) esta não era uma abordagem satisfatória dentro da conceptualização proposta
por Galtung.
O restabelecimento da paz, por outro lado, representava uma abordagem mais
abrangente, ancorada na resolução de conflitos, cujo objetivo ia para além da cessação
das hostilidades, centrando-se nas várias formas de transcender incompatibilidades e
contradições entre as partes (Ibid.: 290). Porém, embora reconhecendo o potencial de
radicalidade da abordagem da resolução de conflitos, Galtung afirma que esta está
geralmente orientada para a preservação e não para a contestação do status quo
(violento) e orientada para o ator e não necessariamente para o sistema (a estrutura)
que (re)produz a violência (Ibid.: 294-296). A resolução do conflito e o
restabelecimento da paz são, assim, primordialmente entendidos como residindo nas
“mentes das partes em conflito” e atingidos assim que um acordo é por estas assinado e
ratificado uma conceção que Galtung denuncia como “estreita”, “elitista” e negligente
quanto aos fatores estruturais indispensáveis à construção de uma paz sustentável
(Ibid.: 296-297).
Este seu entendimento da manutenção e do restabelecimento da paz leva Galtung a
desenvolver um novo conceito: o de consolidação da paz. Ao contrário das outras duas
abordagens, a consolidação da paz constitui necessariamente uma abordagem
associativa do conflito, capaz de lidar com as causas diretas, estruturais e culturais da
violência no seu sentido lato e, consequentemente, em sintonia com o seu conceito de
paz positiva. A remoção das causas profundas da violência implicaria o enfoque em
princípios como “equidade” (por oposição a dominação/exploração e no sentido da
interação horizontal), “entropia” (por oposição a elitismo e no sentido da inclusão) e
“simbiose” (por oposição a isolamento e no sentido da interdependência) (Ibid.: 298-
100). Embora reconheça o quadro de complexidade e dificuldade, a proposta de Galtung
de consolidação da paz é indubitavelmente maximalista, ambiciosa e ancorada na ideia
da luta pela paz como abarcando impreterivelmente “várias frentes” (Ibid.: 104).
Esta discussão teórica promovida pela proposta de Galtung sobre diferentes formas de
entender violência e paz foi muito além de um mero exercício académico, tendo tido
claras implicações práticas, em especial aquando da sua adoção por parte das Nações
Unidas (NU) em 1992, como veremos de seguida.
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2. Os pressupostos teóricos do modelo
A reflexão de Galtung inspirou Boutros-Ghali, um Secretário-Geral das Nações Unidas
entusiasmado com a perspetiva de uma organização mundial mais dinâmica e
interventiva na sequência da alteração profunda da conjuntura mundial. Foi
essencialmente a conjugação de três fatores que suscitou uma reação vigorosa por parte
da comunidade internacional e, em particular, das NU, no início dos anos 1990. Em
primeiro lugar, o final da Guerra Fria não resultou no desanuviamento das relações
entre as grandes potências no seio do Conselho de Segurança e um compromisso
renovado com os princípios fundadores da organização (Miall, Ramsbotham &
Woodhouse, 1999: 2), como atestou o triunfo do liberalismo (Jakobsen, 2002) e a sua
ênfase nos direitos humanos e na democracia. Em segundo lugar, o aumento dramático
do número de conflitos violentos na periferia, que atingia 50 países nos diferentes
continentes em 1991 (Wallensteen & Sollenberg, 2001: 632), ganhou finalmente
visibilidade e proeminência na agenda internacional. E, por fim, a natureza destes
mesmos conflitos guerras civis de contestação do poder estatal centralizado (Ayoob,
1996), particularmente devastadoras, consideradas imorais e com efeitos
desestabilizadores para o sistema regional e internacional criou, fundamentalmente no
Ocidente, uma opinião pública favorável ao intervencionismo.
Aproveitando este momento histórico de otimismo multilateral e encarando estas guerras
da década de 1990 como “guerras da comunidade internacional” a que cabia à
organização responder com determinação (Almeida Cravo, 2013), Boutros-Ghali
apresentou uma proposta ambiciosa para enfrentar os desafios à paz e à segurança
internacionais da era pós-Guerra Fria, consubstanciado na sua Agenda para a Paz (1992).
Este documento ensaia um modelo de institucionalização da paz que pretende conferir
às NU um modo de atuação mais ousado, coerente e dinâmico, com um considerável
acréscimo em termos de relevância internacional da organização relativamente às
décadas precedentes.
São quatro as estratégias interligadas de atuação propostas pelo Secretário-Geral: a
diplomacia preventiva (preventive diplomacy), o restabelecimento da paz, a manutenção
da paz e, finalmente, a consolidação da paz (UN, 1992). A diplomacia preventiva procura
evitar duas escaladas: por um lado, prevenir que uma situação de conflitualidade latente
evolua para uma situação violenta de facto; e, por outro, conter o potencial alastramento
de uma situação de conflitualidade violenta de facto para outras geografias e grupos
sociais. O restabelecimento da paz tem como objetivo apoiar as partes em conflito nas
negociações de paz tendentes a um acordo, fazendo uso dos instrumentos pacíficos
contidos no Capítulo VI da Carta das Nações Unidas
2
. A manutenção da paz envolve o
envio de forças das NU os chamados capacetes azuis para o terreno, após o acordo
entre as partes e com o seu expresso consentimento, para estabilizar zonas de tensão e
assegurar que o processo de paz é efetivamente cumprido. A grande novidade é, sem
dúvida, o conceito de “consolidação da paz pós-conflito”, anunciado pela primeira vez
como a nova prioridade da organização.
2
A Agenda para a Paz faz igualmente referência ao modelo de imposição da paz (peace-enforcement),
previsto na Carta das NU, como instrumento disponível dentro do novo quadro de atuação (UN, 1992: paras
42-45).
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Objetivos e princípios
Definida como “ações para identificar e apoiar estruturas que fortaleçam e solidifiquem
a paz, de forma a evitar um retorno ao conflito” (UN, 1992: para 21), a consolidação da
paz engloba, assim, duas tarefas diferentes mas simultaneamente complementares: por
um lado, a tarefa negativa de evitar o retomar das hostilidades; e, por outro, a tarefa
positiva de “enfrentar as causas profundas do conflito” (Ibid.: para 15). Esta articulação
segue de perto a proposta teórica de Galtung de paz e violência analisada em cima, ao
promover uma agenda maximalista de paz positiva como indispensável para que a paz
negativa ou seja, o fim da violência direta não seja apenas temporária (Ramsbotham,
2000: 171, 175). Boutros-Ghali é, aliás, claro na sua ambição: o modelo que propõe
pretende, em última instância, lidar com “o desespero económico, a injustiça social e a
opressão política” enquanto fontes da violência que assola o sistema (UN, 1992: para
15). E para alcançar esse objetivo, a ONU manifesta a sua disponibilidade para e
vontade de se envolver enquanto garante externo em todas as fases de situações de
conflitualidade.
As quatro estratégias contidas na Agenda para a Paz são, por isso, vistas numa lógica de
complementaridade, em que as várias fases da transição do conflito violento para a paz
partilham objetivos comuns que requerem uma ação integrada. A consolidação da paz
começa a tomar forma dentro do quadro das operações de manutenção da paz, por sua
vez enviadas para o terreno na sequência de acordos de paz negociados.
Progressivamente, a responsabilidade da consolidação da paz transita para os nacionais
dos países a emergir de conflitos, com o auxílio dos atores externos, para que sejam
erguidas as fundações para uma paz auto-sustentada e, assim, prevenir novos conflitos.
As reflexões apresentadas nos vários relatórios que se seguiram entre estes, o
Suplemento à Agenda para a Paz de 1995, o Relatório Brahimi de 2000, o Relatório sobre
As Operações de Manutenção da Paz das Nações Unidas: Princípios e Orientações de
2008 e o relatório A consolidação da paz: uma orientação de 2010 continuaram a
enfatizar esta ideia de interligação.
“As operações de paz estão raramente limitadas a um só tipo de
atividade”, refere o relatório de 2008, e “as fronteiras entre
prevenção de conflitos, restabelecimento da paz, manutenção da
paz, consolidação da paz e imposição da paz têm-se tornado cada
vez mais difusas” (UNDPKO, 2008: 18).
A consolidação da paz é entendida como um instrumento preventivo (UN, 1995: para
47), essencial para “sarar as feridas” do conflito (Ibid.: para 53) e reduzir
significativamente o risco de retorno às hostilidades (UNPSO, 2010: para 13). A
manutenção da paz e a consolidação da paz são apelidadas de “parceiras inseparáveis”
(UN, 2000: para 28) e os capacetes azuis de “early peacebuilders” (UNPSO, 2010: 9),
uma vez que a consolidação da paz não consegue atuar sem a manutenção da paz e esta
última não tem uma estratégia de saída sem a primeira. Por outras palavras, a ideia
central é então a de continuum: entre paz negativa e paz positiva, entre estabilização e
desenvolvimento, entre prevenção estrutural e consolidação.
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A paz liberal
Se a adoção de uma visão maximalista de paz coincidente com a proposta teórica de
Galtung se ficou claramente a dever ao ambiente intelectual e político desencadeado
pelo final da Guerra Fria, também o desenho específico do modelo a implementar em
zonas de conflito refletiu quem emergiu triunfante da confrontação bipolar.
Na realidade, a abordagem que deu corpo a esta nova ambição de promoção da paz na
periferia, e foi subsequentemente integrada nos novos instrumentos de segurança
coletiva, foi a abordagem ocidental da chamada paz liberal (ver Doyle, 2005). Como
explica Clapham, os vencedores do conflito bipolar não as democracias capitalistas
e liberais, mas também as suas sociedades civis, e a grande massa de organizações não-
governamentais e instituições internacionais que estas controlam procuraram
reestruturar o sistema internacional em conformidade com os valores que emergiam
vitoriosos nessa altura (1998: 193-194) e apresentaram a democracia liberal e a
economia de mercado como as receitas globais para o desenvolvimento, a paz e a
estabilidade” (Yannis, 2002: 825).
Neste sentido, como refere Paris, a consolidação da paz é efetivamente “uma enorme
experiência de engenharia social uma experiência que envolve a transplantação de
modelos ocidentais de organização social, política e económica para países devastados
pela guerra de forma a controlar o conflito civil: por outras palavras, a pacificação através
da liberalização política e económica” (1997: 56). A queda do bloco socialista e do seu
modelo alternativo permitiu que esta abordagem intervencionista fosse abundantemente
incentivada, e imposta, sem rival, nos quatro cantos do mundo o que Lizée (2000)
chama de “síndrome do Fim da História”. Introduzindo condicionalidades políticas e
económicas através das operações de paz e dos programas de assistência ao
desenvolvimento, o modelo das democracias de mercado foi-se difundindo por todo o
Terceiro Mundo (Jakobsen, 2002).
O grande potencial de abertura do conceito de consolidação da paz a inúmeras definições
baseadas em diferentes entendimentos e abordagens, e que poderiam ter ganho uma
infinidade de formas concretas nos contextos de pós-conflito, viu-se assim reduzido à
especificidade da matriz ocidental e da cosmovisão liberal, e consequentemente fechado
às outras experiências e alternativas.
3. O modelo na prática
Houve então, desde os primórdios, uma convergência em torno do que Kahler chama de
“Consenso de Nova Iorque” (2009), não obstante a ausência de um órgão centralizador
de todas as atividades de consolidação da paz dentro das NU durante a primeira década,
por um lado, e a constante presença de vários outros atores internacionais que se
arrogaram de responsabilidades no âmbito do intervencionismo internacional, por outro.
O “Consenso de Nova Iorque” refletia o sonho liberal de criação de democracias
pluripartidárias com economias de mercado e sociedades civis fortes, assim como de
promoção das práticas e dos valores liberais ocidentais, tais como a autoridade secular,
a governação centralizada, o Estado de direito ou o respeito pelos direitos humanos
(Newman et al., 2009: 12).
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Como explica Richmond, a paz é pensada pela comunidade internacional ocidental como
uma “forma ideal alcançável” e “resultado de ações top-down e bottom-up, com base em
regimes, estruturas e normas sociais, políticas e económicas liberais (2005: 110).
Pensar “a paz enquanto governação” (Ibid.: 52-84) implica igualmente olhar para a
consolidação da paz como um meio para um fim: isto é, como um modelo
institucionalizado que se materializa num conjunto de passos necessários à construção
de uma paz liberal. Não admira, por isso, que a prática da consolidação da paz tenha
implicado um quadro de atuação padronizado que pretendeu assumir um carácter
universal e hegemónico.
A multidimensionalidade
Na realidade, é o envolvimento das NU na Namíbia, ainda em 1989, que representa a
primeira tentativa de implementação deste paradigma. Esta operação de paz vai já muito
além da supervisão do cessar-fogo tradicional e é mandatada para auxiliar a criação de
instituições políticas democráticas e monitorizar as eleições que assegurariam a
independência do país. O relativo sucesso da missão atestou a capacidade e a vontade
da organização para realizar sucessivas operações de paz mais ambiciosas, em larga
escala, com atividades muito para além das realizadas até à data e numa grande
variedade de países que emergiam de conflitos armados na Ásia, África, Europa e
América Central (Han, 1994: 842-845). Assistimos assim, durante a década de noventa,
a uma dramática expansão do modelo padronizado da paz liberal, que Ramsbotham
apelida de “UN’s post-settlement peacebuilding standard operating procedure” (2000:
170), e que se materializa no terreno em quatro dimensões interdependentes: (1) militar
e de segurança, (2) político-constitucional, (3) socioeconómica, e (4) psico-social.
A dimensão militar e de segurança
O dilema de segurança que assalta os grupos envolvidos em conflitos intraestatais é
consideravelmente maior do que entre Estados pós-conflito interestatal, na medida em
que o reforço da autoridade estatal passa pela recuperação do monopólio do uso legítimo
da força e pelo controlo da totalidade do território: isto é, implica precisamente a
reconstituição de um poder político central com capacidade para se impor aos restantes
poderes político-militares. É, por isso, necessária a institucionalização de garantias que
neutralizem o compreensível sentimento de insegurança que grassa pelos diversos atores
que receiam a exclusão e temem que a centralização do poder potico-militar favoreça o
grupo oponente em seu detrimento. A dimensão militar e de segurança do modelo de
consolidação da paz tem, por isso, dois objetivos: estabelecer um equilíbrio entre as
partes beligerantes e restringir a capacidade dos combatentes para provocar um retorno
às hostilidades. Existe, nesse sentido, um programa especificamente destinado aos
soldados, que inclui as fases estandardizadas conhecidas como “DDR”: (1)
desmobilização, (2) desarmamento, e (3) reintegração na vida civil ou integração nas
forças armadas nacionais.
A atenção da comunidade internacional centra-se, posteriormente, na chamada “Reforma
do Setor de Segurança” (RSS), que abrange militares, polícia e serviços de inteligência,
e procura instituir uma maior transparência, eficiência e controlo democrático (ver Sedra,
2010). Apontando para uma noção genérica de boa governação e Estado de direito, a
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RSS representa uma abordagem ampla, necessariamente de longo prazo, preocupada
não com a capacidade de fornecer segurança aos cidadãos mas também com a sua
responsabilização perante uma supervisão civil e democrática.
3
A dimensão político-constitucional
Esta dimensão procura levar a cabo uma transição política que passa pela legitimação
dos órgãos de poder; pela reforma da administração do Estado esvaziada durante o
conflito; e pela transferência das tensões entre os grupos em conflito para o plano
institucional ou seja, a ideia da política como continuação do conflito por meios não-
violentos, que vem de Michel Foucault e que Ramsbotham apelida de “Clausewitz ao
contrário” (2000: 172).
O regime político que subjaz a estas transformações é a democracia liberal, considerada
mais propensa à paz, tanto ao nível interno como internacional
4
. Enquanto “filosofia
política dominante” (Barnes, 2001: 86) da comunidade internacional do pós-Guerra Fria,
foi sucessivamente incentivada e imposta às sociedades intervencionadas, centrando-se
essencialmente na reforma e promoção do Estado de direito e dos elementos com maior
impacto no processo de democratização e de criação de uma cultura democrática:
partidos políticos, media e sociedade civil.
A introdução do modelo democrático nos cenários pós-conflito pode, no entanto, tomar
diferentes formas. Uma primeira abordagem foi a realização num curto prazo de eleições
multipartidárias, que simbolizavam a responsabilização imediata dos atores nacionais e
a legitimação do novo poder político (como por exemplo em Angola em 1992). A sua
lógica de winner-takes-all e de jogo de soma nula em contextos altamente instáveis
levou, contudo, ao surgimento de uma segunda abordagem, considerada menos
desestabilizadora: os governos de coligação, que pretendiam socializar os atores em
termos de partilha de poder negociado e prática de decisões consensuais, antes da
realização das primeiras eleições (como por exemplo no Afeganistão em 2002). Uma
última forma, exclusivamente para casos em que o empenho da comunidade
internacional em termos de esforços financeiros, de recursos humanos e temporais é de
grande dimensão, é o protetorado internacional, em que a administração transitória é
tutelada por um ator externo (como por exemplo em Timor, pelas NU, entre 1999 e
2002).
A dimensão socioeconómica
Esta dimensão pretende reverter o impacto particularmente devastador dos conflitos
armados no tecido económico-social do país, recorrendo à ajuda financeira internacional.
Seguindo uma lógica de continuum entre emergência, reabilitação e desenvolvimento
(Macrae, 2001:155), a comunidade internacional começa habitualmente pela ajuda
humanitária e tem igualmente um papel crucial a médio-longo prazo no apoio à
reconstrução das infraestruturas básicas e na aplicação de políticas macroeconómicas de
estabilização. É de assinalar que o entendimento desta recuperação económica, assim
como dos (des)equilíbrios monetários e fiscais, se tem norteado pela ideologia neoliberal
3
Sobre a ligação entre consolidação da paz, Estado de direito e RSS, ver Almeida Cravo, 2016.
4
Sobre a Teoria da Paz Democrática, ver Hayes, 2012.
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(ver Harvey, 2005). Durante as décadas de oitenta e noventa, esta filosofia económica
materializou-se nos chamados planos de ajustamento estrutural, aplicados um pouco por
todo o mundo em desenvolvimento pelas instituições financeiras internacionais fiéis ao
chamado “Consenso de Washington” (Williamson, 2008). Estas políticas económicas
preconizavam a liberalização, privatização e desregulação da economia no sentido da
abertura ao mercado; eram acompanhadas do emagrecimento e da concomitante
redução do papel intervencionista do Estado, num contexto de disciplina fiscal rigorosa e
reforma tributária tendente à atração de investimento externo.
Críticas devastadoras a este modelo neoliberal face às dificuldades em integrar estas
economias pós-conflito no mercado mundial de forma favorável e, acima de tudo,
sustentável conduziram a fortes apelos à flexibilização das práticas económicas, à
recuperação da ideia do Estado enquanto agente de desenvolvimento e à necessidade de
conciliar os imperativos de curto prazo de estabilização e os imperativos de longo prazo
de crescimento e desenvolvimento (ver Stiglitz, 2008). De uma forma geral, porém, as
reformas do “pós-Consenso de Washington” que se seguiram, essencialmente no final
dos anos 1990, foram no sentido de um pacote neoliberal light, e não de uma verdadeira
contestação das premissas do modelo.
A dimensão psico-social
Um dos mais graves custos da guerra é o impacto de caráter duradouro das culturas de
violência enraizadas em sociedades expostas a conflitos por um longo período (Lederach,
2001). A reabilitação do tecido social de países devastados pela guerra depende da
desconstrução de estereótipos e das condições que alimentaram o conflito e polarizaram
as comunidades, exigindo, por isso, a mudança de atitudes individuais e, mais
genericamente, do comportamento da sociedade no seu todo, no sentido da
reconciliação.
Diferentes sociedades têm lidado com os seus traumas psico-sociais resultantes de
conflitos de formas distintas. Algumas optaram pelo que chamamos aqui da fórmula da
amnésia, ou seja, enterrar o passado, nomeadamente através de amnistias, para não
arriscar maior instabilidade. Este caminho é difícil de seguir, visto que quem sofre é por
norma amaldiçoado com uma boa memória. Há fundamentalmente três outras práticas
recorrentes de lidar com o passado nestes contextos (que podem existir em simultâneo
ou até mesmo ser associadas às leis de amnistias): através (1) das comissões de verdade
e reconciliação, como em El Salvador; (2) dos tribunais (a solução judicial, doméstica ou
internacional), como no Ruanda; ou/e (3) de práticas tradicionais de reconciliação (rituais
inteiramente dependentes de recursos culturais locais), como em Timor.
Trata-se, em última análise, de um processo doloroso e lento, de readaptação ao outro
e de (re)construção de relações pacíficas. A reconciliação no seu sentido mais amplo é
assim, em última análise, o objetivo final de uma transição para a paz.
O consenso em torno da prática institucional da consolidação da paz foi-se generalizando.
Do seu lado, a organização mundial procurou reforçá-lo e agilizar o acompanhamento
das missões através de reformas administrativas, como a criação do Departamento de
Operações de Paz logo em 1992 e também através do recurso mais sistemático aos
representantes especiais do Secretário-Geral. Em especial, a criação da Comissão de
Consolidação da Paz em 2005 pretendeu colmatar um fosso institucional no que dizia
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respeito à capacidade das NU de atuar em contextos de violência e fragilidade estatal e
de aprender com os seus próprios erros e melhores práticas, dentro de um quadro de
atuação da paz liberal.
Perante a crescente complexidade das ameaças à paz e à segurança internacionais, a
lógica de complementaridade entre o trabalho da organização mundial e o das múltiplas
organizações regionais e da sociedade civil foi também ganhando força. Pondo em prática
o que havia sido preconizado pelo capítulo VIII da Carta das Nações Unidas, as parcerias
com organizações de âmbito regional consideradas um espaço privilegiado para a
resolução de crises e promoção da paz foram-se estreitando. Instituições como a OCDE,
a União Europeia, a NATO ou a União Africana passaram a desempenhar um papel
crescente em matéria de consolidação da paz, seguindo, de uma forma geral, o modelo
institucionalizado. Em particular, os alargamentos tanto da NATO como da UE no
continente europeu e, posteriormente, a ampliação das suas intervenções para fora da
Europa intensificaram a aplicação do paradigma e legitimaram ainda mais o modelo da
paz liberal como padrão de atuação. Simultaneamente, a proeminência na agenda
internacional do conceito de segurança humana (ver UNDP, 1994) e os subsequentes
apelos à intervenção propiciaram maior espaço às organizações da sociedade civil nos
discursos e práticas sobre paz e conflitos. Vistas como mais centradas nos indivíduos e
tendencialmente bottom-up nas suas abordagens, estas organizações ganharam relevo
e a sua participação nas várias fases de promoção da paz passou a ser tida como
essencial para o sucesso de um processo de paz sustentável.
Como apontam Newman et al., este entendimento, tanto do desafio como da resposta
mais apropriada, que rapidamente se difundiu por outras organizações, reflete não só o
consenso dominante, mas também a evolução normativa no sentido do enfraquecimento
da inviolabilidade da integridade territorial e, concomitantemente, da aceitação crescente
do intervencionismo internacional (2009: 5).
4. As críticas ao modelo
As expectativas relativamente a esta nova era de intervencionismo global eram altas e
não tardaram a ser defraudadas, dando lugar a um pessimismo generalizado, muito por
conta dos dramáticos e mediáticos fracassos das missões em Angola, na Bósnia, na
Somália e no Ruanda. As estatísticas sobre a reincidência de conflitos violentos em
sociedades previamente devastadas pela guerra cerca de 50% nos primeiros cinco anos
que se seguem à assinatura do acordo de paz (Collier, 2003: 83) questionavam
abertamente o modelo de atuação privilegiado. Mas mesmo onde não houve um retorno
às hostilidades, a materialização da paz formal enfrentou graves dificuldades e, em
muitas ocasiões, as efusivas declarações iniciais de sucesso provaram ser prematuras
5
.
O principal protagonista deste ambicioso projeto intervencionista atraiu grande parte da
responsabilidade pelos reveses e fracassos. De facto, a complexidade dos problemas em
matéria de paz e segurança enfrentados com o fim da Guerra Fria desafiavam de forma
flagrante a capacidade institucional das NU para missões desta envergadura a vários
níveis: recursos financeiros; recursos humanos qualificados e experientes; recolha de
informação e planeamento; comunicação; coordenação; e know-how operacional (ver
Roberts & Kingsbury, 1993). A incontestável dificuldade de operacionalização da proposta
5
Ver, por exemplo, as críticas à atuação em Moçambique (Weinstein, 2002) ou no Camboja (Lizée, 2000).
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das NU evidente logo desde o icio confirmava debilidades flagrantes e dilemas
difíceis de resolver que foram minando a credibilidade, legitimidade e capacidade de
intervenção da organização mundial.
Seriam, porém, as críticas ao modelo da consolidação da paz em si, preconizado tanto
pelas NU como pelos outros atores mais interventivos do sistema internacional, que se
revelariam mais contundentes. De entre estas, é possível distinguir o posicionamento
dos críticos quanto ao teor e intuito das suas análises e podemos identificar dois grupos:
(1) as críticas reformistas (dos problem-solvers)
6
que, embora reconhecendo defeitos
relevantes no modelo advogam a sua continuidade, refinando o processo sem contestar
o seu alicerce ideológico; e (2) as críticas estruturais que questionam a legitimidade
do modelo em si, os seus valores, interesses e a reprodução de relações hegemónicas,
desafiando, assim, a ordem aceite como realidade imutável.
Mais e melhor intervencionismo: as críticas reformistas
Tanto em termos numéricos como de influência no mundo do policy-making, a maioria
dos autores que se debruça sobre o tema da promoção da paz em Estados periféricos
pertence ao chamado mainstream e pode ser rotulado de problem-solver. o autores
que perfilham da ordem vigente e cuja preocupação é a de aumentar a relevância prática
e a eficiência do modelo da paz liberal.
7
Acreditando em última instância que, não
obstante os resultados dececionantes, a intervenção externa é mais benéfica do que
prejudicial e que, além disso, a alternativa é o abandono de milhões de pessoas da
periferia a uma condição de insegurança e violência, esta corrente acusa os “híper-
críticos” (Paris, 2010) de ceticismo generalizado e concentra-se no aperfeiçoamento do
modelo aplicado, de forma a minimizar os seus efeitos desestabilizadores e a melhorar a
sua capacidade de atuação.
Paris e Sisk (2009) representam genericamente esta posição e apontam cinco
contradições inerentes ao modelo e que dificultam a sua aplicabilidade: (1) a intervenção
externa é utilizada para fomentar o auto-governo; (2) é necessário controlo internacional
para criar apropriação local (local ownership); (3) valores universais são promovidos para
resolver problemas locais; (4) o corte com o passado é concomitante com a afirmação
da história; e, por último, (5) os imperativos de curto e de longo prazo entram
frequentemente em conflito. Estas tensões materializam-se em desafios práticos à
consolidação da paz em matéria de: (1) presença internacional (isto é, o grau de
ingerência nos assuntos internos do Estado de acolhimento tamanho da missão,
natureza das tarefas, consentimento versus condicionalidade/imposição, combinação
entre meios violentos e/ou não-violentos); (2) duração da missão (reconstrução pós-
bélica enquanto atividade necessariamente de longo-prazo versus responsabilização dos
atores nacionais); (3) participação local (elites versus população; prioridades
internacionais versus prioridades locais); (4) dependência (em relação aos atores
internacionais versus paz auto-sustentada); e (5) coerência (coordenação organizacional
e consistência normativa) (Ibid.: 306-309).
6
Sobre o conceito de “problem-solver”, ver Cox, 1986.
7
Ver, por exemplo, Fukuyama, 2004; Paris, 2004; Doyle e Sambanis, 2006; Call e Cousens, 2008; Jarstad
e Sisk, 2008.
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A constatação destes dilemas não leva à rejeição deste tipo de resposta da comunidade
internacional; pelo contrário, esta análise é encarada como uma forma “realista” de
tentar gerir imperativos contraditórios, de forma a melhorar o desempenho e eficácia das
missões, ajustar as expectativas e, assim, “salvar” o projeto da paz liberal (Paris, 2010).
Os fundamentos ideológicos da paz liberal transformar países devastados por guerras
civis em democracias liberais e de mercado não são, portanto, questionados. Ao longo
dos anos, a incorporação das críticas reformistas implicou apenas alguma adaptação ao
nível da metodologia, com a adoção de reformas mais graduais de “institucionalização
antes da liberalização” (Paris, 2004: 179) de forma a construir e reforçar instituições
de governação autónomas, eficazes e legítimas, antes da introdução de eleições winner-
takes-all e de reformas drásticas de abertura ao mercado. Esta estratégia mais sensível
aos efeitos perversos da “terapia de choque” mantinha, no entanto, os dois objetivos
globais que presidiam à implementação do paradigma desde o início da década de
noventa: (1) a reprodução do Estado ocidental weberiano na periferia com o reforço
da RSS, do Estado de direito e da boa governação (os três pilares mais salientes do
modelo na sua segunda década); e (2) a integração destes espaços na economia
capitalista mundial preservando genericamente o enquadramento neoliberal enquanto
acautelavam o seu impacto socioeconómico mais devastador, através de programas de
apoio ao desenvolvimento e de combate à pobreza (Harrison, 2004).
O desafio à estrutura global de poder: as críticas estruturais
As críticas estruturais prendem-se essencialmente com a ideologia subjacente ao
pensamento e à prática da consolidação da paz e o que esta (re)produz em termos de
funcionamento do sistema internacional. Ao contrário da perspetiva analisada em cima,
o objectivo dos autores críticos é transformativo, procurando explicitamente resistir a
formas hegemónicas de poder
8
. Este compromisso normativo ambiciona transformar
tanto o modelo em si por oposição a um ajustamento consentâneo com a preservação
do paradigma dominante da paz liberal, como o sistema mais alargado de relações de
poder por oposição à preservação do status quo.
De entre as críticas mais acutilantes, são de ressaltar as que versam sobre a matriz
ocidental do modelo hegemónico de consolidação da paz e sobre a sua natureza
hierárquica, centralizada e elitista. Numa perspectiva pós-colonial, a paz liberal é
entendida como promovendo a cultura, identidade e normas ocidentais em detrimento
de outras (Lidén, 2011: 57). As analogias entre a consolidação da paz e o colonialismo
são, por isso, recorrentes, considerando que ambos contribuem para o reforço da
assimetria de poder do Norte Global sobre o Sul Global. Os problemas estruturais da
conceção e implementação do modelo de consolidação da paz são, assim, vistos na sua
relação com a desigualdade do sistema internacional: as intervenções impõem um
modelo top-down, criam e reforçam uma hierarquia clara entre interventores e
intervencionados e atuam como instrumento da governação global do Ocidente na
periferia, consolidando a sua hegemonia, defendendo os seus interesses geoestratégicos
e promovendo os seus valores (Chandler, 2010). A sua função é então a de legitimação
da ordem mundial que se seguiu à vitória do bloco ocidental da Guerra Fria, ao servir os
interesses dos Estados ocidentais e das instituições financeiras internacionais por eles
controladas. Acresce ainda que as supostas soluções técnicas propostas e impostas pelo
8
Ver, por exemplo, Duffield, 2001; Pugh, 2005; Chandler, 2006; Richmond, 2006; Darby, 2009.
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Norte Global, como as estratégias neoliberais de reconstrução pós-bélica, reproduzem as
condições dos conflitos e causam a própria violência que pretendem resolver (Duffield,
2001; Pugh, 2005), contribuindo em última instância para a instabilidade do sistema.
Procurando superar esta lógica de imposição do internacional sobre o local, vários autores
têm explorado mais recentemente a ideia de um modelo de paz s-liberal. O contributo,
por exemplo, de Richmond (2011) e Mac Ginty (2011) centra-se essencialmente na teoria
da paz brida, em que a paz é um híbrido cumulativo e de longo prazo entre forças
endógenas e exógenas. Recusando tanto a universalidade da paz liberal (enquanto
princípio e prática) como a pureza romantizada do local, o hibridismo constata a agência
local para resistir, subverter, renegociar, ignorar, atrasar e produzir alternativas ao
paradigma vigente. O reconhecimento desta heterogeneidade abre caminho para se
pensar sobre as epistemologias do sul (Sousa Santos, 2014) e, em particular, sobre
construções do Estado e formas de governação de sociedades distintas das propostas
dentro do modelo hegemónico. A ideia central é a de que, prestando atenção a outras
cosmovisões culturalmente diferentes das ocidentais, é possível reconhecer e criar uma
multiplicidade de “pazes” que não se esgotam na hegemonia esmagadora da paz liberal.
Embora de natureza e com intuitos diferentes, estas críticas põem efetivamente em
causa: (1) a bondade do modelo de intervenção chamando a atenção para as
características imperialistas do paradigma e a forma como serve os interesses e agendas
particulares do Norte nos países do Sul; (2) a sua natureza contestando a centralidade
da segurança (que privilegia ordem e estabilidade em detrimento de emancipação) e a
sua essência elitista, tecnocrática e padronizada; (3) a sua legitimidade questionando
a presunção ocidental da universalidade do liberalismo, a sua abordagem eurocêntrica,
impositiva e constrangedora da participação local; e (4) a sua eficácia sublinhando a
manutenção das relações conflituosas, a dependência para com os atores externos e as
consequências nefastas da desvalorização do contributo endógeno.
Conclusão
Não há dúvida de que o modelo de consolidação da paz levado a cabo pelos vários atores
que assumem hoje a liderança do intervencionismo internacional é um projeto
particularmente ambicioso. De mero congelamento dos conflitos armados, passámos
aceleradamente para a tentativa de resolução das suas causas profundas, através de um
paradigma institucionalizado que alterou drasticamente os objetivos e funções
tradicionais da promoção da paz na periferia.
Os resultados deste projecto intervencionista ficaram, porém, muito aquém dos
desejados, em particular para os que anteviam com entusiasmo uma nova era capaz de
resolver os desafios à paz e à segurança internacionais do pós-Guerra Fria. Duas décadas
de críticas internas e externas ao modelo de consolidação da paz foram produzindo
algumas reformas no sentido de um modus operandi mais flexível e ocasionalmente mais
sensível a outras abordagens. Tais ajustes não chegaram, contudo, a questionar
verdadeiramente os pressupostos culturais e ideológicos deste paradigma, nem os
interesses do norte global que subjazem à atuação internacional em contextos de conflito
e pós-conflito. Na realidade, não conseguiram sequer resolver de forma satisfatória os
problemas mais conjunturais identificados pelos reformistas, como atestam os sucessivos
relatórios e avaliações das operações de paz conduzidos pelos próprios atores
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internacionais. De facto, a maior parte das críticas apontadas ao longo destes vinte anos
mantém ainda hoje a sua validade.
A apreciação da consolidação da paz enquanto cânone de resposta aos níveis extremos
de violência que assolam o sistema não pode, nesse sentido, deixar de revelar um
impacto no nimo dececionante e frequentemente contraproducente. Embora seja de
enaltecer a vontade de ir além do modelo militarizado de paz negativa assim como o
facto de esta traduzir um renovado compromisso da comunidade internacional para com
a periferia devastada pela violência e em necessidade de auxílio , o ceticismo
relativamente aos esforços internacionais tem claramente razão de ser. As sérias
limitações na forma como o próprio conceito tem sido pensado e materializado no
terreno, a que acrescem as denúncias quanto às agendas e interesses que são
verdadeiramente servidos com estas intervenções, são problemas particularmente
graves que estão ainda, de facto, muito longe de ser resolvidos.
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