OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 8, Nº. 1 (Maio-Outubro 2017), pp. 24-46
ABORDAGENS PACIFISTAS À RESOLUÇÃO DE CONFLITOS: UM PANORAMA
SOBRE O PACIFISMO DE PRINCÍPIOS
Gilberto Carvalho de Oliveira
gilbertooliv@gmail.com
Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil). Doutor
em Relações Internacionais - Política internacional e Resolução de Conflitos, Universidade de
Coimbra. Seus interesses de investigação concentram-se na área dos Estudos da Paz e Estudos
Críticos de Segurança, com ênfase nos seguintes temas particulares: operações de paz, crítica à
paz liberal, transformação de conflitos, economia política das “novas guerras”, ação estratégica
não violenta, teoria da securitização, teoria crítica das relações internacionais, conflito civil na
Somália.
Resumo
O artigo explora as abordagens pacifistas à resolução de conflitos dentro da sua vertente
baseada em princípios, isto é, dentro da vertente que justifica a norma pacifista com base no
sistema de crenças dos atores (princípios espirituais e éticos). Nesse sentido, o artigo faz um
breve panorama da história das principais tradições que moldam o debate sobre o pacifismo
e a não-violência, destacando, em seguida, as referências centrais do pacifismo de princípios
(Mahatma Ghandi e Martin Luther King), bem como as suas principais técnicas e métodos de
resolução de conflitos.
Palavras-chave
Não-violência; Pacifismo de princípios; Resolução de conflitos; satyagraha; Tensão criativa
Como citar este artigo
Oliveira, Gilberto Carvalho de (2017). "Abordagens pacifistas à resolução de conflitos: um
panorama sobre o pacifismo de princípios". JANUS.NET e-journal of International Relations,
Vol. 8, N.º 1, Maio-Outubro 2017. Consultado [online] em data da última consulta,
http://hdl.handle.net/11144/3031
Artigo recebido em 20 de Dezembro de 2016 e aceite para publicação em 15 de Fevereiro
de 2017
JANUS.NET, e-journal of International Relations
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Abordagens pacifistas à resolução de conflitos: um panorama sobre o pacifismo de princípios
Gilberto Carvalho de Oliveira
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ABORDAGENS PACIFISTAS À RESOLUÇÃO DE CONFLITOS: UM PANORAMA
SOBRE O PACIFISMO DE PRINCÍPIOS
Gilberto Carvalho de Oliveira
Introdução
Os interesses, nem sempre convergentes, dos diferentes indivíduos e grupos que
coexistem nas mais diversas esferas da vida política e social fazem com que os conflitos
surjam como uma decorrência praticamente inevitável das relações interpessoais,
intercomunitárias e interestaduais. Isto não significa que o conflito seja,
necessariamente, sinónimo de agressão e violência. Embora as tentativas de superar ou
resolver os conflitos envolvam, muitas vezes, o uso da força, é importante ter em mente
que existem formas de lidar com a conflitualidade dentro de lógicas e abordagens
alternativas. O pacifismo ou o amplo espectro das abordagens pacifistas, conforme se
pretende mostrar neste artigo adota uma perspetiva particularmente crítica e
contestadora a respeito do equacionamento do conflito através da violência. Como
alternativa, as abordagens pacifistas procuram defender ativamente a paz, rejeitar o uso
da força e identificar formas radicais de resolver, através de meios não violentos, os
problemas gerados pela opressão política, pelas injustiças sociais e pela guerra.
Dessa perspetiva, pode-se dizer que as abordagens pacifistas se definem por uma norma
essencial: perante os antagonismos interpessoais, intercomunitários ou interestaduais,
adote um comportamento social não violento.
1
Ainda que, do ponto de vista moral, esse
posicionamento pareça mais coerente e justificável do que a espiral de mortes, destruição
e outros males provocados pelos conflitos violentos, a visão que prevalece na construção
social dominante, pelo menos dentro da cultura ocidental, é a de que o uso da violência
e a guerra como a sua forma mais extrema de expressão é um facto da natureza,
um reflexo da luta pela sobrevivência que faz parte da essência das coisas e, como tal,
um acontecimento que não se subordina a considerações de ordem moral. Mesmo quando
o pensamento ocidental relativiza esse belicismo realista através da tradição da guerra
justa
2
introduzindo a noção de que a guerra deve ser moralmente justificável (jus ad
1
Para uma discussão mais elaborada dessa norma pacifista, de um ponto de vista sociológico, ver Galtung
(1959).
2
A tradição da guerra justa estabelece basicamente dois conjuntos de princípios constrangedores da guerra,
a fim de evitar que ela atinja proporções extremas e absolutas. O primeiro conjunto preocupa-se com a
justificação moral para se recorrer à guerra (jus ad bellum) e envolve princípios como a necessidade de
uma causa justa, a necessidade de uma autoridade legítima para decidir sobre a guerra, o compromisso
com uma intenção certa, a opção pela guerra apenas como último recurso, uma expectativa razoável de
que a paz seja um resultado plausível da guerra e uma expectativa geral de benefícios maior ou proporcional
aos possíveis danos causados. O segundo conjunto de princípios preocupa-se com a condução da guerra,
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bellum) e que, uma vez justificada, ela deve se submeter a limites e constrangimentos
na aplicação da força (jus in bello) a guerra não deixa de ser vista como um
instrumento legítimo da razão do Estado.
Assim, se de um lado a visão realista da guerra e os constrangimentos morais
introduzidos pela tradição da guerra justa ocupam as posições intelectuais e políticas
dominantes, de outro lado a atitude pacifista é deixada na margem oposta desse espectro
de posições, vista como uma postura idealista, como uma perspetiva ingênua e
enganadora da realidade. Desse ângulo, a preferência pela não-violência é
frequentemente confundida com passividade. Isto faz com que a norma pacifista pareça
conceptualmente incoerente e desprovida de senso prático, uma vez que essa suposta
passividade pode deixar a paz ainda mais distante ao estimular, em vez de desencorajar,
a agressividade de antagonistas dispostos a intervir de forma violenta. Para grande parte
dos críticos do pacifismo, portanto, o uso da força é um mal necessário, o único atalho
realista para se evitar um mal maior (Alexandra 2003, p. 589). As abordagens
comprometidas com a não-violência, por sua vez, procuram desafiar essa perspetiva ao
mostrar que, embora os conflitos façam parte da vida social e política, a violência pode
ser evitada e que os meios pacíficos podem ser convertidos em instrumentos ativos de
ação política (Björkqvist 2009). Defendendo atitudes como os protestos, os bloqueios, a
não-cooperação, a desobediência civil e um leque de outros meios não violentos para
superar os conflitos, tais abordagens tentam não fazer com que as intervenções
violentas percam a legitimidade e o apoio popular, mas também induzir os atores políticos
violentos a adotarem atitudes mais conciliatórias e propensas ao restabelecimento do
diálogo e da negociação. É nesse ponto onde reside o maior potencial de convergência
entre o pacifismo e o campo da resolução de conflitos.
Essa convergência, porém, não se dá numa superfície livre de fricções. Se de um lado o
senso comum tende a enxergar o pacifismo através de uma caricatura baseada em
posições fundamentalistas e num fanatismo anti bélico radical, de outro lado a resolução
de conflitos tenta consolidar-se como uma “ciência da paz”, buscando produzir uma base
consistente de conhecimento que supere as respostas supostamente “ingênuas” e
“idealistas” do ativismo pacifista. Apesar dessa tensão entre a agenda científica da
resolução de conflitos e a caricatura geralmente feita do pacifismo, que oculta a
complexidade e a diversidade do seu amplo espectro de posições, não se pode deixar de
notar que a resolução de conflitos, enquanto disciplina académica com um forte sentido
prático, deve muito às tradições do pacifismo e da não-violência (Dukes 1999, p. 169;
Ramsbotham, Woodhouse e Miall 2008, pp. 38-39). Os ideais e o ativismo de Gandhi e
Martin Luther King contra diversas formas de opressão, dominação e injustiças sociais,
bem como o esforço de Gene Sharp para tipificar e sistematizar a ação não violenta têm
inspirado alguns estudiosos da paz ao longo das últimas cinco cadas, provendo uma
fonte alternativa de conhecimento que oferece contribuições importantes para a busca
de métodos, procedimentos e mecanismos não violentos para lidar com os conflitos
sociais e políticos.
Ao trazer a discussão sobre o pacifismo para dentro do campo da resolução de conflitos,
alguns esclarecimentos iniciais se fazem necessários: como conceptualizar o pacifismo?
O que particulariza as abordagens pacifistas dentro do campo da resolução de conflitos?
procurando estabelecer limites para que ela seja lutada de forma justa (jus in bello) tais como a
discriminação entre os combatentes e os não-combatentes e a proporcionalidade na aplicação da força
(para uma discussão pormenorizada, ver Cady 2010, capítulo 2).
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Sobre essas questões, dois aspectos cruciais devem ser destacados. Em primeiro lugar,
é importante ter em mente que não existe um pacifismo, mas sim diferentes perspectivas
que podem ser definidas dentro de um espectro contínuo de posições que varia desde
um polo baseado em princípios (onde a norma pacifista é justificada em bases espirituais
e éticas) até um polo mais pragmático (onde a norma pacifista é justificada com base na
sua eficácia estratégica). Uma importante consequência dessa visão espectral do
pacifismo é que ela admite uma diversidade de posicionamentos: se é possível rejeitar a
violência com base em princípios sobre o que é certo ou errado (pacifismo de princípios),
é igualmente possível fazer a opção pela não-violência em bases práticas (pacifismo
pragmático), levando em conta não o que é absolutamente certo ou errado, mas o que
é melhor ou pior do ponto de vistra estratégico em dadas circunstâncias (Oliveira 2016,
pp. 3-7).
Em segundo lugar, é importante compreender de que forma as abordagens pacifistas se
diferenciam das abordagens tradicionais de resolução de conflitos. Nesse sentido, dois
elementos definidores do pacifismo são determinantes: o seu caráter não institucional e
o seu ímpeto ativista. Conforme observa Oliveira (2016, pp. 7-8),
“as abordagens pacifistas nascem na sociedade civil e são
conduzidas sob a forma de movimentos sociais fora do domínio da
política convencional e dos canais institucionalizados do Estado,
distinguindo-se, portanto, dos procedimentos oficiais e diplomáticos
de gestão de conflitos”.
Além disto, diferente das técnicas formais e institucionalizadas de resolução de conflitos
(como negociação e mediação), grande parte do ativismo pacifista procura criar tensões
e confrontações com o objetivo de dar visibilidade ao conflito, obter o apoio popular e
pressionar o oponente a ceder em suas posições. Embora nada impeça que eventuais
pressões sejam também aplicadas nos processos convencionais de resolução de conflitos,
não se pode deixar de notar que os métodos formais de negociação e mediação, em
geral, são orientados para a convergência e a produção de um acordo de paz e não para
a criação de tensões, confrontações, protestos, bloqueios, não-cooperação e resistência,
que fazem parte dos mecanismos de resolução de conflitos defendidos pelo ativismo
pacifista (Oliveira, 2016, p. 8).
Pode-se dizer, enfim, que o que particulariza as abordagens pacifistas dentro do campo
da resolução de conflitos é o ativismo não violento, o seu caráter não institucional, a
mobilização da sociedade civil e a lógica de ão direta; essas características, em seu
conjunto, possibilitam que a parte menos poderosa exponha o conflito e atraia o apoio
popular para a sua causa, funcionando como um mecanismo de pressão e resistência.
Quando se fala em abordagens pacifistas à resolução de conflitos, portanto, não se quer
referir a um debate abrangente sobre a paz, aos modelos institucionais e às organizações
para a manutenção da paz ou aos mecanismos estruturais de construção da paz e
prevenção de conflitos, mas sim ao tipo particular de abordagem derivada do ativismo e
das tradições de pensamento sobre o pacifismo e a não-violência.
O objetivo deste artigo é prover um panorama geral sobre as abordagens pacifistas à
resolução de conflitos, dentro da sua vertente baseada em princípios. Isto significa que
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o foco central do texto recai sobre o pacifismo de base espiritual ou moral, uma vez que
as abordagens pragmáticas foram tratadas por este autor em outro artigo (Oliveira
2016). Dentro desse propósito, o artigo procura, na primeira seção, traçar um breve
panorama da história das principais tradições que moldam o debate sobre o pacifismo e
a não-violência. A segunda seção concentra-se no pacifismo de princípios, examinando
as suas referências centrais Mahatma Ghandi e Martin Luther King − e destacando as
suas técnicas e os seus métodos principais de resolução de conflitos. Uma seção
conclusiva destaca os principais desafios e as necessidades de desenvolvimento futuros
dessa agenda de investigação.
Breve história das abordagens pacifistas
A tradição do pacifismo e da não-violência nasce profundamente mergulhada no contexto
belicista das culturas antigas e desenvolve-se tentando desafiar, com base em princípios
morais ou religiosos, a visão realista da guerra. Se os sucessivos confrontos entre as
cidades-estado gregas, as campanhas de Alexandre o Grande e a expansão de Roma
parecem comprovar a propensão realista da humanidade para a dominação através da
guerra, toda essa tradição é confrontada na prática por aqueles que talvez sejam os
primeiros ativistas do pacifismo na história ocidental: os cristãos primitivos. Com
raríssimas exceções, os primeiros cristãos abominam a guerra, recusam a prestação de
serviço militar e negam qualquer tipo de subserviência ao imperador romano, levando
sua posição pacifista ao extremo da o-resistência, ainda que isto lhes custe a mais
cruel perseguição (Cady 2010, p. 6). Essa vertente original do pacifismo cristão, porém,
está longe de traduzir a noção de paz que se afirma com a consolidação do poder da
Igreja Católica no mundo medieval. A aliança entre o império e a igreja faz com que os
soldados, então convertidos ao cristianismo, passem a lutar nas chamadas guerras justas
e nas guerras sagradas. No período medieval, as guerras multiplicam-se o dentro
do próprio mundo cristão, lutadas entre príncipes que justificam suas causas como
“justas”, mas também entre cristãos e muçulmanos, nas chamadas cruzadas, onde as
motivações vão além das causas justas para serem justificadas em nome de Deus e de
seus representantes na terra. Assim, entre os primórdios do cristianismo e o fim da Idade
Média, o posicionamento cristão em relação à guerra passa, conforme sintetiza Bainton
(1963), por três atitudes principais: o pacifismo e a não-resistência, o envolvimento
relutante nas guerras justas e a participação apaixonada nas guerras sagradas.
Se as guerras justas e as guerras sagradas inundam o mundo medieval, deixando a
atitude pacifista no passado, presa ao contexto original do cristianismo, a emergência de
alguns setores reformistas da igreja no século dezasseis produz um renascimento do
pacifismo cristão. Ao examinar os sentidos da não-violência, Sharp (1959, pp. 46-47)
observa que o ressurgimento do pacifismo entre esses setores reformistas que ainda
hoje inspira grupos como os Menonitas, por exemplo
3
produz uma postura de repúdio
da ordem social dominante e do aparato coercivo do Estado, que se traduz em atitudes
como a condenação da prestação de serviço militar e da participação em guerras, a
renúncia ao exercício de funções nas estruturas oficiais do governo e à participação em
3
Os Menonitas, originalmente conhecidos por Anabatistas, surgiram no contexto reformista protestante na
Europa do século XVI. Desde as origens, assumiram um compromisso absoluto com a paz e a não-violência
herdado da não-resistência dos primeiros cristãos, rejeitando o uso de qualquer tipo de arma, inclusive em
autodefesa ou na proteção dos familiares e dos vizinhos. Para uma história da Igreja Menonita, ver Miller
(2000, pp 3-8).
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eleições, e a rejeição do aparato judicial do Estado. Esses grupos condenam, por
princípio, qualquer forma de violência física e desaprovam qualquer tipo de resistência
contra as situações de opressão, mesmo através de técnicas não-violentas, considerando
que a melhor forma de influenciar e transformar o mundo resulta dos seus atos de boa
vontade, das suas exortações e dos seus exemplos.
Essa tradição pacifista cristã ressurge de forma significativa no contexto da luta pela
abolição da escravidão e da guerra civil americana. Adin Ballou provê a referência clássica
dessa posição pacifista através da obra Não-Resistência Cristã” (Christian Non-
Resistance), publicada em 1846. O autor define o pacifismo cristão, ou mais
precisamente a não-resistência cristã, através de um conjunto de comportamentos, entre
os quais se destaca a rejeição absoluta a qualquer ato que provoque a morte ou o
ferimento de seres humanos, seja em autodefesa, em defesa da família ou na proteção
de qualquer bem ou valor. Dessa primeira regra, Ballou deriva uma série de outros
comportamentos, tais como não integrar qualquer força armada ou micia como oficial
ou soldado; não eleger, aprovar ou integrar qualquer governo cuja constituição ou
aparato legal autorize ou tolere a guerra, a escravidão, a pena de morte ou qualquer
atitude que provoque dano ou ferimento às pessoas; não participar de qualquer
corporação oficial ou corpo político cujos regulamentos autorizem ou obriguem seus
funcionários a prestarem serviços compulsórios a governos de constituição violenta
(Ballou 1846, pp. 26-28).
O pacifismo de Ballou, que segundo alguns autores é o primeiro a adotar o termo “não-
resistência” como rótulo (Koonts e Alexis-Baker, 2009, p. 254), dialoga não com
outros pacifistas americanos como William Garrison, que rejeita absolutamente a
guerra e o uso da força militar, seja ofensivamente, seja defensivamente (1966, p. 125)
mas também com a obra do escritor russo León Tolstoy, com quem Ballou discute suas
ideias em cartas trocadas em 1889-1890 (Carpenter 1931). Aproximando-se de Ballou
através de uma interpretação particular da mensagem cristã que reprova não o
assassinato e o ferimento de seres humanos, mas também qualquer forma de violência,
Tolstoy considera que os governos e seus mecanismos de controlo social estão eles
próprios assentados no uso da violência através das suas forças armadas (1966, p. 161)
e, por essa razão, situa ao vel da consciência de cada indivíduo, e não ao vel da
política e das estruturas governamentais, a fonte primordial do compromisso com a não-
violência. Segundo as palavras do próprio escritor russo, “a recusa dos indivíduos de
tomar parte do serviço militar” é “o caminho mais fácil e certo para o desarmamento
universal” (1968a, p. 113) e constitui a “chave para a solução da questão” da guerra e
de outras formas de violência (1968b, p. 15). Se nada desafia mais a vontade de Deus
do que matar alguém, diz Tolstoy, não se pode obedecer um homem que dá uma ordem
de matar: “um cristão não pode ser um assassino e, portanto, não pode ser um soldado”
(1968c, p. 37).
Ainda no contexto americano de meados do século dezanove, Henry Thoreau também
desponta no movimento pacifista ao defender a ideia da “desobediência civil” ou,
conforme o título do ensaio publicado em 1849, “desobediência ao governo civil”. Através
de um discurso que enfatiza a desobediência e a não cooperação, Thoreau defende o
afastamento do governo, a renúncia a cargos oficiais e a recusa ao pagamento de taxas
e impostos que, do seu ponto de vista, são as fontes vitais de recursos que financiam a
guerra e a escravidão. Conforme observa seu biógrafo Robert Richardson Jr. (1986, p.
127), Thoreau aproxima-se da ideia de Ballou de que o governo nada mais é do que “a
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vontade de um homem de exercer absoluta autoridade sobre outro homem”, mas
distancia-se em relação às bases invocadas para essa afirmação: a ênfase de Thoreau,
tanto do ponto de vista lógico quanto retórico, não é religiosa, mas moral. Para o autor,
as pessoas não se obrigam a seguir cegamente seus governos se elas acreditam que as
regras e as leis desse governo são injustas.
O que é importante observar, com base no que foi até aqui exposto, é que o pacifismo
sectário religioso faz da atitude não violenta uma questão de vocação pessoal, uma
questão de consciência individual fundamentada nas escrituras sagradas e na autoridade
das fontes eclesiásticas. Esse pacifismo, nos termos defendidos por Ballou ou Tolstoy por
exemplo, aproxima-se muitas vezes de uma espécie de anarquismo ao ver o Estado como
uma forma de institucionalização da violência, como uma forma de organização política
que usa a opressão e a agressão e a guerra como as suas expressões máximas como
instrumentos de dominação e controlo social. Por esta razão, essa vertente do pacifismo
rejeita o Estado e seu aparato coercivo, bem como a participação na política
institucionalizada, e defende uma espécie de desobediência civil fundada na primazia da
autoridade divina. Muste, outro conhecido pacifista cristão americano, forja o termo
“Desobediência Sagrada” como uma virtude individual, necessária à auto preservação
espiritual, numa era em que o consentimento, o conformismo e o alinhamento são os
instrumentos usados pelo governo totalitário para sujeitar os homens e os envolver numa
guerra permanente” (1992, p. 208).
A rejeição do Estado hierárquico e centralizado e a saída da vida política defendida pela
não-resistência cristã têm sido vistas por alguns analistas, conforme observa Atack
(2012, p. 172), como uma espécie de escapismo; ela não consegue desafiar de forma
ativa as estruturas sociais que constituem os sistemas que produzem a opressão, as
injustiças e a guerra. O que esses analistas querem enfatizar é que existe uma lacuna
entre o “pacifismo de consciência individual” e a crítica social e política ao sistema da
guerra que não consegue ser superada pela não-resistência cristã. Em relação a esse
aspeto, os desenvolvimentos posteriores ocorridos na tradição baseada em princípios
mostram posições menos absolutas do pacifismo, conforme se observa no ativismo de
Mahatma Ghandi e de outros proponentes da não-violência em meados do século vinte,
como Martin Luther King. Essas figuras icónicas do pacifismo do último século fornecem
exemplos importantes de como a consciência religiosa individual pode ser criativamente
combinada com uma inspiração ético-filosófica universalizante e com uma crítica social
e política radical ao status quo, levando a uma abordagem muito mais complexa,
nuançada e integrada do pacifismo do que as posições absolutas tentam prover. Ghandi,
talvez mais do que qualquer outro ativista, consegue trazer à tona, através de um criativo
processo de síntese de várias referências asceticismo antigo indiano, hinduísmo,
anarquismo, Sermão da Montanha, Bhagavad-Gita e pragmatismo político (MacQueen
2007, p. 329) um sistema filosófico abrangente e complexo que vai além da não-
resistência cristã e exerce um impacto significativo na política mundial em meados do
século vinte. Designada por Ghandi através do termo satyagraha, sua abordagem provê
uma importante ligação entre o compromisso moral e espiritual com a não-violência e a
as possibilidades pragmáticas de resistência não-violenta em massa contra a opressão
política e social, sem que isto implique numa negação absoluta dos instrumentos de força
(Atack 2012, p. 173). Diferentemente do pacifismo imediatista de Tolstoy e de outros
pacifistas cristãos, Gandhi defende, segundo as interpretações de Atack (2012, p. 159)
e Roberts (2009), um pacifismo de “substituição progressiva”, o que implica em aceitar
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que a substituição da violência pela não-violência é um processo transformativo de longo
prazo. Da perspetiva de Gandhi, observa Atack, até que uma sociedade pacifista ou não
violenta seja alcançada (objetivo que ele considera realizável através da crescente
expansão da prática da não-violência a todas as esferas da vida política e social, inclusive
nas relações internacionais), a existência das forças armadas e o direito do Estado de
empregar a violência pode ser tolerado em determinadas circunstâncias (por exemplo,
em autodefesa contra agressões externas em sociedades ainda não preparadas para a
resistência não violenta, ou em situações de manutenção da ordem social e do estado de
direito, quando isto beneficia todos os cidadãos e não fere o contrato social).
Martin Luther King, em sua campanha em prol dos direitos civis dos negros americanos
nas décadas de 1950 e 1960, retoma o pacifismo cristão e, numa síntese com a
satyagraha de Ghandi e a filosofia do amor incondicional expressa na palavra grega
ágape (1957; 1961), defende a resistência não violenta e a desobediência civil, e forja o
conceito que é central na sua filosofia de mudança social por meios não violentos: a
criação da comunidade amada” (beloved community). Nesse sentido, King considera
que a resistência não violenta e a desobediência civil não devem ser usadas como uma
via para humilhar ou derrotar o oponente, mas sim como uma forma de ganhar a sua
amizade e a sua compreensão. O objetivo, segundo King, é gerar o que ele chama de
“tensão criativa”, isto é, trazer as tensões e contradições à superfície, a fim de expor
publicamente os ressentimentos mais profundos, mostrar as injustiças presentes na
situação, tocar a consciência dos oponentes e do público em geral e, a partir do
desconforto gerado por essa crise, levar a uma situação em que as pessoas passem a
desejar a resolução do conflito e a valorizar a negociação (King 1963). A consequência
esperada, portanto, deve ser a reconciliação e a criação de uma “comunidade amada”,
unida por uma afeição incondicional inclusive entre aqueles que anteriormente se
opunham e tentavam se desafiar. A desobediência civil e a resistência não violenta, desta
perspetiva, devem ser usadas contra sistemas de opressão e injustiça, não contra
indivíduos, e a vitória, quando ocorre, é de um sistema justo sobre um sistema injusto e
não de um homem sobre o outro (King 1957, pp. 12-13).
O que esta breve reconstituição histórica deixa ver é que, mesmo dentro da tradição
baseada em princípios, as ideias do pacifismo e da não-violência e a sua relação com a
guerra não se reduzem a um denominador. um espectro de pontos de vista
distintos que tornam essas ideias complexas e cheias de nuanças. Dentro das bases
espirituais de onde emerge a não-resistência dos primeiros cristãos, dos grupos sectários
reformistas como os Menonitas e os Amish e de pacifistas cristãos como Ballou, Garrison
e Tolstoy, surge uma espécie de “pacifismo absoluto” que é visto como consequência
inevitável da palavra de Deus e de uma interpretação particular dos textos sagrados,
segundo a qual o assassinato de seres humanos e a violência são pecados que agridem
os princípios nucleares do cristianismo.
4
Algumas interpretações das filosofias ou
tradições espirituais asiáticas, como o budismo por exemplo, expandem essa norma
pacifista para reprovar não qualquer tipo de ofensa sica e psicológica contra os seres
humanos, mas também a violência contra todas as demais criaturas vivas e, em alguns
4
É importante destacar que se trata de uma interpretação particular porque do mesmo modo que é fácil para
alguns encontrar nas escrituras passagens que orientam a consciência pacifista, é possível para outros
encontrar citações que justificam o uso da violência em nome da divindade (as Cruzadas ilustram bem esse
aspeto). Isto ocorre não nas interpretações dos textos-base do cristianismo (Antigo e Novo
Testamentos), mas também nas interpretações de outros livros sagrados como o Corão, Lun Yu, Wu Ching,
Bhagavad Gita, Tanakh, Talmud, Tao-te-Ching, Guru Granth Sahib e Veda (Johansen 2009, p. 145).
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casos, contra o ecossistema global como um todo. Um exemplo claro desse tipo de
posicionamento é provido por Dalai Lama, cujas bases espirituais budistas não
proíbem o uso de qualquer forma de violência física contra a ocupação chinesa em curso
no Tibete (Howes 2013, p. 429), mas também nutrem uma reverência absoluta pelos
seres vivos que resulta numa conceção de responsabilidade universal pela não-violência
em torno da humanidade e da natureza como um todo (Jah 2003, p. 12). Se esses
exemplos mostram que o pacifismo absoluto decorre de uma moralidade fundada em
tradições espirituais e textos sagrados, nada impede que o mesmo tipo de convicção
possa ser derivado de uma moralidade secular fundada na razão. Conforme argumenta
Cady (2010), o “imperativo categórico” de Kant
5
segundo o qual todos os homens
devem tratar uns aos outros com dignidade e nunca como meios para outros fins pode
ser interpretado como um repúdio absoluto a qualquer atitude de violência física ou
psicológica contra seres humanos, justificado através de uma norma de conduta objetiva
e racional e não através de um princípio divino. Qualquer que seja a base reclamada para
justificar essas posições, o ponto-chave é que a adoção do pacifismo absoluto depende
de uma espécie de conversão individual, de uma conscientização pessoal, profundamente
enraizada numa doutrina espiritual ou filosófica, quanto ao valor supremo da vida.
Embora altamente influenciados por suas respetivas heranças espirituais e por seus
ideais éticos sobre a vida em sociedade, tanto Gandhi quanto King afastam-se desse polo
absoluto do pacifismo. Nesse sentido, eles assumem um compromisso com a não-
violência em suas lutas sociais e políticas mais imediatas e, ao mesmo tempo, nutrem
um compromisso mais cosmopolita e de longo prazo por um mundo pacífico a ser
alcançado através da expansão progressiva das práticas da não-violência a todas as
esferas da vida social e política, inclusive como meio de defesa nacional (Gandhi 2005,
pp. 95, 98) e instrumento de resolução de conflitos em escala internacional (King 1967,
p. 253). Enquanto as sociedades não atingem esse estágio mais avançado, ambos
admitem que a adoção de meios o violentos pelas organizações da sociedade civil e
pelos movimentos sociais em suas lutas locais precisa conviver com o uso eventual da
força pelos Estados em situações específicas, como em autodefesa ou na manutenção do
estado de direito, em estrita conformidade com a constituição nacional e com o direito
internacional (Atack 2012, p. 160). Assim, nem sempre o compromisso com a não-
violência em bases religiosas e morais implica numa rejeição absoluta e imediata a todas
as formas de violência; a “substituição progressiva” traduz essa posição ao mostrar que
a filosofia da não-violência pode envolver uma visão de longo prazo que não requer uma
rejeição completa e imediata de todas as formas de violência estatal, enquanto não se
completa o processo de aprendizado social capaz de forjar uma consciência mais plena e
abrangente em favor de uma sociedade não violenta.
Procurando superar e ao mesmo tempo contestar o pacifismo de princípios, o estágio
mais recente dessa narrativa histórica tem tentado enfatizar o caráter pragmático e
5
O “imperativo categóricoé concebido por Kant como o “princípio supremo da moralidade”. Esse princípio
não é derivado de nenhuma ordem divina, mas sim da razão, sendo concebido pelo filósofo como uma lei
objetiva, máxima e incondicional, que serve para guiar as ações de todos os seres racionais. Isto faz de
cada indivíduo um agente moral, livre e independente, capaz de derivar da sua própria razão uma norma
universalizável para orientar a sua conduta prática, sem a necessidade de qualquer autoridade externa,
inclusive a divina. O imperativo categórico é formulado através de diversas máximas; no sentido
mencionado neste artigo, dentro do argumento de Cady acima referido, o imperativo é expresso por Kant
através da seguinte fórmula: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na
pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (Kant
2007, p. 69).
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estratégico da ação não violenta. Ao contrário da rejeição da violência em bases
espirituais ou morais, essa vertente mais pragmática recorre a argumentos políticos e à
teoria das fontes de poder para compreender a lógica e a eficácia da não-violência. Nesse
sentido, o trabalho pioneiro de Gene Sharp, ainda no final dos anos 1960, abre o caminho
para toda uma corrente de pensamento que concentra os seus esforços de teorização da
não-violência com base na eficácia política dos seus meios de ação e não nos sistemas
de crenças dos atores. Conforme destaca Sharp, “a luta não violenta é identificada pelo
que as pessoas fazem, não pelo que elas acreditam” (2005, p. 19). Desse modo, através
de uma reavaliação pragmática dos escritos de Gandhi e da análise quantitativa e
qualitativa de um grande número de casos históricos de ação não violenta em rebeliões
coloniais, conflitos internacionais, lutas pela independência, resistências contra
ditaduras, genocídios e ocupações estrangeiras, movimentos anti escravidão,
movimentos em prol dos direitos dos trabalhadores, das mulheres e de outros direitos
civis, a tradição pragmática tem buscado identificar elementos que permitam construir
uma teoria da não-violência centrada no potencial de poder das pessoas e nas
possibilidades de converter esse potencial em poder efetivo, a fim de provocar mudanças
sociais e políticas fora dos canais institucionais convencionais, sem recorrer ao uso da
violência sica (Sharp 2005, p. 19; Howes 2013, p. 428). Considerando que o foco deste
artigo recai sobre o pacifismo de princípios, essa tradição pragmática não será aqui
examinada.
6
Técnicas e métodos do pacifismo de princípios
A fim de prover uma exposição mais organizada e didática das técnicas e métodos
empregados nas abordagens pacifistas, esta seção concentra-se na tradição baseada em
princípios, embora seja importante reconhecer que o pacifismo de princípios e o pacifismo
pragmático não demarcam dois polos irreconciliáveis e mutuamente excludentes.
Conforme se discutiu nas seções anteriores, as abordagens pacifistas formam um
espectro contínuo de posições que admite não apenas pontos de vistas absolutos, mas
também posições mais nuançadas, flexíveis e mescladas. Embora esta seção seja
estruturada em torno das referências centrais do pacifismo de princípios, isto não
significa que os meios defendidos em cada abordagem devam ser vistos de forma isolada
e independente. Existe uma porosidade entre essas abordagens, de modo que as suas
técnicas e os seus métodos são muitas vezes coincidentes, parcialmente coincidentes ou
complementares. Desse modo, é importante ter em mente que o que se altera
fundamentalmente entre as abordagens baseadas em princípios e as abordagens
pragmáticas são as razões evocadas para justificar a norma pacifista e as estratégias
defendidas para a sua aplicação, e não necessariamente as suas técnicas e métodos.
Mahatma Gandhi e Martin Luther King são geralmente considerados os autores mais
representativos do pacifismo de princípios. Embora tanto Gandhi quanto King incorporem
um viés pragmático às suas abordagens à resolução de conflitos, suas atitudes e seus
escritos são fortemente influenciados por suas respetivas tradições espirituais, por suas
visões e ideais sobre a vida em sociedade e pelo compromisso ético com a emergência
de uma nova ordem social. Desse modo, embora devam ser reconhecidas as posições
multifacetadas desses autores, esta seção segue a tendência dominante na bibliografia
das abordagens pacifistas, classificando-os dentro da tradição baseada em princípios. Ao
6
Para um panorama sobre essa vertente pragmática, ver Oliveira (2016).
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final desta seção, espera-se alcançar uma visão abrangente das suas abordagens à
resolução de conflitos: as técnicas da satyagraha defendida por Gandhi e da “tensão
criativa” proposta por King.
Antes de prosseguir, é importante esclarecer os sentidos dos termos “técnica” e “método”
adotados nesta seção. Embora essas palavras sejam geralmente usadas de forma
intercambiável, alguns dicionários definem a técnica como um conjunto de
conhecimentos, processos ou princípios práticos para se obter um resultado, enquanto o
método é definido num nível operacional mais baixo, como a maneira de fazer, como um
modo de proceder. Dessa perspetiva, a técnica é vista de um ângulo mais abrangente,
englobando um conjunto de métodos (ver, por exemplo, os dicionários Porto Editora ou
Michaelis). Gene Sharp emprega esses dois termos num sentido que reflete essas
definições. Segundo o autor, a ação não violenta é uma técnica que engloba um amplo
conjunto de métodos de protesto, não-cooperação e intervenção (2005, p. 49). Outros
autores definem a satyagraha de Gandhi como uma técnica social de ação não violenta
que envolve diversos métodos como a o-cooperação, a desobediência civil, a greve ou
o bloqueio (Bondurant 1988, pp. 3-4, 12; Jah 2003, p. 27), o que indica uma
compreensão semelhante sobre a relação entre técnica e método. Esta seção segue essas
indicações, empregando o termo técnica num sentido mais amplo para denominar o
conjunto de conhecimentos, meios e habilidades para se atingir um fim, enquanto o
termo método é compreendido num sentido operacional mais específico para designar
cada tipo de procedimento particular empregado na realização de uma técnica.
Mahatma Gandhi e a Força da Verdade: a Satyagraha
O ativismo de Gandhi tem raízes profundas na desobediência civil, mas vai muito além
da forma como essa noção se desenvolve dentro da tradição da não-resistência cristã e
do pacifismo de consciência moral de Thoreau. Conforme discutiu-se no panorama
histórico da seção anterior, a desobediência civil surge fortemente associada à ideia de
que as pessoas não se obrigam a obedecer cegamente seus governos se elas acreditam,
por razões religiosas ou por convicções morais, que as regras, as leis e as práticas de
controlo social desses governos ofendem os princípios supremos das escrituras sagradas
(como defendem Ballou e Tolstoy) ou parecem injustas (como defende Thoreau). Dentro
da obra e do ativismo desses autores, a desobediência civil é geralmente tratada como
uma consideração de ordem individual: a recusa ou a resistência a determinadas leis é
justificável na medida em que elas ofendem a consciência pessoal ou parecem
questionáveis à luz de uma “lei superior” que, aos olhos de cada indivíduo, assumem
uma prioridade absoluta (como a lei de Deus ou algum princípio moral absoluto). Desse
modo, a ideia da desobediência civil surge, conforme destaca Bondurant (1988, p. 3),
num contexto de competição entre valores espirituais ou morais conflituantes e a solução
desse dilema espiritual ou metafísico é encontrada, conforme defendem os chamados
pacifistas de consciência, numa escolha íntima e individual.
O que é absolutamente marcante no ativismo de Gandhi ao longo das suas
experimentações com a ação não violenta, primeiramente na África do Sul e
posteriormente em diversos movimentos sociais e na luta pela independência da Índia,
é que a desobediência civil deixa de ser uma questão de consciência individual para ser
reelaborada dentro da consciência coletiva no contexto de grandes mobilizações
populares. Dentro dessa expansão conceptual surge uma técnica muito mais complexa e
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abrangente, que Gandhi batiza de satyagraha, que vai além da resistência passiva e
coloca a desobediência civil dentro de um conjunto mais amplo de métodos que inclui
protestos, boicotes, greves, não-cooperação, usurpação de funções governamentais e
construção de instituições paralelas. Proveniente do sânscrito “satya” (verdade) e
“agrah” (força, insistência) a satyagraha (força da verdade) é concebida como uma
técnica de resolução de conflitos através do mecanismo de conversão. Isto significa que
a satyagraha não se limita à sua dimensão de resistência, mas pretende atuar na
autotransformação das partes envolvidas no conflito através da conversão dos seus
“corações e mentes” pela sinceridade e pela verdade. Trata-se, portanto, de uma técnica
não violenta de resolução de conflitos que busca a conversão das partes através da busca
da verdade (Jha 2003, p. 27), trazendo à tona o que parece “errado” ou permanece
invisível na situação (injustiças, desigualdades, opressões, restrições à liberdade, etc.).
Segundo Jha (2003, p. 25), o que é particularmente único na contribuição de Gandhi é
que princípios tradicionalmente restritos a uma esfera íntima e individual, como a busca
da verdade e a rejeição à violência, são transformados num instrumento de mobilização
de massas.
aí uma clara dimensão pragmática, mas há também um compromisso com a verdade
que, em Gandhi, tem uma forte dimensão espiritual. A satyagraha é literalmente fundada
na “força da verdade” e é através de uma noção espiritual de verdade legada pelo
mosaico religioso que lhe serve de influência e percebida como um conceito absoluto e
divino que Gandhi justifica a não-violência: a “Verdade talvez seja o mais importante
nome de Deus” e “onde Verdade, conhecimento” (Gandhi 2005, pp. 39-40); o
homem, porém, é incapaz de conhecer a verdade nesse estado de pureza, de atingir a
verdade em tal perfeição (Gandhi 1996, p. 37). Assim, “porque o homem não é capaz de
conhecer a verdade absoluta”, ele não é “competente para punir” (Gandhi 1996, p. 51),
ou seja, ele não pode justificar a violência em nome do que o consegue absolutamente
conhecer. Para Gandhi, portanto, a o-violência (ahimsa) e a verdade (satya) são tão
interligadas “que elas parecem ser as duas faces de uma mesma moeda”: a não-violência
é o meio e a verdade é o fim (1996: 46). Segundo a interpretação de Bondurant (1988,
pp. 16-17), o que Gandhi quer dizer é que, perante a incapacidade de conhecer a verdade
em seu estado de perfeição, as pessoas devem manter uma abertura permanente para
aqueles que pensam diferente; por esta razão, em vez de tentar resolver as diferenças
usando a violência contra o oponente, os homens devem tentar livrar-se do erro através
da prática da paciência e da compaixão. É através desse caminho que as pessoas se
aproximam da verdade (ou seja, de Deus). Em suma, a satyagraha é uma força na
direção da verdade, é um impulso para seguir a verdade como uma questão de princípio,
a fim de reduzir o impacto negativo dos erros e tentar chegar o mais próximo possível
da perfeição (Gandhi 1996, p. 37). Ainda que inatingível em seu sentido absoluto (ou
seja, divino), a verdade funciona como um princípio operativo, como uma norma
reguladora da conduta das partes envolvidas no conflito.
Se a abordagem de Gandhi se sustenta em alicerces fortemente cimentados em princípios
espirituais e morais, é interessante notar que as suas experimentações com a satyagraha
se desenvolvem dentro de um quadro igualmente pragmático e estratégico. A satyagraha
não surge pronta na obra e no ativismo de Gandhi. Ao contrário, ela é desenvolvida ao
longo de quase meio século através de progressos e retrocessos nas experiências de
resistência conduzidas na África do Sul e na Índia. O nascimento da satyagraha ocorre
na África do Sul, por volta de 1908, no contexto do movimento de resistência liderado
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por Gandhi contra as políticas discriminatórias dos colonizadores britânicos voltadas para
a comunidade de indianos naquele país africano. Após essa experiência inicial na África
do Sul, a satyagraha é implantada na Índia, não em diversos movimentos por reformas
sociais, mas principalmente na luta pela independência do país e na guerra civil entre
hindus e muçulmanos no final da década de 1940. Um dos argumentos centrais do
ativismo de Gandhi, conforme ele explica em toda a sua simplicidade, é o seguinte:
Quando o meu pai impõe uma lei que parece repugnante à minha
consciência, eu penso que o caminho menos drástico a adotar é
respeitosamente dizer a ele: ‘pai, eu não posso obedecer isto’… Eu
tenho submetido esse argumento à aceitação dos indianos e de
todas as pessoas. Em vez de me sentir furioso com meu pai, eu
devia respeitosamente dizer-lhe ‘eu não posso obedecer essa lei’.
Não vejo nada de errado nisto. Se não é errado dizer isto ao meu
pai, não me parece errado dizer isto a um amigo ou a um
governo…”. (Gandhi 1996, pp. 62-63)
Portanto, o que Gandhi propõe através da satyagraha é uma técnica de resistência
através da “desobediência respeitosa” aos opressores. Isto implica em ser transparente
e verdadeiro (ou seja, ser sincero e honesto em seus propósitos), em nunca usar a
violência sica, em substituir o ódio pelo amor e pela compaixão, em não humilhar o
oponente, e em assumir as eventuais punições e sofrimentos que possam resultar dessa
atitude (Gandhi 1996, pp. 80-83). Para Gandhi, a satyagraha é “um teste de sinceridade”
que envolve “um autossacrifício sólido e silencioso”; é na “humildade”, na
“autocontenção” e na “correção de atitudes” onde reside a maior força da satyagraha,
pois é através dessas atitudes que a verdade e a sinceridade de propósitos o mostradas
aos oponentes (1996, pp. 48-49).
A partir dessas indicações, algumas delimitações conceptuais são importantes. Em
primeiro lugar, a satyagraha não se confunde com a resistência passiva enquanto técnica
de ação não violenta. Embora Gandhi adote o termo resistência passiva no início de seu
ativismo na África do Sul, ele logo rejeita essa nomenclatura por duas razões principais.
Primeiramente, o termo resistência passiva não traduz o poder ativo da não-violência.
Em segundo lugar, a resistência passiva que Gandhi observa no movimento sufragista
das mulheres
7
e no movimento não conformista
8
do final do século dezanove e início do
século vinte na Grã-Bretanha instrumentaliza a não-violência como uma tática
oportunista que, do seu ponto de vista, atende interesses egoístas e muda de acordo
com a conveniência (Gandhi 1996, pp. 51-52). Ao comentar esses aspetos, Dalton (1996,
7
Ativismo em defesa do direito ao voto feminino na Grã-Bretanha, conduzido pelo movimento intitulado
Women´s Social and Political Union, também conhecido por suffragettes, na primeira década do século XX.
8
Aqui, Gandhi refere-se à campanha de resistência passiva conduzida pelas chamadas igrejas não
conformistas da Inglaterra e de Gales, integradas por protestantes que, não sendo membros da Igreja
Anglicana (como Metodistas, Batistas, Congregacionalistas, etc.), contestavam o Education Act de 1902.
Essa lei, que integrava as escolas religiosas ao sistema estatal de ensino e passava a cobrar taxas para a
sua manutenção e funcionamento, era percebida pelas igrejas não conformistas como uma fonte de
privilégios no sistema educacional para a igreja oficial anglicana. Organizado em torno do National Passive
Resistance Committee, o movimento de resistência dos não conformistas, que se caracterizava basicamente
pela recusa de pagar essas taxas de educação, manteve-se ativo por cerca de quatro anos, produzindo
reações das autoridades britânicas que levaram, dependendo do caso, a confisco de bens, leilões de
propriedades e prisões das pessoas envolvidas nos atos de resistência (Hunt 2005, pp. 167-171).
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p. 10) explica que a intenção de Gandhi é mostrar que a resistência passiva é não violenta
apenas na forma, mas não em substância. Os movimentos de resistência passiva
criticados por Gandhi geralmente incorporam discursos de ódio e desrespeito ao
oponente que não se coadunam com a sua visão de ação não violenta, daí a sua opção
de desenvolver uma técnica própria compatível com a sua base espiritual e moral.
Embora essa crítica pareça motivada por uma mera questão de princípios, as suas
implicações estratégicas são cruciais dentro da visão de Gandhi sobre a resolução de
conflitos. Considerando que a satyagraha opera através do mecanismo da conversão, as
características defendidas por Gandhi a sinceridade, a humildade, a civilidade, a
disciplina, o respeito pelo oponente, o controlo pessoal e a disposição para o
autossacrifício são virtudes fundamentais para a efetividade do mecanismo de
conversão. É através da manifestação dessas virtudes que os grupos de resistência
conseguem “desarmar a raiva e o ódio” do oponente disposto a usar a força (Gandhi
1996, p. 47).
A segunda delimitação conceptual importante refere-se à relação entre a satyagraha, a
desobediência civil e a não-cooperação. Embora Gandhi não se refira textualmente à
satyagraha como “técnica” e à desobediência civil e à não-cooperação como “métodos”,
é nesse sentido que ele hierarquiza esses termos. Para ele, a desobediência civil
(entendida como a violação civil de decretos legais considerados amorais) e a não-
cooperação (entendida como a recusa popular de cooperar com Estados considerados
corruptos e opressores) são “ramos” da satyagraha que, por sua vez, engloba todo o
conjunto de formas “de resistência não violenta que reivindicam a Verdade” (Gandhi
1996, p. 51). Nesse sentido, pode-se afirmar que a satyagraha é uma técnica social de
ação não violenta, tendo a verdade por princípio, que pode ser colocada em prática
através de um conjunto de métodos, entre os quais a não-cooperação e a desobediência
civil.
Em seu abrangente estudo sobre a satyagraha, Bondurant destaca o facto de os escritos
de Gandhi formarem um conjunto fragmentado de discursos, declarações, sermões e
respostas aos críticos, geralmente motivados por questões imediatas relacionadas aos
seus experimentos com a satyagraha, não conseguindo prover, dessa forma, uma
explanação sistematizada da sua técnica, dos seus métodos e da sua estratégia de ação.
Para além disto, é importante notar que o assassinato de Gandhi em 1948, enquanto ele
ainda prosseguia com as suas experimentações com a satyagraha no contexto dos
conflitos religiosos na Índia, impediu que ele chegasse a uma visão completa da sua
técnica de ação não violenta. Por essas razões, Bondurant (1988, p. 7) considera que os
textos de Gandhi não devem ser interpretados em termos de uma teoria política, mas
sim como partes integrantes do seu ativismo político dentro de um longo processo de
experimentações que não chegou a produzir uma explanação sistemática da sua técnica
e dos seus métodos de ação não-violenta. Desse modo, recorrendo não aos escritos
de Gandhi, mas principalmente ao estudo pormenorizado das principais campanhas de
satyagraha conduzidas na Índia, Bondurant tenta completar esse esforço de teorização,
identificando nove passos na aplicação dessa técnica, onde diversos métodos de ação
não violenta podem ser identificados (ver tabela 1).
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Tabela 1: Principais passos na estratégia de implantação da satyagraha
(1)
Negocie com o oponente
(2)
Prepare os grupos de resistência para a ação direta
(3)
Envolva-se em atos de protesto (demonstrando o nível de oposição)
(4)
Emita um ultimato
(5)
Implemente boicotes económicos e greves
(6)
Implemente campanhas de não-cooperação
(7)
Implemente campanhas de desobediência civil
(8)
Usurpe as funções governamentais
(9)
Construa instituições governamentais paralelas
Fonte: Bondurant (1988, p. 40)
Entre esses métodos, destacam-se a negociação, o protesto, os boicotes e as greves, a
não-cooperação, a desobediência civil, a usurpação de funções governamentais e a
criação de instituições paralelas. Embora os passos envolvidos na satyagraha e a escolha
dos métodos sejam determinados pelas circunstâncias específicas de cada situação,
Bondurant considera, a partir dos casos estudados, que a técnica da satyagraha pode ser
explicada através desse conjunto de nove passos, servindo não como um parâmetro
geral da técnica proposta por Gandhi, mas também como uma moldura de análise para
o estudo de cada campanha de satyagraha em particular.
Ainda que se reconheçam as dificuldades apontadas por Bondurant nos escritos de
Gandhi, é possível identificar em sua obra algumas indicações claras sobre dois métodos,
a não-cooperação e a desobediência civil, que Gandhi considera particularmente
relevantes na satyagraha e que devem ser aplicados nesta ordem sequencial em razão
do maior grau de complexidade envolvido na desobediência civil, tanto em termos de
organização, disciplina e treino da população, quanto em termos da disposição para o
autossacrifício perante a possibilidade de reações violentas do oponente. A resolução
sobre a não-cooperação emitida por Gandhi em 1920, dando origem a uma campanha
sistemática de resistência da população indiana contra a dominação britânica entre 1920
e 1921, ilustra de que modo o método da não-cooperação é concebido e desdobrado em
diversos outros métodos (ver tabela 2).
Tabela 2: Síntese da resolução sobre a não-cooperação com o governo colonial britânico
emitida por Gandhi
(a)
Entrega de títulos e cargos honoríficos e renúncia a cargos nomeados em organismos locais
(b)
Recusa a comparecer a reuniões governamentais e a outros eventos oficiais e não-oficiais
(c)
Retirada gradual das crianças das escolas e dos colégios pertencentes, apoiados ou
controlados pelo governo colonial e transferência das crianças para escolas e colégios das
províncias locais
(d)
Boicote gradual aos tribunais britânicos e estabelecimento de tribunais privados para a
resolução de litígios
(e)
Recusa da parte dos militares, clérigos e trabalhadores indianos de atender ao
recrutamento britânico para servir no estrangeiro
(f)
Retirada da candidatura a cargos eletivos e recusa dos eleitores de votar em candidatos
que se ofereçam para a eleição
(g)
Boicote às mercadorias provenientes da Grã-Bretanha
Fonte: Gandhi (1996, pp. 59-60)
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Perante o sucesso dessa campanha de não-cooperação em 1921, Gandhi passa a
considerar a possibilidade de escalar a ação não violenta para uma campanha de
desobediência civil em massa que, do seu ponto de vista, constitui um método mais
desafiador e complexo de ação não violenta. Por uma série de razões, incluindo a sua
prisão entre 1921 e 1924, Gandhi é levado a postergar esse projeto e a conduzir, nos
anos que se seguem à sua libertação, um programa de reformas sociais em menor escala,
como a abolição da intocabilidade por exemplo,
9
até que o sucesso de uma pequena
campanha de resistência ao pagamento de taxas no distrito de Bardoli, em 1928, prepara
o terreno para uma longa campanha de desobediência civil em escala nacional, iniciada
em 1930. Essa ação histórica, que Dalton considera a maior campanha de desobediência
civil jamais vista (1996, p. 72), fica conhecida como “a satyagraha do sal”, pois envolve
a resistência ao pagamento dos altos impostos cobrados aos indianos sobre o sal
explorado na Índia sob o monopólio britânico. Após uma longa marcha de vinte e dois
dias, à qual se juntam milhares de participantes, Gandhi chega ao seu destino na costa
ocidental da Índia, coleta um punhado de sal natural, o que é legalmente proibido por
contrariar o monopólio britânico sobre a exploração desse recurso, e sob as lentes da
imprensa americana, britânica e de outros países europeus declara: “Com isto, eu abalo
as fundações do Império britânico” e “peço a simpatia do mundo nesta batalha do Direito
contra o Poder” (citado por Dalton 1996, p. 72). As repercussões extraordinárias desse
ato simbólico resultam numa campanha de desobediência civil em massa que leva
milhões de indianos a quebrarem as leis da taxação do sal, provocando uma onda de
prisões em massa que, longe de desencorajar a mobilização popular, fortalecem ainda
mais a resistência através de protestos, marchas, greves gerais, boicote aos produtos
britânicos, atos simbólicos de proclamação da independência, ocupação das instalações
dos governos municipais e criação de instituições governamentais paralelas. Isto leva a
uma paralisação completa do governo colonial britânico e abre o caminho para as
negociações que culminam na independência da Índia em 1947 (Nepstad 2015, capítulo
3).
Do ponto de vista da resolução de conflitos, pode-se dizer, em síntese, que a satyagraha
é experimentada por Gandhi através de uma busca incessante por uma sociedade pacífica
em todos os veis interpessoal, intercomunitário e internacional. Para Gandhi, uma
sociedade pacífica pode ser alcançada através da resolução dos conflitos inerentes a
todas essas esferas, o que exige um esforço permanente; a sua biografia é o maior
testemunho dessa busca interminável. É importante ainda observar que a técnica de
Gandhi e os métodos por ele mobilizados não devem ser compreendidos apenas no nível
operacional e estratégico. A aplicação da satyagraha e dos seus métodos de ação requer
uma forte fundamentação na sinceridade e na correção de atitudes, a fim de que os
“corações” das partes envolvidas no conflito sejam desarmados do ódio e preenchidos
com a verdade e a compaixão. A não-violência, dessa perspetiva, é uma questão de
princípio e o apenas um caminho prático para se atingir um determinado objetivo.
Finalmente, é importante destacar que o legado de Gandhi vai além do contexto
particular onde ele viveu. Jah (2003, p. 28) cita uma série de casos de aplicação da
satyagraha fora do contexto indiano, como a resistência do povo dinamarquês contra a
ocupação nazista em 1940; a campanha de resistência dos professores noruegueses em
9
A intocabilidade envolve um conjunto de práticas discriminatórias contra os integrantes da casta mais
baixa da estrutura social indiana (os chamados “intocáveis”).
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1942; a campanha “Desafie as Leis Injustas” na África do Sul em 1952; a greve na prisão
Vortuke na União Soviética por 250.000 prisioneiros políticos em 1953; a campanha pela
independência de Gana concluída em 1960, após dez anos de ações não violentas
claramente inspiradas na satyagraha. Não se pode deixar de mencionar, ainda, a grande
influência de Gandhi no ativismo de Martin Luther King em prol da igualdade de direitos
dos negros americanos, cujos principais aspetos são tratados na próxima subseção
Martin Luther King e a Técnica da “Tensão Criativa”
O ativismo de Martin Luther King tem fortes raízes na sua fé cristã, mas também recebe
uma influência significativa do legado de Gandhi. Conforme já mencionado, King propõe
uma síntese entre pacifismo cristão, a satyagraha de Ghandi e a filosofia do amor
incondicional expressa na palavra grega ágape (1957; 1961), oferecendo uma técnica de
resolução de conflitos que, segundo as indicações de seus escritos, pode ser chamada de
“tensão criativa”. O objetivo da tensão criativa, segundo King, é trazer as tensões e
contradições à superfície, a fim de expor os ressentimentos mais profundos, mostrar as
injustiças presentes no conflito, tocar a consciência dos oponentes e do público em geral
e, a partir do desconforto gerado por essa crise, levar a uma situação em que as pessoas
passem a desejar a resolução do conflito e a valorizar a negociação (King 1963).
Pode-se notar, desse modo, que a perspetiva de King, assim como a de Gandhi, tem uma
dimensão pragmática, mas se funda em alicerces espirituais e morais que fazem com
que a aplicação da sua técnica e dos seus métodos de resolução de conflitos tenha que
ser necessariamente ancorada em princípios. A análise de um de seus principais escritos
“Carta da Cadeia da Cidade de Birmingham” (King 1963) fornece um amplo panorama
da sua abordagem, constituindo, juntamente com a interpretação desse texto feita por
McCarthy e Sharp (2010), as referências centrais utilizadas nesta subseção. A “Carta da
Cadeia da Cidade de Birmingham é escrita por King em 1963, no período em que
permanece preso devido à marcha de protesto por ele liderada nas ruas de Birmingham,
Alabama, como parte de sua campanha contra a segregação racial. Na prisão, chega ao
conhecimento de King uma reportagem de jornal, onde um grupo de clérigos brancos
critica a sua campanha, afirmando que, embora “tecnicamente pacífica”, essa forma de
protesto é precipitada e inoportuna e fomenta o ódio e a violência (McCarthy e Sharp
2010, Introdução). A “Carta” é uma resposta a esses clérigos, onde King procura não só
mostrar a violência estrutural que mantem os negros numa condição de injustiças,
segregação e opressão, mas também explicar e justificar a sua técnica de “tensão
criativa” e os métodos de ação não violenta empregados.
Ao explicar como a sua técnica pretende funcionar, King destaca que a ação não violenta
procura criar uma crise e provocar uma tensão de tal modo perturbadora, que uma
comunidade que se nega sistematicamente a negociar é levada, forçosamente, a lidar
com a questão. Sobre essa técnica, King escreve em sua carta:
(A ação direta não violenta) procura dramatizar a questão até um
ponto em que ela o pode mais ser ignorada. Esta minha alegação
de que a criação de tensão faz parte do trabalho da resistência não
violenta pode soar chocante. Mas eu devo confessar que eu não
temo a palavra ‘tensão’. Eu sinceramente oponho-me à tensão
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violenta, mas há um tipo de tensão construtiva, não violenta, que é
necessária para o crescimento. Assim como crates sentiu que era
necessário criar uma tensão na mente, de modo que os indivíduos
pudessem sair da servidão dos mitos e das meias verdades e
alcançar o domínio irrestrito da análise criativa e da avaliação
objetiva, nós devemos perceber a necessidade de alternativas não
violentas para criar um tipo de tensão na sociedade que ajude os
homens a emergirem das profundezas escuras do preconceito e do
racismo para as majestosas alturas da compreensão e da
fraternidade. O propósito do nosso programa de ação direta é criar
uma situação de crise tão evidente que leve, inevitavelmente, à
abertura das portas para a negociação. Por isso, eu concordo com a
vossa chamada para a negociação. muito tempo nossa amada
terra do Sul tem sido soterrada num esforço trágico de viver em
monólogo, em vez do diálogo (King 1963, pp. 291-292).
Do ponto de vista de King, portanto, a comunidade precisa ser levada a enxergar a
necessidade de resolver as suas contradições e tensões sociais que, embora presentes
na situação, são muitas vezes escondidas ou negadas. A “tensão criativa” ou a tensão
construtiva não violenta” é a técnica de ação direta por ele proposta para criar uma crise
de tal forma incómoda e perturbadora que acabe levando as partes envolvidas a
desejarem a negociação e a resolução do conflito. King faz questão de ressaltar, porém,
que essa crise não é tirada do nada:
“na verdade, nós que nos envolvemos na ação direta não violenta
não somos os criadores da tensão. Nós meramente trazemos à
superfície a tensão escondida que está viva. Nós apenas
colocamos essa tensão às claras, onde elas possam ser vistas e
abertamente tratadas” (1963, p. 293).
É importante notar, ainda, que a ação direta não violenta, que constitui o cleo da
“tensão criativa”, é concebida por King como um recurso de último caso e a sua aplicação
deve ser precedida de três passos a investigação de factos que permitam avaliar se as
injustiças realmente existem, a negociação e a auto purificação iniciando a ação
direta após cumpridas todas essas etapas preliminares (tabela 3). Usando a situação dos
negros em Birmingham como um caso ilustrativo, King procura mostrar, primeiramente,
os factos que evidenciam as injustiças existentes. Nesse sentido, King chama a atenção
para o facto de Birmingham ser provavelmente a cidade mais segregacionista do país
(incluindo práticas segregatícias nos transportes e nos estabelecimentos comerciais) e
para o registo histórico de brutalidades contra os negros (incluindo o tratamento injusto
nos tribunais e o ataque a bombas a casas e igrejas de negros sem qualquer empenho
policial para solucionar os casos). Passando ao segundo passo, King procura destacar as
iniciativas de negociação tomadas pelos líderes da comunidade negra, sem qualquer
esforço das autoridades municipais, dos membros da comunidade económica, das
autoridades religiosas e dos líderes locais do movimento cristão de direitos humanos de
negociarem em boa-fé. Perante o desapontamento gerado por uma sucessão de
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promessas quebradas, King argumenta que a ação direta passa a ser uma alternativa no
horizonte, iniciando-se o terceiro passo, a auto purificação (isto é, a preparação para os
momentos difíceis que virão e a manutenção da disciplina do grupo). Sobre essa etapa,
King comenta:
“começamos a realizar uma série de workshops sobre não-violência
e a perguntar repetidamente a nós mesmos: Você é capaz de aceitar
golpes sem retaliar? Você é capaz de suportar o calvário da prisão?”.
Após esse processo, King comenta que o início da ação direta é finalmente marcado para
o período da Páscoa, quando as marchas nas ruas da cidade e o boicote ao comércio,
justamente num período-chave de vendas, seriam uma boa forma de pressionar os
comerciantes para as mudanças necessárias nas práticas segregatícias. Essa ação é
postergada duas vezes em razão das eleições municipais, que segundo King poderiam
desviar o foco da sua campanha de ação não violenta, até que as ações são finalmente
iniciadas em abril de 1963, resultando na prisão de King sob a acusação de liderar uma
marcha ilegal (King 1963, pp. 290-291).
Tabela 3: Passos preparatórios da campanha de ação não violenta segundo Martin
Luther King
(1)
Comprovação das injustiças (investigação de factos que permitam avaliar se as
injustiças realmente existem)
(2)
Negociação com o oponente
(3)
Auto purificação (preparação para os momentos difíceis que virão e a
manutenção da disciplina do grupo)
(4)
Ação direta não violenta (protestos, marchas, boicotes, desobediência civil)
Fonte: King (1963)
Sobre a acusação de ilegalidade da marcha conduzida sem a devida permissão, King
enfatiza na “Carta” a diferença existente entre as leis justas e as leis injustas. Evocando
a noção de desobediência civil, King argumenta que há uma distinção clara entre burlar
a lei de uma forma dissimulada e por razões mal-intencionadas e, de outro lado, desafiar
a lei abertamente por considerá-la injusta de acordo com a sua consciência e assumindo
as penalidades ddecorrentes com o claro objetivo de despertar a consciência coletiva
sobre a injustiça dessa lei (1963, p. 300). Em outro texto de sua autoria, King destaca
que a consequência esperada a partir dessa desobediência não é a confrontação gratuita
e a anarquia, mas a criação de uma sociedade mais justa, a construção de uma
“comunidade amada”, unida por uma afeição incondicional inclusive entre aqueles que
anteriormente se opunham. A desobediência civil, desta perspetiva, deve ser usada
contra sistemas de opressão e injustiça, não contra indivíduos, e a vitória, quando ocorre,
é de um sistema justo sobre um sistema injusto e não de um homem sobre o outro (King
1957, pp. 12-13).
Seguindo as conclusões de McCarthy e Sharp (2010) sobre a técnica da “tensão criativa”,
pode-se dizer que as proposições de King se resumem aos seguintes aspetos principais:
em primeiro lugar, alguns passos cruciais devem ser cumpridos para preparar uma base
consistente para a ação direta (a comprovação das injustiças, a iniciativa da negociação
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e a auto purificação); em segundo lugar, a ação direta não violenta (através de métodos
como marchas, protestos, discursos, boicotes, desobediência civil, etc.) faz emergir a
“tensão criativa” que leva o oponente a ter de enfrentar questão; em terceiro lugar,
deve-se perceber que essa tensão já está presente na situação e que ação direta apenas
se encarrega de trazê-la à superfície; em quarto lugar, a crise criada abre o caminho
para a negociação; em quinto lugar, a pressão deve ser mantida com obstinação e
disciplina, a fim de mostrar ao oponente que as atitudes reacionárias não serão bem-
sucedidas; em sexto lugar, as prisões e outras formas de punição aos ativistas devem
ser enfrentadas sem resistência, pois essa disposição para o auto sacrifício toca a
consciência dos cidadãos em geral e do oponente em particular sobre as injustiças
existentes; em sétimo lugar, em função das atitudes anteriores, a responsabilidade pela
violência não pode ser jogada sobre os manifestantes não violentos, mas sim sobre
aqueles que realmente recorrem à força na tentativa de evitar ou bloquear os esforços
da resolução do conflito. Embora as proposições de King expressem uma preocupação
pragmática que se traduz em efeitos políticos, deve-se acrescentar que elas estão
ancoradas numa fundamentação espiritual e moral que, a exemplo de Gandhi, pretende
sustentar uma espécie de mecanismo de conversão capaz de aproximar as partes em
conflito e criar o que King chama de “comunidade amada”.
Conclusão
O objetivo deste artigo foi apresentar um panorama conceptual das abordagens
pacifistas, procurando destacar a tradição do pacifismo de princípios. Nesse sentido
foram examinadas as referências centrais dentro dessa tradição Mahatma Gandhi e
Martin Luther King −, bem como as suas técnicas e os seus métodos principais de
resolução de conflitos. O que é crucial observar, com base no que foi analisado, é que
tanto Gandhi quanto King partem de uma visão transformativa que concebe a ação direta
não violenta como uma via de resolução de conflitos através do mecanismo de conversão.
Dessa perspetiva, ambos os autores acreditam ser possível solucionar os conflitos através
da transformação dos corações e mentes” dos oponentes pela força da verdade, do
amor, da fraternidade e da compaixão. É importante notar, porém, que esse mecanismo
de conversão não se confunde com a passividade ou a não-resistência defendidas por
um segmento tradicional do pacifismo cristão. Ao contrário, a ação direta não violenta
envolve alguma forma de pressão que, embora rejeite o uso da violência física e o vise
a aniquilação, a humilhação ou a destruição do antagonista, é suficientemente ativa e
perturbadora ao ponto de levar o oponente a reconhecer as injustiças sociais e a opressão
política por ele provocadas e a adotar uma postura mais amigável, conciliatória e
propensa ao diálogo e à negociação.
Embora este novo século, motivado principalmente pelas revoluções pacíficas da
chamada “primavera árabe”, comece a testemunhar um renovado interesse académico
pelo ativismo de Gandhi e de King e uma crescente preocupação com as questões
envolvidas na análise empírica e na produção de teorias sobre o pacifismo e a não-
violência, é preciso notar que muito trabalho resta a ser feito e que diversas questões
importantes, ainda pouco exploradas, continuam a desafiar a agenda de investigação do
pacifismo de princípios. Na introdução do seu guia de investigação sobre a ação não
violenta, McCarthy e Sharp (2010) sugerem algumas dessas questões: será que a técnica
de King (e podíamos também pensar em Gandhi) pode funcionar em situações onde falte
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uma liderança espiritual e moral da dimensão dessas personalidades, ou onde as bases
éticas e religiosas de uma ou de outra parte sejam menos claras? Seque as técnicas
do pacifismo de princípios funcionam em sociedades onde as garantias constitucionais
são frágeis? Será que as técnicas do pacifismo de princípios operam da mesma forma em
diferentes contextos, em diferentes sistemas políticos e em conflitos por diferentes
questões? Será que a aplicação do pacifismo de princípios pode ser testada
comparativamente em diferentes cenários? A essas questões, podemos acrescentar: até
que ponto o mecanismo da conversão, que é central no pacifismo de princípios, consegue
operar em conflitos extremamente agudos e polarizados? As respostas a essas questões,
que obviamente o além dos limites deste artigo, não indicam a necessidade de
futuros desenvolvimentos, mas também sevem de inspiração para aqueles que tenham
sido motivados a ampliar o conhecimento sobre as abordagens pacifistas à resolução de
conflitos aqui tratadas.
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