OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol. 8, Nº. 1 (Maio-Outubro 2017)
!
Artigos
Ricardo Real P. Sousa - Genealogia da investigação da paz behaviorista - pp. 1-
23
Gilberto Carvalho de Oliveira - Abordagens pacifistas à resolução de conflitos:
um panorama sobre o pacifismo de princípios - pp. 24-46
Teresa Almeida Cravo - A consolidação da paz: pressupostos, práticas e críticas
- pp. 47-64
Patrícia Galvão Teles - O TPI no centro de um sistema de justiça penal
internacional: desafios atuais - pp. 65-77
Susana Abelho - A decisão de Yanukovich de adiar a assinatura do acordo com a
UE, uma análise Poliheurística - pp. 78-91
Miguel Santos Neves - Diplomacia económica, geoeconomia e a estratégia
externa de Portugal - pp. 92-125
Pedro Velez Constituição e religiosidade da/na ordem constitucional do império
nacional-socialista - pp. 126-150
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Vol. 8, Nº. 1 (Maio-Outubro 2017), pp. 1-23
GENEALOGIA DA INVESTIGAÇÃO DA PAZ BEHAVIORISTA
Ricardo Real P. Sousa
ricardorps2000@yahoo.com
Professor Auxiliar na Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal) e investigador integrado no
OBSERVARE. É doutorado pelo International Institute of Social Studies (ISS) da Erasmus
University of Rotterdam (EUR) na Holanda. Foi membro da Research School in Peace and Conflict
(PRIO/NTNU/UiO) na Noruega e é investigador de conflitos no Centro de Estudos Internacionais
(CEI) do Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. Tem um mestrado em Estudos sobre o
Desenvolvimento pela School of Oriental and African Studies (SOAS) da University of London,
assim como um diploma de pós-graduação em estudos avançados sobre África e uma licenciatura
em Gestão, ambos pelo Instituto Universitário de Lisboa.
Resumo
Este artigo apresenta a tradição de Investigagção da Paz behaviorista “não-normativa” com
dois objetivos. Um objetivo é posicionar esta área de investigação em relação a outras áreas
de investigação próximas. A especificidade da Investigação da Paz é: a variável dependente
de paz e conflito quando comparada com a Ciência Política e Relações Internacionais; a
preocupação normativa com as causas da guerra quando comparada com os Estudos
Estratégicos, e; a rejeição da “utilidade prática” e controlo da normatividade quando
comparada com os Estudos para a Paz (definido como investigação da paz, educação e acção
para a paz) e Resolução de Conflitos. Adicionalmente a Investigação da Paz é aqui considerada
como uma sub-área dos Estudos de Segurança Internacional. O segundo objetivo do artigo é
apresentar a história da Investigação da Paz. Desde a sua criação nos anos 1950s como uma
alternativa aos Estudos Estratégicos e um enfoque na guerra entre Estados, a Investigação
da Paz teve dois períodos de definição. Um período no final dos anos 1960 caraterizado como
a “revolução socialista” com a conceptualização da paz (positiva) como mais do que a ausência
da guerra e um desafio para a normatividade na investigação. Um segundo período nos anos
1980 com o alargamento do objeto de análise aos conflitos intra-Estado e a paz liberal e a
emergência de outras ciências sociais dedicada ao estudo de temáticas da, ou próximas da,
Investigação da Paz, de uma forma abrangente definidas como segurança, algumas
adoptando uma abordagem normativa na investigação. A comunidade epistemológica da
Investigação da Paz manteve a abordagem behaviorista apesar destes desafios normativos e
a sua especificidade e unidade é muito devido ao seu método de investigação.
Palavras-chave
Normatividade; Estudos para a Paz; Estudos da Paz e Conflito
Como citar este artigo
Sousa, Ricardo Real P. (2017). "Genealogia da investigação da paz behaviorista". JANUS.NET
e-journal of International Relations, Vol. 8, N.º 1, Maio-Outubro 2017. Consultado [online]
em data da última consulta, http://hdl.handle.net/11144/3030
Artigo recebido em 12 de Dezembro de 2016 e aceite para publicação em 26 de Fevereiro
de 2017
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Genealogia da investigação da paz behaviorista
Ricardo Real P. Sousa
2
GENEALOGIA DA INVESTIGAÇÃO DA PAZ BEHAVIORISTA
Ricardo Real P. Sousa
Introdução
1
Este artigo apresenta mais de sessenta anos de evolução da Investigação da Paz com
dois objetivos. O primeiro é identificar mudanças significativas no que a Investigação da
Paz investiga e como é investigada. Para tal a Investigação da Paz é definida de acordo
com a abordagem behaviorista o que determina também a estrutura do artigo
2
.
Partilhamos a perspetiva de King et al. (1994) que carateriza a investigação como a
prática de inferências descritivas ou explicativas com base em informação empírica; o
uso de métodos explícitos, codificados e blicos para produzir e analisar dados cuja
fiabilidade pode ser verificada; que é incerta nas suas conclusões, no sentido em que
métodos quantitativos e qualitativos são necessariamente imperfeitos; e determinada
pelo seu método, em que “a unidade de todas as ciências consiste unicamente no seu
método, o no seu objeto de estudo (Pearson, 1892, p. 16). Estas caraterísticas
minimizam o preconceito ou influências do investigador no conhecimento produzido.
Existem três períodos decisivos na Investigação da Paz
3
. Inicia-se no final da década de
50 do século XX em consequência da revolução behaviorista caraterizada por um enfoque
nas causas dos conflitos violentos entre Estados (conflito mortal normalmente associado
à guerra) investigado através de uma abordagem behaviorista com uma predominância
da Ciência Política.
No final dos anos 60 a paz é conceptualizada como sendo mais do que a ausência de
guerra, distinguindo a guerra (conflito violento) da paz negativa (a ausência de conflito
violento mas onde existe conflito não violento) e da paz positiva (a remoção da violência
cultural e estrutural, ausência de conflito violento e não violento e a existência de
mecanismo não violentos para a resolução de conflitos) (Galtung J. , 1969). Este é um
período em que se reclama o uso de abordagens normativas na investigação e que foi
1
Gostaria de agradecer comentários de Luís Moita, Carlos Branco e dois revisores anónimos, quaisquer erros
são da minha responsabilidade. O termo genealogia é aqui utilizado como o estudo da origem e
desenvolvimento da Investigação da Paz e não no sentido da análise geneológica de Michel Foucault que o
define como uma perspetiva histórica e método de investigação com uma subjacente crítica do presente
(Foucault, 1997).
2
Ver David Easton (1965) para uma definição clássica da abordagem behaviorista.
3
Gledistch (2008) identifica quatro períodos na Investigação da Paz: a pré-história antes de 1959; a
revolução behaviorista entre 1959 e 1968; a revolução socialista entre 1968 e 1978; os “anos selvagens”
(wilderness years) entre 1979 e 1989; os anos posteriores ao final da Guerra Fria como da paz liberal, e;
questiona se o “choque de civilizações” poderá definir a investigação desde 2001.
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3
identificado como a “revolução socialista” (entre 1968 e 1978) (Gleditsch N. P., 2008)
com uma predominância da Ciência Política e Economia.
No final dos anos 80 a Investigação da Paz alarga o seu focus para o conflito intra-Estado
e a paz liberal, e é desafiada por um conjunto de novas disciplinas que investigam a paz
e o conflito, ou de uma forma mais abrangente, a segurança, com distintas abordagens
ontológicas e epistemológicas. De uma forma geral, desde os anos 80 que se pode fazer
uma distinção entre a Investigação da Paz behaviorista, racionalista e positivista, e as
novas disciplinas refletivas e pós-positivistas. Nesta fase a Investigação da Paz é
multidisciplinar.
Tabela 1: Períodos da Investigação da Paz
Finais de 1950
a finais de
1960
Finais de 1960 a finais de
1980
Desde finais de
1980s
O que é
investigado
(variável
dependente)
Conflito
(nuclear) entre-
Estados
Conflito
entre-Estados
Paz positiva e
negativa e
violência
estrutural
Conflito
entre e
intra
Estado
Paz liberal
Como é
investigado
(metodologia da
investigação)
Behaviorista
Behaviorista
Behaviorista e
Normativo
Racionalista
Positivista
(behaviorista)
Disciplinas
Ciência Política
Ciência Política e Economia
Multidisciplinar
O segundo objetivo do artigo é identificar as principais caraterísticas da Investigação da
Paz relativamente a outras áreas de investigação próximas. A Investigação da Paz é
distinta da Ciência Política e Relações Internacionais devido ao seu focus exclusivo da
variável dependente no conflito e paz
4
. O aspeto diferenciador entre a Investigação da
Paz e os Estudos Estratégicos é a normatividade
5
da Investigação da Paz no seu focus
nas causas da guerra. A distinção entre a Investigação da Paz e os Estudos para a Paz e
a Resolução de Conflitos é o seu controlo da “utilidade prática” e normatividade da
investigação. Finalmente é considerado que a Investigação da Paz é uma das áreas de
investigação dos Estudos de Segurança Internacional.
O artigo começa por apresentar com maior detalhe esta distinção entre a Investigação
da Paz em relação a outras áreas de investigação, apresentando em seguida cada um
dos três períodos da Investigação da Paz identificados na tabela 1 e concluí com uma
breve revisão do atual enfoque da Investigação da Paz.
Localizando a Investigação da Paz
As fronteiras académicas da Investigação da Paz são de difícil delimitação, principalmente
em relação a áreas muito próximas de investigação, como é caso da Ciência Política,
4
A variável dependente é o fenómeno que está a ser investigado que é “dependente” de outros fatores que
o explicam as variáveis independentes.
5
Esta normatividade (valores que o investigador traz para a investigação) é na escolha da pergunta de
investigação e não no método, que é neutro. Desta forma é distinta da normatividade da “revolução
socialista” ou do pós-positivismo e refletivismo, como veremos mais à frente, que o mais críticos e
refletivos onde o investigador assume os seus valores e preferências, tanto na pergunta de investigação
com no método.
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4
Relações Internacionais, Estudos Estratégicos, Estudos de Segurança Internacional,
Estudos para a Paz e Resolução de Conflitos.
Figura 1: Localização da Investigação da Paz
6
A Ciência Política é a disciplina central, com um enfoque na política: o exercício do poder
dentro e entre Estados. Mas é na sua sub-disciplina de Relações Internacionais, também
referida como Política Internacional, que a primeira disciplina académica é criada com o
objetivo de investigar sistematicamente o exercício do poder entre Estados, em particular
para identificar as causas do conflito e as possibidades da paz. A cátedra Woodrow Wilson
criada em 1919 é um marco de referência no estabelecimento das Relações
Internacionais como uma disciplina académica. A Investigação da Paz é uma sub-
disciplina das Relações Internacionais que surge nos anos 50 para ser um pensamento
alternativo à área de investigação dominante de Estudos Estratégicos
7
.
Tanto a Ciência Política, as Relações Internacionais e a Investigação da Paz são
multidisciplinares, têm abordagens epistemológicas semelhantes, reconhecem agência
tanto ao Estado como a atores não estatais, podem usar o mesmo leque de veis de
análise (níveis micro, macro e meso) e partilham os mesmos temas (economia, política,
governação global, terrorismo, organizações internacionais, entre outros).
O principal elemento diferenciador da Investigação da Paz em relação à Ciência Política
e Relações Internacionais é a variável dependente, mesmo que a Investigação da Paz
tenha variadas conceptualizações e indicadores (proxies) de paz e conflito. Em Ciência
Política e Relações Internacionais podem existir outras variáveis dependentes, tais como
finanças e economia, desenvolvimento, sustentabilidade, ambiente, justiça, ética,
sociedade civil ou democracia. Uma distinção adicional é o fato de a Ciência Política se
concentrar em processos intra-estatais e que as Relações Internacionais se concentrar
em processo inter-estatais enquanto a Investigação da Paz aborda ambos os processos
entre-Estados e intra-Estados.
O âmbito de temáticas de dois jornais de referência da Investigação da Paz são
ilustrativos deste enfoque. A chamada de trabalhos do Journal of Conflict Resolution
(JCR) sedeado nos Estados Unidos da América (EUA) procura artigos sobre “as causas e
6
Porque os Estudos para a Paz e a Resolução de Conflitos também são caraterizados pelas perguntas que
definem os Estudos de Segurança Internacional, estas duas áreas de investigação são representadas como
parte dos Estudos de Segurança Internacional.
7
Ver Viotti e Kauppi (2012) e Dunne et al. (2013) para uma revisão das teorias de Relações Internacionais.
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soluções para todo o espetro de conflito humano...[com um enfoque no] conflito entre
Estados e nos Estados, mas também que explorem a variedade de conflito inter-grupal
e inter-pessoal que possam ajudar a compreender o problema da guerra e da paz”
8
. A
chamada de trabalhos do Journal of Peace Research (JPR) com sede na Europa procura
artigos com “um enfoque global sobre conflito e pacificação [...e] encoraja alargadas
conceptualizações de paz mas com um enfoque nas causas da violência e resolução de
conflitos”
9
.
Os Estudos Estratégicos emergem no período posterior à Segunda Guerra Mundial
baseados numa abordagem clássica realista dos estudos da guerra, estratégia militar e
geopolítica. O principal ator é o Estado e o principal objetivo de um estadista é assegurar,
através da diplomacia ou dos meios militares, a sobrevivência do Estado a sua
soberania. A principal ameaça ao Estado não é interna mas externa e surge em resultado
dos Estados existirem num sistema anárquico onde não existe uma autoridade supra-
estatal para regular os interesses dos Estados quando estes estão em choque.
No início, a Investigação da Paz partilhava muitas das caraterísticas dos Estudos
Estratégicos, em particular o seu enfoque nos conflitos entre-Estados e a abordagem
behaviorista. A principal distinção entre os dois o os diferentes pressupostos
normativos. A preocupação dos Estudos Estratégicos é um Estado alcançar a vitória ou
evitar a derrota, se necessário através do uso da força militar, enquanto a preocupação
da Investigação da Paz é identificar as causas do conflito
10
. No início a componente da
Investigação da Paz que investiga a paz é influenciada pelo Marxismo e suas
preocupações com a injustiça social estrutural, que viria a ser substituída por uma
influência da tradição liberal com a teoria da paz democrática.
Tabela 2: Investigação da Paz e outras áreas de estudo próximas
Estudos
Estratégicos
(a partir dos anos
1950)
Investigação da
Paz
(a partir dos anos
1950)
Estudos para a Paz
(a partir dos anos
1970)
Outras ciências
sociais
(a partir dos anos
1980)
Teoria dos jogos,
modelos formais,
matemática
Principalmente
economia e política
mas igualmente
outras ciências
sociais
Construtivismo
convencional a partir
dos anos 1980
Sociologia, psicologia,
antropologia, política,
economia, resolução
de conflitos,
transdisciplinar
Construtivismo
crítico, Escola de
Copenhague, estudos
críticos, feminismo,
Segurança humana,
estudos estratégicos,
pós-colonialismo,
pós-estruturalismo
Como vencer ou não
perder a guerra?
Quais são as causas
da guerra?
Como transformar a
guerra em paz
positiva através da
investigação,
educação e ação?
Que formas de
relações de poder
existem (e como as
superar)?
Não normativo, positivista, racionalista
Normativo, pós-
positivista, refletivo,
investigação através
da ação participativa
Normativo, pós-
positivista, refletivo
Enfoque na explicação do fenómeno de forma
a poder prevê-lo e controlá-lo
Enfoque na compreensão e reconstrução do
fenómeno, sua crítica e transformação ou
restituição e emancipação
8
http://jcr.sagepub.com/ consultado a 5 de Setembro 2016.
9
http://jpr.sagepub.com/ consultado a 5 de Setembro 2016.
10
Por isso se pode referenciar esta área de “Investigação da Paz” em vez de “Investigação da Paz e Conflito”.
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Estudos de Segurança Internacional (ou estudos de segurança) é uma das áreas de
reflexão das Relações Internacionais que surge após a Segunda Guerra Mundial,
caraterizado por três aspetos inovadores: uma mudança conceptual do enfoque na
guerra e defesa para a segurança (alargando o leque de assuntos políticos abordados);
uma preocupação com os assuntos da Guerra Fria e em particular as armas nucleares; e
a importância de outras ciências civis não-militares (física, economia, sociologia ou
psicologia) nos estudos da guerra agora definida como segurança.
Durante as primeiras décadas da Guerra Fria, os Estudos da Segurança Internacional são
distintos das Relações Internacionais pelo seu enfoque no uso da força tal como
configurado nos Estudos Estratégicos. Desde o final dos anos 1960 a agenda dos Estudos
de Segurança Internacionais é alargada e a segurança é crescentemente não só uma
questão política e militar sobre o uso da força mas também relacionada com a economia,
o ambiente e a sociedade. Desde esta altura a principal distinção entre os Estudos de
Segurança Internacional e as Relações Internacionais é o seu enfoque no conceito de
segurança (Buzan e Hansen, 2009).
Buzan e Hansen (2009) identificam quatro questões estruturantes dos Estudos de
Segurança Internacional: privilegia-se o Estado como objeto de referência?; incluem-se
ameaças internas assim como ameaças externas?; alarga-se a segurança além do setor
militar e o uso da força?, e considera-se a segurança como indissociavelmente ligada às
dinâmicas de ameaça, perigos e urgência?
Todas estas questões estão alinhadas com as questões da Investigação da Paz. Definidos
desta forma os Estudos de Segurança Internacional são “um rótulo abrangente que incluí
trabalho de investigadores que se referenciam como fazendo [...] ‘investigação da paz’,
ou outros rótulos específicos” (Buzan e Hansen, 2009, p. 1).
Desta forma a Investigação da Paz é uma das áreas dos Estudos da Segurança
Internacional juntamente com outras abordagens ao tema da segurança.
A Investigação da Paz é também conceptualizada associada intrinsecamente com a acão
e a educação para a paz, uma tríade designada como Estudos para a Paz, definidos como
relacionados com
“a condição humana em geral, preocupada com a nossa satisfação
(fullfillment) (...) como seres humanos através da paz positiva, e a
redução do sofrimento (...) através da paz negativa,
indiferentemente de como as cadeias causais ou círculos e espirais,
ou outros aspetos (or what not), giram ou traçam as suas formas
através dos humanos multifacetados” (Galtung J. , 2010, p. 24).
Os Estudos para a Paz podem ser caraterizados por serem: transdisciplinares, ao integrar
diferentes disciplinas das ciências sociais (por exemplo sociologia, psicologia social,
ciência política, economia); trans-nível por relacionarem os veis de análise micro,
meso, macro e mega; trans-fronteiras, por nenhuma região geográfica ou sistema dever
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ser dominante; empírico mas igualmente crítico e construtivo de soluções; e, prático,
implementado pelo investigador/praticante (Galtung J. , 2010; Galtung J. , 2008)
11
.
As origens dos Estudos para a Paz podem ser simbolicamente associadas com o pioneiro
trabalho de Johan Galtung iniciado em 1958, apesar de trabalho normativo sobre a paz
e sua promoção ter ocorrido anteriormente, em particular em trabalho académico e de
acção religiosa.
Investigadores e praticantes dos Estudos para a Paz podem realizar investigação
experimental participativa que “afirma o valor essencial do conhecimento prático ao
serviço da prosperidade humana” (Heron & Reason, 1997, p. 1) e têm um compromisso
com a emancipação transformativa para a realização do potencial humano. A ação
emancipativa é realizada através de uma abordagem não-violenta, quer seja com base
num pacifismo de princípio, tal como com Mahatma Gandhi ou Martin Luther King, como
assente num pacifismo pragmático tal como identificado por Gene Sharp (1971) (Oliveira,
2016).
Os objetivos e âmbito da revista Peace and Change (Paz e Mudança) são ilustrativos do
enfoque dos Estudos para a Paz.
“Peace and Change publica artigos académicos e interpretativos
sobre a realização de uma sociedade pacífica, justa e humana. Com
um enfoque internacional e interdisciplinar, a revista estabelece
uma ponte entre investigadores, educadores e ativistas da paz.
Publica artigos num alargado leque de assuntos relacionados com a
paz, incluindo movimentos e ativismo para a paz, resolução de
conflitos, não-violência, internacionalismo, assuntos de raça e
género, estudos inter-culturais, desenvolvimento económico, o
legado do imperialismo e a agitação pós-Guerra Fria
12
.
Alguns investigadores consideram a Resolução de Conflitos como uma sub-área dos
Estudos para a Paz. De uma maneira geral a Investigação da Paz, Estudos para a Paz e
Resolução de Conflitos partilham um compromisso normativo de que as soluções para as
causas de conflitos devem ser encontradas através de processos e meios não-violentos
“paz por meios pacíficios” (peace by peaceful means): o conflito, e o conflito violento
em particular, são considerados uma doença que deve ser curada, sendo que este
objectivo da paz deve ser atingido tanbém por meios não-violentos.
A Resolução de Conflitos começou aproximadamente no mesmo período dos Estudos de
Segurança Internacional e da Investigação da Paz. Nos anos 50 e 60 analisa-se o conflito
como sendo um fenómeno específico que ocorre nas relações internacionais, política
11
Algumas organizações que combinam pelo menos duas componentes da tríade de investigação, educação
e ação (consultoria) são o TRANSCEND, fundado por Johan Galtung, a Transnational Foundation for Peace
and Future Research e a INCORE.
12
http://onlinelibrary.wiley.com/journal/10.1111/(ISSN)1468-0130/homepage/ProductInformation.html
consultado a 27 de Setembro 2016.
A revista Peace and Conflict Studies (Estudos da Paz e Conflito) também se define com a mesma orientação
da definição aqui utilizada de Estudos para a Paz.
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doméstica, relações industriais, comunidades, famílias e indivíduos
13
. A investigação e
prática na Resolução de Conflitos é realizada pelos, ou muito mais próxima dos, atores
dos processos políticos, frequentemente em longas sessões de trabalho de resolução de
problemas ou iniciativas de mediação. Desde a sua origem que a Resolução de Conflitos
se define como multinível, multidisciplinar, multicultural, analítica e normativa, teórica e
prática (Ramsbotham, Woodhouse, & Miall, 2011).
Os fundamentos práticos e normativos dos Estudos para a Paz e Resolução de Conflitos,
com vista à transformação da guerra numa paz sustentável, estão em tensão com as
preocupações académicas behavioristas sobre o método de investigação científico.
Investigadores e ativistas da paz e conflito viriam a ficar divididos sobre estes assuntos
durante a “revolução socialista”. Investigadores behavioristas da Investigação da Paz
reconhecem que a investigação académica deve ser relevante para o mundo
contemporâneo mas ao mesmo tempo consideram que o conhecimento pode ser
alcançado seguindo procedimentos científicos muito específicos que garantam a
objetividade e que não podem ser comprometidos pela praticabilidade ou aplicabilidade
do conhecimento. De uma forma geral o enfoque destes investigadores é em identificar
as causas da guerra primeiramente como um contributo para o conhecimento e somente
depois com uma preocupação pelo seu uso subsequente em política pública. Nos
primeiros anos do JPR existia um requisito para que os artigos tivessem uma seção final
com recomendações políticas, mas esse requisito foi descartado pois essas
recomendações tinham pouca relevância na medida em que não eram o enfoque do artigo
mas um seu sub-produto (Wiberg, 2005). Adicionalmente os investigadores behavioristas
da Investigação da Paz consideram que considerações normativas sobre o que é bom ou
mau devem estar circunscritas, se existentes, à escolha do objeto de estudo a pergunta
de investigação e que o processo de investigação deve ser neutro de influências
políticas. Finalmente, os investigadores da Investigação da Paz optam por uma
multidisciplinaridade que segue os métodos de investigação científicos estabelecidos em
cada disciplina, em vez de adoptarem a transdisciplinariedade proposta pelos Estudos
para a Paz.
Investigadores (e praticantes) normativos dos Estudos para a Paz e Resolução de
Conflitos consideram que uma pessoa nunca pode ser politicamente neutra e que
julgamentos de valor sobre o que é bom ou mau estão subjacentes o só na pergunta
de investigação mas também no processo de investigação. Adicionalmente, porque o
investigador necessariamente tem os seus próprios valores, este tem uma certa
responsabilidade pelas implicações práticas da sua investigação. Desta forma o
investigador é moralmente obrigado a ser prático, o que pode significar desenvolver
recomendações políticas e, em alguns casos, executar/implementar política.
É esta orientação normativa da investigação e a sua aplicabilidade ou praticabilidade que
mais distingue os Estudos para a Paz e Resolução de Conflito da Investigação da Paz.
Ver a tabela 3 para um sumário dos aspetos diferenciadores da Investigação da Paz.
13
Para uma apresentação da evolução da Resolução de Conflitos ver Kriesberg (2009) e Ramsbotham,
Woodhouse, e Miall (2011).
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Tabela 3: Aspetos diferenciadores da Investigação da Paz
Investigação
da Paz
Ciência
Política /
Relações
Internacionais
Estudos
Estratégicos
Estudos de
Segurança
Internacional
Estudos
para a
Paz
Resolução
de
Conflitos
O que é estudado
Paz e Conflito
Outro focus
Como é estudado
Neutro/objetivo
Normativo/subjetivo
Prática
Nota: Neutro/objetivo significa que o enfoque da investigação é “como é que as coisas são”.
Normativo/subjetivo significa que o enfoque da investigação é “como é que as coisas deviam ser”.
As cruzes sublinhadas identificam os aspetos diferenciadores em relação à Investigação da Paz.
Para os Estudos Estratégicos a cruz com um ponto em “Paz e Conflitorefere-se aos diferentes
pressupostos de investigação da mesma variável dependente. Seguimos a definição dos Estudos
de Segurança Internacional de Buzan e Hansen (2009).
Finais dos anos 1950 até aos finais dos anos 1960
O início da Investigação da Paz está associado ao desenvolvimento de uma comunidade
epistemológica de investigadores nos EUA e Europa que sistematicamente estudam a paz
e o conflito com uma abordagem behaviorista.
Nos anos 50 e 60 a abordagem behaviorista tem suficientes praticantes para que se
considere que um “segundo grande debate” ocorre nas Relações Internacionais opondo
as abordagens “tradicionalistas” às “behavioristas”
14
.
Investigadores tradicionalistas seguem uma abordagem da filosofia política clássica
baseada na interpretação histórica, filosofia jurídica ou teorias de causalidade baseadas
em dinâmicas não observáveis da natureza humana. O investigador é considerado
inevitavelmente normativo na sua investigação, utiliza essencialmente métodos
qualitativos e não existem requisitos para que as teorias sejam validadas empiricamente.
Investigadores behavioristas defendem uma investigação mais objetiva, neutral (não-
normativa) e empírica, que possa racionalmente explicar os comportamentos
observáveis dos Estados (ou outros atores). Defendem a adopção das metodologias de
investigação das ciências exatas, em particular o seu enfoque em teoria pura,
quantificação e identificação de causalidade. Esta é considerada a “revolão científica”
que teve expressão também nas correntes Realistas e Liberais das Relações
Internacionais assim como na Investigação da Paz.
Um dos desenvolvimentos teóricos da abordagem behaviorista foi conceptualizar três
níveis de análise na identificação das causas da guerra: o indivíduo, o Estado-nação e o
sistema internacional (Waltz K. N., 1959; Singer, 1961).
“O nível do indivíduo tem o enfoque principal na natureza humana e nos líderes
políticos individuais, seus sistemas de crenças, processos psicológicos, Estados
emocionais e personalidades. O nível do Estado-nação (ou nacional) inclui fatores
14
A principal referência deste debate são as críticas ao behaviorismo por Bull (1966) e a sua defesa por Kaplan
(1966).
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como o tipo de sistema político (autoritário ou democrático, e suas variantes), a
estrutura da economia, a natureza dos processos políticos, o papel da opinião
pública e grupos de interesse, etnicidade e nacionalismo, e a cultura política e
ideologia. O nível do sistema incluí a estrutura anárquica do sistema internacional,
a distribuição de poder económico e militar entre os Estados principais no sistema,
padrões de alianças militares e comércio internacional, e outros fatores que
constituem os ambiente externo de todos os Estados” (Levys, 2011, p. 14).
A comunidade epistemológica da Investigação da Paz é principalmente ocidental
(América do Norte, Europa Ocidental e Japão) com duas iniciativas de referência a
surgirem em Michigan, nos EUA, e em Oslo, na Noruega
15
.
Na Universidade de Michigan, em 1957, Kenneth Boulding e um grupo de académicos
fundam o Journal of Conflict Resolution (JCR) (Revista de Resolução de Conflitos)
16
com
um enfoque multidisciplinar e empírico; em 1959 criam o Center for Research on Conflict
Resolution (Centro para a Investigação da Resolução de Conflitos), e em 1964 iniciam o
projeto Correlates of War (COW) dirigido por J. David Singer e Melvin Small, com o
objetivo de sistematicamente recolher dados sobre conflitos entre-Estados e extra-
sistémicos
17
. O projeto COW seria uma referência para muito do trabalho empírico na
área de conflito que foi desenvolvido desde então.
Na Noruega, o Peace Research Institute Oslo (PRIO) (Instituto de Investigação da Paz
em Oslo) é fundado em 1959 e o Journal of Peace Research (JPR) (revista de Investigação
da Paz) é criado em 1962. Johan Galtung é um dos principais fundadores de ambas as
iniciativas e o seu trabalho a partir dos anos 60 iria reconceptualizar a “paz” de uma
forma que se pode considerar preconizadora do primeiro desafio à Investigação da Paz e
ao nascimento dos Estudos para a Paz.
A escolha de “Conflito” em Michigan e “Paz” em Oslo reflete uma controvérsia existente
relativamente à palavra “Paz”. o movimentos para a “Paz” eram vistos na altura
como protegendo os interesses soviéticos, mas “Paz” era percepcionada como dissociada
da política pura dos conflitos. Institutos estabelecidos desde então irão optar por um
enfoque na paz e/ou conflito, frequentemente identificado no seu nome.
Finais dos anos 1960 até aos finais dos anos 1980
Em 1969 Johan Galtung redefine o conceito de paz positiva e paz negativa (propostos
em 1964) para apresentar o conceito distintivo de violência estrutural. A paz negativa é
definida como a cessação da violência direta (guerra que resulta do conflito violento
preconizado por atores), enquanto a paz positiva é definida como a remoção de violência
estrutural, um conceito próximo da injustiça social onde a violência não é preconizada
por atores mas resulta da estrutura do sistema social. Inicialmente aplicada à
15
Para uma mais detalhada revisão das iniciativas institucionais desta área ver Buzan e Hanse (2009).
16
Inicialmente baseado no Center for Advanced Studies in Behavioural Sciences (Centro para Estudos
Avançados em Ciências Comportamentais) estabelecido em Stanford em 1954. A partir de 1971 a revista é
domiciliada na Universidade de Yale.
17
A base de dados de conflitos entre-Estados é publicada pela primeira vez em 1972. Trabalho anterior de
recolha de dados quantitativos sobre conflito dependeu de iniciativas individuais, como foi o caso de Sorokin
(1937), Wright (1942) e Richardson (1960). Conflito extra-sistémico refere-se à guerras coloniais de
independência.
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desigualdade económica, a violência estrutural viria a ser associada também à violência
em sistemas sociais e culturais. Adicionalmente, concretizar a paz positiva não significa
unicamente a cessação do conflito mas também a gestão de conflito por meios não-
violentos.
Tabela 4: Paz Positiva, Paz Negativa e Guerra
Paz Positiva
Paz Negativa
Guerra
Conflito não-violento
Conflito violento
Justiça social
Violência estrutural
Violência direta
Fonte: adaptado de Pfetsch e Rohloff (2000, p. 382)
Existe uma importante alteração conceptual do tradicional enfoque no conflito para um
enfoque nas condições da paz. O objeto de referência é alterado para coletividades
humanas (em vez de Estados) permitindo uma análise de conflitos não só entre-Estados
mas igualmente ao nível intra-Estado e trans-estatais. Adicionalmente o enfoque não é
no setor militar mas também no setor económico como fontes de violência. Esta
conceptualização estabelece uma ligação entre a tradição Idealista do Liberalismo
clássico e a tradição Marxista (Buzan & Hansen, 2009) e foi rotulada como a “revolução
socialista” na Investigação da Paz (Gleditsch N. P., 2008).
O conceito da paz negativa é criticado por ainda ser definido em oposição ao conflito
(como a negação do conflito) e por ser de uma natureza menos urgente que a guerra,
enquanto o conceito de “violência estrutural da paz positiva é criticado por ser
demasiado abrangente e vagamente definido (Boulding, 1977)
18
.
O conceito de violência estrutural foi “uma ferramenta académica para mudar o enfoque
da exclusiva atenção no conflito Este-Oeste para uma maior atenção ao conflito Norte-
Sul(Gleditsch, Nordkvelle, & Strand, 2014, p. 148). Esta mudança reflete o que eram
as preocupações Europeias na pós-Segunda Guerra Mundial que se alteram da
reconstrução económica e crescimento para, nos anos 60, se focarem em questões de
justiça, autonomia e igualdade, também em relação ao mundo pós-colonial (Kriesberg L.
, 2009). Este período político é muitas vezes referido como “1968”, caraterizado pela
guerra americana no Vietname, a invasão da Checoslováquia pela União Soviética e
movimentos da sociedade civil, em particular os protestos estudantis nos EUA, Europa e
alguns países de Leste (Wiberg, 2005).
Os académicos que seguiram esta abordagem estão essencialmente localizados na
Europa, identificados como a abordagem maximalista ou estruturalista europeia, com
alguma investigação a procurar operacionalizar a “violência estrutural” de forma a poder
ser validada empiricamente, entre outros por Wallesteen (1973) na sua investigação
sobre as estruturas de comércio e estruturas de guerra (Wiberg, 2005). Na América do
Norte académicos mantêm um enfoque na investigação das (causas das) guerras,
identificados como a abordagem pragmática.
O alargamento do objeto de análise seria refletido no JCR e JPR. O JPR alarga o seu
âmbito em 1973 para não tratar os assuntos relativos à guerra entre-Estados e nuclear
(dissuasão e desarmamento) mas também justiça, desigualdade, dignidade humana,
18
O conceito de violência estrutural seria aplicado a diversas áreas: estudos do desenvolvimento,
imperialismo, conflito doméstico, ambiente, direitos humanos e exploração económica (Buzan & Hansen,
2009).
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equilíbrio ecológico e conflito intra-Estado (Russett & Kramer, 1973). Muitos dos artigos
do JPR nos anos 70 e 80 o sobre a violência estrutural e a paz positiva (Gleditsch,
Nordkvelle, & Strand, 2014).
A violência estrutural é também uma mudança epistemológica preconizada por Galtung,
abandonando a sua inicial orientação não-normativa, behaviorista e empírica que
“procura a invariância”, preocupada com o que é a realidade” (que utiliza até 1958),
adoptando uma orientação normativa de “quebrar a invariância”, preocupada com a
procura de uma outra realidade “o potencial”. Em violência estrutural, a violência é
definida como a causa da diferença entre “o potencial e o atual, entre o que poderia ser
e o que é” (Galtung J. , 1969, p. 168). Este compromisso normativo é premonitório das
novas abordagens epistemológicas que surgem nos anos 80 com o refletivismo e pós-
positivismo, e em particular influencia diretamente os estudos femininistas e a teoria
crítica (Pureza, 2011).
Esta mudança epistemológica ocorre no contexto de um movimento pacifista plural, com
alguns grupos influenciados pelo Marxismo (principalmente com um pendor Maoísta),
que consideram o tom neutral das ciências behavioristas inaceitável (Gleditsch,
Nordkvelle, & Strand, 2014). No final dos anos 60, ativistas da paz e idealistas
reconhecem legitimidade às preocupações Soviéticas enquanto a escola tradicional de
Relações Internacionais e investigadores da Investigação da Paz se focam na
manutenção das democracias liberais. Tanto nos EUA como na Europa ocorre um debate
sobre a possibilidade do uso do conflito aberto violento para situações em que grupos
marginalizados desafiam o status quo na procura de uma paz mais justa e permanente,
inspirados no Marxismo-Leninismo revolucionário (Rogers & Ramsbotham, 1999). Para
alguns o uso da violência está em contradição com o que significa a Investigação da Paz,
a transformação da guerra em e por processos políticos não-violentos, mesmo que
alcançando a paz negativa. A violência estrutural Norte-Sul foi o compromisso não-
violento proposto neste debate, caraterístico do Marxismo social-democrata evolutivo
19
.
O desafio normativo divide os investigadores sobre a paz e conflito até aos dias de hoje
em duas comunidades epistemológicas com pouca fertilização cruzada. Investigadores
positivistas não-normativos (que seguem a tradição behaviorista), neste artigo
pertencentes à Investigação da Paz, estão mais associados com a Peace Science Society
(Sociedade da Ciência da Paz) (criada por Walter Isard em 1963) nos EUA e a
International Studies Association (ISA) e revistas como a JPR e JCR.
Investigadores normativos e ativistas, neste artigo pertencentes aos Estudos para a Paz,
estão mais associados com a International Peace Research Association (IPRA)
(estabelecida em 1965) e revistas como Peace and Change, Peace Review ou Journal of
Social Justice
20
.
Apesar de ambas as abordagens terem desenvolvido programas de investigação e ensino
na academia, a orientação científica da abordagem behaviorista na Investigação da Paz
conduziu ao seu maior reconhecimento nos índices de avaliação de investigação
19
Para mais detalhes ver Schmid (1968).
20
O momento determinante desta cisão ocorre em relação às posições assumidas por investigadores
relativamente à Guerra no Vietname em duas conferências. Uma em 1968 nos EUA e outra em 1969 em
Copenhaga (Gleditsch, Nordkvelle, & Strand, 2014). A seção de Estudos da Paz é criada no ISA em 1972.
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científica, enquanto os Estudos para a Paz normativos são menos reconhecidos
cientificamente mas mais identificados ao nível das bases, no terreno
21
.
O desafio conceptual e normativo na “revolução socialista” dos anos 70 conduz a um
período de alargamento conceptual excessivo. Gleditsch (2008) carateriza a Investigação
da Paz nos anos 80 como nos seus “anos na selva” (wilderness years), com uma fraca
metodologia e paz como qualquer coisa, um buraco negro” onde “qualquer problema
social [...] encontra um lugar legítimo na investigação da paz...” (Tromp, 1981, p. xxvii).
A partir dos finais dos anos 1980
Com o fenómeno da Guerra-Fria interiorizado e a compreensão de que a humanidade
tinha aprendido a viver com a ameaça de uma guerra nuclear, nos anos 80 a Investigação
da Paz é novamente desafiada. A conceptualização dominante da Investigação da Paz na
Guerra Fria define os Estados como o principal objeto de referência, está principalmente
preocupada com o uso da força, e o seu enfoque é nas ameaças externas que devem ser
geridas através de medidas de emergência, investigado com métodos positivistas não-
normativos e epistemologias racionalistas (Buzan & Hansen, 2009).
O alargamento do enfoque na Investigação da Paz nos anos 80 ocorre principalmente na
natureza das ameaças, para considerar as ameaças internas juntamente às externas.
Outros tipos de violência interna são investigadas como, por exemplo, a morte de civis
pelas mãos dos governos, e o JPR alarga o seu âmbito para considerar o terrorismo, a
repressão policial e paramilitar e a injustiça na divisão do trabalho tanto nacional como
internacional. O JCR reflete o interesse nos conflitos intra-Estado para os incluir no
âmbito da revista e o projeto COW publica a sua primeira base de dados de conflitos
intra-Estado em 1982.
No pós-Guerra Fria o conflito intra-Estado torna-se no mais relevante tipo de conflito,
com um máximo de ocorrências em 1991. Dois debates são ilustrativos do enfoque da
investigação: um, sobre a iniciação da guerra civil e outro sobre a natureza da guerra.
O debate sobre a iniciação da guerra civil opõe a hipótese da viabilidade do conflito à
hipótese de ressentimento de grupos. A hipótese da viabilidade sugere que as guerras
civis são mais prováveis se forem financeiramente e militarmente viáveis, com fatores
económicos de ganância também significativamente associados à iniciação da guerra civil
(Collier, Hoeffler, & Rohner, 2009). A hipótese de ressentimento sugere que as
desigualdades horizontais
22
são um fator significativo para prever uma rebelião (Buhaug,
Cederman, & Gleditsch, 2014), continuando uma linha de uma investigação antiga que
liga conflitos a grupos étnicos.
O debate sobre a natureza da guerra civil é centrado na distinção entre “velhas” e “novas”
guerras (Kaldor, 1999)
23
. As guerras velhas eram feitas por exércitos regulares,
relativamente a assuntos geopolíticos ou ideologia, através de batalhas que tinham como
21
Em 2015 o ranking de revistas da SCImago que mede a influência científica das revistas lista o JPR e JCR
no primeiro quartil do ranking enquanto das três revistas normativas referidas anteriormente a Peace
Review é identificada no quarto quartil.
22
Quando a desigualdade, exclusão social e pobreza ocorrem em simultâneo com identidade ou delimitações
regionais.
23
Outras classificações incluem: guerras entre pessoas (Smith, 2005), guerras de terceiro tipo (third kind)
(Holsti, 1996), guerras hibridas (Hoffman, 2007), privatização das guerras (Munkler, 2005) ou guerras pós-
modernas (Hables Gray, 1997).
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objetivo o controlo do território e eram financiadas pelo Estado. As novas guerras
envolvem mais atores estatais e não-estatais (forças armadas regulares, empresas de
segurança contratadas, mercenários, jihadistas, senhores da guerra, paramilitares), são
travadas por questões de identidade (étnicas, religiosas ou tribais), não são caraterizadas
por batalhas mas pelo controlo do território conseguido através do deslocamento das
populações e financiadas por um conjunto de diferentes fontes de receita assegurada
através do uso da violência (saque, pilhagem, “tributação“ da ajuda humanitária, apoio
das diásporas, sequestros ou contrabando de petróleo, diamantes, drogas ou pessoas)
(Kaldor, 1999; 2013).
Projetos de bases de dados acompanharam estas mudanças assim como os
desenvolvimentos tecnológicos de recolha de dados. Entre outros, o projeto de Minorias
em Risco (Minorities at Risk) iniciado em 1986 por Ted Gurr, contêm informação sobre
grupos étnicos politicamente ativos, e a Universidade de Uppsala na Suécia desenvolveu
as bases de dados de violência unilateral (one sided violence) em 2007
24
e violência não-
estatal em 2012
25
, ambas próximas das caraterísticas das “novas” guerras, juntando-se
à base de dados de violência baseada no Estado (intra-Estado)
26
lançada pela primeira
vez em 2002, mais próxima do conceito de “velhas” guerras. Apesar do conflito baseado
no Estado continuar a ser o mais mortífero, outros tipos de violência tornaram-se mais
recorrentes. Por exemplo, existe um crescimento continuado no número de conflitos não-
estatais ativos, com um rácio em relação aos conflitos baseados no Estado a crescer de
1,07 em 2011 para 1,4 em 2015 (Melander, Pettersson, & Themnér, 2016). Ver a figura
2 para uma tipologia de conflito armado
27
.
Em resultado de novas tecnologias a codificação dos dados torna-se cada vez mais
desagregada: na identificação dos atores envolvidos; geograficamente é desagregada
abaixo da unidade Estado para ter referenciação geográfica ao vel da vila, e;
temporalmente desagregando a unidade ano para o dia específico dos eventos, como é
um exemplo a base de dados UCDP Georeferenced Event Dataset (GED) (Sundberg &
Melander, 2013).
Figura 2: Tipologia de conflito armado
Fonte: Eck (2008, p. 35)
24
Em que a violência do Estado ou grupos não-estatais têm como alvo civis.
25
Em que a violência ocorre entre grupos não-estatais.
26
Em que a violência ocorre entre o Estado e grupos não-estatais.
27
Conflitos extra-estatais são guerras de independência colonial. Existe um conjunto de outros eventos
violentos que ocorrem em conflitos não identificados nesta figura: motins, demonstrações violentas,
repressão, violência indireta contra civis, crime organizado, guerras entre gangues, senhores da guerra,
banditismo, assassinatos (Eck, 2008).
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A agenda económica da Investigação da Paz proposta pela “revolução socialista” é
parcialmente integrada nos anos 70 na disciplina Estudos do Desenvolvimento e
Economia Política Internacional e a Investigação da Paz é predominantemente
caraterizada pela ciência política nos anos 80 (Gleditsch N. P., 1989)
28
.
O focus na paz na Investigação da Paz é principalmente representada pela investigação
da Paz Liberal, onde é proposto que a democracia e justiça são essenciais a uma paz
sustentável dentro e entre Estados. A ideia é que a democracia é mais controlada pelos
cidadãos que são menos predispostos a iniciar guerras entre-Estados do que os seus
líderes e que as democracias têm mecanismos pacíficos para lidar com o conflito intra-
Estado. O debate sobre a teoria da paz democrática foi iniciado com a proposta que os
Estados democráticos são menos propensos a entrarem em guerras uns com os outros
(Doyle M. W., 1983; 1986) mas passados vinte anos as suas proposições ainda são
debatidas (Doyle M. , 2005; Rosato, 2003).
De uma forma geral a Investigação da Paz sobrevive ao final da Guerra-Fria (associada
com o fim do muro de Berlim em 1989) e o seu enfoque adapta-se a uma nova realidade.
O JPR nos anos 90 e primeira década do século XXI foca-se nos assuntos clássicos de
redução do conflito armado, apresentando investigação mais sobre guerras intra-Estado
do que inter-Estados, sobre outras formas de conflito e sobre a possibilidade da paz
democrática. Na primeira década do século XXI, tanto no JPR como no JCR existe uma
crescente publicação de artigos sobre os temas dos direitos humanos, paz democrática
e pacificação/construção da paz, e ambas as revistas continuam a publicar artigos com
teoria de jogos e modelos formais. O principal enfoque continua a ser o conflito, com
artigos com a palavra “conflito” a terem mais do que a média de citações, e com a palavra
“paz” menos do que a média de citações dos artigos na revista JPR no ano 2000
(Gleditsch, Nordkvelle, & Strand, 2014).
Um novo debate deste período que atrai muita atenção, tanto na academia como no
público em geral, é se o final da Guerra Fria significa que a agenda da paz democrática
liberal se tornou no único sistema aceite (only game in town) ao ponto de ter sido
identificado como um “momento do fim da história” (Fukuyama, 1989) ou se as causas
do conflito seriam agora encontradas no “choque de civilizações (Huntington, 1993)
baseado em identidades religiosas ou culturais.
Um desenvolvimento dos anos 80 e do período pós-Guerra Fria em particular é o aumento
das abordagens epistemológicas nas ciências sociais. Duas dicotomias agrupam as
diferentes abordagens: os racionalistas versus refletivistas e os positivistas versus os
pós-positivistas.
Kehoane (1988) propõe a distinção entre abordagens racionalistas e refletivistas.
Abordagens racionalistas utilizam teorias de escolha racional para explicar o
comportamento dos atores baseado nas suas preferências individuais. Refletivistas
consideram que os racionalistas não identificam a importância do contexto nos processos
de decisão, e que o comportamento dos atores é o produto de uma “conjuntura”: a
combinação histórica dos constrangimentos materiais, padrões de pensamento social e
iniciativas individuais. A abordagem refletivista tem em consideração estes fatores e
28
Para uma revisão da literatura da ciência económica sobre a guerra civil ver Blattman e Miguel (2010).
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considera que a aprendizagem e reflexão individual e social conduzem a mudanças nas
preferências e podem mesmo determinar processos de causalidade
29
.
Ao contrário dos racionalistas as preferências não são consideradas fixas. Os valores,
normas e práticas variam no tempo e entre culturas. Desta forma é necessário ter em
consideração mudanças de “consciência”. “Reflexividade” na ação social significa que
existe uma relação bidirecional entre causa e efeito em que nenhum fator pode ser
considerado como causa ou efeito. Considera-se que existe uma necessidade não de
explicar e medir o comportamento dos atores mas também compreender o significado
intersubjetivo e discursivo que influenciam as escolhas dos atores.
Lapid (1989) foca a sua análise no problema do sujeito-objeto nas ciências sociais, onde
a separação entre o investigador (sujeito) e o fenómeno (objeto) é menos clara do que
nas ciências exatas. Nas ciências sociais os seres humanos criam teorias sobre si mesmo
e a aspiração positivista behaviorista de um investigador neutral separado do fenómeno
analisado é considerada impossível de conseguir. Em alternativa Lapid destaca as
abordagens pós-positivistas nas ciências sociais onde a unidade de análise são
paradigmas constituídos por uma tríade do fenómeno (empírico), análise (teoria,
hipóteses e explicações) e a temática (os pressupostos e perspetiva epistemológica). No
centro da tríade está o cientista “social-inteletual-ético” (Hooker, 1987, p. 10; Lapid,
1989, p. 240).
Com base nestes papéis constituídos e constitutivos do cientista deve existir um enfoque
nos pressupostos subjacentes na investigação: as perspetivas que os cientistas adoptam
quando constroem o fenómeno. O empiricismo positivista (regularidades observáveis) é
assim desafiado a diferentes veis pelo pós-positivismo no sentido em que: a) o
empiricismo deve estar subordinado às perspetivas adoptadas pelo investigador; b) as
perspetivas não devem ser limitadas pela sua possível verificação; e, c) as perspetivas
podem ter uma capacidade normativa de criar as realidades empíricas previstas pelas
perspetivas. Esta preponderância das perspetivas sobre o empiricismo significa que a
objetividade e verdade são relativas, dependentes dos paradigmas situados histórica e
socialmente, das perspetivas do investigador e das diversas abordagens metodológicas
que podem ser utilizadas
30
.
As abordagens racionalistas, que utilizam a teoria de escolha racional, têm normalmente
uma posição positivista procuram mecanismos objetivos de causa-efeito que podem
ser verificados empiricamente. Este é o caso dos investigadores behavioristas da
Investigação da Paz. Abordagens refletivistas têm normalmente uma posição pós-
positivista, mais próxima de investigadores normativos dos Estudos para a Paz.
As novas abordagens epistemológicas a partir dos anos 80 são aplicadas ao estudo da
paz e conflito conduzindo ao desenvolvimento de novas áreas de investigação dentro do
vasto rótulo dos Estudos de Segurança Internacional. Estudos linguísticos salientam a
importância da língua e da representação discursiva do objeto em análise. O pós-
estruturalismo sublinha como todos os fenómenos existem somente através de uma
29
Abordagens refletivistas incluem: abordagens interpretativas baseadas na interpretação histórica e textual,
abordagens materialistas histórico-social na tradição Marxista, teoria política baseada na filosofia política
clássica e direito internacional.
30
Este pós-positivismo relativista e pluralismo metodológico colocam em questão a visão de progresso
científico de Thomas Kuhn (Kuhn, 1962) onde as revoluções científicas conduzem à adopção de novos
(melhores) paradigmas que substituem os paradigmas antigos. Em alternativa o pós-positivismo considera
a existência de uma diversidade de paradigmas igualmente legítimos.
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representação discursiva que é permeada por relações de poder. A teoria feminista, que
surge nos anos 80 inspirada nos movimentos de libertação femininos dos anos 60 e 70,
explora a dinâmica do patriarcado. A teoria crítica é herdeira da abordagem normativa
proposta por Galtung na “revolução socialista” (Pureza, 2011). Em particular, os estudos
críticos de segurança desafiam o entendimento da segurança dos realistas baseados no
setor militar, Estado e jogos de soma nula, que deve ser substituído por um projeto de
emancipação humana (Collective, 2006). O construtivismo (convencional e crítico)
sublinha o papel relevante das ideias, culturas, normas e identidades, e é adoptado pelos
Estudos Críticos de Segurança e pela Escola de Copenhague. Os pós-colonialistas
salientam as relações de poder entre o “Ocidente e o resto” e partilham a tradição
Marxista no conceito de “violência estrutural”. A segurança humana alarga o conceito de
“violência estrutural” ligando segurança ao desenvolvimento (Collective, 2006). A Escola
de Copenhague identifica a existência de um processo de “securitização” em que um ator
constitui através do discurso um determinado assunto, outro ator ou fenómeno em uma
ameaça para um determinado “objeto de referência” (referent object) (Estado,
sociedade, individuo). Com excepção do construtivismo convencional as novas
abordagens, em maior ou menor medida, têm em comum um compromisso normativo
na sua investigação: expor as relações de poder e identificar uma paz mais justa e
humana
31
.
Estes desenvolvimentos epistemológicos também tiveram uma influência na Investigação
da Paz, principalmente no que se refere à segurança do ser humano ao vel da
sociedade, grupos e indivíduos (não o Estado). Estas influências localizam-se no seu
focus no conflito intra-Estado e assuntos como etnicidade, a morte de civis pelas mãos
dos governos, violência não-estatal e, em alguns casos, o estudo da segurança dos
indivíduos, possibilitado pela existência de dados desagregados.
O mais significativo acontecimento desde o final da Guerra Fria são os ataques a 11 de
Setembro de 2001 que tiveram um impacto na agenda dos Estudos Estratégicos, Estudos
de Segurança Internacional e Investigação da Paz, mesmo que parte das suas agendas
de investigação tenha continuado inafetada. O impacto ocorre na centralidade do Estado
e pressupostos de racionalidade ao se questionar a relevância das redes de atores não-
estatais. Politicamente habilitou as perspetivas realistas Ocidentais de segurança
próximas às preocupações dos Estudos Estratégicos em detrimento de um liberalismo
internacional. Reabre também o debate sobre o uso da força, reforçando o debate dos
anos 90 sobre a transformação da guerra e das técnicas de combate, e conduz a maiores
preocupações com a proliferação nuclear. Em particular, a política externa dos EUA (e
dos países pertencentes à coligação envolvida na guerra no Iraque) foi escrutinizada
pelos investigadores pós-estruturalistas, feministas e pós-coloniais com um enfoque nas
conceptualizações discursivas da segurança e nas novas tecnologias militares Ocidentais.
Muitos dos assuntos da agenda de investigação continuam inalterados: as causas da
31
No construtivismo convencional a agência (agency) para a ordem e a paz está muito associada ao Estado
(o seu principal objeto de referência) com um reconhecimento limitado da agência de instituições ou
indivíduos, e adopta uma epistemologia de um positivismo suave” (soft-positivism). Desta forma o
construtivismo convencional é um caso excepcional de uma abordagem refletiva que é positivista. O
construtivismo convencional está preocupado com a explicação da ligação entre a construção social da
identidade (frequentemente associada com grupos etnolinguísticos), a mobilização política dessa identidade
e a violência civil (Sambanis, 2002). O construtivismo crítico coloca a agência em coletividades (o principal
objeto de referência) e adopta uma epistemologia narrativa e sociológica pós-positivista.
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guerra, segurança regional, política de grandes potências, tecnologia militar, ou assuntos
clássicos como a corrida ao armamento e dissuasão (Buzan & Hansen, 2009).
Nos anos 90 a institucionalização da Investigação da Paz continua e, de uma forma geral,
a maioria dos institutos sobrevive ao fim da Guerra Fria. A Investigação da Paz é agora
caraterizada por uma vasta rede de investigadores, escolas e revistas com um elevado
grau de especialização teórica e epistemológica.
Conclusão
A Investigação da Paz teve dois desafios epistemológicos, a “revolução socialista” e as
abordagens refletivistas e pós-positivistas, e perdura após o final da Guerra Fria. Nos
seus sessenta anos de existência a Investigação da Paz conserva a abordagem
behaviorista mas adapta o seu objeto de análise e evolui nos seus métodos de forma a
investigar desenvolvimentos no fenómeno de estudo e tecnológicos.
No início do novo século o conflito é essencialmente ao nível intra-estatal mas, de uma
forma geral, o mundo tem mais paz do que no século anterior, uma paz baseada no
modelo liberal (Gleditsch N. P., 2008).
A investigação behaviorista da Investigação da Paz, ilustrada pelo JPR, carateriza-se:
pela multidisciplinaridade (envolvendo ciências como a política, economia, sociologia ou
geografia); por unidades de análise mais desagregadas ao vel do tempo, espaço,
instituições, atores ou assuntos; por utilizar modelos de previsão; por ser
significativamente empírica, valorizando a quantificação; e, preocupada com a
transparência científica, utiliza políticas de replicação (Gates, 2014).
A análise de conflitos inter-Estado tem, em alguns casos, adoptado uma estratégia de
investigação com modelos múltiplos (teoria de jogos com estudos de caso e testes
quantitativos) e adicionou ao nível sistémico de análise o nível diádico da interação entre
Estados incorporando variáveis ao vel social (por exemplo tipos de regime, segurança
política de elites ou opinião pública) para explicar processos de decisão. Teorias de
conflito internacional tornaram-se mais complexas devido: às dificuldades em identificar
o nível de análise apropriado; aos desenvolvimentos em modelos da teoria dos jogos,
em particular os que incorporam informação incompleta; a utilizarem sequenciamento
nos processos de decisão que conduzem à guerra; e à necessidade de lidar com
problemas de endogeneidade (Levy J. S., 2000).
A investigação com a Paz como objeto de análise tem estado menos presente na
Investigação da Paz, com excepção dos estudos sobre a paz liberal, paz democrática e
paz capitalista. A investigação foca-se nas causas, duração e terminação das guerras
civis, reconstrução pós-conflito, golpes de Estado, violência setária, repressão política e
crime. Estas análises utilizam métodos de análise estatística mais sofisticados e veis
de análise mais desagregados.
A principal caraterística da Investigação da Paz é a sua abordagem behaviorista não-
normativa, juntamente com o seu enfoque na paz e conflito, caraterísticas que continuam
a congregar novos investigadores para a comunidade epistemológica.
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ABORDAGENS PACIFISTAS À RESOLUÇÃO DE CONFLITOS: UM PANORAMA
SOBRE O PACIFISMO DE PRINCÍPIOS
Gilberto Carvalho de Oliveira
gilbertooliv@gmail.com
Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio de Janeiro (Brasil). Doutor
em Relações Internacionais - Política internacional e Resolução de Conflitos, Universidade de
Coimbra. Seus interesses de investigação concentram-se na área dos Estudos da Paz e Estudos
Críticos de Segurança, com ênfase nos seguintes temas particulares: operações de paz, crítica à
paz liberal, transformação de conflitos, economia política das “novas guerras”, ação estratégica
não violenta, teoria da securitização, teoria crítica das relações internacionais, conflito civil na
Somália.
Resumo
O artigo explora as abordagens pacifistas à resolução de conflitos dentro da sua vertente
baseada em princípios, isto é, dentro da vertente que justifica a norma pacifista com base no
sistema de crenças dos atores (princípios espirituais e éticos). Nesse sentido, o artigo faz um
breve panorama da história das principais tradições que moldam o debate sobre o pacifismo
e a não-violência, destacando, em seguida, as referências centrais do pacifismo de princípios
(Mahatma Ghandi e Martin Luther King), bem como as suas principais técnicas e métodos de
resolução de conflitos.
Palavras-chave
Não-violência; Pacifismo de princípios; Resolução de conflitos; satyagraha; Tensão criativa
Como citar este artigo
Oliveira, Gilberto Carvalho de (2017). "Abordagens pacifistas à resolução de conflitos: um
panorama sobre o pacifismo de princípios". JANUS.NET e-journal of International Relations,
Vol. 8, N.º 1, Maio-Outubro 2017. Consultado [online] em data da última consulta,
http://hdl.handle.net/11144/3031
Artigo recebido em 20 de Dezembro de 2016 e aceite para publicação em 15 de Fevereiro
de 2017
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Abordagens pacifistas à resolução de conflitos: um panorama sobre o pacifismo de princípios
Gilberto Carvalho de Oliveira
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ABORDAGENS PACIFISTAS À RESOLUÇÃO DE CONFLITOS: UM PANORAMA
SOBRE O PACIFISMO DE PRINCÍPIOS
Gilberto Carvalho de Oliveira
Introdução
Os interesses, nem sempre convergentes, dos diferentes indivíduos e grupos que
coexistem nas mais diversas esferas da vida política e social fazem com que os conflitos
surjam como uma decorrência praticamente inevitável das relações interpessoais,
intercomunitárias e interestaduais. Isto não significa que o conflito seja,
necessariamente, sinónimo de agressão e violência. Embora as tentativas de superar ou
resolver os conflitos envolvam, muitas vezes, o uso da força, é importante ter em mente
que existem formas de lidar com a conflitualidade dentro de lógicas e abordagens
alternativas. O pacifismo ou o amplo espectro das abordagens pacifistas, conforme se
pretende mostrar neste artigo adota uma perspetiva particularmente crítica e
contestadora a respeito do equacionamento do conflito através da violência. Como
alternativa, as abordagens pacifistas procuram defender ativamente a paz, rejeitar o uso
da força e identificar formas radicais de resolver, através de meios não violentos, os
problemas gerados pela opressão política, pelas injustiças sociais e pela guerra.
Dessa perspetiva, pode-se dizer que as abordagens pacifistas se definem por uma norma
essencial: perante os antagonismos interpessoais, intercomunitários ou interestaduais,
adote um comportamento social não violento.
1
Ainda que, do ponto de vista moral, esse
posicionamento pareça mais coerente e justificável do que a espiral de mortes, destruição
e outros males provocados pelos conflitos violentos, a visão que prevalece na construção
social dominante, pelo menos dentro da cultura ocidental, é a de que o uso da violência
e a guerra como a sua forma mais extrema de expressão é um facto da natureza,
um reflexo da luta pela sobrevivência que faz parte da essência das coisas e, como tal,
um acontecimento que não se subordina a considerações de ordem moral. Mesmo quando
o pensamento ocidental relativiza esse belicismo realista através da tradição da guerra
justa
2
introduzindo a noção de que a guerra deve ser moralmente justificável (jus ad
1
Para uma discussão mais elaborada dessa norma pacifista, de um ponto de vista sociológico, ver Galtung
(1959).
2
A tradição da guerra justa estabelece basicamente dois conjuntos de princípios constrangedores da guerra,
a fim de evitar que ela atinja proporções extremas e absolutas. O primeiro conjunto preocupa-se com a
justificação moral para se recorrer à guerra (jus ad bellum) e envolve princípios como a necessidade de
uma causa justa, a necessidade de uma autoridade legítima para decidir sobre a guerra, o compromisso
com uma intenção certa, a opção pela guerra apenas como último recurso, uma expectativa razoável de
que a paz seja um resultado plausível da guerra e uma expectativa geral de benefícios maior ou proporcional
aos possíveis danos causados. O segundo conjunto de princípios preocupa-se com a condução da guerra,
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Abordagens pacifistas à resolução de conflitos: um panorama sobre o pacifismo de princípios
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bellum) e que, uma vez justificada, ela deve se submeter a limites e constrangimentos
na aplicação da força (jus in bello) a guerra não deixa de ser vista como um
instrumento legítimo da razão do Estado.
Assim, se de um lado a visão realista da guerra e os constrangimentos morais
introduzidos pela tradição da guerra justa ocupam as posições intelectuais e políticas
dominantes, de outro lado a atitude pacifista é deixada na margem oposta desse espectro
de posições, vista como uma postura idealista, como uma perspetiva ingênua e
enganadora da realidade. Desse ângulo, a preferência pela não-violência é
frequentemente confundida com passividade. Isto faz com que a norma pacifista pareça
conceptualmente incoerente e desprovida de senso prático, uma vez que essa suposta
passividade pode deixar a paz ainda mais distante ao estimular, em vez de desencorajar,
a agressividade de antagonistas dispostos a intervir de forma violenta. Para grande parte
dos críticos do pacifismo, portanto, o uso da força é um mal necessário, o único atalho
realista para se evitar um mal maior (Alexandra 2003, p. 589). As abordagens
comprometidas com a não-violência, por sua vez, procuram desafiar essa perspetiva ao
mostrar que, embora os conflitos façam parte da vida social e política, a violência pode
ser evitada e que os meios pacíficos podem ser convertidos em instrumentos ativos de
ação política (Björkqvist 2009). Defendendo atitudes como os protestos, os bloqueios, a
não-cooperação, a desobediência civil e um leque de outros meios não violentos para
superar os conflitos, tais abordagens tentam não só fazer com que as intervenções
violentas percam a legitimidade e o apoio popular, mas também induzir os atores políticos
violentos a adotarem atitudes mais conciliatórias e propensas ao restabelecimento do
diálogo e da negociação. É nesse ponto onde reside o maior potencial de convergência
entre o pacifismo e o campo da resolução de conflitos.
Essa convergência, porém, não se dá numa superfície livre de fricções. Se de um lado o
senso comum tende a enxergar o pacifismo através de uma caricatura baseada em
posições fundamentalistas e num fanatismo anti bélico radical, de outro lado a resolução
de conflitos tenta consolidar-se como uma ciência da paz”, buscando produzir uma base
consistente de conhecimento que supere as respostas supostamente “ingênuas” e
“idealistas” do ativismo pacifista. Apesar dessa tensão entre a agenda científica da
resolução de conflitos e a caricatura geralmente feita do pacifismo, que oculta a
complexidade e a diversidade do seu amplo espectro de posições, não se pode deixar de
notar que a resolução de conflitos, enquanto disciplina académica com um forte sentido
prático, deve muito às tradições do pacifismo e da o-violência (Dukes 1999, p. 169;
Ramsbotham, Woodhouse e Miall 2008, pp. 38-39). Os ideais e o ativismo de Gandhi e
Martin Luther King contra diversas formas de opressão, dominação e injustiças sociais,
bem como o esforço de Gene Sharp para tipificar e sistematizar a ação não violenta têm
inspirado alguns estudiosos da paz ao longo das últimas cinco décadas, provendo uma
fonte alternativa de conhecimento que oferece contribuições importantes para a busca
de métodos, procedimentos e mecanismos não violentos para lidar com os conflitos
sociais e políticos.
Ao trazer a discussão sobre o pacifismo para dentro do campo da resolução de conflitos,
alguns esclarecimentos iniciais se fazem necessários: como conceptualizar o pacifismo?
O que particulariza as abordagens pacifistas dentro do campo da resolução de conflitos?
procurando estabelecer limites para que ela seja lutada de forma justa (jus in bello) tais como a
discriminação entre os combatentes e os não-combatentes e a proporcionalidade na aplicação da força
(para uma discussão pormenorizada, ver Cady 2010, capítulo 2).
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Abordagens pacifistas à resolução de conflitos: um panorama sobre o pacifismo de princípios
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Sobre essas questões, dois aspectos cruciais devem ser destacados. Em primeiro lugar,
é importante ter em mente que não existe um pacifismo, mas sim diferentes perspectivas
que podem ser definidas dentro de um espectro contínuo de posições que varia desde
um polo baseado em princípios (onde a norma pacifista é justificada em bases espirituais
e éticas) até um polo mais pragmático (onde a norma pacifista é justificada com base na
sua eficácia estratégica). Uma importante consequência dessa visão espectral do
pacifismo é que ela admite uma diversidade de posicionamentos: se é possível rejeitar a
violência com base em princípios sobre o que é certo ou errado (pacifismo de princípios),
é igualmente possível fazer a opção pela não-violência em bases práticas (pacifismo
pragmático), levando em conta não o que é absolutamente certo ou errado, mas o que
é melhor ou pior do ponto de vistra estratégico em dadas circunstâncias (Oliveira 2016,
pp. 3-7).
Em segundo lugar, é importante compreender de que forma as abordagens pacifistas se
diferenciam das abordagens tradicionais de resolução de conflitos. Nesse sentido, dois
elementos definidores do pacifismo são determinantes: o seu caráter não institucional e
o seu ímpeto ativista. Conforme observa Oliveira (2016, pp. 7-8),
“as abordagens pacifistas nascem na sociedade civil e o
conduzidas sob a forma de movimentos sociais fora do domínio da
política convencional e dos canais institucionalizados do Estado,
distinguindo-se, portanto, dos procedimentos oficiais e diplomáticos
de gestão de conflitos”.
Além disto, diferente das técnicas formais e institucionalizadas de resolução de conflitos
(como negociação e mediação), grande parte do ativismo pacifista procura criar tensões
e confrontações com o objetivo de dar visibilidade ao conflito, obter o apoio popular e
pressionar o oponente a ceder em suas posições. Embora nada impeça que eventuais
pressões sejam também aplicadas nos processos convencionais de resolução de conflitos,
não se pode deixar de notar que os métodos formais de negociação e mediação, em
geral, são orientados para a convergência e a produção de um acordo de paz e o para
a criação de tensões, confrontações, protestos, bloqueios, não-cooperação e resistência,
que fazem parte dos mecanismos de resolução de conflitos defendidos pelo ativismo
pacifista (Oliveira, 2016, p. 8).
Pode-se dizer, enfim, que o que particulariza as abordagens pacifistas dentro do campo
da resolução de conflitos é o ativismo não violento, o seu caráter não institucional, a
mobilização da sociedade civil e a lógica de ação direta; essas características, em seu
conjunto, possibilitam que a parte menos poderosa exponha o conflito e atraia o apoio
popular para a sua causa, funcionando como um mecanismo de pressão e resistência.
Quando se fala em abordagens pacifistas à resolução de conflitos, portanto, não se quer
referir a um debate abrangente sobre a paz, aos modelos institucionais e às organizações
para a manutenção da paz ou aos mecanismos estruturais de construção da paz e
prevenção de conflitos, mas sim ao tipo particular de abordagem derivada do ativismo e
das tradições de pensamento sobre o pacifismo e a não-violência.
O objetivo deste artigo é prover um panorama geral sobre as abordagens pacifistas à
resolução de conflitos, dentro da sua vertente baseada em princípios. Isto significa que
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o foco central do texto recai sobre o pacifismo de base espiritual ou moral, uma vez que
as abordagens pragmáticas foram tratadas por este autor em outro artigo (Oliveira
2016). Dentro desse propósito, o artigo procura, na primeira seção, traçar um breve
panorama da história das principais tradições que moldam o debate sobre o pacifismo e
a não-violência. A segunda seção concentra-se no pacifismo de princípios, examinando
as suas referências centrais Mahatma Ghandi e Martin Luther King − e destacando as
suas técnicas e os seus métodos principais de resolução de conflitos. Uma seção
conclusiva destaca os principais desafios e as necessidades de desenvolvimento futuros
dessa agenda de investigação.
Breve história das abordagens pacifistas
A tradição do pacifismo e da não-violência nasce profundamente mergulhada no contexto
belicista das culturas antigas e desenvolve-se tentando desafiar, com base em princípios
morais ou religiosos, a visão realista da guerra. Se os sucessivos confrontos entre as
cidades-estado gregas, as campanhas de Alexandre o Grande e a expansão de Roma
parecem comprovar a propensão realista da humanidade para a dominação através da
guerra, toda essa tradição é confrontada na prática por aqueles que talvez sejam os
primeiros ativistas do pacifismo na história ocidental: os cristãos primitivos. Com
raríssimas exceções, os primeiros cristãos abominam a guerra, recusam a prestação de
serviço militar e negam qualquer tipo de subserviência ao imperador romano, levando
sua posição pacifista ao extremo da não-resistência, ainda que isto lhes custe a mais
cruel perseguição (Cady 2010, p. 6). Essa vertente original do pacifismo cristão, porém,
está longe de traduzir a noção de paz que se afirma com a consolidação do poder da
Igreja Católica no mundo medieval. A aliança entre o império e a igreja faz com que os
soldados, então convertidos ao cristianismo, passem a lutar nas chamadas guerras justas
e nas guerras sagradas. No período medieval, as guerras multiplicam-se não dentro
do próprio mundo cristão, lutadas entre príncipes que justificam suas causas como
“justas”, mas também entre cristãos e muçulmanos, nas chamadas cruzadas, onde as
motivações vão além das causas justas para serem justificadas em nome de Deus e de
seus representantes na terra. Assim, entre os primórdios do cristianismo e o fim da Idade
Média, o posicionamento cristão em relação à guerra passa, conforme sintetiza Bainton
(1963), por três atitudes principais: o pacifismo e a não-resistência, o envolvimento
relutante nas guerras justas e a participação apaixonada nas guerras sagradas.
Se as guerras justas e as guerras sagradas inundam o mundo medieval, deixando a
atitude pacifista no passado, presa ao contexto original do cristianismo, a emergência de
alguns setores reformistas da igreja no século dezasseis produz um renascimento do
pacifismo cristão. Ao examinar os sentidos da não-violência, Sharp (1959, pp. 46-47)
observa que o ressurgimento do pacifismo entre esses setores reformistas que ainda
hoje inspira grupos como os Menonitas, por exemplo
3
produz uma postura de repúdio
da ordem social dominante e do aparato coercivo do Estado, que se traduz em atitudes
como a condenação da prestação de serviço militar e da participação em guerras, a
renúncia ao exercício de funções nas estruturas oficiais do governo e à participação em
3
Os Menonitas, originalmente conhecidos por Anabatistas, surgiram no contexto reformista protestante na
Europa do século XVI. Desde as origens, assumiram um compromisso absoluto com a paz e a não-violência
herdado da não-resistência dos primeiros cristãos, rejeitando o uso de qualquer tipo de arma, inclusive em
autodefesa ou na proteção dos familiares e dos vizinhos. Para uma história da Igreja Menonita, ver Miller
(2000, pp 3-8).
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eleições, e a rejeição do aparato judicial do Estado. Esses grupos condenam, por
princípio, qualquer forma de violência sica e desaprovam qualquer tipo de resistência
contra as situações de opressão, mesmo através de técnicas não-violentas, considerando
que a melhor forma de influenciar e transformar o mundo resulta dos seus atos de boa
vontade, das suas exortações e dos seus exemplos.
Essa tradição pacifista cristã ressurge de forma significativa no contexto da luta pela
abolição da escravidão e da guerra civil americana. Adin Ballou provê a referência clássica
dessa posição pacifista através da obra “Não-Resistência Cristã” (Christian Non-
Resistance), publicada em 1846. O autor define o pacifismo cristão, ou mais
precisamente a não-resistência cristã, através de um conjunto de comportamentos, entre
os quais se destaca a rejeição absoluta a qualquer ato que provoque a morte ou o
ferimento de seres humanos, seja em autodefesa, em defesa da família ou na proteção
de qualquer bem ou valor. Dessa primeira regra, Ballou deriva uma série de outros
comportamentos, tais como não integrar qualquer força armada ou micia como oficial
ou soldado; não eleger, aprovar ou integrar qualquer governo cuja constituição ou
aparato legal autorize ou tolere a guerra, a escravidão, a pena de morte ou qualquer
atitude que provoque dano ou ferimento às pessoas; não participar de qualquer
corporação oficial ou corpo político cujos regulamentos autorizem ou obriguem seus
funcionários a prestarem serviços compulsórios a governos de constituição violenta
(Ballou 1846, pp. 26-28).
O pacifismo de Ballou, que segundo alguns autores é o primeiro a adotar o termo “não-
resistência” como rótulo (Koonts e Alexis-Baker, 2009, p. 254), dialoga não com
outros pacifistas americanos como William Garrison, que rejeita absolutamente a
guerra e o uso da força militar, seja ofensivamente, seja defensivamente (1966, p. 125)
mas também com a obra do escritor russo León Tolstoy, com quem Ballou discute suas
ideias em cartas trocadas em 1889-1890 (Carpenter 1931). Aproximando-se de Ballou
através de uma interpretação particular da mensagem cristã que reprova não o
assassinato e o ferimento de seres humanos, mas também qualquer forma de violência,
Tolstoy considera que os governos e seus mecanismos de controlo social estão eles
próprios assentados no uso da violência através das suas forças armadas (1966, p. 161)
e, por essa razão, situa ao nível da consciência de cada indivíduo, e não ao vel da
política e das estruturas governamentais, a fonte primordial do compromisso com a não-
violência. Segundo as palavras do próprio escritor russo, “a recusa dos indivíduos de
tomar parte do serviço militar” é “o caminho mais fácil e certo para o desarmamento
universal” (1968a, p. 113) e constitui a “chave para a solução da questão” da guerra e
de outras formas de violência (1968b, p. 15). Se nada desafia mais a vontade de Deus
do que matar alguém, diz Tolstoy, não se pode obedecer um homem que dá uma ordem
de matar: “um cristão não pode ser um assassino e, portanto, não pode ser um soldado”
(1968c, p. 37).
Ainda no contexto americano de meados do século dezanove, Henry Thoreau também
desponta no movimento pacifista ao defender a ideia da “desobediência civil” ou,
conforme o título do ensaio publicado em 1849, “desobediência ao governo civil”. Através
de um discurso que enfatiza a desobediência e a não cooperação, Thoreau defende o
afastamento do governo, a renúncia a cargos oficiais e a recusa ao pagamento de taxas
e impostos que, do seu ponto de vista, são as fontes vitais de recursos que financiam a
guerra e a escravidão. Conforme observa seu biógrafo Robert Richardson Jr. (1986, p.
127), Thoreau aproxima-se da ideia de Ballou de que o governo nada mais é do que “a
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vontade de um homem de exercer absoluta autoridade sobre outro homem”, mas
distancia-se em relação às bases invocadas para essa afirmação: a ênfase de Thoreau,
tanto do ponto de vista lógico quanto retórico, não é religiosa, mas moral. Para o autor,
as pessoas não se obrigam a seguir cegamente seus governos se elas acreditam que as
regras e as leis desse governo são injustas.
O que é importante observar, com base no que foi até aqui exposto, é que o pacifismo
sectário religioso faz da atitude não violenta uma questão de vocação pessoal, uma
questão de consciência individual fundamentada nas escrituras sagradas e na autoridade
das fontes eclesiásticas. Esse pacifismo, nos termos defendidos por Ballou ou Tolstoy por
exemplo, aproxima-se muitas vezes de uma espécie de anarquismo ao ver o Estado como
uma forma de institucionalização da violência, como uma forma de organização política
que usa a opressão e a agressão e a guerra como as suas expressões máximas como
instrumentos de dominação e controlo social. Por esta razão, essa vertente do pacifismo
rejeita o Estado e seu aparato coercivo, bem como a participação na política
institucionalizada, e defende uma espécie de desobediência civil fundada na primazia da
autoridade divina. Muste, outro conhecido pacifista cristão americano, forja o termo
“Desobediência Sagrada” como uma virtude individual, necessária à auto preservação
espiritual, numa era em que o consentimento, o conformismo e o alinhamento são “os
instrumentos usados pelo governo totalitário para sujeitar os homens e os envolver numa
guerra permanente” (1992, p. 208).
A rejeição do Estado hierárquico e centralizado e a saída da vida política defendida pela
não-resistência cristã têm sido vistas por alguns analistas, conforme observa Atack
(2012, p. 172), como uma espécie de escapismo; ela não consegue desafiar de forma
ativa as estruturas sociais que constituem os sistemas que produzem a opressão, as
injustiças e a guerra. O que esses analistas querem enfatizar é que existe uma lacuna
entre o “pacifismo de consciência individual” e a crítica social e política ao sistema da
guerra que não consegue ser superada pela não-resistência cristã. Em relação a esse
aspeto, os desenvolvimentos posteriores ocorridos na tradição baseada em princípios
mostram posições menos absolutas do pacifismo, conforme se observa no ativismo de
Mahatma Ghandi e de outros proponentes da não-violência em meados do século vinte,
como Martin Luther King. Essas figuras icónicas do pacifismo do último século fornecem
exemplos importantes de como a consciência religiosa individual pode ser criativamente
combinada com uma inspiração ético-filosófica universalizante e com uma crítica social
e política radical ao status quo, levando a uma abordagem muito mais complexa,
nuançada e integrada do pacifismo do que as posições absolutas tentam prover. Ghandi,
talvez mais do que qualquer outro ativista, consegue trazer à tona, através de um criativo
processo de síntese de várias referências asceticismo antigo indiano, hinduísmo,
anarquismo, Sermão da Montanha, Bhagavad-Gita e pragmatismo político (MacQueen
2007, p. 329) um sistema filosófico abrangente e complexo que vai além da não-
resistência cristã e exerce um impacto significativo na política mundial em meados do
século vinte. Designada por Ghandi através do termo satyagraha, sua abordagem provê
uma importante ligação entre o compromisso moral e espiritual com a não-violência e a
as possibilidades pragmáticas de resistência não-violenta em massa contra a opressão
política e social, sem que isto implique numa negação absoluta dos instrumentos de força
(Atack 2012, p. 173). Diferentemente do pacifismo imediatista de Tolstoy e de outros
pacifistas cristãos, Gandhi defende, segundo as interpretações de Atack (2012, p. 159)
e Roberts (2009), um pacifismo de “substituição progressiva”, o que implica em aceitar
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que a substituição da violência pela não-violência é um processo transformativo de longo
prazo. Da perspetiva de Gandhi, observa Atack, até que uma sociedade pacifista ou não
violenta seja alcançada (objetivo que ele considera realizável através da crescente
expansão da prática da não-violência a todas as esferas da vida política e social, inclusive
nas relações internacionais), a existência das forças armadas e o direito do Estado de
empregar a violência pode ser tolerado em determinadas circunstâncias (por exemplo,
em autodefesa contra agressões externas em sociedades ainda não preparadas para a
resistência não violenta, ou em situações de manutenção da ordem social e do estado de
direito, quando isto beneficia todos os cidadãos e não fere o contrato social).
Martin Luther King, em sua campanha em prol dos direitos civis dos negros americanos
nas décadas de 1950 e 1960, retoma o pacifismo cristão e, numa síntese com a
satyagraha de Ghandi e a filosofia do amor incondicional expressa na palavra grega
ágape (1957; 1961), defende a resistência não violenta e a desobediência civil, e forja o
conceito que é central na sua filosofia de mudança social por meios não violentos: a
criação da comunidade amada” (beloved community). Nesse sentido, King considera
que a resistência não violenta e a desobediência civil não devem ser usadas como uma
via para humilhar ou derrotar o oponente, mas sim como uma forma de ganhar a sua
amizade e a sua compreensão. O objetivo, segundo King, é gerar o que ele chama de
“tensão criativa”, isto é, trazer as tensões e contradições à superfície, a fim de expor
publicamente os ressentimentos mais profundos, mostrar as injustiças presentes na
situação, tocar a consciência dos oponentes e do público em geral e, a partir do
desconforto gerado por essa crise, levar a uma situação em que as pessoas passem a
desejar a resolução do conflito e a valorizar a negociação (King 1963). A consequência
esperada, portanto, deve ser a reconciliação e a criação de uma “comunidade amada”,
unida por uma afeição incondicional inclusive entre aqueles que anteriormente se
opunham e tentavam se desafiar. A desobediência civil e a resistência não violenta, desta
perspetiva, devem ser usadas contra sistemas de opressão e injustiça, não contra
indivíduos, e a vitória, quando ocorre, é de um sistema justo sobre um sistema injusto e
não de um homem sobre o outro (King 1957, pp. 12-13).
O que esta breve reconstituição histórica deixa ver é que, mesmo dentro da tradição
baseada em princípios, as ideias do pacifismo e da não-violência e a sua relação com a
guerra não se reduzem a um denominador. um espectro de pontos de vista
distintos que tornam essas ideias complexas e cheias de nuanças. Dentro das bases
espirituais de onde emerge a o-resistência dos primeiros cristãos, dos grupos sectários
reformistas como os Menonitas e os Amish e de pacifistas cristãos como Ballou, Garrison
e Tolstoy, surge uma espécie de “pacifismo absoluto” que é visto como consequência
inevitável da palavra de Deus e de uma interpretação particular dos textos sagrados,
segundo a qual o assassinato de seres humanos e a violência são pecados que agridem
os princípios nucleares do cristianismo.
4
Algumas interpretações das filosofias ou
tradições espirituais asiáticas, como o budismo por exemplo, expandem essa norma
pacifista para reprovar não só qualquer tipo de ofensa física e psicológica contra os seres
humanos, mas também a violência contra todas as demais criaturas vivas e, em alguns
4
É importante destacar que se trata de uma interpretação particular porque do mesmo modo que é fácil para
alguns encontrar nas escrituras passagens que orientam a consciência pacifista, é possível para outros
encontrar citações que justificam o uso da violência em nome da divindade (as Cruzadas ilustram bem esse
aspeto). Isto ocorre não nas interpretações dos textos-base do cristianismo (Antigo e Novo
Testamentos), mas também nas interpretações de outros livros sagrados como o Corão, Lun Yu, Wu Ching,
Bhagavad Gita, Tanakh, Talmud, Tao-te-Ching, Guru Granth Sahib e Veda (Johansen 2009, p. 145).
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casos, contra o ecossistema global como um todo. Um exemplo claro desse tipo de
posicionamento é provido por Dalai Lama, cujas bases espirituais budistas não só
proíbem o uso de qualquer forma de violência física contra a ocupação chinesa em curso
no Tibete (Howes 2013, p. 429), mas também nutrem uma reverência absoluta pelos
seres vivos que resulta numa conceção de responsabilidade universal pela não-violência
em torno da humanidade e da natureza como um todo (Jah 2003, p. 12). Se esses
exemplos mostram que o pacifismo absoluto decorre de uma moralidade fundada em
tradições espirituais e textos sagrados, nada impede que o mesmo tipo de convicção
possa ser derivado de uma moralidade secular fundada na razão. Conforme argumenta
Cady (2010), o “imperativo categórico” de Kant
5
segundo o qual todos os homens
devem tratar uns aos outros com dignidade e nunca como meios para outros fins pode
ser interpretado como um repúdio absoluto a qualquer atitude de violência física ou
psicológica contra seres humanos, justificado através de uma norma de conduta objetiva
e racional e o através de um princípio divino. Qualquer que seja a base reclamada para
justificar essas posições, o ponto-chave é que a adoção do pacifismo absoluto depende
de uma espécie de conversão individual, de uma conscientização pessoal, profundamente
enraizada numa doutrina espiritual ou filosófica, quanto ao valor supremo da vida.
Embora altamente influenciados por suas respetivas heranças espirituais e por seus
ideais éticos sobre a vida em sociedade, tanto Gandhi quanto King afastam-se desse polo
absoluto do pacifismo. Nesse sentido, eles assumem um compromisso com a não-
violência em suas lutas sociais e políticas mais imediatas e, ao mesmo tempo, nutrem
um compromisso mais cosmopolita e de longo prazo por um mundo pacífico a ser
alcançado através da expansão progressiva das práticas da o-violência a todas as
esferas da vida social e política, inclusive como meio de defesa nacional (Gandhi 2005,
pp. 95, 98) e instrumento de resolução de conflitos em escala internacional (King 1967,
p. 253). Enquanto as sociedades o atingem esse estágio mais avançado, ambos
admitem que a adoção de meios não violentos pelas organizações da sociedade civil e
pelos movimentos sociais em suas lutas locais precisa conviver com o uso eventual da
força pelos Estados em situações específicas, como em autodefesa ou na manutenção do
estado de direito, em estrita conformidade com a constituição nacional e com o direito
internacional (Atack 2012, p. 160). Assim, nem sempre o compromisso com a não-
violência em bases religiosas e morais implica numa rejeição absoluta e imediata a todas
as formas de violência; a “substituição progressiva” traduz essa posição ao mostrar que
a filosofia da não-violência pode envolver uma visão de longo prazo que não requer uma
rejeição completa e imediata de todas as formas de violência estatal, enquanto não se
completa o processo de aprendizado social capaz de forjar uma consciência mais plena e
abrangente em favor de uma sociedade não violenta.
Procurando superar e ao mesmo tempo contestar o pacifismo de princípios, o estágio
mais recente dessa narrativa histórica tem tentado enfatizar o caráter pragmático e
5
O “imperativo categórico” é concebido por Kant como o “princípio supremo da moralidade”. Esse princípio
não é derivado de nenhuma ordem divina, mas sim da razão, sendo concebido pelo filósofo como uma lei
objetiva, máxima e incondicional, que serve para guiar as ações de todos os seres racionais. Isto faz de
cada indivíduo um agente moral, livre e independente, capaz de derivar da sua própria razão uma norma
universalizável para orientar a sua conduta prática, sem a necessidade de qualquer autoridade externa,
inclusive a divina. O imperativo categórico é formulado através de diversas máximas; no sentido
mencionado neste artigo, dentro do argumento de Cady acima referido, o imperativo é expresso por Kant
através da seguinte fórmula: “Age de tal maneira que uses a humanidade, tanto na tua pessoa como na
pessoa de qualquer outro, sempre e simultaneamente como fim e nunca simplesmente como meio” (Kant
2007, p. 69).
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estratégico da ação não violenta. Ao contrário da rejeição da violência em bases
espirituais ou morais, essa vertente mais pragmática recorre a argumentos políticos e à
teoria das fontes de poder para compreender a lógica e a eficácia da não-violência. Nesse
sentido, o trabalho pioneiro de Gene Sharp, ainda no final dos anos 1960, abre o caminho
para toda uma corrente de pensamento que concentra os seus esforços de teorização da
não-violência com base na eficácia política dos seus meios de ação e não nos sistemas
de crenças dos atores. Conforme destaca Sharp, “a luta não violenta é identificada pelo
que as pessoas fazem, não pelo que elas acreditam” (2005, p. 19). Desse modo, através
de uma reavaliação pragmática dos escritos de Gandhi e da análise quantitativa e
qualitativa de um grande número de casos históricos de ação não violenta em rebeliões
coloniais, conflitos internacionais, lutas pela independência, resistências contra
ditaduras, genocídios e ocupações estrangeiras, movimentos anti escravidão,
movimentos em prol dos direitos dos trabalhadores, das mulheres e de outros direitos
civis, a tradição pragmática tem buscado identificar elementos que permitam construir
uma teoria da não-violência centrada no potencial de poder das pessoas e nas
possibilidades de converter esse potencial em poder efetivo, a fim de provocar mudanças
sociais e políticas fora dos canais institucionais convencionais, sem recorrer ao uso da
violência sica (Sharp 2005, p. 19; Howes 2013, p. 428). Considerando que o foco deste
artigo recai sobre o pacifismo de princípios, essa tradição pragmática não será aqui
examinada.
6
Técnicas e métodos do pacifismo de princípios
A fim de prover uma exposição mais organizada e didática das cnicas e métodos
empregados nas abordagens pacifistas, esta seção concentra-se na tradição baseada em
princípios, embora seja importante reconhecer que o pacifismo de princípios e o pacifismo
pragmático não demarcam dois polos irreconciliáveis e mutuamente excludentes.
Conforme se discutiu nas seções anteriores, as abordagens pacifistas formam um
espectro contínuo de posições que admite não apenas pontos de vistas absolutos, mas
também posições mais nuançadas, flexíveis e mescladas. Embora esta seção seja
estruturada em torno das referências centrais do pacifismo de princípios, isto não
significa que os meios defendidos em cada abordagem devam ser vistos de forma isolada
e independente. Existe uma porosidade entre essas abordagens, de modo que as suas
técnicas e os seus métodos são muitas vezes coincidentes, parcialmente coincidentes ou
complementares. Desse modo, é importante ter em mente que o que se altera
fundamentalmente entre as abordagens baseadas em princípios e as abordagens
pragmáticas o as razões evocadas para justificar a norma pacifista e as estratégias
defendidas para a sua aplicação, e não necessariamente as suas técnicas e métodos.
Mahatma Gandhi e Martin Luther King são geralmente considerados os autores mais
representativos do pacifismo de princípios. Embora tanto Gandhi quanto King incorporem
um viés pragmático às suas abordagens à resolução de conflitos, suas atitudes e seus
escritos são fortemente influenciados por suas respetivas tradições espirituais, por suas
visões e ideais sobre a vida em sociedade e pelo compromisso ético com a emergência
de uma nova ordem social. Desse modo, embora devam ser reconhecidas as posições
multifacetadas desses autores, esta seção segue a tendência dominante na bibliografia
das abordagens pacifistas, classificando-os dentro da tradição baseada em princípios. Ao
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Para um panorama sobre essa vertente pragmática, ver Oliveira (2016).
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final desta seção, espera-se alcançar uma visão abrangente das suas abordagens à
resolução de conflitos: as cnicas da satyagraha defendida por Gandhi e da “tensão
criativa” proposta por King.
Antes de prosseguir, é importante esclarecer os sentidos dos termos “técnica” e “método”
adotados nesta seção. Embora essas palavras sejam geralmente usadas de forma
intercambiável, alguns dicionários definem a técnica como um conjunto de
conhecimentos, processos ou princípios práticos para se obter um resultado, enquanto o
método é definido num nível operacional mais baixo, como a maneira de fazer, como um
modo de proceder. Dessa perspetiva, a técnica é vista de um ângulo mais abrangente,
englobando um conjunto de métodos (ver, por exemplo, os dicionários Porto Editora ou
Michaelis). Gene Sharp emprega esses dois termos num sentido que reflete essas
definições. Segundo o autor, a ação não violenta é uma cnica que engloba um amplo
conjunto de métodos de protesto, não-cooperação e intervenção (2005, p. 49). Outros
autores definem a satyagraha de Gandhi como uma técnica social de ação não violenta
que envolve diversos métodos como a não-cooperação, a desobediência civil, a greve ou
o bloqueio (Bondurant 1988, pp. 3-4, 12; Jah 2003, p. 27), o que indica uma
compreensão semelhante sobre a relação entre técnica e método. Esta seção segue essas
indicações, empregando o termo técnica num sentido mais amplo para denominar o
conjunto de conhecimentos, meios e habilidades para se atingir um fim, enquanto o
termo método é compreendido num sentido operacional mais específico para designar
cada tipo de procedimento particular empregado na realização de uma técnica.
Mahatma Gandhi e a Força da Verdade: a Satyagraha
O ativismo de Gandhi tem raízes profundas na desobediência civil, mas vai muito além
da forma como essa noção se desenvolve dentro da tradição da não-resistência cristã e
do pacifismo de consciência moral de Thoreau. Conforme discutiu-se no panorama
histórico da seção anterior, a desobediência civil surge fortemente associada à ideia de
que as pessoas não se obrigam a obedecer cegamente seus governos se elas acreditam,
por razões religiosas ou por convicções morais, que as regras, as leis e as práticas de
controlo social desses governos ofendem os princípios supremos das escrituras sagradas
(como defendem Ballou e Tolstoy) ou parecem injustas (como defende Thoreau). Dentro
da obra e do ativismo desses autores, a desobediência civil é geralmente tratada como
uma consideração de ordem individual: a recusa ou a resistência a determinadas leis é
justificável na medida em que elas ofendem a consciência pessoal ou parecem
questionáveis à luz de uma “lei superior” que, aos olhos de cada indivíduo, assumem
uma prioridade absoluta (como a lei de Deus ou algum princípio moral absoluto). Desse
modo, a ideia da desobediência civil surge, conforme destaca Bondurant (1988, p. 3),
num contexto de competição entre valores espirituais ou morais conflituantes e a solução
desse dilema espiritual ou metafísico é encontrada, conforme defendem os chamados
pacifistas de consciência, numa escolha íntima e individual.
O que é absolutamente marcante no ativismo de Gandhi ao longo das suas
experimentações com a ação não violenta, primeiramente na África do Sul e
posteriormente em diversos movimentos sociais e na luta pela independência da Índia,
é que a desobediência civil deixa de ser uma questão de consciência individual para ser
reelaborada dentro da consciência coletiva no contexto de grandes mobilizações
populares. Dentro dessa expansão conceptual surge uma técnica muito mais complexa e
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abrangente, que Gandhi batiza de satyagraha, que vai além da resistência passiva e
coloca a desobediência civil dentro de um conjunto mais amplo de métodos que inclui
protestos, boicotes, greves, o-cooperação, usurpação de funções governamentais e
construção de instituições paralelas. Proveniente do sânscrito “satya” (verdade) e
“agrah” (força, insistência) a satyagraha (força da verdade) é concebida como uma
técnica de resolução de conflitos através do mecanismo de conversão. Isto significa que
a satyagraha não se limita à sua dimensão de resistência, mas pretende atuar na
autotransformação das partes envolvidas no conflito através da conversão dos seus
“corações e mentes” pela sinceridade e pela verdade. Trata-se, portanto, de uma técnica
não violenta de resolução de conflitos que busca a conversão das partes através da busca
da verdade (Jha 2003, p. 27), trazendo à tona o que parece errado” ou permanece
invisível na situação (injustiças, desigualdades, opressões, restrições à liberdade, etc.).
Segundo Jha (2003, p. 25), o que é particularmente único na contribuição de Gandhi é
que princípios tradicionalmente restritos a uma esfera íntima e individual, como a busca
da verdade e a rejeição à violência, são transformados num instrumento de mobilização
de massas.
uma clara dimensão pragmática, mas há também um compromisso com a verdade
que, em Gandhi, tem uma forte dimensão espiritual. A satyagraha é literalmente fundada
na “força da verdade” e é através de uma noção espiritual de verdade legada pelo
mosaico religioso que lhe serve de influência e percebida como um conceito absoluto e
divino que Gandhi justifica a não-violência: a “Verdade talvez seja o mais importante
nome de Deus” e “onde Verdade, há conhecimento” (Gandhi 2005, pp. 39-40); o
homem, porém, é incapaz de conhecer a verdade nesse estado de pureza, de atingir a
verdade em tal perfeição (Gandhi 1996, p. 37). Assim, “porque o homem não é capaz de
conhecer a verdade absoluta”, ele não é “competente para punir” (Gandhi 1996, p. 51),
ou seja, ele não pode justificar a violência em nome do que não consegue absolutamente
conhecer. Para Gandhi, portanto, a não-violência (ahimsa) e a verdade (satya) são tão
interligadas “que elas parecem ser as duas faces de uma mesma moeda”: a o-violência
é o meio e a verdade é o fim (1996: 46). Segundo a interpretação de Bondurant (1988,
pp. 16-17), o que Gandhi quer dizer é que, perante a incapacidade de conhecer a verdade
em seu estado de perfeição, as pessoas devem manter uma abertura permanente para
aqueles que pensam diferente; por esta razão, em vez de tentar resolver as diferenças
usando a violência contra o oponente, os homens devem tentar livrar-se do erro através
da prática da paciência e da compaixão. É através desse caminho que as pessoas se
aproximam da verdade (ou seja, de Deus). Em suma, a satyagraha é uma força na
direção da verdade, é um impulso para seguir a verdade como uma questão de princípio,
a fim de reduzir o impacto negativo dos erros e tentar chegar o mais próximo possível
da perfeição (Gandhi 1996, p. 37). Ainda que inatingível em seu sentido absoluto (ou
seja, divino), a verdade funciona como um princípio operativo, como uma norma
reguladora da conduta das partes envolvidas no conflito.
Se a abordagem de Gandhi se sustenta em alicerces fortemente cimentados em princípios
espirituais e morais, é interessante notar que as suas experimentações com a satyagraha
se desenvolvem dentro de um quadro igualmente pragmático e estratégico. A satyagraha
não surge pronta na obra e no ativismo de Gandhi. Ao contrário, ela é desenvolvida ao
longo de quase meio século através de progressos e retrocessos nas experiências de
resistência conduzidas na África do Sul e na Índia. O nascimento da satyagraha ocorre
na África do Sul, por volta de 1908, no contexto do movimento de resistência liderado
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por Gandhi contra as políticas discriminatórias dos colonizadores britânicos voltadas para
a comunidade de indianos naquele país africano. Após essa experiência inicial na África
do Sul, a satyagraha é implantada na Índia, não em diversos movimentos por reformas
sociais, mas principalmente na luta pela independência do país e na guerra civil entre
hindus e muçulmanos no final da década de 1940. Um dos argumentos centrais do
ativismo de Gandhi, conforme ele explica em toda a sua simplicidade, é o seguinte:
Quando o meu pai impõe uma lei que parece repugnante à minha
consciência, eu penso que o caminho menos drástico a adotar é
respeitosamente dizer a ele: ‘pai, eu não posso obedecer isto’… Eu
tenho submetido esse argumento à aceitação dos indianos e de
todas as pessoas. Em vez de me sentir furioso com meu pai, eu
devia respeitosamente dizer-lhe ‘eu não posso obedecer essa lei’.
Não vejo nada de errado nisto. Se não é errado dizer isto ao meu
pai, não me parece errado dizer isto a um amigo ou a um
governo…”. (Gandhi 1996, pp. 62-63)
Portanto, o que Gandhi propõe através da satyagraha é uma técnica de resistência
através da “desobediência respeitosa” aos opressores. Isto implica em ser transparente
e verdadeiro (ou seja, ser sincero e honesto em seus propósitos), em nunca usar a
violência física, em substituir o ódio pelo amor e pela compaixão, em não humilhar o
oponente, e em assumir as eventuais punições e sofrimentos que possam resultar dessa
atitude (Gandhi 1996, pp. 80-83). Para Gandhi, a satyagraha é “um teste de sinceridade”
que envolve “um autossacrifício sólido e silencioso”; é na “humildade”, na
“autocontenção” e na “correção de atitudes” onde reside a maior força da satyagraha,
pois é através dessas atitudes que a verdade e a sinceridade de propósitos são mostradas
aos oponentes (1996, pp. 48-49).
A partir dessas indicações, algumas delimitações conceptuais são importantes. Em
primeiro lugar, a satyagraha não se confunde com a resistência passiva enquanto técnica
de ação não violenta. Embora Gandhi adote o termo resistência passiva no início de seu
ativismo na África do Sul, ele logo rejeita essa nomenclatura por duas razões principais.
Primeiramente, o termo resistência passiva não traduz o poder ativo da não-violência.
Em segundo lugar, a resistência passiva que Gandhi observa no movimento sufragista
das mulheres
7
e no movimento não conformista
8
do final do século dezanove e início do
século vinte na Grã-Bretanha instrumentaliza a não-violência como uma tática
oportunista que, do seu ponto de vista, atende interesses egoístas e muda de acordo
com a conveniência (Gandhi 1996, pp. 51-52). Ao comentar esses aspetos, Dalton (1996,
7
Ativismo em defesa do direito ao voto feminino na Grã-Bretanha, conduzido pelo movimento intitulado
Women´s Social and Political Union, também conhecido por suffragettes, na primeira década do século XX.
8
Aqui, Gandhi refere-se à campanha de resistência passiva conduzida pelas chamadas igrejas não
conformistas da Inglaterra e de Gales, integradas por protestantes que, não sendo membros da Igreja
Anglicana (como Metodistas, Batistas, Congregacionalistas, etc.), contestavam o Education Act de 1902.
Essa lei, que integrava as escolas religiosas ao sistema estatal de ensino e passava a cobrar taxas para a
sua manutenção e funcionamento, era percebida pelas igrejas não conformistas como uma fonte de
privilégios no sistema educacional para a igreja oficial anglicana. Organizado em torno do National Passive
Resistance Committee, o movimento de resistência dos não conformistas, que se caracterizava basicamente
pela recusa de pagar essas taxas de educação, manteve-se ativo por cerca de quatro anos, produzindo
reações das autoridades britânicas que levaram, dependendo do caso, a confisco de bens, leilões de
propriedades e prisões das pessoas envolvidas nos atos de resistência (Hunt 2005, pp. 167-171).
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p. 10) explica que a intenção de Gandhi é mostrar que a resistência passiva é não violenta
apenas na forma, mas não em substância. Os movimentos de resistência passiva
criticados por Gandhi geralmente incorporam discursos de ódio e desrespeito ao
oponente que não se coadunam com a sua visão de ação não violenta, daí a sua opção
de desenvolver uma técnica própria compatível com a sua base espiritual e moral.
Embora essa crítica pareça motivada por uma mera questão de princípios, as suas
implicações estratégicas são cruciais dentro da visão de Gandhi sobre a resolução de
conflitos. Considerando que a satyagraha opera através do mecanismo da conversão, as
características defendidas por Gandhi a sinceridade, a humildade, a civilidade, a
disciplina, o respeito pelo oponente, o controlo pessoal e a disposição para o
autossacrifício são virtudes fundamentais para a efetividade do mecanismo de
conversão. É através da manifestação dessas virtudes que os grupos de resistência
conseguem “desarmar a raiva e o ódio” do oponente disposto a usar a força (Gandhi
1996, p. 47).
A segunda delimitação conceptual importante refere-se à relação entre a satyagraha, a
desobediência civil e a não-cooperação. Embora Gandhi não se refira textualmente à
satyagraha como “técnica” e à desobediência civil e à não-cooperação como “métodos”,
é nesse sentido que ele hierarquiza esses termos. Para ele, a desobediência civil
(entendida como a violação civil de decretos legais considerados amorais) e a não-
cooperação (entendida como a recusa popular de cooperar com Estados considerados
corruptos e opressores) são “ramos” da satyagraha que, por sua vez, engloba todo o
conjunto de formas “de resistência não violenta que reivindicam a Verdade” (Gandhi
1996, p. 51). Nesse sentido, pode-se afirmar que a satyagraha é uma técnica social de
ação não violenta, tendo a verdade por princípio, que pode ser colocada em prática
através de um conjunto de métodos, entre os quais a não-cooperação e a desobediência
civil.
Em seu abrangente estudo sobre a satyagraha, Bondurant destaca o facto de os escritos
de Gandhi formarem um conjunto fragmentado de discursos, declarações, sermões e
respostas aos críticos, geralmente motivados por questões imediatas relacionadas aos
seus experimentos com a satyagraha, não conseguindo prover, dessa forma, uma
explanação sistematizada da sua técnica, dos seus métodos e da sua estratégia de ação.
Para além disto, é importante notar que o assassinato de Gandhi em 1948, enquanto ele
ainda prosseguia com as suas experimentações com a satyagraha no contexto dos
conflitos religiosos na Índia, impediu que ele chegasse a uma visão completa da sua
técnica de ação não violenta. Por essas razões, Bondurant (1988, p. 7) considera que os
textos de Gandhi não devem ser interpretados em termos de uma teoria política, mas
sim como partes integrantes do seu ativismo político dentro de um longo processo de
experimentações que não chegou a produzir uma explanação sistemática da sua técnica
e dos seus métodos de ação o-violenta. Desse modo, recorrendo não aos escritos
de Gandhi, mas principalmente ao estudo pormenorizado das principais campanhas de
satyagraha conduzidas na Índia, Bondurant tenta completar esse esforço de teorização,
identificando nove passos na aplicação dessa técnica, onde diversos métodos de ação
não violenta podem ser identificados (ver tabela 1).
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Tabela 1: Principais passos na estratégia de implantação da satyagraha
(1)
Negocie com o oponente
(2)
Prepare os grupos de resistência para a ação direta
(3)
Envolva-se em atos de protesto (demonstrando o nível de oposição)
(4)
Emita um ultimato
(5)
Implemente boicotes económicos e greves
(6)
Implemente campanhas de não-cooperação
(7)
Implemente campanhas de desobediência civil
(8)
Usurpe as funções governamentais
(9)
Construa instituições governamentais paralelas
Fonte: Bondurant (1988, p. 40)
Entre esses métodos, destacam-se a negociação, o protesto, os boicotes e as greves, a
não-cooperação, a desobediência civil, a usurpação de funções governamentais e a
criação de instituições paralelas. Embora os passos envolvidos na satyagraha e a escolha
dos métodos sejam determinados pelas circunstâncias específicas de cada situação,
Bondurant considera, a partir dos casos estudados, que a técnica da satyagraha pode ser
explicada através desse conjunto de nove passos, servindo não como um parâmetro
geral da técnica proposta por Gandhi, mas também como uma moldura de análise para
o estudo de cada campanha de satyagraha em particular.
Ainda que se reconheçam as dificuldades apontadas por Bondurant nos escritos de
Gandhi, é possível identificar em sua obra algumas indicações claras sobre dois métodos,
a não-cooperação e a desobediência civil, que Gandhi considera particularmente
relevantes na satyagraha e que devem ser aplicados nesta ordem sequencial em razão
do maior grau de complexidade envolvido na desobediência civil, tanto em termos de
organização, disciplina e treino da população, quanto em termos da disposição para o
autossacrifício perante a possibilidade de reações violentas do oponente. A resolução
sobre a o-cooperação emitida por Gandhi em 1920, dando origem a uma campanha
sistemática de resistência da população indiana contra a dominação britânica entre 1920
e 1921, ilustra de que modo o método da não-cooperação é concebido e desdobrado em
diversos outros métodos (ver tabela 2).
Tabela 2: Síntese da resolução sobre a não-cooperação com o governo colonial britânico
emitida por Gandhi
(a)
Entrega de títulos e cargos honoríficos e renúncia a cargos nomeados em organismos locais
(b)
Recusa a comparecer a reuniões governamentais e a outros eventos oficiais e não-oficiais
(c)
Retirada gradual das crianças das escolas e dos colégios pertencentes, apoiados ou
controlados pelo governo colonial e transferência das crianças para escolas e colégios das
províncias locais
(d)
Boicote gradual aos tribunais britânicos e estabelecimento de tribunais privados para a
resolução de litígios
(e)
Recusa da parte dos militares, clérigos e trabalhadores indianos de atender ao
recrutamento britânico para servir no estrangeiro
(f)
Retirada da candidatura a cargos eletivos e recusa dos eleitores de votar em candidatos
que se ofereçam para a eleição
(g)
Boicote às mercadorias provenientes da Grã-Bretanha
Fonte: Gandhi (1996, pp. 59-60)
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Perante o sucesso dessa campanha de não-cooperação em 1921, Gandhi passa a
considerar a possibilidade de escalar a ação não violenta para uma campanha de
desobediência civil em massa que, do seu ponto de vista, constitui um método mais
desafiador e complexo de ação não violenta. Por uma série de razões, incluindo a sua
prisão entre 1921 e 1924, Gandhi é levado a postergar esse projeto e a conduzir, nos
anos que se seguem à sua libertação, um programa de reformas sociais em menor escala,
como a abolição da intocabilidade por exemplo,
9
até que o sucesso de uma pequena
campanha de resistência ao pagamento de taxas no distrito de Bardoli, em 1928, prepara
o terreno para uma longa campanha de desobediência civil em escala nacional, iniciada
em 1930. Essa ação histórica, que Dalton considera a maior campanha de desobediência
civil jamais vista (1996, p. 72), fica conhecida como “a satyagraha do sal”, pois envolve
a resistência ao pagamento dos altos impostos cobrados aos indianos sobre o sal
explorado na Índia sob o monopólio britânico. Após uma longa marcha de vinte e dois
dias, à qual se juntam milhares de participantes, Gandhi chega ao seu destino na costa
ocidental da Índia, coleta um punhado de sal natural, o que é legalmente proibido por
contrariar o monopólio britânico sobre a exploração desse recurso, e sob as lentes da
imprensa americana, britânica e de outros países europeus declara: “Com isto, eu abalo
as fundações do Império britânico” e “peço a simpatia do mundo nesta batalha do Direito
contra o Poder” (citado por Dalton 1996, p. 72). As repercussões extraordinárias desse
ato simbólico resultam numa campanha de desobediência civil em massa que leva
milhões de indianos a quebrarem as leis da taxação do sal, provocando uma onda de
prisões em massa que, longe de desencorajar a mobilização popular, fortalecem ainda
mais a resistência através de protestos, marchas, greves gerais, boicote aos produtos
britânicos, atos simbólicos de proclamação da independência, ocupação das instalações
dos governos municipais e criação de instituições governamentais paralelas. Isto leva a
uma paralisação completa do governo colonial britânico e abre o caminho para as
negociações que culminam na independência da Índia em 1947 (Nepstad 2015, capítulo
3).
Do ponto de vista da resolução de conflitos, pode-se dizer, em síntese, que a satyagraha
é experimentada por Gandhi através de uma busca incessante por uma sociedade pacífica
em todos os veis interpessoal, intercomunitário e internacional. Para Gandhi, uma
sociedade pacífica pode ser alcançada através da resolução dos conflitos inerentes a
todas essas esferas, o que exige um esforço permanente; a sua biografia é o maior
testemunho dessa busca interminável. É importante ainda observar que a técnica de
Gandhi e os métodos por ele mobilizados não devem ser compreendidos apenas no nível
operacional e estratégico. A aplicação da satyagraha e dos seus métodos de ão requer
uma forte fundamentação na sinceridade e na correção de atitudes, a fim de que os
“corações” das partes envolvidas no conflito sejam desarmados do ódio e preenchidos
com a verdade e a compaixão. A não-violência, dessa perspetiva, é uma questão de
princípio e o apenas um caminho prático para se atingir um determinado objetivo.
Finalmente, é importante destacar que o legado de Gandhi vai além do contexto
particular onde ele viveu. Jah (2003, p. 28) cita uma série de casos de aplicação da
satyagraha fora do contexto indiano, como a resistência do povo dinamarquês contra a
ocupação nazista em 1940; a campanha de resistência dos professores noruegueses em
9
A intocabilidade envolve um conjunto de práticas discriminatórias contra os integrantes da casta mais
baixa da estrutura social indiana (os chamados “intocáveis”).
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1942; a campanha “Desafie as Leis Injustas” na África do Sul em 1952; a greve na prisão
Vortuke na União Soviética por 250.000 prisioneiros políticos em 1953; a campanha pela
independência de Gana concluída em 1960, após dez anos de ações não violentas
claramente inspiradas na satyagraha. Não se pode deixar de mencionar, ainda, a grande
influência de Gandhi no ativismo de Martin Luther King em prol da igualdade de direitos
dos negros americanos, cujos principais aspetos são tratados na próxima subseção
Martin Luther King e a Técnica da “Tensão Criativa”
O ativismo de Martin Luther King tem fortes raízes na sua fé cristã, mas também recebe
uma influência significativa do legado de Gandhi. Conforme já mencionado, King propõe
uma síntese entre pacifismo cristão, a satyagraha de Ghandi e a filosofia do amor
incondicional expressa na palavra grega ágape (1957; 1961), oferecendo uma técnica de
resolução de conflitos que, segundo as indicações de seus escritos, pode ser chamada de
“tensão criativa”. O objetivo da tensão criativa, segundo King, é trazer as tensões e
contradições à superfície, a fim de expor os ressentimentos mais profundos, mostrar as
injustiças presentes no conflito, tocar a consciência dos oponentes e do público em geral
e, a partir do desconforto gerado por essa crise, levar a uma situação em que as pessoas
passem a desejar a resolução do conflito e a valorizar a negociação (King 1963).
Pode-se notar, desse modo, que a perspetiva de King, assim como a de Gandhi, tem uma
dimensão pragmática, mas se funda em alicerces espirituais e morais que fazem com
que a aplicação da sua técnica e dos seus métodos de resolução de conflitos tenha que
ser necessariamente ancorada em princípios. A análise de um de seus principais escritos
“Carta da Cadeia da Cidade de Birmingham” (King 1963) fornece um amplo panorama
da sua abordagem, constituindo, juntamente com a interpretação desse texto feita por
McCarthy e Sharp (2010), as referências centrais utilizadas nesta subseção. A “Carta da
Cadeia da Cidade de Birmingham” é escrita por King em 1963, no período em que
permanece preso devido à marcha de protesto por ele liderada nas ruas de Birmingham,
Alabama, como parte de sua campanha contra a segregação racial. Na prisão, chega ao
conhecimento de King uma reportagem de jornal, onde um grupo de clérigos brancos
critica a sua campanha, afirmando que, embora “tecnicamente pacífica”, essa forma de
protesto é precipitada e inoportuna e fomenta o ódio e a violência (McCarthy e Sharp
2010, Introdução). A “Carta” é uma resposta a esses clérigos, onde King procura não só
mostrar a violência estrutural que mantem os negros numa condição de injustiças,
segregação e opressão, mas também explicar e justificar a sua cnica de “tensão
criativa” e os métodos de ação não violenta empregados.
Ao explicar como a sua técnica pretende funcionar, King destaca que a ação não violenta
procura criar uma crise e provocar uma tensão de tal modo perturbadora, que uma
comunidade que se nega sistematicamente a negociar é levada, forçosamente, a lidar
com a questão. Sobre essa técnica, King escreve em sua carta:
(A ação direta não violenta) procura dramatizar a questão até um
ponto em que ela não pode mais ser ignorada. Esta minha alegação
de que a criação de tensão faz parte do trabalho da resistência não
violenta pode soar chocante. Mas eu devo confessar que eu não
temo a palavra ‘tensão’. Eu sinceramente oponho-me à tensão
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violenta, mas há um tipo de tensão construtiva, não violenta, que é
necessária para o crescimento. Assim como Sócrates sentiu que era
necessário criar uma tensão na mente, de modo que os indivíduos
pudessem sair da servidão dos mitos e das meias verdades e
alcançar o domínio irrestrito da análise criativa e da avaliação
objetiva, nós devemos perceber a necessidade de alternativas não
violentas para criar um tipo de tensão na sociedade que ajude os
homens a emergirem das profundezas escuras do preconceito e do
racismo para as majestosas alturas da compreensão e da
fraternidade. O propósito do nosso programa de ação direta é criar
uma situação de crise tão evidente que leve, inevitavelmente, à
abertura das portas para a negociação. Por isso, eu concordo com a
vossa chamada para a negociação. Já há muito tempo nossa amada
terra do Sul tem sido soterrada num esforço trágico de viver em
monólogo, em vez do diálogo (King 1963, pp. 291-292).
Do ponto de vista de King, portanto, a comunidade precisa ser levada a enxergar a
necessidade de resolver as suas contradições e tensões sociais que, embora presentes
na situação, são muitas vezes escondidas ou negadas. A “tensão criativa” ou a tensão
construtiva não violenta” é a técnica de ação direta por ele proposta para criar uma crise
de tal forma incómoda e perturbadora que acabe levando as partes envolvidas a
desejarem a negociação e a resolução do conflito. King faz questão de ressaltar, porém,
que essa crise não é tirada do nada:
“na verdade, nós que nos envolvemos na ação direta não violenta
não somos os criadores da tensão. s meramente trazemos à
superfície a tensão escondida que está viva. Nós apenas
colocamos essa tensão às claras, onde elas possam ser vistas e
abertamente tratadas” (1963, p. 293).
É importante notar, ainda, que a ação direta não violenta, que constitui o cleo da
“tensão criativa”, é concebida por King como um recurso de último caso e a sua aplicação
deve ser precedida de três passos a investigação de factos que permitam avaliar se as
injustiças realmente existem, a negociação e a auto purificação iniciando a ação
direta após cumpridas todas essas etapas preliminares (tabela 3). Usando a situação dos
negros em Birmingham como um caso ilustrativo, King procura mostrar, primeiramente,
os factos que evidenciam as injustiças existentes. Nesse sentido, King chama a atenção
para o facto de Birmingham ser provavelmente a cidade mais segregacionista do país
(incluindo práticas segregatícias nos transportes e nos estabelecimentos comerciais) e
para o registo histórico de brutalidades contra os negros (incluindo o tratamento injusto
nos tribunais e o ataque a bombas a casas e igrejas de negros sem qualquer empenho
policial para solucionar os casos). Passando ao segundo passo, King procura destacar as
iniciativas de negociação tomadas pelos líderes da comunidade negra, sem qualquer
esforço das autoridades municipais, dos membros da comunidade económica, das
autoridades religiosas e dos líderes locais do movimento cristão de direitos humanos de
negociarem em boa-fé. Perante o desapontamento gerado por uma sucessão de
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promessas quebradas, King argumenta que a ação direta passa a ser uma alternativa no
horizonte, iniciando-se o terceiro passo, a auto purificação (isto é, a preparação para os
momentos difíceis que virão e a manutenção da disciplina do grupo). Sobre essa etapa,
King comenta:
“começamos a realizar uma série de workshops sobre não-violência
e a perguntar repetidamente a s mesmos: Voé capaz de aceitar
golpes sem retaliar? Você é capaz de suportar o calvário da prisão?”.
Após esse processo, King comenta que o início da ação direta é finalmente marcado para
o período da Páscoa, quando as marchas nas ruas da cidade e o boicote ao comércio,
justamente num período-chave de vendas, seriam uma boa forma de pressionar os
comerciantes para as mudanças necessárias nas práticas segregatícias. Essa ação é
postergada duas vezes em razão das eleições municipais, que segundo King poderiam
desviar o foco da sua campanha de ação não violenta, até que as ações são finalmente
iniciadas em abril de 1963, resultando na prisão de King sob a acusação de liderar uma
marcha ilegal (King 1963, pp. 290-291).
Tabela 3: Passos preparatórios da campanha de ação não violenta segundo Martin
Luther King
(1)
Comprovação das injustiças (investigação de factos que permitam avaliar se as
injustiças realmente existem)
(2)
Negociação com o oponente
(3)
Auto purificação (preparação para os momentos difíceis que virão e a
manutenção da disciplina do grupo)
(4)
Ação direta não violenta (protestos, marchas, boicotes, desobediência civil)
Fonte: King (1963)
Sobre a acusação de ilegalidade da marcha conduzida sem a devida permissão, King
enfatiza na “Carta” a diferença existente entre as leis justas e as leis injustas. Evocando
a noção de desobediência civil, King argumenta que há uma distinção clara entre burlar
a lei de uma forma dissimulada e por razões mal-intencionadas e, de outro lado, desafiar
a lei abertamente por considerá-la injusta de acordo com a sua consciência e assumindo
as penalidades daí decorrentes com o claro objetivo de despertar a consciência coletiva
sobre a injustiça dessa lei (1963, p. 300). Em outro texto de sua autoria, King destaca
que a consequência esperada a partir dessa desobediência não é a confrontação gratuita
e a anarquia, mas a criação de uma sociedade mais justa, a construção de uma
“comunidade amada”, unida por uma afeição incondicional inclusive entre aqueles que
anteriormente se opunham. A desobediência civil, desta perspetiva, deve ser usada
contra sistemas de opressão e injustiça, não contra indivíduos, e a vitória, quando ocorre,
é de um sistema justo sobre um sistema injusto e não de um homem sobre o outro (King
1957, pp. 12-13).
Seguindo as conclusões de McCarthy e Sharp (2010) sobre a técnica da “tensão criativa”,
pode-se dizer que as proposições de King se resumem aos seguintes aspetos principais:
em primeiro lugar, alguns passos cruciais devem ser cumpridos para preparar uma base
consistente para a ação direta (a comprovação das injustiças, a iniciativa da negociação
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e a auto purificação); em segundo lugar, a ação direta o violenta (através de métodos
como marchas, protestos, discursos, boicotes, desobediência civil, etc.) faz emergir a
“tensão criativa” que leva o oponente a ter de enfrentar questão; em terceiro lugar,
deve-se perceber que essa tensão já está presente na situação e que ação direta apenas
se encarrega de trazê-la à superfície; em quarto lugar, a crise criada abre o caminho
para a negociação; em quinto lugar, a pressão deve ser mantida com obstinação e
disciplina, a fim de mostrar ao oponente que as atitudes reacionárias não serão bem-
sucedidas; em sexto lugar, as prisões e outras formas de punição aos ativistas devem
ser enfrentadas sem resistência, pois essa disposição para o auto sacrifício toca a
consciência dos cidadãos em geral e do oponente em particular sobre as injustiças
existentes; em sétimo lugar, em função das atitudes anteriores, a responsabilidade pela
violência não pode ser jogada sobre os manifestantes não violentos, mas sim sobre
aqueles que realmente recorrem à força na tentativa de evitar ou bloquear os esforços
da resolução do conflito. Embora as proposições de King expressem uma preocupação
pragmática que se traduz em efeitos políticos, deve-se acrescentar que elas estão
ancoradas numa fundamentação espiritual e moral que, a exemplo de Gandhi, pretende
sustentar uma espécie de mecanismo de conversão capaz de aproximar as partes em
conflito e criar o que King chama de “comunidade amada”.
Conclusão
O objetivo deste artigo foi apresentar um panorama conceptual das abordagens
pacifistas, procurando destacar a tradição do pacifismo de princípios. Nesse sentido
foram examinadas as referências centrais dentro dessa tradição Mahatma Gandhi e
Martin Luther King −, bem como as suas técnicas e os seus métodos principais de
resolução de conflitos. O que é crucial observar, com base no que foi analisado, é que
tanto Gandhi quanto King partem de uma visão transformativa que concebe a ação direta
não violenta como uma via de resolução de conflitos através do mecanismo de conversão.
Dessa perspetiva, ambos os autores acreditam ser possível solucionar os conflitos através
da transformação dos “corações e mentes” dos oponentes pela força da verdade, do
amor, da fraternidade e da compaixão. É importante notar, porém, que esse mecanismo
de conversão não se confunde com a passividade ou a não-resistência defendidas por
um segmento tradicional do pacifismo cristão. Ao contrário, a ação direta não violenta
envolve alguma forma de pressão que, embora rejeite o uso da violência física e não vise
a aniquilação, a humilhação ou a destruição do antagonista, é suficientemente ativa e
perturbadora ao ponto de levar o oponente a reconhecer as injustiças sociais e a opressão
política por ele provocadas e a adotar uma postura mais amigável, conciliatória e
propensa ao diálogo e à negociação.
Embora este novo século, motivado principalmente pelas revoluções pacíficas da
chamada “primavera árabe”, comece a testemunhar um renovado interesse académico
pelo ativismo de Gandhi e de King e uma crescente preocupação com as questões
envolvidas na análise empírica e na produção de teorias sobre o pacifismo e a o-
violência, é preciso notar que muito trabalho resta a ser feito e que diversas questões
importantes, ainda pouco exploradas, continuam a desafiar a agenda de investigação do
pacifismo de princípios. Na introdução do seu guia de investigação sobre a ação não
violenta, McCarthy e Sharp (2010) sugerem algumas dessas questões: será que a técnica
de King (e podíamos também pensar em Gandhi) pode funcionar em situações onde falte
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uma liderança espiritual e moral da dimensão dessas personalidades, ou onde as bases
éticas e religiosas de uma ou de outra parte sejam menos claras? Seque as técnicas
do pacifismo de princípios funcionam em sociedades onde as garantias constitucionais
são frágeis? Será que as técnicas do pacifismo de princípios operam da mesma forma em
diferentes contextos, em diferentes sistemas políticos e em conflitos por diferentes
questões? Será que a aplicação do pacifismo de princípios pode ser testada
comparativamente em diferentes cenários? A essas questões, podemos acrescentar: até
que ponto o mecanismo da conversão, que é central no pacifismo de princípios, consegue
operar em conflitos extremamente agudos e polarizados? As respostas a essas questões,
que obviamente o além dos limites deste artigo, não indicam a necessidade de
futuros desenvolvimentos, mas também sevem de inspiração para aqueles que tenham
sido motivados a ampliar o conhecimento sobre as abordagens pacifistas à resolução de
conflitos aqui tratadas.
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A CONSOLIDAÇÃO DA PAZ: PRESSUPOSTOS, PRÁTICAS E CRÍTICAS
Teresa Almeida Cravo
teresacravo@ces.uc.pt
Professora Auxiliar de Relações Internacionais da Faculdade de Economia da Universidade de
Coimbra (Portugal) e Investigadora do Centro de Estudos Sociais. É atualmente co-coordenadora
do programa de Doutoramento CES-FEUC “Democracia no século XXI”. Concluiu o Doutoramento
no Departamento de Política e Estudos Internacionais da Universidade de Cambridge.
Resumo
A consolidação da paz tornou-se num princípio norteador do intervencionismo internacional
na periferia desde a sua inclusão na Agenda para a Paz da Organização das Nações Unidas,
em 1992. O objetivo de criação de condições para uma paz auto-sustentável de forma a
prevenir um retorno ao conflito armado está, no entanto, longe de ser fácil ou consensual.
Não a sua conceção enquanto paz liberal se revelou particularmente limitada e
inevitavelmente controversa, como a realidade das sociedades devastadas pela guerra provou
ser bastante mais complexa do que a antecipada pelos atores internacionais que assumem
hoje atividades no âmbito da promoção da paz em contextos de pós-conflito. Com uma
trajetória repleta de sucessos contestados e alguns fracassos flagrantes, o modelo vigente
tem sido alvo de duras críticas e de um ceticismo generalizado. Este artigo analisa
criticamente a trajetória teórica e prática da consolidação da paz, explorando a ambição e
também as debilidades do paradigma adotado pela comunidade internacional a partir da
década de 1990.
Palavras chave
Consolidação da paz; Intervencionismo; Paz liberal; Galtung; Críticas
Como citar este artigo
Almeida Cravo, Teresa (2017). "A consolidação da paz: pressupostos, práticas e críticas".
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 8, N.º 1, Maio-Outubro 2017. Consultado
[online] em data da última consulta, http://hdl.handle.net/11144/3032
Artigo recebido em 12 de Janeiro de 2017 e aceite para publicação em 6 de Fevereiro de
2017
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A consolidação da paz: pressupostos, práticas e críticas
Teresa Almeida Cravo
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A CONSOLIDAÇÃO DA PAZ: PRESSUPOSTOS, PRÁTICAS E CRÍTICAS
Teresa Almeida Cravo
Introdução
A consolidação da paz tornou-se num princípio norteador do intervencionismo
internacional na periferia desde a sua inclusão na Agenda para a Paz da Organização das
Nações Unidas, em 1992. Tendo como objetivo a criação de condições para uma paz
auto-sustentável de forma a prevenir um retorno ao conflito armado, a consolidação da
paz está orientada para a erradicação das causas profundas da violência e é
necessariamente um projeto multifacetado, envolvendo instituições e práticas
securitárias, políticas, legais, económicas, sociais e culturais, entendidas como
complementares e que se reforçam mutuamente.
A transição da violência armada para uma paz duradoura não tem sido, porém, um
caminho fácil ou consensual. Não a sua conceção enquanto paz liberal se revelou
particularmente limitada e inevitavelmente controversa, como a realidade das sociedades
devastadas pela guerra provou ser bastante mais complexa do que a antecipada pelos
atores internacionais que assumem hoje atividades no âmbito da promoção da paz em
contextos de pós-conflito. Com uma trajetória repleta de sucessos contestados e alguns
fracassos flagrantes, o modelo vigente tem sido alvo de duras críticas e de um ceticismo
generalizado.
Este artigo analisa criticamente a trajetória teórica e prática da consolidação da paz,
explorando a ambição e também as debilidades do paradigma adotado pela comunidade
internacional a partir da cada de 1990. Nesse sentido, começa por apresentar as
origens intelectuais do conceito, para posteriormente se centrar no momento da sua co-
optação enquanto cânone de atuação da organização mundial. A exploração da
consolidação da paz enquanto padrão institucionalizado do intervencionismo
internacional divide-se em três partes: pressupostos, prática institucional e apreciação
crítica. Discute-se assim, em primeiro lugar, os seus princípios e objetivos, seguindo-se
uma breve explicação da sua implementação no terreno, ao nível das quatro dimensões
militar e de segurança, político-constitucional, socioeconómica e psicosocial. Por fim, o
artigo reflete sobre as críticas recorrentes e mais contundentes apontadas à consolidação
da paz, realçando os problemas e as limitações que têm assolado este modelo de
intervenção ao longo dos últimos vinte anos.
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1. Johan Galtung e as origens intelectuais da consolidação da paz
O conceito de consolidação da paz (peacebuilding) foi introduzido no léxico académico
muito antes de se ter tornado consensual no mundo do policy-making. Johan Galtung, o
norueguês considerado fundador dos Estudos para a Paz, apresentou pela primeira vez
este termo no seu artigo de 1976, “Three Approaches to Peace: Peacekeeping,
Peacemaking and Peacebuilding”, dando o mote para a exploração teórica e operacional
que se seguiria uns anos mais tarde e que se mantém prolífica até hoje.
Para entendermos as origens do conceito em análise, temos, no entanto, que dar um
passo atrás relativamente ao contributo teórico deste autor. As três abordagens à paz
desenvolvidas no artigo estão íntima e diretamente relacionadas com a sua proposta
inovadora de redefinição de paz e violência, apresentada ainda na década de 1960
1
.
Galtung define paz como ausência de violência; e define violência como todas as
situações em que os seres humanos estão a ser influenciados de forma às suas
realizações somáticas e mentais reais estarem abaixo do seu potencial (1969: 168). Esta
definição pretendia, na altura, ir muito além da noção dominante de violência enquanto
ato deliberado por parte de um ator identificável de incapacitação de outrem, que o autor
considerava demasiado limitada: “se violência é apenas isto, e paz a sua negação, então
muito pouco é rejeitado quando a paz é apontada como um ideal” (Ibid.).
Num esforço de clarificação conceptual, Galtung começa por explorar uma definição dual
de paz: a paz negativa, enquanto ausência de violência e de guerra, e a paz positiva,
enquanto integração da sociedade humana (1964: 1-4). A investigação para a paz seria,
nesta perspetiva, o estudo das condições que nos aproximariam da indispensável
articulação entre ambas, que em última instância produziria o que Galtung apelida de
“paz geral e completa” (Ibid.: 2).
Esta conceptualização não ficou isenta de críticas nomeadamente por ser considerada
demasiado vaga e sem utilidade prática e Galtung apresenta pouco depois o que pode
ser considerado o seu maior contributo para os pressupostos teóricos dos Estudos para
a Paz: a identificação do triângulo da violência e o respetivo triângulo da paz. No triângulo
da violência o autor distingue três vértices: o da violência direta, o da violência estrutural
e o da violência cultural os dois primeiros conceitos apresentados ainda em 1969 e este
último já em 1990. Para o autor, a violência direta é então o ato intencional de agressão,
com um sujeito, uma ão visível e um objeto. a violência estrutural é indireta, latente,
decorre da própria estrutura social que organiza seres humanos e sociedades por
exemplo, a repressão, na sua forma política, e a exploração, na sua forma económica
(Galtung, 1969). E, por último, a violência cultural é o sistema de normas e
comportamentos subjacente a e legitimador das violências estrutural e direta; ou
seja, a cosmologia social que nos permite olhar para a repressão e a exploração como
normal ou natural e, por isso, mais difícil de desenraizar (Galtung, 1990).
Com esta formulação, Galtung aponta os problemas e as limitações das definições de
violência que abrangem apenas conflitos sociais de larga-escala (guerras), e incita ao
entendimento de paz no seu sentido mais amplo como paz direta, estrutural e cultural,
que exponha e estude as dinâmicas estruturais globais de repressão e exploração e a
1
Para uma análise mais detalhada do contributo conceptual de Galtung, ver Almeida Cravo, 2016b.
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violência simbólica que existe na ideologia, na religião, na língua, na arte, na ciência, no
direito, nos media ou na educação.
Não é de estranhar, por isso, que a etapa seguinte no percurso conceptual do autor
norueguês tenha sido a de confrontar este entendimento com a prática concreta do
intervencionismo internacional, especificamente no artigo em que desenvolve os
conceitos de manutenção da paz (peacekeeping), restabelecimento da paz
(peacemaking) e consolidação da paz. Segundo Galtung, a manutenção da paz constituía
uma abordagem “dissociativa”, cujo objetivo era a promoção da distância e de um “vácuo
social” entre os antagonistas, através da assistência de uma terceira parte (1976: 282).
Esta estratégia pecava por entender o conflito como uma interrupção do status quo e por
prescrever o retorno ao status quo ante como solução. Não questionava, portanto, se
esse status quo ante devia efetivamente ser recuperado e preservado, visando apenas a
manutenção da ausência de violência direta entre os atores em conflito e contribuindo
inadvertidamente para manter uma situação de violência estrutural (Ibid.: 283-284).
Sendo que a preservação da violência estrutural promove, em última instância, a
violência direta e, assim, o provável retorno ao conflito aberto a longo prazo (Ibid.:
288) esta não era uma abordagem satisfatória dentro da conceptualização proposta
por Galtung.
O restabelecimento da paz, por outro lado, representava uma abordagem mais
abrangente, ancorada na resolução de conflitos, cujo objetivo ia para além da cessação
das hostilidades, centrando-se nas várias formas de transcender incompatibilidades e
contradições entre as partes (Ibid.: 290). Porém, embora reconhecendo o potencial de
radicalidade da abordagem da resolução de conflitos, Galtung afirma que esta está
geralmente orientada para a preservação e não para a contestação do status quo
(violento) e orientada para o ator e não necessariamente para o sistema (a estrutura)
que (re)produz a violência (Ibid.: 294-296). A resolução do conflito e o
restabelecimento da paz são, assim, primordialmente entendidos como residindo nas
“mentes das partes em conflito” e atingidos assim que um acordo é por estas assinado e
ratificado uma conceção que Galtung denuncia como “estreita”, “elitista” e negligente
quanto aos fatores estruturais indispensáveis à construção de uma paz sustentável
(Ibid.: 296-297).
Este seu entendimento da manutenção e do restabelecimento da paz leva Galtung a
desenvolver um novo conceito: o de consolidação da paz. Ao contrário das outras duas
abordagens, a consolidação da paz constitui necessariamente uma abordagem
associativa do conflito, capaz de lidar com as causas diretas, estruturais e culturais da
violência no seu sentido lato e, consequentemente, em sintonia com o seu conceito de
paz positiva. A remoção das causas profundas da violência implicaria o enfoque em
princípios como equidade” (por oposição a dominação/exploração e no sentido da
interação horizontal), “entropia” (por oposição a elitismo e no sentido da inclusão) e
“simbiose” (por oposição a isolamento e no sentido da interdependência) (Ibid.: 298-
100). Embora reconheça o quadro de complexidade e dificuldade, a proposta de Galtung
de consolidação da paz é indubitavelmente maximalista, ambiciosa e ancorada na ideia
da luta pela paz como abarcando impreterivelmente “várias frentes” (Ibid.: 104).
Esta discussão teórica promovida pela proposta de Galtung sobre diferentes formas de
entender violência e paz foi muito além de um mero exercício académico, tendo tido
claras implicações práticas, em especial aquando da sua adoção por parte das Nações
Unidas (NU) em 1992, como veremos de seguida.
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2. Os pressupostos teóricos do modelo
A reflexão de Galtung inspirou Boutros-Ghali, um Secretário-Geral das Nações Unidas
entusiasmado com a perspetiva de uma organização mundial mais dinâmica e
interventiva na sequência da alteração profunda da conjuntura mundial. Foi
essencialmente a conjugação de três fatores que suscitou uma reação vigorosa por parte
da comunidade internacional e, em particular, das NU, no início dos anos 1990. Em
primeiro lugar, o final da Guerra Fria não resultou no desanuviamento das relações
entre as grandes potências no seio do Conselho de Segurança e um compromisso
renovado com os princípios fundadores da organização (Miall, Ramsbotham &
Woodhouse, 1999: 2), como atestou o triunfo do liberalismo (Jakobsen, 2002) e a sua
ênfase nos direitos humanos e na democracia. Em segundo lugar, o aumento dramático
do mero de conflitos violentos na periferia, que atingia 50 países nos diferentes
continentes em 1991 (Wallensteen & Sollenberg, 2001: 632), ganhou finalmente
visibilidade e proeminência na agenda internacional. E, por fim, a natureza destes
mesmos conflitos guerras civis de contestação do poder estatal centralizado (Ayoob,
1996), particularmente devastadoras, consideradas imorais e com efeitos
desestabilizadores para o sistema regional e internacional criou, fundamentalmente no
Ocidente, uma opinião pública favorável ao intervencionismo.
Aproveitando este momento histórico de otimismo multilateral e encarando estas guerras
da década de 1990 como “guerras da comunidade internacional a que cabia à
organização responder com determinação (Almeida Cravo, 2013), Boutros-Ghali
apresentou uma proposta ambiciosa para enfrentar os desafios à paz e à segurança
internacionais da era pós-Guerra Fria, consubstanciado na sua Agenda para a Paz (1992).
Este documento ensaia um modelo de institucionalização da paz que pretende conferir
às NU um modo de atuação mais ousado, coerente e dinâmico, com um considerável
acréscimo em termos de relevância internacional da organização relativamente às
décadas precedentes.
São quatro as estratégias interligadas de atuação propostas pelo Secretário-Geral: a
diplomacia preventiva (preventive diplomacy), o restabelecimento da paz, a manutenção
da paz e, finalmente, a consolidação da paz (UN, 1992). A diplomacia preventiva procura
evitar duas escaladas: por um lado, prevenir que uma situação de conflitualidade latente
evolua para uma situação violenta de facto; e, por outro, conter o potencial alastramento
de uma situação de conflitualidade violenta de facto para outras geografias e grupos
sociais. O restabelecimento da paz tem como objetivo apoiar as partes em conflito nas
negociações de paz tendentes a um acordo, fazendo uso dos instrumentos pacíficos
contidos no Capítulo VI da Carta das Nações Unidas
2
. A manutenção da paz envolve o
envio de forças das NU os chamados capacetes azuis para o terreno, após o acordo
entre as partes e com o seu expresso consentimento, para estabilizar zonas de tensão e
assegurar que o processo de paz é efetivamente cumprido. A grande novidade é, sem
dúvida, o conceito de “consolidação da paz pós-conflito”, anunciado pela primeira vez
como a nova prioridade da organização.
2
A Agenda para a Paz faz igualmente referência ao modelo de imposição da paz (peace-enforcement),
previsto na Carta das NU, como instrumento disponível dentro do novo quadro de atuação (UN, 1992: paras
42-45).
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A consolidação da paz: pressupostos, práticas e críticas
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Objetivos e princípios
Definida como “ações para identificar e apoiar estruturas que fortaleçam e solidifiquem
a paz, de forma a evitar um retorno ao conflito” (UN, 1992: para 21), a consolidação da
paz engloba, assim, duas tarefas diferentes mas simultaneamente complementares: por
um lado, a tarefa negativa de evitar o retomar das hostilidades; e, por outro, a tarefa
positiva de “enfrentar as causas profundas do conflito” (Ibid.: para 15). Esta articulação
segue de perto a proposta teórica de Galtung de paz e violência analisada em cima, ao
promover uma agenda maximalista de paz positiva como indispensável para que a paz
negativa ou seja, o fim da violência direta não seja apenas temporária (Ramsbotham,
2000: 171, 175). Boutros-Ghali é, aliás, claro na sua ambição: o modelo que propõe
pretende, em última instância, lidar com “o desespero económico, a injustiça social e a
opressão política” enquanto fontes da violência que assola o sistema (UN, 1992: para
15). E para alcançar esse objetivo, a ONU manifesta a sua disponibilidade para e
vontade de se envolver enquanto garante externo em todas as fases de situações de
conflitualidade.
As quatro estratégias contidas na Agenda para a Paz são, por isso, vistas numa lógica de
complementaridade, em que as várias fases da transição do conflito violento para a paz
partilham objetivos comuns que requerem uma ação integrada. A consolidação da paz
começa a tomar forma dentro do quadro das operações de manutenção da paz, por sua
vez enviadas para o terreno na sequência de acordos de paz negociados.
Progressivamente, a responsabilidade da consolidação da paz transita para os nacionais
dos países a emergir de conflitos, com o auxílio dos atores externos, para que sejam
erguidas as fundações para uma paz auto-sustentada e, assim, prevenir novos conflitos.
As reflexões apresentadas nos vários relatórios que se seguiram entre estes, o
Suplemento à Agenda para a Paz de 1995, o Relatório Brahimi de 2000, o Relatório sobre
As Operações de Manutenção da Paz das Nações Unidas: Princípios e Orientações de
2008 e o relatório A consolidação da paz: uma orientação de 2010 continuaram a
enfatizar esta ideia de interligação.
“As operações de paz estão raramente limitadas a um tipo de
atividade”, refere o relatório de 2008, e “as fronteiras entre
prevenção de conflitos, restabelecimento da paz, manutenção da
paz, consolidação da paz e imposição da paz têm-se tornado cada
vez mais difusas” (UNDPKO, 2008: 18).
A consolidação da paz é entendida como um instrumento preventivo (UN, 1995: para
47), essencial para “sarar as feridas” do conflito (Ibid.: para 53) e reduzir
significativamente o risco de retorno às hostilidades (UNPSO, 2010: para 13). A
manutenção da paz e a consolidação da paz são apelidadas de “parceiras inseparáveis”
(UN, 2000: para 28) e os capacetes azuis de “early peacebuilders” (UNPSO, 2010: 9),
uma vez que a consolidação da paz não consegue atuar sem a manutenção da paz e esta
última não tem uma estratégia de saída sem a primeira. Por outras palavras, a ideia
central é então a de continuum: entre paz negativa e paz positiva, entre estabilização e
desenvolvimento, entre prevenção estrutural e consolidação.
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A paz liberal
Se a adoção de uma visão maximalista de paz coincidente com a proposta teórica de
Galtung se ficou claramente a dever ao ambiente intelectual e político desencadeado
pelo final da Guerra Fria, também o desenho específico do modelo a implementar em
zonas de conflito refletiu quem emergiu triunfante da confrontação bipolar.
Na realidade, a abordagem que deu corpo a esta nova ambição de promoção da paz na
periferia, e foi subsequentemente integrada nos novos instrumentos de segurança
coletiva, foi a abordagem ocidental da chamada paz liberal (ver Doyle, 2005). Como
explica Clapham, os vencedores do conflito bipolar não as democracias capitalistas
e liberais, mas também as suas sociedades civis, e a grande massa de organizações não-
governamentais e instituições internacionais que estas controlam procuraram
reestruturar o sistema internacional em conformidade com os valores que emergiam
vitoriosos nessa altura (1998: 193-194) e apresentaram a democracia liberal e a
economia de mercado como as receitas globais para o desenvolvimento, a paz e a
estabilidade” (Yannis, 2002: 825).
Neste sentido, como refere Paris, a consolidação da paz é efetivamente “uma enorme
experiência de engenharia social uma experiência que envolve a transplantação de
modelos ocidentais de organização social, política e económica para pses devastados
pela guerra de forma a controlar o conflito civil: por outras palavras, a pacificação através
da liberalização política e económica” (1997: 56). A queda do bloco socialista e do seu
modelo alternativo permitiu que esta abordagem intervencionista fosse abundantemente
incentivada, e imposta, sem rival, nos quatro cantos do mundo o que Lizée (2000)
chama de “síndrome do Fim da História”. Introduzindo condicionalidades políticas e
económicas através das operações de paz e dos programas de assistência ao
desenvolvimento, o modelo das democracias de mercado foi-se difundindo por todo o
Terceiro Mundo (Jakobsen, 2002).
O grande potencial de abertura do conceito de consolidação da paz a inúmeras definições
baseadas em diferentes entendimentos e abordagens, e que poderiam ter ganho uma
infinidade de formas concretas nos contextos de pós-conflito, viu-se assim reduzido à
especificidade da matriz ocidental e da cosmovisão liberal, e consequentemente fechado
às outras experiências e alternativas.
3. O modelo na prática
Houve então, desde os primórdios, uma convergência em torno do que Kahler chama de
“Consenso de Nova Iorque” (2009), não obstante a ausência de um órgão centralizador
de todas as atividades de consolidação da paz dentro das NU durante a primeira década,
por um lado, e a constante presença de vários outros atores internacionais que se
arrogaram de responsabilidades no âmbito do intervencionismo internacional, por outro.
O “Consenso de Nova Iorque” refletia o sonho liberal de criação de democracias
pluripartidárias com economias de mercado e sociedades civis fortes, assim como de
promoção das práticas e dos valores liberais ocidentais, tais como a autoridade secular,
a governação centralizada, o Estado de direito ou o respeito pelos direitos humanos
(Newman et al., 2009: 12).
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Como explica Richmond, a paz é pensada pela comunidade internacional ocidental como
uma “forma ideal alcançável” e resultado de ações top-down e bottom-up, com base em
regimes, estruturas e normas sociais, políticas e económicas liberais (2005: 110).
Pensar “a paz enquanto governação” (Ibid.: 52-84) implica igualmente olhar para a
consolidação da paz como um meio para um fim: isto é, como um modelo
institucionalizado que se materializa num conjunto de passos necessários à construção
de uma paz liberal. Não admira, por isso, que a prática da consolidação da paz tenha
implicado um quadro de atuação padronizado que pretendeu assumir um carácter
universal e hegemónico.
A multidimensionalidade
Na realidade, é o envolvimento das NU na Namíbia, ainda em 1989, que representa a
primeira tentativa de implementação deste paradigma. Esta operação de paz vai já muito
além da supervisão do cessar-fogo tradicional e é mandatada para auxiliar a criação de
instituições políticas democráticas e monitorizar as eleições que assegurariam a
independência do país. O relativo sucesso da missão atestou a capacidade e a vontade
da organização para realizar sucessivas operações de paz mais ambiciosas, em larga
escala, com atividades muito para além das realizadas até à data e numa grande
variedade de países que emergiam de conflitos armados na Ásia, África, Europa e
América Central (Han, 1994: 842-845). Assistimos assim, durante a década de noventa,
a uma dramática expansão do modelo padronizado da paz liberal, que Ramsbotham
apelida de “UN’s post-settlement peacebuilding standard operating procedure” (2000:
170), e que se materializa no terreno em quatro dimensões interdependentes: (1) militar
e de segurança, (2) político-constitucional, (3) socioeconómica, e (4) psico-social.
A dimensão militar e de segurança
O dilema de segurança que assalta os grupos envolvidos em conflitos intraestatais é
consideravelmente maior do que entre Estados pós-conflito interestatal, na medida em
que o reforço da autoridade estatal passa pela recuperação do monopólio do uso legítimo
da força e pelo controlo da totalidade do território: isto é, implica precisamente a
reconstituição de um poder político central com capacidade para se impor aos restantes
poderes político-militares. É, por isso, necessária a institucionalização de garantias que
neutralizem o compreensível sentimento de insegurança que grassa pelos diversos atores
que receiam a exclusão e temem que a centralização do poder político-militar favoreça o
grupo oponente em seu detrimento. A dimensão militar e de segurança do modelo de
consolidação da paz tem, por isso, dois objetivos: estabelecer um equilíbrio entre as
partes beligerantes e restringir a capacidade dos combatentes para provocar um retorno
às hostilidades. Existe, nesse sentido, um programa especificamente destinado aos
soldados, que inclui as fases estandardizadas conhecidas como “DDR”: (1)
desmobilização, (2) desarmamento, e (3) reintegração na vida civil ou integração nas
forças armadas nacionais.
A atenção da comunidade internacional centra-se, posteriormente, na chamada “Reforma
do Setor de Segurança(RSS), que abrange militares, polícia e serviços de inteligência,
e procura instituir uma maior transparência, eficiência e controlo democrático (ver Sedra,
2010). Apontando para uma noção genérica de boa governação e Estado de direito, a
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RSS representa uma abordagem ampla, necessariamente de longo prazo, preocupada
não com a capacidade de fornecer segurança aos cidadãos mas também com a sua
responsabilização perante uma supervisão civil e democrática.
3
A dimensão político-constitucional
Esta dimensão procura levar a cabo uma transição política que passa pela legitimação
dos órgãos de poder; pela reforma da administração do Estado esvaziada durante o
conflito; e pela transferência das tensões entre os grupos em conflito para o plano
institucional ou seja, a ideia da política como continuação do conflito por meios não-
violentos, que vem de Michel Foucault e que Ramsbotham apelida de “Clausewitz ao
contrário” (2000: 172).
O regime político que subjaz a estas transformações é a democracia liberal, considerada
mais propensa à paz, tanto ao nível interno como internacional
4
. Enquanto “filosofia
política dominante” (Barnes, 2001: 86) da comunidade internacional do pós-Guerra Fria,
foi sucessivamente incentivada e imposta às sociedades intervencionadas, centrando-se
essencialmente na reforma e promoção do Estado de direito e dos elementos com maior
impacto no processo de democratização e de criação de uma cultura democrática:
partidos políticos, media e sociedade civil.
A introdução do modelo democrático nos cenários pós-conflito pode, no entanto, tomar
diferentes formas. Uma primeira abordagem foi a realização num curto prazo de eleições
multipartidárias, que simbolizavam a responsabilização imediata dos atores nacionais e
a legitimação do novo poder político (como por exemplo em Angola em 1992). A sua
lógica de winner-takes-all e de jogo de soma nula em contextos altamente instáveis
levou, contudo, ao surgimento de uma segunda abordagem, considerada menos
desestabilizadora: os governos de coligação, que pretendiam socializar os atores em
termos de partilha de poder negociado e prática de decisões consensuais, antes da
realização das primeiras eleições (como por exemplo no Afeganistão em 2002). Uma
última forma, exclusivamente para casos em que o empenho da comunidade
internacional em termos de esforços financeiros, de recursos humanos e temporais é de
grande dimensão, é o protetorado internacional, em que a administração transitória é
tutelada por um ator externo (como por exemplo em Timor, pelas NU, entre 1999 e
2002).
A dimensão socioeconómica
Esta dimensão pretende reverter o impacto particularmente devastador dos conflitos
armados no tecido económico-social do país, recorrendo à ajuda financeira internacional.
Seguindo uma lógica de continuum entre emergência, reabilitação e desenvolvimento
(Macrae, 2001:155), a comunidade internacional começa habitualmente pela ajuda
humanitária e tem igualmente um papel crucial a médio-longo prazo no apoio à
reconstrução das infraestruturas sicas e na aplicação de políticas macroeconómicas de
estabilização. É de assinalar que o entendimento desta recuperação económica, assim
como dos (des)equilíbrios monetários e fiscais, se tem norteado pela ideologia neoliberal
3
Sobre a ligação entre consolidação da paz, Estado de direito e RSS, ver Almeida Cravo, 2016.
4
Sobre a Teoria da Paz Democrática, ver Hayes, 2012.
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(ver Harvey, 2005). Durante as décadas de oitenta e noventa, esta filosofia económica
materializou-se nos chamados planos de ajustamento estrutural, aplicados um pouco por
todo o mundo em desenvolvimento pelas instituições financeiras internacionais fiéis ao
chamado “Consenso de Washington” (Williamson, 2008). Estas políticas económicas
preconizavam a liberalização, privatização e desregulação da economia no sentido da
abertura ao mercado; eram acompanhadas do emagrecimento e da concomitante
redução do papel intervencionista do Estado, num contexto de disciplina fiscal rigorosa e
reforma tributária tendente à atração de investimento externo.
Críticas devastadoras a este modelo neoliberal face às dificuldades em integrar estas
economias pós-conflito no mercado mundial de forma favorável e, acima de tudo,
sustentável conduziram a fortes apelos à flexibilização das práticas económicas, à
recuperação da ideia do Estado enquanto agente de desenvolvimento e à necessidade de
conciliar os imperativos de curto prazo de estabilização e os imperativos de longo prazo
de crescimento e desenvolvimento (ver Stiglitz, 2008). De uma forma geral, porém, as
reformas do “pós-Consenso de Washington” que se seguiram, essencialmente no final
dos anos 1990, foram no sentido de um pacote neoliberal light, e não de uma verdadeira
contestação das premissas do modelo.
A dimensão psico-social
Um dos mais graves custos da guerra é o impacto de caráter duradouro das culturas de
violência enraizadas em sociedades expostas a conflitos por um longo período (Lederach,
2001). A reabilitação do tecido social de países devastados pela guerra depende da
desconstrução de estereótipos e das condições que alimentaram o conflito e polarizaram
as comunidades, exigindo, por isso, a mudança de atitudes individuais e, mais
genericamente, do comportamento da sociedade no seu todo, no sentido da
reconciliação.
Diferentes sociedades têm lidado com os seus traumas psico-sociais resultantes de
conflitos de formas distintas. Algumas optaram pelo que chamamos aqui da fórmula da
amnésia, ou seja, enterrar o passado, nomeadamente através de amnistias, para não
arriscar maior instabilidade. Este caminho é difícil de seguir, visto que quem sofre é por
norma amaldiçoado com uma boa memória. fundamentalmente três outras práticas
recorrentes de lidar com o passado nestes contextos (que podem existir em simultâneo
ou até mesmo ser associadas às leis de amnistias): através (1) das comissões de verdade
e reconciliação, como em El Salvador; (2) dos tribunais (a solução judicial, doméstica ou
internacional), como no Ruanda; ou/e (3) de práticas tradicionais de reconciliação (rituais
inteiramente dependentes de recursos culturais locais), como em Timor.
Trata-se, em última análise, de um processo doloroso e lento, de readaptação ao outro
e de (re)construção de relações pacíficas. A reconciliação no seu sentido mais amplo é
assim, em última análise, o objetivo final de uma transição para a paz.
O consenso em torno da prática institucional da consolidação da paz foi-se generalizando.
Do seu lado, a organização mundial procurou reforçá-lo e agilizar o acompanhamento
das missões através de reformas administrativas, como a criação do Departamento de
Operações de Paz logo em 1992 e também através do recurso mais sistemático aos
representantes especiais do Secretário-Geral. Em especial, a criação da Comissão de
Consolidação da Paz em 2005 pretendeu colmatar um fosso institucional no que dizia
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respeito à capacidade das NU de atuar em contextos de violência e fragilidade estatal e
de aprender com os seus próprios erros e melhores práticas, dentro de um quadro de
atuação da paz liberal.
Perante a crescente complexidade das ameaças à paz e à segurança internacionais, a
lógica de complementaridade entre o trabalho da organização mundial e o das múltiplas
organizações regionais e da sociedade civil foi também ganhando força. Pondo em prática
o que havia sido preconizado pelo capítulo VIII da Carta das Nações Unidas, as parcerias
com organizações de âmbito regional consideradas um espaço privilegiado para a
resolução de crises e promoção da paz foram-se estreitando. Instituições como a OCDE,
a União Europeia, a NATO ou a União Africana passaram a desempenhar um papel
crescente em matéria de consolidação da paz, seguindo, de uma forma geral, o modelo
institucionalizado. Em particular, os alargamentos tanto da NATO como da UE no
continente europeu e, posteriormente, a ampliação das suas intervenções para fora da
Europa intensificaram a aplicação do paradigma e legitimaram ainda mais o modelo da
paz liberal como padrão de atuação. Simultaneamente, a proeminência na agenda
internacional do conceito de segurança humana (ver UNDP, 1994) e os subsequentes
apelos à intervenção propiciaram maior espaço às organizações da sociedade civil nos
discursos e práticas sobre paz e conflitos. Vistas como mais centradas nos indivíduos e
tendencialmente bottom-up nas suas abordagens, estas organizações ganharam relevo
e a sua participação nas várias fases de promoção da paz passou a ser tida como
essencial para o sucesso de um processo de paz sustentável.
Como apontam Newman et al., este entendimento, tanto do desafio como da resposta
mais apropriada, que rapidamente se difundiu por outras organizações, reflete não o
consenso dominante, mas também a evolução normativa no sentido do enfraquecimento
da inviolabilidade da integridade territorial e, concomitantemente, da aceitação crescente
do intervencionismo internacional (2009: 5).
4. As críticas ao modelo
As expectativas relativamente a esta nova era de intervencionismo global eram altas e
não tardaram a ser defraudadas, dando lugar a um pessimismo generalizado, muito por
conta dos dramáticos e mediáticos fracassos das missões em Angola, na snia, na
Somália e no Ruanda. As estatísticas sobre a reincidência de conflitos violentos em
sociedades previamente devastadas pela guerra cerca de 50% nos primeiros cinco anos
que se seguem à assinatura do acordo de paz (Collier, 2003: 83) questionavam
abertamente o modelo de atuação privilegiado. Mas mesmo onde não houve um retorno
às hostilidades, a materialização da paz formal enfrentou graves dificuldades e, em
muitas ocasiões, as efusivas declarações iniciais de sucesso provaram ser prematuras
5
.
O principal protagonista deste ambicioso projeto intervencionista atraiu grande parte da
responsabilidade pelos reveses e fracassos. De facto, a complexidade dos problemas em
matéria de paz e segurança enfrentados com o fim da Guerra Fria desafiavam de forma
flagrante a capacidade institucional das NU para missões desta envergadura a vários
níveis: recursos financeiros; recursos humanos qualificados e experientes; recolha de
informação e planeamento; comunicação; coordenação; e know-how operacional (ver
Roberts & Kingsbury, 1993). A incontestável dificuldade de operacionalização da proposta
5
Ver, por exemplo, as críticas à atuação em Moçambique (Weinstein, 2002) ou no Camboja (Lizée, 2000).
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das NU evidente logo desde o início confirmava debilidades flagrantes e dilemas
difíceis de resolver que foram minando a credibilidade, legitimidade e capacidade de
intervenção da organização mundial.
Seriam, porém, as críticas ao modelo da consolidação da paz em si, preconizado tanto
pelas NU como pelos outros atores mais interventivos do sistema internacional, que se
revelariam mais contundentes. De entre estas, é possível distinguir o posicionamento
dos críticos quanto ao teor e intuito das suas análises e podemos identificar dois grupos:
(1) as críticas reformistas (dos problem-solvers)
6
que, embora reconhecendo defeitos
relevantes no modelo advogam a sua continuidade, refinando o processo sem contestar
o seu alicerce ideológico; e (2) as críticas estruturais que questionam a legitimidade
do modelo em si, os seus valores, interesses e a reprodução de relações hegemónicas,
desafiando, assim, a ordem aceite como realidade imutável.
Mais e melhor intervencionismo: as críticas reformistas
Tanto em termos numéricos como de influência no mundo do policy-making, a maioria
dos autores que se debruça sobre o tema da promoção da paz em Estados periféricos
pertence ao chamado mainstream e pode ser rotulado de problem-solver. São autores
que perfilham da ordem vigente e cuja preocupação é a de aumentar a relevância prática
e a eficiência do modelo da paz liberal.
7
Acreditando em última instância que, não
obstante os resultados dececionantes, a intervenção externa é mais benéfica do que
prejudicial e que, além disso, a alternativa é o abandono de milhões de pessoas da
periferia a uma condição de insegurança e violência, esta corrente acusa os “híper-
críticos” (Paris, 2010) de ceticismo generalizado e concentra-se no aperfeiçoamento do
modelo aplicado, de forma a minimizar os seus efeitos desestabilizadores e a melhorar a
sua capacidade de atuação.
Paris e Sisk (2009) representam genericamente esta posição e apontam cinco
contradições inerentes ao modelo e que dificultam a sua aplicabilidade: (1) a intervenção
externa é utilizada para fomentar o auto-governo; (2) é necessário controlo internacional
para criar apropriação local (local ownership); (3) valores universais o promovidos para
resolver problemas locais; (4) o corte com o passado é concomitante com a afirmação
da história; e, por último, (5) os imperativos de curto e de longo prazo entram
frequentemente em conflito. Estas tensões materializam-se em desafios práticos à
consolidação da paz em matéria de: (1) presença internacional (isto é, o grau de
ingerência nos assuntos internos do Estado de acolhimento tamanho da missão,
natureza das tarefas, consentimento versus condicionalidade/imposição, combinação
entre meios violentos e/ou não-violentos); (2) duração da missão (reconstrução pós-
bélica enquanto atividade necessariamente de longo-prazo versus responsabilização dos
atores nacionais); (3) participação local (elites versus população; prioridades
internacionais versus prioridades locais); (4) dependência (em relação aos atores
internacionais versus paz auto-sustentada); e (5) coerência (coordenação organizacional
e consistência normativa) (Ibid.: 306-309).
6
Sobre o conceito de “problem-solver”, ver Cox, 1986.
7
Ver, por exemplo, Fukuyama, 2004; Paris, 2004; Doyle e Sambanis, 2006; Call e Cousens, 2008; Jarstad
e Sisk, 2008.
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A constatação destes dilemas não leva à rejeição deste tipo de resposta da comunidade
internacional; pelo contrário, esta análise é encarada como uma forma “realista” de
tentar gerir imperativos contraditórios, de forma a melhorar o desempenho e eficácia das
missões, ajustar as expectativas e, assim, “salvar” o projeto da paz liberal (Paris, 2010).
Os fundamentos ideológicos da paz liberal transformar países devastados por guerras
civis em democracias liberais e de mercado não são, portanto, questionados. Ao longo
dos anos, a incorporação das críticas reformistas implicou apenas alguma adaptação ao
nível da metodologia, com a adoção de reformas mais graduais de “institucionalização
antes da liberalização” (Paris, 2004: 179) de forma a construir e reforçar instituições
de governação autónomas, eficazes e legítimas, antes da introdução de eleições winner-
takes-all e de reformas drásticas de abertura ao mercado. Esta estratégia mais sensível
aos efeitos perversos da “terapia de choque” mantinha, no entanto, os dois objetivos
globais que presidiam à implementação do paradigma desde o início da década de
noventa: (1) a reprodução do Estado ocidental weberiano na periferia com o reforço
da RSS, do Estado de direito e da boa governação (os três pilares mais salientes do
modelo na sua segunda década); e (2) a integração destes espaços na economia
capitalista mundial preservando genericamente o enquadramento neoliberal enquanto
acautelavam o seu impacto socioeconómico mais devastador, através de programas de
apoio ao desenvolvimento e de combate à pobreza (Harrison, 2004).
O desafio à estrutura global de poder: as críticas estruturais
As críticas estruturais prendem-se essencialmente com a ideologia subjacente ao
pensamento e à prática da consolidação da paz e o que esta (re)produz em termos de
funcionamento do sistema internacional. Ao contrário da perspetiva analisada em cima,
o objectivo dos autores críticos é transformativo, procurando explicitamente resistir a
formas hegemónicas de poder
8
. Este compromisso normativo ambiciona transformar
tanto o modelo em si por oposição a um ajustamento consentâneo com a preservação
do paradigma dominante da paz liberal, como o sistema mais alargado de relações de
poder por oposição à preservação do status quo.
De entre as críticas mais acutilantes, são de ressaltar as que versam sobre a matriz
ocidental do modelo hegemónico de consolidação da paz e sobre a sua natureza
hierárquica, centralizada e elitista. Numa perspectiva pós-colonial, a paz liberal é
entendida como promovendo a cultura, identidade e normas ocidentais em detrimento
de outras (Lidén, 2011: 57). As analogias entre a consolidação da paz e o colonialismo
são, por isso, recorrentes, considerando que ambos contribuem para o reforço da
assimetria de poder do Norte Global sobre o Sul Global. Os problemas estruturais da
conceção e implementação do modelo de consolidação da paz são, assim, vistos na sua
relação com a desigualdade do sistema internacional: as intervenções impõem um
modelo top-down, criam e reforçam uma hierarquia clara entre interventores e
intervencionados e atuam como instrumento da governação global do Ocidente na
periferia, consolidando a sua hegemonia, defendendo os seus interesses geoestratégicos
e promovendo os seus valores (Chandler, 2010). A sua função é então a de legitimação
da ordem mundial que se seguiu à vitória do bloco ocidental da Guerra Fria, ao servir os
interesses dos Estados ocidentais e das instituições financeiras internacionais por eles
controladas. Acresce ainda que as supostas soluções técnicas propostas e impostas pelo
8
Ver, por exemplo, Duffield, 2001; Pugh, 2005; Chandler, 2006; Richmond, 2006; Darby, 2009.
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Norte Global, como as estratégias neoliberais de reconstrução pós-bélica, reproduzem as
condições dos conflitos e causam a própria violência que pretendem resolver (Duffield,
2001; Pugh, 2005), contribuindo em última instância para a instabilidade do sistema.
Procurando superar esta lógica de imposição do internacional sobre o local, vários autores
têm explorado mais recentemente a ideia de um modelo de paz pós-liberal. O contributo,
por exemplo, de Richmond (2011) e Mac Ginty (2011) centra-se essencialmente na teoria
da paz brida, em que a paz é um brido cumulativo e de longo prazo entre forças
endógenas e exógenas. Recusando tanto a universalidade da paz liberal (enquanto
princípio e prática) como a pureza romantizada do local, o hibridismo constata a agência
local para resistir, subverter, renegociar, ignorar, atrasar e produzir alternativas ao
paradigma vigente. O reconhecimento desta heterogeneidade abre caminho para se
pensar sobre as epistemologias do sul (Sousa Santos, 2014) e, em particular, sobre
construções do Estado e formas de governação de sociedades distintas das propostas
dentro do modelo hegemónico. A ideia central é a de que, prestando atenção a outras
cosmovisões culturalmente diferentes das ocidentais, é possível reconhecer e criar uma
multiplicidade de “pazes” que não se esgotam na hegemonia esmagadora da paz liberal.
Embora de natureza e com intuitos diferentes, estas críticas põem efetivamente em
causa: (1) a bondade do modelo de intervenção chamando a atenção para as
características imperialistas do paradigma e a forma como serve os interesses e agendas
particulares do Norte nos países do Sul; (2) a sua natureza contestando a centralidade
da segurança (que privilegia ordem e estabilidade em detrimento de emancipação) e a
sua essência elitista, tecnocrática e padronizada; (3) a sua legitimidade questionando
a presunção ocidental da universalidade do liberalismo, a sua abordagem eurocêntrica,
impositiva e constrangedora da participação local; e (4) a sua eficácia sublinhando a
manutenção das relações conflituosas, a dependência para com os atores externos e as
consequências nefastas da desvalorização do contributo endógeno.
Conclusão
Não há dúvida de que o modelo de consolidação da paz levado a cabo pelos rios atores
que assumem hoje a liderança do intervencionismo internacional é um projeto
particularmente ambicioso. De mero congelamento dos conflitos armados, passámos
aceleradamente para a tentativa de resolução das suas causas profundas, através de um
paradigma institucionalizado que alterou drasticamente os objetivos e funções
tradicionais da promoção da paz na periferia.
Os resultados deste projecto intervencionista ficaram, porém, muito aquém dos
desejados, em particular para os que anteviam com entusiasmo uma nova era capaz de
resolver os desafios à paz e à segurança internacionais do pós-Guerra Fria. Duas décadas
de críticas internas e externas ao modelo de consolidação da paz foram produzindo
algumas reformas no sentido de um modus operandi mais flexível e ocasionalmente mais
sensível a outras abordagens. Tais ajustes não chegaram, contudo, a questionar
verdadeiramente os pressupostos culturais e ideológicos deste paradigma, nem os
interesses do norte global que subjazem à atuação internacional em contextos de conflito
e pós-conflito. Na realidade, não conseguiram sequer resolver de forma satisfatória os
problemas mais conjunturais identificados pelos reformistas, como atestam os sucessivos
relatórios e avaliações das operações de paz conduzidos pelos próprios atores
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A consolidação da paz: pressupostos, práticas e críticas
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internacionais. De facto, a maior parte das críticas apontadas ao longo destes vinte anos
mantém ainda hoje a sua validade.
A apreciação da consolidação da paz enquanto cânone de resposta aos veis extremos
de violência que assolam o sistema não pode, nesse sentido, deixar de revelar um
impacto no nimo dececionante e frequentemente contraproducente. Embora seja de
enaltecer a vontade de ir além do modelo militarizado de paz negativa assim como o
facto de esta traduzir um renovado compromisso da comunidade internacional para com
a periferia devastada pela violência e em necessidade de auxílio , o ceticismo
relativamente aos esforços internacionais tem claramente razão de ser. As sérias
limitações na forma como o próprio conceito tem sido pensado e materializado no
terreno, a que acrescem as denúncias quanto às agendas e interesses que são
verdadeiramente servidos com estas intervenções, são problemas particularmente
graves que estão ainda, de facto, muito longe de ser resolvidos.
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 8, Nº. 1 (Maio-Outubro 2017), pp. 65-77
O TPI NO CENTRO DE UM SISTEMA DE JUSTIÇA PENAL INTERNACIONAL:
DESAFIOS ATUAIS
1
Patrícia Galvão Teles
2
pgalvaoteles@gmail.com
Professora de Direito Internacional na Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal)
e Investigadora no OBSERVARE
Resumo
O Tribunal Penal Internacional (TPI) entrou na sua segunda cada de operações e
estabeleceu-se no centro de um sistema de justiça penal internacional que também inclui
jurisdições nacionais e outros tribunais internacionais. No entanto, o TPI continua a enfrentar
muitos desafios e, de fato, esses desafios fazem parte das suas características próprias e
decorrem das especificidades do direito e das relações internacionais. Neste artigo
examinamos, à luz de acontecimentos recentes, quatro desses desafios: 1) Universalidade;
2) Complementaridade; 3) Cooperação; e 4) o Crime de Agressão. Esses desafios ilustram a
forma como o TPI e a justiça penal internacional habitam tanto nas culturas da justiça como
da política e como estes dois aspetos devem ser tidos em consideração para que esses
desafios sejam superados, de modo a que a missão de um instrumento permanente e central
para a luta contra a impunidade, que historicamente começou em Roma em 1998, se torne
uma parte inerente do mundo atual.
Palavras-chave
Tribunal Penal Internacional; Justiça Penal Internacional.
Como citar este artigo
Teles, Patrícia Galvão (2017). "O TPI no centro de um sistema de justiça penal internacional:
desafios atuais". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 8, N.º 1, Maio-Outubro
2017. Consultado [online] em data da última consulta, http://hdl.handle.net/11144/3033
Artigo recebido em 13 de Janeiro de 2017 e aceite para publicação em 13 de Fevereiro
de 2017
1
Artigo desenvolvido no âmbito do projeto de investigação "Justiça Penal Internacional: um Diálogo entre
Duas Culturas" do OBSERVARE/UAL, coordenado por Mateus Kowalski e Patrícia Galvão Teles.
2
As opiniões expressas neste artigo são estritamente pessoais.
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O TPI no centro de um sistema de justiça penal internacional: desafios atuais
Patrícia Galvão Teles
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O TPI NO CENTRO DE UM SISTEMA DE JUSTIÇA PENAL INTERNACIONAL:
DESAFIOS ATUAIS
3
Patrícia Galvão Teles
I. Introdução
Em 2016, o Tribunal Penal Internacional (TPI) assistiu a um vel de atividade judicial
sem precedentes. Esta tendência deverá continuar em 2017. Estão a ser realizados
exames preliminares em 10 situações distintas em todas as regiões do mundo (incluindo
no Afeganistão, Colômbia, Iraque/Reino Unido, Palestina e Ucrânia), existem 10
investigações em curso (incluindo na Geórgia) e 3 julgamentos foram concluídos em
2016.
Ao mesmo tempo, o TPI está a atravessar momentos delicados do ponto de vista político,
com a retirada do Estatuto de Roma de 3 estados africanos (África do Sul, Burundi e
Gâmbia) e sinais antagonistas provenientes tanto da ssia como da nova administração
americana.
Simultaneamente, em virtude da falta de universalidade do Estatuto de Roma e do
impasse no Conselho de Segurança, algumas situações em que crimes internacionais
sérios estão a ser cometidos não podem ser levadas perante o TPI e continua a haver a
necessidade de criar mecanismos ad hoc, apesar da existência de um tribunal penal
permanente, como para os casos do Sudão do Sul e possivelmente Síria.
Quanto à questão da complementaridade, a conclusão do Protocolo de Malabo no
contexto da União Africana criou a novidade, para além das jurisdições nacionais, de
estabelecer uma complementaridade "regional" e a questão da sua compatibilidade com
o Estatuto de Roma.
No plano da cooperação, as dificuldades continuam e afetam a capacidade do Tribunal
de cumprir a sua missão, dado o elevado grau de dependência na cooperação dos
Estados-membros. Isto tornou-se especialmente evidente no que diz respeito à marcante
detenção e entrega de pessoas acusadas pelo Tribunal, em particular de Omar Al-Bashir,
do Sudão, um chefe de Estado em exercício, que evidencia a tensão entre o direito
tradicional sobre imunidades e a justiça penal internacional.
Outro elemento de tensão que ressurgirá em 2017 prende-se com o crime de agressão,
que agora a decisão sobre a ativação da jurisdição do Tribunal relativamente a este
crime pode ser tomada e o crime de agressão tem sido um elemento contencioso do
3
A tradução deste artigo foi financiada por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e
a Tecnologia no âmbito do projeto do OBSERVARE com a referência UID/CPO/04155/2013, e tem como
objetivo a publicação na Janus.net. Texto traduzido por Carolina Peralta.
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Estatuto do TPI, especialmente para os membros permanentes do Conselho de
Segurança.
Estes quatro desafios continuam a colocar no centro das atenções as dificuldades de
funcionamento de um mecanismo judicial num ambiente político. Se todo o trabalho
judicial for feito nesse contexto, em nenhum Tribunal como o TPI essa dicotomia de
justiça versus política se afigura mais evidente.
II. Desafios Atuais
1) Universalidade
A ratificação universal do Estatuto de Roma do TPI tem sido um objetivo constante desde
a aprovação do Estatuto de Roma. Em 2016, 124 Estados eram partes no Estatuto,
incluindo o Estado da Palestina. Destes, 34 são Estados africanos, 19 são da Ásia-Pacífico,
18 são da Europa Oriental, 28 são da América Latina e das Caraíbas e 25 são da Europa
Ocidental e de outros estados.
Em Outubro/Novembro de 2016, a África do Sul, o Burundi e a Gâmbia notificaram o
secretário-geral das Nações Unidas (ONU), que é o depositário do Estatuto de Roma, da
sua intenção de se retirarem do TPI - uma decisão que, de acordo com o Estatuto, produz
efeitos jurídicos apenas um ano após a notificação. Estes países agiram por razões
diferentes, incluindo razões políticas internas, mas estas decisões partilham uma crítica
declarada ao funcionamento do Tribunal
4
.
Nos últimos anos, muitos estados africanos desenvolveram uma perceção negativa
crescente relativamente ao TPI, especialmente tendo em conta que os primeiros casos
apresentados a este Tribunal se referiam todos a situações africanas, embora a maioria
fosse autorreferência soberana dos próprios estados. Esta perceção negativa e as
preocupações relativas à seletividade foram expressas nas reuniões da União Africana,
da Assembleia Geral da ONU e do Conselho de Segurança e também na Assembleia dos
Estados Partes do TPI
5
.
Embora não se espere um êxodo em massa do Estatuto de Roma e seja ainda possível
que essas decisões de retirada sejam revertidas, não obstante afetam a credibilidade e
a legitimidade do Tribunal.
Outro aspeto que afeta a credibilidade e a legitimidade do TPI e põe em perigo a sua
ambição de universalidade é o fato de que dos 5 membros permanentes do Conselho de
Segurança da ONU (P5) apenas 2 são partes no Estatuto de Roma: a França e os Estados
Unidos Reino. Os Estados Unidos, a ssia e a China não são partes e isso torna a
capacidade do Tribunal de exercer plenamente as suas funções muito dependente das
atitudes tomadas, especialmente pelos EUA e pela Rússia, no contexto do Conselho de
4
Para a totalidade dos argumentos avançados pela África do Sul, veja-se a "Declaração da República da
África do Sul sobre a decisão de se retirar do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional", disponível
em https://treaties.un.org/doc/Publication/CN/2016/CN.786.2016-Eng.pdf.
5
Cf. N. Waddell e P. Clark, Courting Conflict? Justice, Peace and the ICC in Africa, The Royal African Society,
2008; A. Arieff et al, International Criminal Court Cases in Africa: Status and policy issues, Diane Publishing,
2010; E. Keppler, “Managing setbacks for the International Criminal Court in Africa”, Journal of African Law
(2012-56/1) 1-14; A. Guerreiro, A resistência dos Estados Africanos à jurisdição do Tribunal Penal
Internacional, Almedina, 2012; e P. Galvão Teles, “The International Criminal Court and the evolution of
the idea of combating impunity: an assessment 15 years after the Rome Conference”, Janus.Net (2014-
2015-5/2).
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Segurança e em geral, que têm variado ao longo do tempo, mas que atualmente correm
o risco de entrar numa fase particularmente antagónica.
Além disso, após os anos de Bush, os EUA podem estar a caminho de um novo confronto
com o TPI. O TPI está a dar início a uma investigação sobre possíveis crimes de guerra
no Afeganistão que poderão incluir atos de tortura cometidos pelos militares dos EUA
entre 2003 e 2014. Mesmo que isso o se concretize, tendo em conta os sinais dados
pelo novo presidente em questões de política externa, a ONU e direitos humanos, prevê-
se uma posição defensiva e hostil em relação ao TPI
6
.
A Rússia, por sua vez, em novembro de 2016 “retirou formalmente a sua assinatura”
7
do
Estatuto do Tribunal Penal Internacional - como fizeram os EUA
8
alguns anos antes, em
2002
9
- depois do Tribunal ter publicado um relatório classificando a anexação russa da
Crimeia como uma ocupação.
Além da investigação em curso sobre os crimes cometidos na Geórgia em 2008, a ssia
também pode estar preocupada com uma possível investigação criminal na ria, onde
as suas forças têm sido repetidamente acusadas de crimes de guerra nos últimos meses.
A Rússia assinara o Estatuto de Roma em 2000 e tinha cooperado com o Tribunal, mas
não tinha ratificado o Tratado e, portanto, permaneceu fora da jurisdição do TPI. Isto
significa que este movimento, embora altamente simbólico, não mudará muita coisa na
prática, mas é um sinal de uma atitude futura mais hostil para com o Tribunal.
Além das retiradas e posições antagonistas que ameaçam a pretensão de universalidade
do Estatuto de Roma, o facto de o Estatuto não estar universalmente ratificado implica
que a necessidade de continuar a criar mecanismos ad hoc - como foi feito no passado
para a ex-Jugoslávia, Ruanda, Serra Leoa, Camboja ou bano - continua presente.
Embora sejam mais difíceis de implementar, devido a dificuldades políticas e financeiras,
é possível que esses mecanismos ad hoc sejam utilizados em pelo menos duas situações
prementes: Sudão do Sul e Síria.
Desde dezembro de 2013 têm sido cometidas violações graves do direito internacional
humanitário e dos direitos humanos no Sudão do Sul, com crimes que incluem homicídios
extrajudiciais, violência étnica, violações e outras formas de violência sexual, e ataques
a escolas, locais de culto, hospitais e a pessoal das Nações Unidas e de manutenção da
6
Cf. United Nations University Center for Policy Research, “The UN in the Era of Trump”, disponível em
https://cpr.unu.edu/the-un-in-the-era-of-trump.html.
7
Numa comunicação recebida em 30 de novembro de 2016, o Governo da Federação Russa informou o
secretário-geral do seguinte: "Tenho a honra de informar Vossa Excelência sobre a intenção da Federação
da Rússia de não aderir ao Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, adotado em Roma em 17 de
Julho de 1998 e assinado em nome da Federação da Rússia em 13 de Setembro de 2000. Gostaria, senhor
secretário-geral, que considerasse este instrumento como uma notificação oficial da Federação Russa de
acordo com o parágrafo (a) do artigo 18 da Convenção de Viena sobre o Direito dos Tratados de 1969.”
Veja-se https://treaties.un.org/pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=XVIII-
10&chapter=18&clang=_en.
8
Numa comunicação recebida em 6 de Maio de 2002, o governo dos Estados Unidos da América informou o
secretário-geral do seguinte: "Informamos, no âmbito do Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional
adotado em 17 de Julho de 1998, que os Estados Unidos não pretendem tornar-se parte do tratado e,
portanto, os Estados Unidos não têm obrigações legais decorrentes da sua assinatura em 31 de dezembro
de 2000. Os Estados Unidos pedem que sua intenção de não se tornar parte, como indicado na presente
carta, seja refletida nas listas de status de depositário relativas a este tratado.” Veja-se
https://treaties.un.org/pages/ViewDetails.aspx?src=TREATY&mtdsg_no=XVIII-
10&chapter=18&clang=_en.
9
Legalmente, o ato de "retirar a assinatura" de um tratado não existe. O que a Rússia e os EUA fizeram foi
comunicar a sua intenção de não se tornarem parte no Estatuto de Roma, a fim de evitar as obrigações de
boa-fé decorrentes da assinatura, como previsto no artigo 18 da Convenção de Viena sobre o Direito dos
Tratados de 1969.
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O TPI no centro de um sistema de justiça penal internacional: desafios atuais
Patrícia Galvão Teles
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paz que lhe está associado. Apelos à assunção de responsabilidade têm sido feitos em
vários fóruns, incluindo o Conselho de Segurança, o Conselho de Direitos Humanos e o
Conselho de Paz e Segurança da União Africana, bem como a sociedade civil. Em agosto
de 2015, as partes no conflito adotaram um Acordo sobre a Resolução do Conflito, no
qual acordaram estabelecer um Tribunal Híbrido para o Sudão do Sul. O Tribunal Híbrido
será "um tribunal judicial brido independente" e será "instituído pela Comissão da União
Africana para investigar e julgar os indivíduos responsáveis por violações do direito
internacional e/ou leis aplicáveis ao Sudão do Sul" cometidas após 15 de dezembro de
2013. Em outubro de 2015, o Conselho de Segurança solicitou ao secretário-geral que
disponibilizasse assistência técnica para a criação do Tribunal Híbrido. Esta é a primeira
vez que as Nações Unidas têm a tarefa de prestar assistência técnica a uma organização
regional para a criação de um tribunal brido. As Nações Unidas têm uma vasta
experiência na criação e funcionamento de tribunais penais internacionais e tribunais
apoiados pela ONU e estão em articulação com a Comissão da União Africana para
compartilhar as lições aprendidas com experiências passadas
10
.
Após a resolução do Conselho de Segurança de submeter a situação síria ao TPI ter sido
vetada pela Rússia e pela China em 2014, em 19 de dezembro de 2016 a Assembleia
Geral das Nações Unidas votou a criação de uma equipa especial para "recolher,
consolidar, preservar e analisar provas" e preparar casos sobre crimes de guerra e abusos
de direitos humanos cometidos durante o conflito na Síria. De acordo com a Resolução
da Assembleia Geral A/RES/71/248, a equipa trabalhará em coordenação com a
Comissão de Inquérito da ONU na ria, criada pelo Conselho de Direitos Humanos da
ONU em Genebra em 2011 para investigar eventuais crimes de guerra. A Comissão de
Inquérito, que elaborou uma lista confidencial de suspeitos de todas as partes que
cometeram crimes de guerra ou crimes contra a humanidade, tem pedido repetidamente
ao Conselho de Segurança da ONU que remeta a situação na Síria para o Tribunal Penal
Internacional. A equipa especial "preparará arquivos para facilitar e acelerar processos
judiciais justos e independentes de acordo com as normas de direito internacional, em
tribunais nacionais, regionais ou internacionais, ou em tribunais que tenham ou possam
ter jurisdição sobre esses crimes". A repressão de Assad sobre os manifestantes pró-
democracia em 2011 conduziu à guerra civil e os militantes do Estado Islâmico/Daesh
têm usado o caos para conquistar território na Síria e no Iraque. Metade dos 22 milhões
de pessoas da Síria foram deslocadas e mais de 400 mil mortas
11
.
A busca de universalidade dos membros e a tentativa de fazer do TPI o centro efetivo da
justiça penal internacional a vel global certamente continuará no futuro, apesar dos
contratempos recentes. No entanto, não podemos esquecer que o TPI é apenas um
tribunal de último recurso para o mais grave dos crimes internacionais mais graves e que
nunca terá capacidade, nem nunca tal se pretendeu, para substituir a jurisdição nacional
e a responsabilidade original dos estados em matéria de responsabilização por crimes de
atrocidade. É por isso que a complementaridade - a nível nacional ou, eventualmente, a
nível regional - continua a ser uma característica fundamental da justiça penal
internacional, como examinaremos na próxima secção.
10
Cf. http://legal.un.org/ola/media/info_from_lc/mss/speeches/MSS-ILC-statement-17-May-2016-EN-
FR.pdf.
11
Veja-se https://www.un.org/press/en/2016/ga11880.doc.htm e
http://mobile.reuters.com/article/idUSKBN14A2H7?il=0.
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Vol. 8, Nº. 1 (Maio-Outubro 2017), pp. 65-77
O TPI no centro de um sistema de justiça penal internacional: desafios atuais
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2) Complementaridade
O TPI baseia-se no princípio da complementaridade, de acordo com o artigo 17 do seu
Estatuto. Trata-se de um Tribunal de último recurso
12
que intervém apenas quando o
estado territorial ou de nacionalidade é "incapaz de, ou não quer" instaurar ões judiciais
contra crimes internacionais graves que possam ter sido cometidos no seu território ou
pelos seus nacionais.
Para que o sistema de complementaridade funcione, os estados têm de dispor de
legislação nacional adequada e de instituições judiciais apropriadas. Naturalmente, isto
é, só por si, um desafio.
A República Centro-Africana e o Sri Lanka o países que estão a desenvolver, com a
ajuda das Nações Unidas e de outras organizações, a capacidade de promover a
responsabilidade judicial pelos crimes cometidos durante as suas guerras civis.
Mas enquanto a complementaridade foi inicialmente vista como complementaridade
entre o TPI e as jurisdições nacionais, a possível criação de um Tribunal Penal Regional
Africano levantou a questão da complementaridade "regional"
13
.
Em junho de 2014, a Assembleia dos Chefes de Estado e de Governo da União Africana
(UA), reunida em Malabo, Guiné Equatorial, adotou o Protocolo de Emendas ao Protocolo
sobre o Estatuto do Tribunal Africano de Justiça e Direitos Humanos (Protocolo de
Malabo) e convidou os estados membros da UA a assiná-lo e ratificá-lo
14
.
O Protocolo de Malabo alarga a jurisdição do Tribunal Africano de Justiça e Direitos
Humanos (TAJDH) a crimes de direito internacional e crimes transnacionais. O plano
original para o TAJDH era que fosse um tribunal com duas seções - uma seção de
assuntos gerais e uma seção de direitos humanos. O Protocolo de Malabo introduz uma
terceira seção: a seção de direito penal internacional. Assim, se o Protocolo de Malabo
entrar em vigor, o TAJDH terá jurisdição para julgar os seguintes 14 crimes: genocídio,
crimes contra a humanidade, crimes de guerra, crime de mudança inconstitucional de
governo, pirataria, terrorismo, mercenarismo, corrupção, lavagem de dinheiro, tráfico de
pessoas, tráfico de droga, tráfico de resíduos perigosos, exploração ilícita de recursos
naturais e crime de agressão.
Assim, a seção de direito penal internacional do TAJDH poderia servir como um tribunal
penal regional africano, com os mesmos objetivos do Tribunal Penal Internacional, mas
dentro de um contexto geográfico estreitamente definido e sobre uma lista alargada de
crimes.
A adoção do Protocolo de Malabo é aparentemente um passo na direção certa. O tribunal
penal regional poderia potencialmente desempenhar um papel positivo num continente
persistentemente atingido pelo flagelo do conflito e pela impunidade dos crimes
internacionais. Em conflitos recentes e em curso, milhares de civis perderam a vida ou
foram mutilados e deslocados das suas casas. muitos relatos de assassinatos, tortura,
violação, mutilação de corpos, recrutamento de crianças-soldado e destruição
12
E. Mendes, Peace and Justice at the International Criminal Court: A Court of last resort, Elgar, 2010.
13
F. M. Jackson, “Regional complementarity: The Rome Statute and Public International Law”, Journal of
International Criminal Justice (2016-14/5) 1061-1072.
14
Relativamente a este assunto veja-se Amnesty International, Malabo Protocol Legal and institutional
implications of the merged and expanded African Court, 2016.
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indiscriminada de bens. Tanto os grupos armados como as forças governamentais são
responsáveis pelos abusos e violações.
A impunidade é um denominador comum nos conflitos em África, e os suspeitos de
responsabilidade criminal por crimes de direito internacional raramente o
responsabilizados. Muitas vezes os governos nacionais não estão dispostos ou revelam-
se incapazes de conduzir investigações atempadas, independentes, imparciais e eficazes
sobre as alegações de crimes internacionais e fazer com que todos os suspeitos de
responsabilidade criminal respondam perante a justiça em julgamentos justos. Um
tribunal penal regional, tal como previsto no Protocolo de Malabo, tem potencial para
preencher esta lacuna de responsabilização.
No entanto, existem preocupações sobre as motivações por trás da proposta de criação
da seção criminal do TAJDH. Alguns analistas
15
argumentam que a proposta é uma
tentativa por parte da UA de proteger os chefes de estado africanos e altos funcionários
do estado de serem responsabilizados quando motivos razoáveis para acreditar que
são criminalmente responsáveis por crimes de acordo com o direito internacional. Além
disso, há dúvidas quanto à compatibilidade com o Estatuto de Roma sobre a questão da
complementaridade, prevista como uma complementaridade nacional, mas também
dada a disposição expressa sobre a imunidade de processo em relação a chefes de
Estado, governamentais ou outros funcionários do Estado.
A disposição do Estatuto emendado do TAJDH considerada como sendo a mais
controversa é de fato uma cláusula de imunidade. A disposição pertinente (artigo 46.º-
Abis) tem a seguinte redação:
"Não serão iniciadas ou prosseguidas quaisquer acusações no
Tribunal contra qualquer chefe de Estado ou de Governo da União
Africana em serviço, ou contra qualquer pessoa que aja ou possa
agir nessa qualidade, ou contra outros altos funcionários do Estado
com base nas suas funções, durante os seus mandatos".
Até à data o Protocolo de Malabo ainda não entrou em vigor, tendo sido assinado apenas
por 9 estados sem que tenha sido ratificado por nenhum. Uma possível expansão do
Protocolo de Malabo do Tribunal Africano dos Direitos Humanos e dos Povos poderá
assegurar uma maior responsabilização, mas não prejudica o contributo do TPI para a
justiça penal. Essa extensão do Tribunal Africano deve ser desenvolvida com pleno
respeito e em conformidade com o Estatuto de Roma, que não prevê a imunidade de
jurisdição para os chefes de Estado em exercício. Mas é justamente a questão da
irrelevância da capacidade oficial de persecução penal que constitui o aspeto mais
problemático do Estatuto de Roma para os Estados africanos, como será discutido na
próxima seção.
15
Vejam-se, entre outros, http://kptj.africog.org/wp-content/uploads/2016/11/Malabo-Report.pdf e
http://www.ejiltalk.org/a-case-of-negative-regional-complementarity-giving-the-african-court-of-justice-
and-human-rights-jurisdiction-over-international-crimes/.
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3) Cooperação
Dos 23 pedidos de detenção e entrega emitidos pelo TPI, 12 ainda estão por executar:
(a) Costa do Marfim: Simone Gbagbo, desde 2012; b) República Democrática do Congo:
Sylvestre Mudacumura, desde 2012; c) Quénia: Walter Barasa, desde 2013; (d) bia:
Saif Al-Islam Gaddafi, desde 2011; e) Darfur (Sudão): Ahmad Harun e Ali Kushayb,
desde 2007; Omar Al Bashir, desde 2009; Abdel Raheem Muhammad Hussein, desde
2012; e Bahar Idriss Abu Garda, desde 2014; f) Uganda: Joseph Kony, Vincent Otti e
Okot Odhiambo, desde 2005.
A detenção e a entrega de pessoas acusadas dependem da cooperação dos Estados
Partes no TPI, mas também de todos os membros da ONU nos casos submetidos pelo
Conselho de Segurança ao abrigo do capítulo VII da Carta das Nações Unidas, como foi
o caso do Sudão e da Líbia, que não são Estados Partes do TPI. O TPI pediu, sem sucesso,
ao Conselho de Segurança que agisse sobre a não cooperação em relação a estas duas
situações.
Estas detenções pendentes também afetaram significativamente a credibilidade do
Tribunal e do sistema concebido pelo Estatuto de Roma.
O caso Bashir foi aquele em que as tensões foram mais evidentes. Em junho de 2015,
enquanto participava numa Cimeira da União Africana na África do Sul, a detenção e a
entrega do presidente Bashir foram objeto de um pedido de cooperação do TPI à África
do Sul. O Tribunal Superior da África do Sul emitiu uma ordem exigindo que ele o fosse
autorizado a deixar o país, mas o governo sul-africano permitiu que o fizesse antes que
o Tribunal Superior pudesse considerar o mérito do pedido. O Tribunal Superior viria
posteriormente a decidir que isso era ilegal. Nos termos da Parte IX do Estatuto de Roma,
os Estados Partes - incluindo a África do Sul - têm a obrigação de cooperar com o
Tribunal. Isto também se aplica à legislação da nação sul-africana que implementa o
Estatuto de Roma.
O governo da África do Sul
16
argumentou que há uma questão jurídica não resolvida
decorrente do fato de que o direito internacional prevê que os chefes de Estado em
serviço estão imunes à jurisdição penal de outros estados, incluindo a imunidade de
detenção e inviolabilidade pessoal. A questão que se levanta é se esta imunidade se
mantem nos casos em que as autoridades nacionais são solicitadas a deter um chefe de
Estado procurado pelo TPI. A questão torna-se ainda mais complicada quando o chefe de
Estado é de um estado que não é parte no Estatuto do TPI, embora o caso tenha sido
interposto por uma resolução do capítulo VII do Conselho de Segurança.
Segundo a África do Sul, os artigos 27
17
e 98
18
do Estatuto de Roma representam a
interseção da lei sobre imunidades aplicável aos chefes de Estado e de Governo e a
16
Cf., entre outros, “Declaratory statement by the Republic of South Africa on the decision to withdraw from
the Rome Statute of the International Criminal Court” disponível em
https://treaties.un.org/doc/Publication/CN/2016/CN.786.2016-Eng.pdf.
17
“1. O presente Estatuto aplica-se igualmente a todas as pessoas sem qualquer distinção baseada na
capacidade oficial. Em particular, a capacidade oficial como chefe de Estado ou de Governo, membro de um
Governo ou Parlamento, representante eleito ou como funcionário público não deve, em caso algum, isentar
uma pessoa da responsabilidade penal ao abrigo do presente Estatuto nem, por si só, constitui fundamento
para a redução da pena. 2. As imunidades ou regras processuais especiais que possam ser atribuídas à
capacidade oficial de uma pessoa, quer por força do direito nacional ou internacional, não impedem o
Tribunal de exercer a sua jurisdição sobre essa pessoa.“
18
1. O Tribunal não pode fazer um pedido de entrega ou de assistência que imponha ao estado requerido
uma atuação incompatível com as suas obrigações por força do direito internacional em relação ao estado
ou à imunidade diplomática de uma pessoa ou de bens de um estado terceiro, a menos que o Tribunal
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obrigação de cooperação dos Estados Partes no Estatuto. A relação entre os Estados
Partes e os partidos não estatais continua a ser regida pelo direito internacional
consuetudinário que atribui a um chefe de Estado a imunidade ratione personae. A
detenção de tal pessoa por um Estado Parte, em conformidade com as suas obrigações
por força do Estatuto de Roma, pode, por conseguinte, conduzir a uma violação das suas
obrigações em matéria de direito consuetudinário.
Este argumento foi rejeitado pelo TPI
19
(embora não de uma forma totalmente coerente
em termos dos argumentos jurídicos), e por muitos estados e estudiosos, argumentando,
inter alia, que o artigo 27 do Estatuto de Roma, seguindo o precedente de Nuremberga,
tornou irrelevante a capacidade oficial e as imunidades legais consuetudinárias para
efeitos de persecução por tribunais penais internacionais para os Estados Partes do TPI.
Além disso, uma vez que a situação do Sudão foi levada ao TPI pelo Conselho de
Segurança numa resolução vinculatória do capítulo VII, as obrigações de cooperação
decorrentes deste caso também seriam vinculativas para todos os Estados membros da
ONU e não apenas os Estados Partes do TPI
20
.
Estes distintos pontos de vista jurídicos sobre esta questão têm persistido e os analistas
e até mesmo a União Africana têm sugerido que esta questão deve ser objeto de um
parecer consultivo do Tribunal Internacional de Justiça
21
. Mesmo que não seja esse o
caso, seria importante, legal e politicamente, esclarecer essa questão de forma definitiva
e consensual, a fim de aliviar algumas das atuais tensões relacionadas com o TPI.
4) O Crime de Agressão
Na fase inicial e durante a Conferência Diplomática de Roma, em 1998, a discussão
incidiu sobretudo sobre a inclusão ou não do crime de agressão no grupo dos outros 3
principais crimes internacionais: genocídio, crimes contra a humanidade e crimes de
guerra. A discussão não era tanto sobre a possibilidade de instaurar processos criminais
contra a agressão a nível individual, uma vez que havia precedentes da Segunda Guerra
Mundial (nomeadamente Nuremberga e Tóquio) sobre os então chamados "crimes contra
a paz", mas sim se se deveria incluir um crime mais estreito abrangendo apenas "guerras
de agressão" ou um mais amplo relacionado com "atos de agressão" contidos na
Resolução da Assembleia Geral de 1974, entretanto aprovada. A outra questão espinhosa
era a relação entre o TPI e o Conselho de Segurança, ou seja, se o TPI deveria apenas
obtenha primeiro a cooperação desse estado terceiro para a renúncia à imunidade. 2. O Tribunal não pode
fazer um pedido de entrega que obrigue o estado requerido a agir de forma incompatível com as suas
obrigações por força de acordos internacionais nos termos dos quais o consentimento do estado que envia
é exigido antes de entregar uma pessoa desse estado ao Tribunal, a menos que o Tribunal tenha primeiro
obtido a cooperação do Estado que envia relativamente ao consentimento sobre a entrega."
19
Cf. Decisões sobre o Malawi (ICC-02/05-01/09-139-Corr de 13 de Dezembro de 2011), Chade (ICC-02/05-
01/09-151 de 26 de março de 2013) e África do Sul (ICC-02/05-01/09-242 de 13 de Junho de 2015).
20
Cf., entre outras, as discussões sobre esta matéria por D. Akande, “International Law Immunities and the
International Criminal Court”, American Journal of International Law (2004-98/3) 407-433; P. Gaeta, “Does
President Al Bashir enjoy immunity from arrest?”, Journal International Criminal Justice (2009-7/2) 315-
332; e C. Jalloh, “Reflections on the indictment of sitting Heads of State and Government and its
consequences for peace and stability and reconciliation in Africa”, African Journal of Legal Studies (2014-
7/1) 43-59.
21
Cf. http://www.ejiltalk.org/an-international-court-of-justice-advisory-opinion-on-the-icc-head-of-state-
immunity-issue/ e http://au.int/en/sites/default/files/decisions/9651-assembly_au_dec_416-
449_xix_e_final.pdf.
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instaurar processos contra crimes de agressão, uma vez que o Conselho de Segurança
determinara a existência desse ato, ou não
22
.
Durante a Conferência de Roma, várias delegações apresentaram propostas para a
inclusão do crime de agressão. Muitos estados apoiaram a inclusão deste crime na
jurisdição do Tribunal, desde que fosse possível chegar a acordo sobre uma definição e
as condições para o exercício dessa jurisdição.
A fim de não comprometer o resultado global e inviabilizar as negociações, os artigos
5º/1 e 2.º incluíram um compromisso no sentido de incluir o crime de agressão, mas
deixando a definição e as condições para o exercício da jurisdição para consideração
posterior, nomeadamente na primeira Conferência de Revisão. Um resultado misto foi
assim o compromisso possível: o crime estava no Estatuto, mas o Tribunal não podia
exercer jurisdição até novas negociações e acordo sobre as duas vias de definição e
condições para o exercício da jurisdição.
A resolução F da Ata Final da Conferência Diplomática confirmou que esta era uma
questão a ser prosseguida e mandatou a Comissão Preparatória do TPI, ou Comissão
Preparatória, para continuar a trabalhar na questão da agressão. A resolução F mandatou
a Comissão Preparatória a preparar propostas para uma disposição sobre a agressão,
incluindo a definição e os elementos dos crimes, e as condições sob as quais o TPI
exercerá sua jurisdição. Indicou também que a Comissão deveria apresentar essas
propostas à Assembleia dos Estados Partes numa Conferência de Revisão, a fim de chegar
a uma disposição aceitável sobre o crime de agressão para inclusão no Estatuto.
Na sequência da Conferência de Roma de 1998, a Comissão Preparatória do TPI (Com
Prep, 1999-2002) e posteriormente o Grupo de Trabalho Especial sobre o Crime de
Agressão (GTECA, 2003-2009) prosseguiram as negociações sobre as questões
pendentes relativas ao crime de agressão. Em Fevereiro de 2009, o GTECA chegou a
consenso sobre a definição do crime de agressão.
A Conferência de Revisão de 2010 em Kampala usou essa definição e pôde, assim,
concentrar-se noutras questões pendentes, como por exemplo as "condições para o
exercício da jurisdição". Os Estados Partes aproveitaram a oportunidade histórica e
aprovaram a Resolução RC/Res.6 por consenso. A resolução alterou o Estatuto de Roma
para incluir, entre outros, o novo artigo bis contendo uma definição do crime de
agressão e os novos artigos 15.º bis e 15.º ter, que contêm disposições complexas sobre
as condições de exercício da jurisdição.
O compromisso incluiu uma cláusula que impedia o Tribunal de exercer jurisdição sobre
o crime de agressão de imediato. Em vez disso, a Assembleia dos Estados Partes teria
de tomar mais uma decisão única para ativar a jurisdição do Tribunal, não antes de 2017,
por uma maioria de dois terços dos Estados Partes. Além disso, um ano terá que ter
decorrido após a 30ª ratificação, realizada em junho de 2016, antes que o Tribunal
pudesse exercer a sua jurisdição sobre o crime de agressão
23
.
A Assembleia dos Estados Partes está agora em posição de tomar uma decisão sobre a
ativação do TPI relativamente ao crime de agressão. Os membros permanentes do
22
Veja-se S. Barriga e C. Kreß, The Travaux Préparatoires of the Crime of Aggression, Cambridge University
Press, 2012.
23
Veja-se C. Kreß e L. von Holtzendorff, “The Kampala Compromise on the Crime of Aggression”, Journal of
International Criminal Justice (2010-8/5) 1179-1217 e S. Barriga e L. Grover, “A Historic Breakthrough on
the Crime of Aggression”, American Journal of International Law (2011-105/3) 517-533.
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Conselho de Segurança, incluindo as Partes do TPI França e Reino Unido, sempre
questionaram esse crime, especialmente a relação entre o Conselho de Segurança, que
tem a prerrogativa política de declarar que um ato de agressão foi cometido e o TPI, que
terá de fazer uma análise judicial, e não política.
Embora as emendas de Kampala tenham salvaguardado muitas das preocupações dos
P5, espera-se que a ativação da jurisdição sobre o crime de agressão possa trazer outro
nível de tensão no âmbito do TPI no atual contexto político. É, portanto, de extrema
importância que este processo continue a ser construído numa base sólida na próxima
Assembleia dos Estados Partes e que o compromisso de Kampala não seja reaberto.
III. Algumas Conclusões: Justiça vs. Política
O Estatuto de Roma do TPI foi, sem dúvida, um dos tratados internacionais mais
significativos assinados no pós-guerra fria, num momento em que o direito internacional
e as instituições internacionais viviam um momento muito positivo. Estava no centro do
discurso político na reação contra as atrocidades mais graves cometidas desde a Segunda
Guerra Mundial, nomeadamente na antiga Jugoslávia e no Ruanda.
Atualmente, provavelmente não seria possível repetir essa façanha e criar algo a partir
das instituições mais inovadoras na arena internacional, rompendo com o modelo
vestefaliano de soberania, mas ao mesmo tempo fortemente ancorado nesse modelo,
dada a dependência na participação voluntária do Estado e na cooperação.
O TPI, em conjunto com os estados, esforça-se por promover o Estado de Direito, o
respeito pelos direitos humanos e a paz sustentável, de acordo com o Direito
Internacional e com os propósitos e princípios da Carta das Nações Unidas.
Com o crescente volume de trabalho do Tribunal, todos os esforços de cooperação o
fundamentais para a credibilidade do Tribunal e para que o TPI desempenhe o papel que
lhe foi conferido pelo Estatuto de Roma, não para garantir a responsabilização dos
autores dos crimes mais graves que preocupam a comunidade internacional no seu todo,
mas também para assegurar que os direitos das timas prevalecem. Deve igualmente
salientar-se que o TPI tem um caráter complementar e que não foi criado para substituir
os estados. Levar os responsáveis pelos crimes mais graves à justiça é, em primeiro
lugar e acima de tudo, uma responsabilidade dos estados e o Tribunal deve agir apenas
quando as autoridades nacionais falham ou não estão em condições de tomar as medidas
necessárias para garantir a responsabilização por tais crimes.
No entanto, não podemos esquecer que o TPI, apesar de ser uma instituição judicial,
habita no mundo da realpolitik. Tal como foi dito: "Este é um ambiente duro para a planta
delicada da justiça internacional. Mas também é um mundo onde a procura e a
necessidade de responsabilização nunca foram tão grandes
24
.
Como vimos, os desafios são imensos e o momento político é delicado para a instituição.
Mas o TPI está aqui para ficar e está a tornar-se uma característica inerente ao mundo
de hoje. Ambos os aspetos da justiça e da potica têm de ser considerados para superar
esses desafios, para que a missão de um instrumento permanente e central na luta contra
24
http://blog.oup.com/2015/11/three-challenges-international-criminal-court/.
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a impunidade e que historicamente começou em Roma em 1998, se torne parte definitiva
do mundo atual.
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A DECISÃO DE YANUKOVICH DE ADIAR A ASSINATURA DO ACORDO COM A UE,
UMA ANÁLISE POLIHEURÍSTICA
Susana Abelho
smabelho@gmail.com
Tenente-Coronel da Força Aérea no Instituto Universitário Militar, na Área de Ensino de
Estratégia (Portugal). Licenciada em Engenharia Aeronáutica pela Academia da Força Aérea e
Mestre em Gestão pelo Instituto Superior de Economia e Gestão, detém
Pós-Graduação em Estudos da Paz e da Guerra nas Novas Relações Internacionais
pela Universidade Autónoma de Lisboa.
Resumo
A decisão do Presidente Yanukovich de adiar a assinatura do Acordo de Associação e o Deep
and Comprehensive Free Trade Agreement com a União Europeia despoletou uma forte reação
na sociedade ucraniana. Uma das consequências da crise que assim teve início foi o
afastamento do próprio presidente. O que terá conduzido Yanukovich a adiar a assinatura do
acordo com a União Europeia?
Na procura da resposta a esta questão orientadora, recorreu-se à teoria Poliheurística, à luz
da qual se analisou este processo de decisão em duas etapas. Numa primeira em que se
identificou que a opção a não selecionar era a assinatura do acordo com a UE, tendo-se
analisado as ameaças que internamente conduziram a esta decisão. Yanukovich considerou
que a sua sobrevivência no poder não estava em causa e procurou resolver o problema
financeiro da Ucrânia no imediato, valorizando os problemas que os industriais do sudeste do
país estavam a viver com os bloqueios comerciais russos e evitando as reformas estruturais
essenciais no seu país.
Embora a decisão estivesse identificada, analisou-se como esta maximizava as vantagens
e minimizava as desvantagens, o que correspondeu à segunda etapa da análise.
O ter menosprezado a mobilização cívica e política dos ucranianos, o ter considerado que
podia estabelecer conversações com a União Europeia e a Rússia em simultâneo e o ter
valorizado as necessidades de financiamento imediatas, responde à questão inicialmente
colocada, ou seja, o que levou Yanukovich a adiar a assinatura do acordo.
Palavras-chave
Ucrânia; Rússia; União Europeia; Teoria Poliheurística; Financiamento
Como citar este artigo
Abelho, Susana (2017). "A decisão de Yanukovich de adiar a assinatura do acordo com a UE,
uma análise Poliheurística". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 8, N.º 1,
Maio-Outubro 2017. Consultado [online] em data da última consulta,
http://hdl.handle.net/11144/3034
Artigo recebido em 3 de Outubro de 2016 e aceite para publicação em 24 de Fevereiro
de 2017
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e-ISSN: 1647-7251
Vol. 8, Nº. 1 (Maio-Outubro 2017), pp. 78-91
A decisão de Yanukovich de adiar a assinatura do acordo com a EU, uma análise poliheurística
Susana Abelho
79
A DECISÃO DE YANUKOVICH DE ADIAR A ASSINATURA DO ACORDO COM A UE,
UMA ANÁLISE POLIHEURÍSTICA
Susana Abelho
Introdução
A presente reflexão visa analisar, à luz da Teoria Poliheurística (PH), a decisão do
Presidente ucraniano, Viktor Yanukovich, em novembro de 2013, de adiar a assinatura
do Acordo de Associação (AA) e o Deep and Comprehensive Free Trade Agreeement
(DCFTA) com a União Europeia (UE).
Ambos os acordos resultaram duma aproximação entre a Ucrânia e a UE, iniciada em
1998. Com o AA, a UE pretendia uma associação política com a Ucrânia, assim como
promover o maior vel de integração económica possível (EU, External Action, 2013).
No que concerne ao DCFTA, o objetivo passava pelo estabelecimento de uma área livre
de comércio, o que permitiria o acesso ucraniano ao mercado europeu (estimado em 500
milhões de consumidores e em 17,6 biliões de dólares americanos (USD)), assim como
um maior investimento externo no país (Nupi Institute, 2013).
Simultaneamente, Yanukovich contava com as pressões russas contra esta aproximação
à UE. Em julho de 2013, a Rússia impôs restrições a importações ucranianas, que embora
não fossem oficiais
1
, causaram um impacto significativo nas exportações deste país
(Cenusa et al., 2014, pp.1-3). As tentativas de negociar o preço do gás não foram aceites
pelo Kremlin, o que se traduzia num fardo para os ucranianos. O Presidente russo,
Vladimir Putin, considera a Ucrânia um Estado que naturalmente está sob a esfera de
influência da Rússia e que deveria fazer parte da Eurasian Economic Union (EAEU), uma
união aduaneira que conta com a Rússia, a Bielorússia e o Cazaquistão.
Após o anúncio que Yanukovich iria adiar a assinatura do acordo, milhares de ucranianos
manifestaram-se em Kiev, exigindo a aproximação do seu país à UE. A carga policial
junto dos manifestantes foi forte, o que se traduziu em dezenas de mortos e centenas
de feridos, assim como num reforço da vontade dos manifestantes em continuar os seus
protestos, que acabariam por se alargar a outras cidades ucranianas. Como tal, face à
importância deste acontecimento, importa analisar a decisão do Presidente ucraniano e
procurar responder à questão: O que terá conduzido Yanukovich a adiar a assinatura do
acordo com a União Europeia?
1
As autoridades russas argumentaram que os produtos ucranianos não estavam em conformidade com os
seus normativos nacionais, no caso dos produtos agroalimentares, e apresentavam falhas técnicas, no caso
de carruagens de transporte ferroviário.
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Numa primeira parte desta reflexão será apresentado o enquadramento teórico que
sustenta a análise, a Teoria PH, mais concretamente as duas etapas que a caracterizam
e respetivas dimensões. Seguidamente, é feito um breve enquadramento económico e
político da Ucrânia, que serve de suporte à análise. A terceira parte consiste na análise
propriamente dita do episódio de decisão de política externa, que levou à crise e
consequente afastamento de Yanukovich.
É de salientar que a presente reflexão se sustentou essencialmente na análise categorial
de documentos oficiais relativos a resoluções e comunicados de instituições
internacionais e a dados eleitorais e económicos; de artigos científicos sobre a crise
ucraniana, assim como de notícias publicadas por rios órgãos de comunicação social.
O facto de não ter sido possível entrevistar o antigo Presidente Yanukovich ou um dos
seus colaboradores mais próximos concretamente sobre esta decisão, representa uma
limitação no contexto da presente reflexão.
Por fim, são apresentadas as principais conclusões alcançadas com este estudo,
nomeadamente a resposta à questão inicialmente colocada e que norteou esta reflexão.
A Teoria Poliheurística
A história está repleta de decisões de líderes políticos que determinaram o curso da
mesma, ao afetarem o equilíbrio nas relações internacionais. Neste âmbito, existem
diversos modelos que constituem um referencial a utilizar na análise do processo de
tomada de decisão no contexto das relações internacionais. Entre eles encontra-se a
Teoria PH que, tal como a etimologia da palavra poliheurística indica (“poli significa
muitos e “heurística” atalhos), trata-se dum processo que através de vários “atalhos”
simplifica a tomada de decisão (Mintz et al., 1997, p.554).
À luz da teoria PH, o processo de tomada de decisão é composto por duas etapas, em
que na primeira se identificam as opções possíveis e eliminam-se as opções que não
atendem ao princípio não compensatório. Segundo este princípio, as opções em análise
são avaliadas pelo decisor em diversas dimensões, embora apenas uma delas seja
considerada como primordial. Se na avaliação se verificar que nesta dimensão primordial
a opção é pouco forte ou até inviável, a avaliação nas restantes dimensões, mesmo que
muito favorável, não compensa esse resultado e a opção não é selecionada para a etapa
seguinte (Redd & Mintz, 2013).
Dentro das opções que passam à segunda fase, é selecionada a que melhor maximize as
vantagens e minimize as desvantagens, resultado da comparação racional
2
entre elas
(Redd & Mintz, 2013).
Os deres ao tomarem uma decisão na esfera da política externa não podem ter
presentes apenas os aspetos externos dessa mesma decisão. A esfera interna, muito
embora não seja o pano de fundo, desempenha um papel muito importante na primeira
etapa do processo, uma vez que os interesses nacionais têm que ser atendidos, assim
2
No estudo do processo de tomada de decisão em relações internacionais, existem duas abordagens a
considerar: a cognitiva e a racional. Na primeira, o enfoque é dado ao processo em si, secundarizando o
resultado a alcançar. Para tal, o conhecimento, julgamento, crenças, entre outras características ou
ferramentas do decisor são basilares. na abordagem racional, o enfoque é dado aos resultados que se
pretendem alcançar, recorrendo para tal a uma comparação entre as opções. Esta última visa garantir a
seleção da opção que melhor responda às suas necessidades ou objetivos (Brulé, 2008).
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como os interesses políticos do líder ou do seu regime. Assim sendo, na primeira etapa,
em que o processo visa identificar quais as opções que não atendem ao princípio não
compensatório, são tidas em consideração as seguintes ameaças: à sobrevivência do
líder político ou até mesmo do próprio regime; à perda de apoio popular associada à
decisão política em causa; de decréscimo de popularidade; de perspetiva de derrota
eleitoral; de aumento da oposição interna; de fragmentação política dos apoiantes do
líder ou no interior do seu partido; de desafio interno ou externo ao regime; de colapso
do governo ou coligação; à legitimidade, poder e credibilidade política do der; de
manifestações e contestação social; de vetos parlamentares (Mintz, 2004, pp.6-9).
Na segunda etapa da análise à luz da teoria PH, as opções selecionadas são avaliadas na
perspetiva da política externa, nas dimensões económica e diplomática, procurando-se
maximizar as suas vantagens e minimizar as suas desvantagens (Breuning, 2007, pp.65-
67).
Muito embora a teoria PH tenha sido utilizada para analisar diversas decisões na esfera
das relações internacionais
3
e tenham sido obtidas evidências que a corroboram através
de diversos métodos (Mintz, 2005) e (Brulé, 2008), algumas limitações são-lhe
reconhecidas. De acordo com Stern (2004), existem limitações que se podem identificar
na aplicação da teoria PH, dado não ser analisada a forma como o líder perceciona o
problema e o conceptualiza, como as questões a decidir são detetadas e chegam às os
do decisor; assim como um conjunto de fatores contextuais que condicionam a ação do
líder no panorama interno, como a situação política do momento (por exemplo, a
proximidade de eleições ou resultados obtidos recentemente podem condicionar o grau
de liberdade na decisão do der) ou a sua autonomia política. Stern (2004) aponta ainda
uma outra limitação à aplicação desta teoria, que se prende com o facto da análise ser
estática e relativa a um momento, quando o líder pode alterar os contornos da decisão,
por exemplo ao manipular a opinião pública ou duma determinada elite ou reunir mais
apoios políticos, alterando as condicionantes internas que afetam a sua tomada de
decisão.
A decisão de Yanukovich à luz da Teoria Poliheurísitca
a. Enquadramento económico e político da Ucrânia
Para melhor se compreender a análise da decisão de Yanukovich de adiar a assinatura
do acordo com a UE, é de todo pertinente efetuar um breve enquadramento da situação
económica e política da Ucrânia da altura.
Entre os Estados que compuseram a antiga União Soviética, a Ucrânia tinha a segunda
maior economia, onde a agricultura e a indústria pesada desempenhavam um papel
central. Após a sua independência em 1991, a abertura da economia ucraniana teve icio
e um conjunto de reformas foi iniciado, contudo, os progressos foram limitados, resultado
da própria resistência interna e da elevada dimensão da economia paralela. Muitas
alterações estruturantes ficaram por realizar, ao nível do mercado de capitais, da
legislação e do combate à corrupção (CIA, 2016).
3
As decisões do Presidente norte americano Eisenhower nas crises de Dien Bien Phu, Vietname e da
Guatemala em 1954; do Presidente Clinton, relativa à crise do Kosovo em 1998 (Mintz, 2004, p.5) ou ainda
da participação sueca na operação Unified Protector (Nilsson, 2016) são alguns dos exemplos da aplicação
desta teoria.
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Yanukovich foi eleito em 2010, tendo vencido na segunda volta das eleições com 49%
dos votos, contra os 45,5% da sua opositora Yulia Tymoshenko (Election Resources on
the Internet, n.d.). Estes resultados eleitorais, para além de traduzirem uma margem
reduzida entre a votação dos dois candidatos, são extremamente heterogéneos se foram
considerados os resultados nas diversas regiões ucranianas. Da sua análise pode-se
constatar que a norte e a oeste do país, o eleitorado apoiou fortemente Tymoshenko, em
claro contraste com as regiões a leste e a sul, em que o apoio a Yanukovich era mais
expressivo.
Figura 1 Resultado das Eleições Presidenciais na Ucrânia em 2010
Fonte: http://www.polgeonow.com/2014/03/ukraine-divisions-election-language.html
Precisamente nas regiões a sul e a leste concentrava-se a maioria dos oligarcas
ucranianos, com os quais Yanukovich mantinha uma relação de forte dependência. Este
grupo era responsável por grande parte da geração de riqueza no ps, em diversas
áreas, o que lhes conferia poder junto do Presidente. O Presidente por sua vez estava no
poder e aí se mantinha graças ao apoio deste grupo (Matuszak, 2012).
O principal parceiro comercial ucraniano era a Rússia, país para o qual, em 2012,
exportou 25,67% do total das suas exportações e do qual importou 32,39% das
importações totais
4
(WITS, 2016). No campo energético, a economia ucraniana também
foi fortemente fragilizada pela elevada dependência energética que tem do exterior:
cerca de 75% das suas necessidades de petróleo e gás e 100% de combustível nuclear
são importados (CIA, 2016).
Em termos económicos, a situação estava bastante fragilizada: desde meados de 2012
que a economia estava em recessão, de janeiro a setembro de 2013 o Produto Interno
Bruto (PIB) tinha contraído 1,3% e, nos últimos doze meses, o fice da balança corrente
4
Em 2012, as exportações e as importações ucranianas para e de outros países são bem inferiores face às
transações com a Rússia: Exportações - Turquia (5,36%), Egito (4,22%), Polónia (3,75%) e Itália (3,61%);
Importações - China (9,33%), Alemanha (8,04%), Bielorrússia (5,99%) e Polónia (4,21%) (WITS, 2016).
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tinha sido de 8% do PIB. Até dezembro de 2012, o país tinha tido em curso um programa
de assistência do Fundo Monetário Internacional (FMI). Contudo, as negociações para
estabelecer um novo programa ainda não tinham sido bem sucedidas, uma vez que o
FMI insistia em ter garantias que as propostas de medidas e reformas sugeridas às
autoridades ucranianas iriam concretizar-se (IMF, 2014).
Se em termos económicos a realidade ucraniana não era favorável, em termos políticos
também não. Desde a sua eleição em 2010 que Yanukovich assentava o seu poder em
três pilares: o medo, a apatia do povo ucraniano e apoiantes ricos (Mycio, 2013). O
medo, de acordo com Mycio (2013), era assegurado pelo controlo dos tribunais, da polícia
e do parlamento, sendo a detenção da sua opositora política, Tymoshenko, um exemplo.
Aos olhos da comunidade internacional, a liberdade de imprensa
5
, assim como a
democracia ucraniana
6
estavam a ser prejudicadas pela governação de Yanukovich.
Após este breve enquadramento da situação económica e política da Ucrânia, procede-
se à análise da decisão de Yanukovich que, tal como descrito anteriormente, será
realizada em duas etapas.
b. Primeira etapa
Na primeira etapa, as opções que Yanukovich tinha à sua frente: assinar o acordo com a
UE ou aceitar as propostas do Kremlin, foram avaliadas. À luz da teoria, a opção que não
respeite o princípio não compensatório é afastada. Neste âmbito, considera-se que a
dimensão primordial consistiu na manutenção de Yanukovich no poder. Tal consideração
deve-se ao facto dos políticos muito raramente escolherem uma opção que os prejudique
politicamente (Mintz cit. por Breuning, 2007, p.66) e das ações desenvolvidas por
Yanukovich para enfraquecer a oposição, nomeadamente a detenção de Tymoshenko e
de outros políticos, e para encontrar soluções económicas e financeiras de curto prazo,
que reforçassem a sua aceitação junto do eleitorado (Kropatcheva, 2014, p.13).
A opção que consistia no acordo com a UE, visava acima de tudo a aproximação política
entre a UE e a Ucrânia e conduziria à integração económica deste país junto do espaço
europeu. Todavia, este acordo continha um conjunto de reformas que a Ucrânia tinha de
cumprir para que o processo prosseguisse, aprovadas pelo Conselho da União Europeia,
a 10 de dezembro de 2012 (European Commission, 2012). O compromisso de
implementar estas reformas foi assumido por Yanukovich, na declaração conjunta
efetuada no final da 16ª Cimeira entre a UE e a Ucrânia (EU, 2013).
Estas reformas abrangiam três domínios: a adoção de um sistema eleitoral fiável, em
virtude das deficiências observadas nas eleições legislativas de outubro de 2012; a
resolução da questão da “justiça seletiva”
7
e evitada a sua reincidência
8
; e as reformas
específicas definidas no Programa de Associação (European Commission, 2012).
5
Em 2013, a Ucrânia desceu do 116º lugar para 126º no Índice de Liberdade de Imprensa (RSF, 2103).
6
Em 2013, a democracia ucraniana foi considerada como Híbrida pelo Economist e pela Freedom House,
tendo o índice de democracia atribuído por ambos à Ucrânia se degradado desde 2010 (The Economist
Intelligence Unit, 2013) e (Freedom House, 2013).
7
Entende-se por justiça seletiva” as condenações por motivos políticos de membros da oposição, em
processos que não foram justos, transparentes e independentes à luz das normas internacionais (European
Commission, 2012).
8
Para tal, a UE considerava que se deveriam implementar todos os acórdãos do Tribunal Europeu dos Direitos
do Homem, assim como as recomendações do Conselho da Europa relativas às condições de detenção e
assistência médica neste contexto (European Commission, 2012).
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A outra opção residia nas propostas do Kremlin, através das quais se pretendia manter
a Ucrânia na esfera de influência russa, reforçando a dependência económica e energética
deste país e apostando na futura integração ucraniana na EAEU.
Nesta primeira etapa do processo de análise estavam em cima da mesa condicionantes
internas
9
, como a possibilidade de ameaça à sobrevivência do der político ou até mesmo
do próprio regime; perda de apoio popular associada à decisão política em análise;
decréscimo de popularidade; perspetiva de derrota eleitoral; aumento da oposição
interna; fragmentação política dos apoiantes do líder ou no interior do seu partido;
desafio interno ou externo ao regime; colapso do governo ou coligação; ameaça à
legitimidade, poder e credibilidade política do der; manifestações e contestação social e
vetos parlamentares.
No que diz respeito à sobrevivência do der, é inequívoco que Yanukovich quis
permanecer no poder e até garantir a sua reeleição em 2015, embora soubesse que para
tal tinha de assegurar a sustentação financeira do país (Klitschko, 2013). A curto prazo,
existia a vida que a Ucrânia tinha que honrar junto da ssia e para a qual a UE não
proporcionava uma solução. De acordo com a comunicação social (RFE/RL, 2013), a UE
mostrou-se disposta a disponibilizar à Ucrânia 838 milhões de USD, o que era claramente
insuficiente para as necessidades ucranianas no imediato.
No horizonte a longo prazo, as reformas a efetuar na Ucrânia, tal como acordadas com
a UE, ainda estavam por completar, estando aquém do que tinha sido assumido
(European Commission, 2013). Para Kropatcheva (2014, p.4), o governo ucraniano
implementou as reformas seletivamente, tendo concretizado apenas as que não
colocavam em causa o poder da elite governante. Como já visto anteriormente, também
o FMI exigia reformas para que um novo programa de assistência fosse negociado. A
possibilidade do FMI não desenvolver um novo programa traduzir-se-ia no agravamento
da recessão económica e da fragilidade financeira, assim como na desvalorização
monetária do grívnia (Kuzio, 2013).
O investimento necessário a estas reformas seria avultado e a curto prazo a economia
ucraniana poderia ser afetada, sendo por exemplo expectável que o desemprego
aumentasse (Motyl, 2013). Foram precisamente as reformas que ainda estavam por
realizar que Yanukovich apontou como a causa do adiamento da assinatura do Acordo,
alegando que a Ucrânia ainda não tinha as condições necessárias (KyivPost, 2013).
A par das exigências financeiras, as condições pré-eleitorais não eram favoráveis ao
Presidente Ucraniano
10
. Desde a sua eleição em 2010 que Yanukovich tentava instaurar
um regime autoritário
11
, sustentado nas ligações pessoais e num predomínio do poder
executivo sobre os poderes legislativo e judicial. Tal não foi totalmente conseguido graças
à falta de apoio público e dos esforços da oposição (Sushko & Prystayko, 2014, p.651).
A manutenção de Yanukovich no poder seria difícil face à ausência de carisma, ideologia
e recursos materiais que tornam o autoritarismo possível (Motyl, 2013).
9
Estas condicionantes internas, identificadas por Mintz (2004) são inaceitáveis do ponto de vista político, ou
seja, a verificarem-se, conduzem forçosamente à exclusão da respetiva opção.
10
De acordo com sondagens, em fevereiro de 2010, 28% dos ucranianos não aprovavam a governação de
Yanukovich e em março de 2013 esse valor já era de 53 % (Razumkov Centre cit. Kropatcheva, 2014).
11
Este modelo foi sustentado pela alteração à Constituição concretizada em setembro de 2010, quando o
Tribunal Constitucional considerou que as alterações de 2004 tinham sido inconstitucionais, repondo os
poderes do Presidente existentes antes da Revolução Laranja (Havrylyshyn, 2017, p.145).
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O Presidente considerava a oposição, em especial a anterior Primeira Ministra
Tymoshenko, uma ameaça à sua reeleição, porque uma significativa parte, sobretudo
jovens e estudantes, seguia a orientação pró europeia da sua opositora (Kuzio, 2013). A
mão forte que o Yanukovich tinha com a oposição que permitiu a prisão dos seus
opositores políticos, também era posta em causa pela assinatura do acordo com a UE.
Logo após a condenação de Tymoshenko, o Parlamento Europeu, através da sua
resolução de 27 de outubro de 2011, criticou vivamente este e outros processos judiciais,
tendo considerado que foram conduzidos à margem das normas europeias e das Nações
Unidas e representaram um abuso do poder judicial, em claro desrespeito pelos Direitos
do Homem (Parlamento Europeu, 2011). No ponto 7 desta resolução, é afirmado que
“se a condenação de Yulia Tymoshenko não for revista, a conclusão
do AA e a sua ratificação ficarão comprometidas, o que afasta
ainda mais o país da realização da sua perspetiva europeia”
(Parlamento Europeu, 2011).
Esta exigência europeia manteve-se e, na Cimeira entre a EU e a Ucrânia em fevereiro
de 2013, foi apontada como uma das ações obrigatórias a desenvolver pela Ucrânia, com
progressos concretos, para que a assinatura do acordo fosse possível (EU, External
Action, 2013).
No campo do apoio político interno, quer no seio do Partido das Regiões, quer junto dos
seus apoiantes, esperava-se que a reação à assinatura do acordo com a UE fosse de
desagrado. Como resultado, para além de retirarem o seu apoio a Yanukovich, antevia-
se que estes se aproximassem do Partido Comunista (Motyl, 2013).
Entre os apoiantes de Yanukovich, encontravam-se os oligarcas ucranianos
12
, que não
ficaram indiferentes à decisão que tinha que ser tomada. O acordo com a UE
representava a entrada da Ucrânia no mercado europeu, ou seja, o acesso a um mercado
com cerca de 500 milhões de consumidores e estimado em 17,6 biliões de USD (Nupi
Institute, 2013). Por outro lado, a aproximação a Moscovo representava um alívio para
a indústria do sudoeste do país, que se encontrava paralisada graças ao bloqueio russo
(Kuzio, 2013), aliada a ajuda financeira, renegociação do preço do gás e uma possível
adesão à EAEU.
A posição dos oligarcas nesta matéria, sobretudo para os que estavam ligados a
Yanukovich e ao Partido das Regiões não era claro. Se a proteção do mercado interno e
a manutenção do status quo do mesmo era relevante para alguns destes oligarcas, a
quem não interessava de todo introduzir competição livre e justa no mercado ucraniano,
para outros a abertura a mercados externo era bastante importante (Matuszak, 2012,
pp.63-66).
Alguns oligarcas tinham interesses na Europa, desde presença em algumas bolsas
europeias, investimentos e imobiliário, e o pretendiam que as relações com os
parceiros europeus se degradassem. O mesmo se podia afirmar em relação à Rússia,
dado a importância deste país como parceiro de negócios. No entanto, há que salientar
12
Presentes nos principais setores económicos: Metalúrgico, da Comunicação Social, Bancário, da Produção
de Maquinaria, Alimentar e Agrícola, Químico, dos Transportes, dos Seguros, Energético, entre outros
(Matuszak, 2012, p.8).
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que as condições da EAEU não eram favoráveis para os oligarcas ucranianos, que
passariam a suportar elevadas tarifas nas suas exportações (Matuszak, 2012, pp.66-71).
Atendendo a estas posturas ambíguas face à aproximação à UE ou à Rússia, pode-se
apenas identificar o interesse dos oligarcas ucranianos na prosperidade dos seus
negócios, não sendo direta a sua associação a qualquer das opções em causa (Matuszak,
2012, pp.71-73).
A oposição interna a Yanukovich, nomeadamente o Partido Ukrainian Democratic Alliance
for Reform, via o acordo com a UE como uma oportunidade histórica de melhorar a vida
dos ucranianos, assim como das gerações futuras (Klitschko, 2013). A coligação
Fatherland Party considerava o acordo com a UE uma oportunidade para melhorar a
liberdade de expressão e a opressão que se vivia na Ucrânia (Kuzio, 2013).
No que diz respeito ao apoio popular a Yanukovich, este não era homogéneo em todo o
país. A mobilização vica e política da sociedade ucraniana nas regiões a sudeste,
apoiante do Presidente, não era tão forte como no resto do país (Motyl, 2013), contudo
Yanukovich não considerava que esta última fosse relevante. O Presidente considerava
que os ucranianos se encontravam desiludidos e apáticos em relação à política, graças
aos casos de corrupção e de intrigas políticas registados frequentemente após a
Revolução Laranja (Mycio, 2013).
Consequentemente, a ameaça à sua sobrevivência que as manifestações e contestações
sociais representaram, após o adiamento da assinatura do acordo com a UE, não foram
antevistas por Yanukovich.
No que diz respeito às ameaças de colapso do governo ou coligação; à legitimidade,
poder e credibilidade política do líder e vetos parlamentares, não foram encontradas
evidências de como terão sido equacionadas por Yanukovich, pelo que não foram
consideradas nesta reflexão. Sabe-se apenas que, tal como mencionado anteriormente,
a contestação intensa que a população demonstrou logo após o adiamento da assinatura
do acordo não era esperada. O colapso do governo, assim como a perda de legitimidade,
poder e credibilidade política do líder só poderiam ter sido consideradas como muito
improváveis por Yanukovich. assim o Presidente poderia ter optado por adiar a
assinatura do acordo, uma vez que estas ameaças colocavam em causa a sua
sobrevivência no poder, o que já se verificou como sendo essencial para este.
Em resumo, Yanukovich cedeu às pressões russas e identificou a assinatura do acordo
com a UE a opção a não considerar. Esta escolha prendeu-se com o facto de Yanukovich
considerar que a sua sobrevivência no poder não estava em causa e que aumentaria a
probabilidade de ser reeleito em 2015. Para tal, concentrou as suas preocupações na
resolução do problema financeiro da Ucrânia no imediato e na resolução dos problemas
que os industriais da parte oriental do país estavam a viver com os bloqueios comerciais
russos.
c. Segunda etapa
Segundo a teoria PH, na segunda etapa do processo, a opção que será a decisão do der
é selecionada em função da maximização das vantagens e minimização das
desvantagens que esta permite. No caso em análise, se considerou a exclusão da
assinatura do acordo com a UE, restando apenas a opção de aproximação à ssia. No
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A decisão de Yanukovich de adiar a assinatura do acordo com a EU, uma análise poliheurística
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entanto, considera-se pertinente analisar como terá Yanukovich avaliado esta última,
quanto à maximização das vantagens e minimização das desvantagens.
Quando Yanukovich adiou a assinatura do acordo com a UE, apresentou como motivo a
ausência de condições por parte do seu país nesse momento para assumir o referido
compromisso, realçando a intenção de o fazer futuramente. A tónica foi colocada na
ajuda que a Ucrânia necessitava para reunir as referidas condições, sendo a UE peça
fundamental nesse processo. Ou seja, Yanukovich não cancelou o acordo, apenas o
adiou, pois não pretendia distanciar-se da UE, pretendia apenas obter outra solução para
o seu problema imediato de financiamento. Uma das vantagens desta decisão consistia
em manter a aproximação à Europa em aberto, tal como sublinhado no seu discurso
(KyivPost, 2013).
Cerca de duas semanas após a cimeira em Vilnius, Yanukovich chegou a acordo com
Putin quanto a um empréstimo imediato de 15 mil milhões de USD; renegociou o preço
do gás, válido de 1 de janeiro de 2015 até 2019, tendo o preço de mil metros cúbicos
baixado de um valor superior a 400 USD para 268,5 USD
13
; e obteve garantias do Kremlin
quanto ao fim dos bloqueios às exportações ucranianas (RFE/RL, 2013). Com estes
resultados, Yanukovich resolveu o seu problema financeiro imediato, o que constituiu
uma clara vantagem económica alcançada com a sua decisão.
No entanto, a fragilidade financeira ucraniana não se manifestava apenas no imediato,
dado ser necessário assegurar o financiamento a longo prazo, essencial para concretizar
as reformas que o país necessitava. Muito embora a opção selecionada consistisse na
aproximação à Rússia, esta deveria seria apenas parcial, pois Yanukovich não pretendia
a adesão da Ucrânia à EAEU, contrariamente às intenções do Kremlin, como a solução a
longo prazo (Pawlak & Croft, 2013), o que se constituía como uma forte desvantagem
desta opção.
Yanukovich, logo no discurso em que anunciou que iria adiar a assinatura do acordo,
tentou minimizar esta desvantagem. Para tal, propôs a realização de conversações entre
a Ucrânia, a UE e a Rússia, com o objetivo de tentar resolver a situação de colapso
económico iminente no seu país e instou a UE a ajudar a Ucrânia a obter auxílio
económico junto do FMI (KyivPost, 2013).
O Presidente ucraniano pretendia manter um equilíbrio entre a Rússia e a Europa, muito
embora, mais cedo ou mais tarde, tivesse que assumir uma escolha. Ambos os atores
assim o exigiriam e Yanukovich faria a escolha que oferecesse mais garantias da sua
reeleição em 2015 (Kuzio, 2013).
Todavia, a UE recusou a proposta ucraniana, alegando que tinha que haver um
compromisso por parte da Ucrânia em como iria assinar o acordo (Pawlak & Croft, 2013).
Para Kropatcheva (2014), a assinatura do acordo foi utilizado pela UE como um
instrumento de “soft power”, mas ineficazmente. Por um lado, a assinatura do acordo
transformou-se numa questão de “agora ou nunca”, bastante politizada e num jogo
geopolítico com a Rússia, subalternizando as reformas propriamente ditas; por outro, a
UE o disponha de soluções que permitissem à Ucrânia efetuar as reformas nas
condições económicas difíceis em que se encontrava, nem mesmo para apoiar o
13
O impacto desta renegociação na economia ucraniana foi considerável, dada a elevada dependência do gás
natural (representa cerca de 40% do consumo energético). Do gás natural consumido na Ucrânia, 60% é
fornecido pela Rússia. no ano de 2013, estima-se que este fornecimento tenha representado cerca de
10 mil milhões de USD (Chow & Ladislaw, 2014).
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A decisão de Yanukovich de adiar a assinatura do acordo com a EU, uma análise poliheurística
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desenvolvimento de mais reformas após a assinatura do acordo. Ou seja, a posição da
UE revelou-se fraca e pouco consistente a longo prazo (Kropatcheva, 2014, pp.8-9).
A pressão que estes atores exerceram, nomeadamente a UE quando recusou a proposta
de conversações, certamente que ocorreu mais cedo do que Yanukovich perspetivou e
foi um claro sinal que o equilíbrio que pretendia afinal não iria ser possível, o que anulou
uma das vantagens que o Presidente ucraniano pretendia alcançar com a sua decisão
14
.
Em resumo, pode-se afirmar que a decisão de aproximação à Rússia e de adiamento da
assinatura do acordo com a UE teve como principais vantagens assegurar o
financiamento a curto prazo da economia ucraniana, o fim do bloqueio comercial russo e
a renegociação do preço do gás, o que representou um balão de oxigénio para uma
economia cujo colapso estava iminente.
As desvantagens que esta decisão apresentava prendiam-se acima de tudo com a
inexistência de uma solução para o financiamento a longo prazo, mas que Yanukovich
procurou minimizar através da proposta de negociação que apresentou à UE.
Conclusões
A decisão do Presidente ucraniano de adiar a assinatura do acordo com a UE em
novembro de 2013 não só surpreendeu os seus interlocutores europeus, como a própria
sociedade ucraniana. Face a esta decisão, os ucranianos saíram à rua e manifestaram-
se em massa, ao que as autoridades responderam com violência. Os acontecimentos
tomaram uma proporção tal, que Yanukovich acabou por ser afastado da Presidência da
Ucrânia.
A presente reflexão pretendeu responder à questão que na altura se colocou: o que terá
conduzido Yanukovich a adiar a assinatura do acordo com a União Europeia?
A resposta a que se chegou aponta para a conclusão que Yanukovich queria, acima de
tudo, manter-se no poder e criar condições para ser reeleito em 2015. Para tal, tentou
garantir o financiamento a curto prazo junto da Rússia e a longo prazo junto da UE.
Esta necessidade de financiamento era determinante, dado que a situação económica e
financeira do país era bastante delicada e a manutenção de Yanukovich no poder estava
dependente da sua resolução.
De acordo com a teoria PH, à luz da qual se efetuou esta reflexão, na primeira etapa
identificou-se que, para Yanukovich, a dimensão fundamental deste processo de tomada
de decisão era a sua manutenção no poder. Assim sendo, o facto do financiamento a
curto prazo não ser assegurado pelo acordo com a UE e as reformas exigidas,
especialmente o fim da chamada “justiça seletiva”, serem consideradas como uma
ameaça à permanência do Presidente no poder, levaram à exclusão desta opção.
A aproximação ao Kremlin resolvia a necessidade de financiamento a curto prazo, para
além de se obter o fim do bloqueio económico russo e de se renegociar o preço do gás.
Contudo, esta opção não era considerada por Yanukovich como a solução completa para
todos os problemas a resolver. O financiamento a longo prazo, com a inerente adesão à
14
Numa tentativa de ultrapassar este obstáculo, Yanukovich tentou minimizar a sua dependência junto da
Rússia, efetuando uma aproximação à China para estabelecer um novo acordo de cooperação comercial
(Polityuk & Balmforth, 2013) e desta forma tentar assegurar o financiamento do seu país a longo prazo.
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A decisão de Yanukovich de adiar a assinatura do acordo com a EU, uma análise poliheurística
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EAEU, era uma das desvantagens desta opção. Quando Yanukovich adiou a assinatura
do acordo com a UE, tentou logo minimizar esta desvantagem, propondo conversações
entre a UE, a Rússia e a Ucrânia, a fim de obter junto do FMI continuidade na assistência
financeira.
Com a escolha da opção que lhe permitia manter-se no poder e tentando minimizar as
desvantagens e maximizando as vantagens dessa opção, Yanukovich tentou obter o
melhor dos dois mundo junto da Europa e da Rússia.
Como os próprios acontecimentos o comprovaram, esta aposta não foi bem sucedida:
Yanukovich errou ao presumir que continuaria a negociar com a UE e a Rússia em
simultâneo e subestimou a capacidade de contestação da sociedade ucraniana.
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Universidade Autónoma de Lisboa
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Vol. 8, Nº. 1 (Maio-Outubro 2017), pp. 92-125
DIPLOMACIA ECONÓMICA, GEOECONOMIA E A ESTRATÉGIA EXTERNA DE
PORTUGAL
Miguel Santos Neves
msneves1@gmail.com
Professor Geoeconomia e Análise Politicas Externas, Universidade Autónoma de Lisboa
(Portugal), Investigador Observare, Presidente Network of Strategic and International Studies
(NSIS)
Resumo
O texto analisa os desafios que a glocalização coloca aos Estados e às sociedades e as
estratégias de resposta ensaiadas, em especial a reestruturação da ação externa, assente na
abordagem da diplomacia económica que se consolidou no período pós-Guerra Fria no quadro
da nova relevância da geoeconomia, e desenvolve uma reflexão sobre a reforma da acção
externa de Portugal. A evolução do quadro conceptual demonstra que a diplomacia económica
implica uma inovação significativa e uma mudança de paradigma na acção externa assente
numa abordagem holística que articule os 3 Ms multidisciplinaridade (cruzando as dimensões
económica, política e de segurança) multi-actor e multinível. O texto aborda o caso de
Portugal analisando aspectos marcantes da dinâmica das relações económicas externas no
período 2002-2015, as vulnerabilidades estruturais e as diversas tentativas falhadas para
estruturar uma nova abordagem durante a última década, no essencial centradas no Estado
e marcadas pela visão tradicional da diplomacia comercial. Neste contexto, e tendo em conta
as experiências e boas práticas de outros Estados, são discutidas linhas estratégicas para a
estruturação de uma efetiva diplomacia económica em Portugal que articule três eixos
fundamentais, organizacional, operacional e de inovação.
Palavras-chave
Geoeconomia; Globalização; Diplomacia económica; Relações económicas externas; Acção
externa de Portugal
Como citar este artigo
Neves, Miguel Santos (2017). "Diplomacia económica, geoeconomia e a estratégia externa de
Portugal". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 8, N.º 1, Maio-Outubro 2017.
Consultado [online] em data da última consulta, http://hdl.handle.net/11144/3035
Artigo recebido em 13 de Fevereiro de 2017 e aceite para publicação em 20 de Março de
2017
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Diplomacia económica, geoeconomia e a estratégia externa de Portugal
Miguel Santos Neves
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DIPLOMACIA ECONÓMICA, GEOECONOMIA E A ESTRATÉGIA EXTERNA DE
PORTUGAL
Miguel Santos Neves
Introdução
O processo de globalização e a sua aceleração no pós Guerra Fria tem gerado um
conjunto de efeitos complexos e difusos com um impacto estrutural significativo sobre
os Estados soberanos vestefalianos que, de um modo geral, os enfraqueceram ainda que
de forma assimétrica, reduzindo a respetiva margem de manobra num sistema
internacional marcado por uma crescente complexidade e elevado nível de risco
1
. Esta
tendência é o resultado da interação entre diferentes mecanismos que se reforçam
mutuamente.
O crescente poder e influência dos atores não-estatais, em especial dos grandes
conglomerados económicos e financeiros transnacionais, e o seu impacto na
desestruturação da regulação, quer no plano doméstico quer internacional, contribui para
o enfraquecimento dos Estados soberanos. A globalização reforçou a lógica das
economias de escala desencadeando processos de fusões e aquisições que se traduzem
na formação de grandes conglomerados económicos e financeiros em diferentes sectores,
com um enorme poder de mercado e que abusam do mesmo conduzindo a uma
oligopolização da economia global. Estes conglomerados possuem uma capacidade sem
precedentes para se oporem e resistirem aos mecanismos de hetero-regulação pública e
frustrarem a ação regulatória do Estado através de uma combinação de estratégias de
captura regulatória e de “too big to fail
2
. No plano internacional a situação é ainda mais
problemática face à inexistência de um quadro de regulação global do comportamento
dos grupos multinacionais e de outros atores não-estatais que tiram partido da enorme
liberdade de movimentos associada a este deficit regulatório.
Para este declínio da soberania também contribui de forma decisiva a tendência
estrutural para a erosão da base fiscal dos Estados a qual limita severamente a respectiva
capacidade de ação e implementação de politicas blicas. Esta erosão resulta
fundamentalmente da crescente capacidade de evasão fiscal dos grandes conglomerados
multinacionais
3
- através de transfer pricing , operações transnacionais cruzadas de sub-
e sobre-faturação com recurso a off shores ou de arbitragem fiscal e manipulação
1
Strange, Susan, The Retreat of the State the diffusion of Power in the World Economy, Cambridge
University Press, Cambridge, 1996, pg.14.
2
Stiglitz, 2010, Freefall: America, Free Markets and the Sinking of the World Economy, Norton & Company,
New York.
3
Henry, James, 2012, The Price of offshore revisited, Tax Justice Network, July 2012.
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Diplomacia económica, geoeconomia e a estratégia externa de Portugal
Miguel Santos Neves
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fraudulenta das contas e resultados exatamente quando o seu peso na atividade
económica é crescente e detêm quotas cada vez mais significativas do mercado pelo que
deveriam proporcionalmente pagar mais impostos
4
. A deterioração das contas blicas e
aumento dos deficits públicos é ainda agravada pelo facto de esta erosão da base fiscal
ocorrer no mesmo momento em que o Estado é forçado a aumentar a despesa pública
para compensar os custos sociais da globalização, aumentando as despesas sociais para
apoiar os excluídos da globalização, mas também para responder aos novos desafios à
segurança e fazer face às novas ameaças o-tradicionais e difusas que se intensificaram
com a globalização.
Os constrangimentos ao vel das politicas públicas assumem particular relevância num
contexto marcado por uma crescente vulnerabilidade dos Estados face ao crescimento
das ameaças não-tradicionais, não-militares e difusas à segurança. Esta é uma dimensão
central do processo de globalização, envolvendo essencialmente o crime organizado
transnacional e as mafias internacionais, o crescimento dos diferentes tipos de tráfico
(armas, droga e pessoas) e do terrorismo internacional cujo modus operandi se torna
cada vez mais sofisticado com recurso às novas tecnologias de informação e comunicação
e ao sistema financeiro internacional. A nova ameaça do ciberespaço, em permanente
mutação, onde o crime organizado transnacional tem posição relevante, e os novos
desafios da cibersegurança face aos riscos do cibercrime ou até da ciberguerra criaram
maiores vulnerabilidades para os Estados
5
.
Por outro lado, a qualidade e eficácia das politicas públicas e das decisões dos Estados
tendem a diminuir face à pressão associada ao aumento do número e da complexidade
das questões gerado pela globalização e às crescentes exigências da gestão da multilevel
governance. Neste contexto, os Estados e as respectivas burocracias centrais para além
de um deficit de know how para responder aos novos problemas, padecem também do
síndroma da fragmentação e rígida divisão de competências que prejudica uma maior
cooperação interdepartamental bem como com os sectores privado e social,
inviabilizando uma abordagem holística e integrada das questões.
Por último, a erosão da legitimidade do Estado e dos Governos afecta o exercício do
poder em consequência não só da emergência de novas fontes de lealdade dos cidadãos,
que concorrem com a nacionalidade e que fomenta múltiplas identidades associadas às
diferentes redes sociais transnacionais em que estes estão envolvidos, mas também da
incapacidade de o poder político controlar o poder económico, ou do agravamento da
crise das democracias representativas.
4
O processo BEPS (Base Erosion Profit Shifting package) desenvolvido no âmbito da OCDE/G-20 é um
processo de soft law que pretende reforçar a coordenação entre os Estados para combater a evasão fiscal
via arbitragem fiscal que permite a transferência artificial dos lucros para jurisdições com baixa carga fiscal
onde não se regista atividade económica efetiva (cfr. http://www.oecd.org/tax/beps/beps-about.htm,
consultado em 10.8 2015).
5
Os Estados, em especial os mais dependentes do ciberespaço, não estão preparados para controlar e
minimizar os riscos vd. sobre a vulnerabilidade e falta de preparação dos Estados, no caso dos EUA, Richard
Clarke and Robert Knake, 2010, CyberWar: the next threat to national security and what to do about it,
HarperCollins Publishers.
Sobre os aspectos de regulação ver a interessante reflexão sobre a aplicação das regras de direito
internacional, designadamente de jus ad bellum e de jus in bello, à guerra cibernética Michael Schmitt (ed.),
2013, The Tallinn Manual on the International Law applicable to Cyber Warfare, Cambridge University Press,
elaborado por um grupo de peritos por iniciativa do Cyber Defence Centre of Excellence da NATO
(www.motherjones.com/politics/2013/03/can-nato-drone-computer-hackers).
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Diplomacia económica, geoeconomia e a estratégia externa de Portugal
Miguel Santos Neves
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Os Estados soberanos têm procurado responder aos desafios decorrentes da perda de
poder e da posição monopolista como atores do sistema internacional, através de um
conjunto de estratégias muito diversificadas que envolvem:
(i) a participação em processos de integração macro-regional, combinando recursos
e esforços com outros Estados para minimizar as vulnerabilidades e melhor
responder aos desafios da globalização;
(ii) a exploração de novos modelos de cooperação e alianças com os atores não-
estatais, adoptando modelos de co-regulação que coexistem com os modelos
tradicionais de hetero-regulação que reforcem a efetividade das normas;
(iii) a reforma e melhoria do sistema de governance, promovendo a descentralização
no plano interno no sentido de criar vários centros de decisão tirando partido do
dinamismo e inovação regional e local e consolidando as redes de conhecimento
regionais; promovendo a reforma da estrutura do Estado e reforçando a sua
flexibilidade na resposta à mudança, a transparência e responsabilização;
(iv) a aceleração de reformas estruturais que permitam uma transição mais robusta
para a sociedade/economia do conhecimento e um reforço da competitividade na
economia global;
(v) a reforma do sistema político procurando desenvolver mecanismos de democracia
participativa que estimulem o envolvimento dos cidadãos e contribuam para o
reforço da legitimidade.
O desenvolvimento da diplomacia económica e de um novo paradigma a partir dos anos
90 constituiu uma outra estratégia de resposta dos Estados no contexto de uma economia
global que, por detrás de uma aparência de reforço da lógica de mercado e da
concorrência, tem sido marcada paradoxalmente por tendências precisamente opostas.
Por um lado, uma crescente concentração de poder económico e a oligopolização de
muitos sectores com conglomerados e empresas transnacionais que abusam do seu
crescente poder de mercado, limitando e distorcendo a concorrência. Por outro, uma
interferência crescente de factores políticos nas questões económicas e da influência das
potências, incluindo dos novos poderes emergentes, com o caso extremo do modelo de
capitalismo de Estado da China.
Neste contexto, e contrariamente ao discurso optimista sobre a globalização, não basta
ser eficiente e competitivo nem solucionar os problemas estruturais internos para poder
ter sucesso na economia global. É necessário também ter as conexões, ligações
institucionais e participar nas coligações relevantes. Ser competitivo e ter uma economia
inovadora é apenas uma condição necessária, mas não suficiente para responder aos
desafios da globalização e da sociedade do conhecimento. A diplomacia económica pode
ser vista em boa medida como uma estratégia para responder a este paradoxo e á
crescente integração entre as dimensões económica, política e securitária.
O artigo está estruturado em quatro partes. A primeira parte aborda o conceito de
diplomacia económica e a mudança de paradigma que o mesmo implica em termos de
abordagem do espaço internacional. A segunda parte desenvolve uma análise parcial das
relações económicas externas de Portugal no período 2002-2015, procurando identificar
as tendências marcantes da evolução do comércio externo de bens e serviços e dos fluxos
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Diplomacia económica, geoeconomia e a estratégia externa de Portugal
Miguel Santos Neves
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de investimento estrangeiro, e a sua interligação com uma verdadeira diplomacia
económica. A terceira parte, analisa as diversas tentativas para estruturar uma
diplomacia económica durante a última década e as razões do seu insucesso. Finalmente,
são propostas e discutidas linhas estratégicas para a estruturação de uma diplomacia
económica em Portugal, numa lógica de contributo para o debate e mobilização para uma
ação urgente e de abordagem holística da questão.
1. Diplomacia económica: conceito e mudança de paradigma
O desenvolvimento da diplomacia económica constitui uma das manifestações do novo
papel e relevância da geoeconomia
6
no sistema internacional pós-Guerra Fria, em
contraste com a era do mundo bipolar em que a perspectiva da geopolítica predominava.
As novas bases do poder geo-económico a capacidade de gerar conhecimento e os
recursos humanos; transformação sector agrícola e controlo sobre recursos; consolidação
de uma classe média urbana e inovações de governance; capacidade fiscal dos Estados
para financiar infra-estruturas e capacidades militares sustentaram a emergência dos
dois casos paradigmáticos de potências geoeconómicas no pós-Guerra Fria, a China e a
Alemanha, que conseguiram transformar o seu poder económico em poder e influência
política e militar
7
.
O movimento de reforma da ação externa dos Estados iniciou-se a partir de finais dos
anos 90 liderado pelos Estados mais ativos e competitivos na economia global, em
especial os EUA, a China, a India, o Brasil, o Reino Unido, a Suécia ou a Alemanha
8
. Em
causa estava a necessidade de reformar e adaptar um modelo de diplomacia dominado
pelas questões politicas e militares, e marcado pela tensão entre a prossecução de
interesses económicos e objectivos estratégicos como salienta Gertz
9
, que prevaleceu
durante a Guerra Fria, e promover a transição para um modelo que atribui maior
relevância às questões económicas promovendo um novo equilíbrio com as questões
politicas. O novo ênfase na diplomacia económica não significa a exclusividade ou
predomínio do económico, mas sim um maior equilíbrio e articulação entre as dimensões
política e económica da ação externa, o a emergência de uma política externa
mercantilista.
O conceito de diplomacia económica, que não se confunde e vai muito para além do
conceito tradicional de diplomacia comercial centrado na promoção das exportações e
6
Luttwak, Edward. (1990) ‘From Geopolitical to Geo-economics, Logic of Conflict, Grammar of Commerce’,
The National Interest, no 20, p. 17-24; Mark P. Thirlwell, ‘The Return of Geo-economics: Globalisation and
national Security’, Lowy Institute for International Policy, September 2010. Available at:
http://www.lowyinstitute.org/Publication.asp?pid=1388.; Sanjaya Baru, 2012, A New Era of Geo-
economics: Assessing the Interplay of Economic and Political Risk, IISS Geo-economics and strategic
programme, Paper IISS Seminar.
7
Sanjaya Baru, ibidem.
8
Para uma análise comparativa destes modelos ver Miguel Santos Neves (2007) O Triângulo Diplomacia-
Cooperação-Negócios, in Fernando Jorge Cardoso (coord.) Diplomacia, Cooperação e Negócios: o papel dos
actores externos em Angola e Moçambique, IEEI/IPAD, Lisboa, 2007.
9
Geoffrey Gertz, Commercial Diplomacy and American Foreign Policy, GEG Working Paper 119, August 2016,
que argumenta que a diplomacia comercial reemergiu como prioridade na politica externa dos EUA a partir
de 1990, designadamente na intervenção diplomática do Departamento de Estado na solução de conflitos
sobre investimento em que estão envolvidas empresas americanas, em contraste com o período da Guerra
Fria em que esta acção de diplomacia comercial era vista como disfuncional criando sérios riscos de conflitos
nas relações bilaterais, desviando da prioridade das questões politico-estratégicas e contribuindo para
alienar e empurrar países para a órbita de influência da União Soviética.
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subalternizado à diplomacia política, tem sido analisado por diferentes autores com
perspectivas distintas.
Berridge and James
10
encaram a diplomacia económica como o trabalho diplomático
para apoiar os sectores empresarial e financeiro de um determinado país” ... através da
utilização de recursos económicos, como recompensas ou como sanções, na
prossecução de um objectivo específico de política externa”. O pressuposto de base é o
papel exclusivo dos Estados e estruturas públicas não incluindo a nova dimensão da ação
dos atores não-estatais. Por outro lado, a essência da diplomacia económica residiria na
utilização de instrumentos económicos, positivos e negativos, para fins políticos.
Outros autores como Bayne e Woolcock identificam a diplomacia económica com o
processo de decisão-económica internacional
11
, defendendo que a sua caracterização o
se baseia nos instrumentos, mas sim no seu conteúdo e nas diversas questões
económicas que o integram. Por outro lado, salientam que o conceito envolve uma
mudança qualitativa face à diplomacia tradicional, cujos estereótipos não lhe são
aplicáveis, pondo em evidência a interação entre as dimensões doméstica e internacional
do processo, as ligações entre as dimensões política e económica e a crescente relevância
da participação dos atores não-soberanos e sua interação com os Estados, que o
encarados como atores o unitários. Na perspectiva destes autores a diplomacia
económica tenta gerir três tipos de tensões fundamentais (i) entre política e economia;
(ii) entre Estado e atores não-estatais (iii) entre pressões internacionais e pressões
domésticas, processo negocial internacional e processo negocial doméstico
12
.
Kishan Rana reforça esta visão salientando que se trata de um processo, e não de
estruturas, orientado para a resposta aos desafios externos e a maximização das
vantagens comparativas
The process through which countries tackle the outside world, to
maximize their national gain in all the fields of activity, including
trade, investment and other forms of economically beneficial
exchanges, where they enjoy comparative advantage... it has
bilateral, regional and multilateral dimensions, each of which is
important
13
.
Esta última referência remete para a dimensão multinível da diplomacia económica que
se aproxima da posição de Bayne e Woolcock que a associam à interligação entre 4
níveis: bilateral, regional, plurilateral e multilateral.
10
Berridge, Geoff R. Alan James, A Dictionary of Diplomacy, Ed. Palgrave Macmillan, Basingstoke, 2005, p.
38.
11
Bayne, Nicholas e Woolcock, Stephen (eds), 2007 The New Economic Diplomacy decision-making and
negotiation in international economic relations, Ashgate, 2nd edition.
12
Bayne, Nicholas e Woolcock, Stephen (eds), 2007 The New Economic Diplomacy decision-making and
negotiation in international economic relations, Ashgate, 2nd edition, pp.10.
13
Kishan S. Rana, 2007, Economic diplomacy: the experience of Developing Countries in Bayne, Nicholas,
Stephen Woolcock, The New Economic Diplomacy-decision-making and negotiation in international
economic relations, Ashgate, 2nd ed., pp.201-220.
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A perspectiva de Okano-Heijmans
14
põe em evidência o facto de a diplomacia económica
não estar limitada nem à economia nem à diplomacia, implicando um conceito amplo que
tem de ser entendido à luz de uma pluralidade de disciplinas científicas, as relações
internacionais, a economia, a economia política internacional e os estudos diplomáticos.
Em suma, apesar do consenso sobre a mudança de paradigma existem divergências
sobre o âmbito e objectivos da diplomacia económica na literatura. A perspectiva que
melhor capta a complexidade e a mudança de paradigma é a proposta por Bayne e
Woolcock que implica não apenas uma ampliação do objecto, mas também uma nova
lógica e formas de conceber e implementar a ação externa. Com efeito, a diplomacia
económica ampliou de forma significativa o conjunto de questões que tradicionalmente
eram tratadas no plano da promoção dos interesses externos de um país, comércio e
investimento, combinando sete dimensões distintas
15
:
(i) Promoção comercial, em especial das exportações, mas também a correção dos
deficits comerciais crónicos e gestão das negociações comerciais multilaterais.
(ii) Promoção do investimento, quer na perspectiva da captação de investimento direto
estrangeiro inward FDI quer do apoio à expansão do investimento do país no
exterior outward FDI.
(iii) Promoção do turismo
(iv) Gestão dos fluxos migratórios e atração de quadros qualificados.
(v) Promoção da ciência e tecnologia procurando captar novas tecnologias e
estabelecer laços fortes com centros de inovação de referência.
(vi) Gestão da ajuda ao desenvolvimento
(vii) Promoção da imagem país
No entanto, o conceito implica para além desta ampliação do objecto uma mudança
qualitativa e uma maior complexidade que decorre de três transformações fundamentais
que marcam a diplomacia económica do pós-Guerra Fria, os 3Ms: multidisciplinaridade;
multi-ator; multinível.
Em primeiro lugar, a multidisciplinaridade decorre de uma visão mais holística sobre a
relação entre as diferentes questões económicas e da interação entre economia, política
e segurança refletindo um novo equilíbrio entre geoeconomia e geopolítica. Em segundo
lugar, a natureza multi-ator que a diplomacia económica não é mais uma atividade
exclusiva dos Estados, mas antes de uma multiplicidade de atores estatais e não-estatais
que agem através de duas vias: por um lado influenciando o processo de decisão da
política pública; por outro, atuando diretamente no plano internacional agindo como
atores autónomos. A nova diplomacia económica requer a adopção de uma abordagem
de multitrack diplomacy uma combinação inteligente e flexível entre track I diplomacy
(plano formal oficial), track II diplomacy (plano não-oficial, não-estruturado, informal
14
Maaike Okano-Heijmans, 2011, Conceptualizing Economic Diplomacy: the crossroads of International
Relations, Economics, IPE and Diplomatic Studies, in The Hague Journal of Diplomacy, vol.6, nºs 1-2, 2011,
pp.7-35.
15
A articulação entre os sete pilares amplia a visão mais restrita proposta por Rana, Kishan, 2002 Bilateral
Diplomacy, DiploHandbooks, DiploFoundation, ch.4.
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com participação de atores não-estatais, ONGs, académicos) e track III diplomacy
(informal, iniciativas ao nível das comunidades, people to people).
Em terceiro lugar a dimensão multinível, porque a ação decorre em simultâneo nos planos
internacional, macro-regional, nacional e sub-nacional, incluindo a nova dinâmica da
paradiplomacia, implicando uma compreensão, coordenação e exploração das
interligações entre os diferentes níveis. Por outro lado, põe em causa a visão tradicional
da separação e dicotomia entre os planos externo e interno, considerando que as
dimensões da política interna e da ação externa têm de ser encaradas como uma unidade
e um contínuo.
Importa sublinhar que a diplomacia económica não é uma realidade homogénea e com
um padrão uniforme, tratando-se de um processo está sujeita a uma evolução gradual e
a uma diversidade de padrões. O contributo de Rana
16
é particularmente relevante na
caracterização desta diversidade ao considerar que existem distintas fases de
desenvolvimento da diplomacia económica e identificando quatro fases fundamentais,
por ordem crescente de complexidade:
(i) Primeira fase de “promotion”, centrada na expansão do comércio, promoção de
exportações e na atração de investimento estrangeiro;
(ii) Segunda fase de “networking”, que envolve a mobilização de clusters de apoiantes
e participantes quer no país quer no estrangeiro (empresas, universidades, think
tanks, câmaras de comércio) nas áreas comércio, investimento e aquisição de
tecnologias;
(iii) A terceira fase de “country promotion” está centrada no reforço da imagem e da
reputação do país assim como das suas empresas por forma a atrair fluxos de
investimento e fluxos de turistas;
(iv) A quarta fase “regulatory phase” , que se centra na conclusão e gestão dos acordos
de comércio bilaterais e multilaterais e de tratados bilaterais de investimento.
Embora estas fases tenham uma lógica sequencial e a consolidação de uma seja
fundamental para o arranque e consolidação da seguinte, tendem a co-existir no tempo
e no espaço sendo o sentido de evolução de crescente complexidade e impacto sistémico.
Assim, em geral não se verifica um cenário puro mas sim misto, marcado pela
coexistência e sobreposição parcial entre as diferentes fases embora em diferentes
proporções dependendo do grau de maturação do sistema.
Neste contexto, e na linha de Bayne e Woolcock, podem ser identificados três vectores
estratégicos para pensar a ação externa, profundamente interligados, cuja estruturação
constitui um desafio central para os Estados.
Em primeiro lugar a continuidade das dimensões interna e externa. Os fenómenos
transnacionais aboliram as barreiras entre os planos interno e externo e colocam em
causa as divisões tradicionais entre politicas domésticas prosseguidas por instituições
especificas e política externa desenvolvida por estruturas especializadas com elevados
16
Rana, Kishan e Bipul Chatterjee, 2011, Economic Diplomacy: India’s experience, CUTS International, Japuir.
Anteriormente Rana defendeu a existência de um sistema ligeiramente diferente com três fases (i)
Salesmanship, (ii) Network and Advocacy e (iii) Regulatory management.
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níveis de descoordenação e deficit de coerência. O novo contexto implica pensar o interno
e externo como um continuum de modo a reforçar a coerência das intervenções
Em segundo lugar, a visão holística dos problemas e abordagem multi-actor. A
complexidade das questões suscitadas pela sociedade do conhecimento e pela
competitividade sistémica no plano global, implica a abordagem dos problemas de forma
integrada e holística, o que não é facilitado pela lógica sectorial e fragmentada como o
Estado organiza a sua máquina e planeia as politicas blicas. Por outro lado, implica
conceber o processo decisório como um processo multi-actor, participado, em que os
atores não-estatais interagem e cooperam com o Estado numa lógica de parceria por
forma a maximizar a eficácia da ação externa, abandonando a ideia tradicional de que a
política externa é área reservada dos Estados.
Em terceiro lugar, a abordagem multinível, numa perspectiva diferente da de Bayne e
Woolcock. reconhecendo a legitimidade de diferentes veis de ação externa - global,
macro-regional, nacional, micro-regional e local - e a necessidade de gestão das
complexas relações entre os mesmos por oposição a uma visão centralista baseada no
predomínio do Governo central e do vel nacional. O crescimento do fenómeno da
paradiplomacia dos governos sub-nacionais, particularmente ativos no caso dos Estados
que melhor souberam responder aos desafios da globalização, é uma das tendências
mais significativas no atual sistema internacional e que complementa e reforça, não
fragiliza, a ação externa dos Estados
17
.
2. Relações Económicas Externas de Portugal 2002-2015
As relações económicas externas envolvem uma dupla dimensão, não apenas um
conjunto de fluxos económicos, comerciais, de bens e serviços, financeiros, de turismo,
de investimento direto, de tecnologia, migratórios, mas também uma rede de relações
interpessoais, entre indivíduos e organizações com diferentes culturas, que geram e
sustentam estes fluxos. A interconexão entre as diferentes dimensões política,
económica, de segurança e cultural é cada vez mais densa, mas a abordagem dominante
continua a ser fragmentada e simplificadora, arrumando a realidade em compartimentos
estanques e o adoptando uma perspectiva holística. A análise das relações económicas
externas implica abordar não apenas as interações no plano do comércio externo, do
investimento e dos fluxos financeiros, mas também os fluxos migratórios, os fluxos de
tecnologia, aspectos da cultura associados às trocas económicas e questões relacionadas
com a segurança económica que é um objectivo de grande relevância, mas distinto da,
e por vezes em conflito com a prosperidade económica. A abordagem aqui desenvolvida
centra-se nas dimensões sobre as quais existem mais dados consistentes em particular
o comércio externo, o investimento direto estrangeiro, os fluxos turísticos e os fluxos
migratórios.
17
Sobre o fenómeno da paradiplomacia, Brian Hocking, Localizing foreign policy non-central governments
and multilayered diplomacy, London, St. Martin’s Press 1993; Hans Michelmann, and Soldatos (ed)
Federalism and international relations the role of subnational units, Clarendon Press, 1990; Francisco
Aldecoa and Michael Keating (eds.), Paradiplomacy in Action: The Foreign Relations of Subnational
Governments, Routledge, 2013; Miguel Santos Neves "Paradiplomacy, knowledge regions and the
consolidation of «Soft Power»" in Janus.net e-journal of International Relations, nº 1, Autumn 2010.
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Comércio externo
No período 2002-2015 o comércio externo total (importações e exportações) de Portugal,
incluindo bens e serviços, aumentou de 90,2 mil milhões de euros para 145,7 mil milhões,
embora com uma evolução irregular registando um declínio significativo em 2009, em
resultado da crise internacional, para recuperar em 2010 e atingir em 2011-2012 valores
idênticos aos de 2008 (vd. Quadro 1).
A evolução das importações e exportações de bens e serviços registou um crescimento
contínuo, quer das importações quer das exportações, entre 2002 e 2008 e uma quebra
significativa em 2009 com uma redução de -18,2% das importações e de -15,5% das
exportações.
Quadro 1 Comércio externo bens e serviços 2002-2015, Mil milhões de euros
ANO
Importações
Exportações
Saldo
Comércio total
2002
50,8
39,4
- 11,4
90,2
2003
50
40,2
- 9,8
90,2
2004
55
42,7
- 12,3
97,7
2005
57,7
43,4
- 14,3
101,1
2006
63.9
50,5
- 13,4
114,4
2007
68,2
55,5
- 12,7
123,7
2008
73,4
57,1
- 16,4
130,5
2009
60,1
48,3
- 11,8
108,4
2010
67,5
55
- 12,5
122,5
2011
68,7
62,2
- 6,5
130,9
2012
64,2
64,4
+ 0,2
129,1
2013
65,4
68,6
+ 3,2
134,0
2014
68,8
70,8
+ 2,0
139,6
2015
71,2
74,5
+ 3,3
145,7
Fonte: Banco de Portugal, Estatísticas de Balança de Pagamentos; AICEP “Comércio Internacional
Português de Bens e Serviços 1996-2011”, Dezembro 2012 e “Comércio Internacional Português,
evolução das exportações portuguesas de bens e serviços em 2012 Jan/Dez”, Fevereiro 2013,
2014,2015. Cálculos do autor
A queda das exportações em 2008 e 2009 resultou do efeito combinado da diminuição
da procura nos principais mercados, em especial o espanhol, e de um euro forte que
afectou negativamente a competitividade das exportações para mercados extra-
comunitários
18
. A recuperação iniciou-se logo em 2010: as exportações recuperaram para
níveis de 2007, crescendo significativa e continuamente entre 2011 e 2015 para
atingirem os valores mais elevados do período em 2015 com 74,5 mil milhões de euros.
Este aumento tem como motor essencial a performance positiva do sector do turismo e
o aumento das respectivas receitas, sobretudo a partir de 2012 aumentando de 8,6 mil
18
A evolução da taxa de câmbio do euro face ao dolar tem registado uma evolução errática sendo possível
distinguir três períodos distintos: (i) fase inicial do euro fraco entre 1999-2002, com o declinio da taxa
inicial de 1.2 para 0.85 em 2001 e 0.9 em 2002 ; (ii) fase do euro forte no período 2002-2008, registando
uma forte tendência de valorização de 0.9 em 2002 para o pico de 1.6 em final de Julho de 2008, ainda
que com flutuações e períodos de desvalorização entre 2005-2006; (iii) fase do euro instável e
moderadamente forte entre finais de 2008-2013, caracterizada por maior instabilidade do euro com
sucessivas valorizações e desvalorizações, variando numa banda entre 1.5. e 1.2 face ao US dólar, desde
inicio da crise financeira: movimentos valorização entre Nov 2008 Dez 2009; Junho 2010 (1.2) - Abril
2011 (1.46); Julho 2012 (1.2) e Fevereiro 2013 (1.33); movimentos desvalorização entre Dez 2009 - Jun
2010; Abril 2011 (1.46) -Jul 2012 (1.2) - ver European Central Bank, ECB Statistical Data Wharehouse
(http://sdw.ecb.europa.eu/quickview.do?SERIES_KEY=120.EXR.D.USD.EUR.SP00.A#top, consultado em
10.9.2013) e http://www.ecb.europa.eu/stats/exchange/eurofxref/html/eurofxref-graph-usd.en.html,
consultado em 11.9.2013)j
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milhões para 11,5 mil milhões em 2015 o que representa 15,4% das exportações totais
de bens e serviços
19
.
No que toca às importações, depois da recuperação em 2010 cresceram de forma lenta
em 2011 e registaram um declínio em 2012, refletindo os efeitos da recessão económica
doméstica e do impacto do programa de ajustamento, estabilizando em 2013 para
voltarem a crescer em 2014-2015.
As relações comerciais externas foram marcadas no período 2002-2015 por
desequilíbrios com duas fases distintas. A primeira fase entre 2002-2011 registou um
deficit persistente com um saldo negativo sempre superior a 10 mil milhões de euros,
tendo atingido o valor mais elevado em 2008 com - 16,4 mil milhões de euros. Embora
se tenha registado uma ligeira redução do deficit externo em 2009, resultado de uma
quebra quer das importações (-18,2%) quer das exportações (-15,5%) de bens e
serviços, mas mais acentuada nas importações, em 2011 se regista uma correção
significativa com uma redução para metade do valor do deficit em relação ao ano
anterior, resultado de um crescimento assimétrico marginal das importações (1,8%) e
vigoroso das exportações (13%).
A segunda fase, entre 2012-2015, registou um superavit que se consolidou atingindo em
2015 um excedente de 3,3 mil milhões de euros. Este valor é explicado pelo superavit
da balança de serviços, o qual mais do que compensa o deficit persistente da balança de
bens (-10.5 mil milhões em 2015), em especial a balança turística cujo superavit de 7,8
mil milhões em 2015 representava 56,6% do montante total do superavit dos serviços.
Em 2012, pela primeira vez, registou-se um superavit marginal de 229 milhões de euros,
que resultou da conjugação entre uma quebra das importações (-6,2%) e um
crescimento das exportações (3,8%), o qual se consolidou em 2013-2015, embora em
níveis baixos, atingindo um valor médio de 3 mil milhões de euros.
A desvalorização do euro face ao dólar a partir de 2011 e que se acentuou em 2015 e
2016
20
e o crescimento dos fluxos turísticos, como resultado conjugado da crescente
insegurança em destinos alternativos no Maghreb, da redução do preço do petróleo e da
projeção de uma imagem positiva de Portugal como destino turístico, foram dois dos
factores que contribuiram positivamente para esta evolução.
Fluxos turísticos
Os fluxos turísticos para Portugal
21
(inbound flows) cresceram de forma rápida desde
finais da década de 2000 e em particular no período entre 2012 e 2015 com um
crescimento de mais de 30%, aumentando de 7,5 milhões em 2012 para cerca de 10
milhões de turistas em 2015 com taxas de crescimento de 13% em 2014 e 10% em
19
Segundo estatísticas da Organização Mundial de Turismo UNWTO, Portugal registou um total de 10,2
milhões de chegadas em 2015 e reforçou a sua posição em termos globais sendo o 26º maior mercado de
turismo e o 33º em termos de receitas (UNWTO World Tourism Barometer, May 2016).
20
A taxa de câmbio anual média do Euro relativamente ao US lar desvalorizou-se de 1.39 em 2011 para
1.11 em 2015 com algumas flutuações neste período: desvalorização para 1.28 em 2012 com ligeira
recuperação estabilizando em 1.33 em 2013 e 2014 e nova desvalorização em 2015 para 1.11 vd. Statista
ECB data (disponível em https://www.statista.com/statistics/412794/euro-to-u-s-dollar-annual-average-
exchange-rate/).
21
UNWTO Statistics Portugal: Country-specific: Basic indicators (Compendium) 2011 - 2015 (09.2016),
UNWTO e-library. Disponível em
http://www.eunwto.org/doi/abs/10.5555/unwtotfb0620010020112015201609.
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2015. Esta evolução positiva teve também reflexos significativos no crescimento das
receitas de turismo que aumentaram de forma ainda mais intensa 33% neste período
passando de 8,6 mil milhões para 11,5 mil milhões de euros em 2015 (ver quadro 2).
Quadro 2. Fluxos turísticos para Portugal (inbound) e receitas, 2011-2015
2011
2012
2013
2014
2015
Nº Turistas (milhões)
7,3
7,5
8,1
9,1
9,9
Dormidas (milhões)
27,9
29
31,1
34
36,4
Receitas (€ million)
8.146
8.606
9.250
10.394
11.451
Pour memoire
Total turistas a nível global (milhões)
994
1.040
1.086
1.134
1.186
Fonte: UNWTO Statistics e Banco Portugal (receitas turismo)
Esta evolução positiva insere-se numa tendência generalizada de aumento dos fluxos
turísticos globais que têm crescido a uma taxa média de 5% ao ano ultrapassando a
meta dos mil milhões de turistas em 2012 e registando em 2015 o valor de 1.186
milhões, dinamismo que se explica em parte pela redução do preço do petróleo e pela
expansão da classe dia nas economias emergentes. A diferença é que a taxa média
de crescimento de Portugal tem sido desde 2012 o dobro da taxa média global e da
Europa o que se explica desde logo por factores de contexto regional já que Portugal se
insere na região Southern Mediterranean Europe que é aquela que atrai mais turistas a
nível global sendo responsável por 19% dos fluxos totais tendo atraído 225 milhões de
turistas em 2015. Existem ainda factores específicos que favorecem o perfil de Portugal
como destino turístico, designadamente a crescente preocupação com questões de
segurança sendo Portugal percepcionado como país seguro e alternativa ao destino
Maghreb; a forte dimensão cultural na imagem-país; reforço da percepção positiva sobre
a qualidade e diversidade da oferta turística alicerçada em prémios internacionais e feed
back positivo no espaço digital.
No entanto, o crescimento dos fluxos turísticos não foi acompanhado por uma
diversificação da sua origem que continua fortemente concentrada nos mercados
tradicionais da Europa. Estes representavam 82% dos turistas em 2012 e continuam a
representar 80,5% em 2015, seguido dos EUA e da Ásia Oriental e Pacífico que aumentou
o seu peso de 4% em 2012 para 6% em 2015 mercê de um ligeiro crescimento dos fluxos
de turistas chineses e sul-coreanos. Neste plano não tem existido uma estratégia
proactiva efetiva de diversificação para captar mais fluxos de turistas chineses, o maior
mercado emissor do mundo, e para explorar uma maior complementaridade com
Espanha, o segundo maior mercado de turismo da Europa.
Em termos gerais, uma das características da estrutura do comércio externo português
é o elevado vel de concentração das exportações, tal como das importações, num
reduzido número de mercados, o que envolve um baixo grau de diversificação e,
consequentemente, um maior vel de risco de choques externos de maior amplitude
relacionados com quebras na procura externa. O elevado grau de concentração é
demonstrado pelos dados do quadro 3.
Os três maiores mercados, Espanha, França e Alemanha, absorveram ao longo do período
considerado quase metade das exportações portuguesas, 49% em 2002, subindo para
49,7% em 2005 e reduzindo ligeiramente a partir de 2008 mas mantendo em 2012 um
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valor muito idêntico 46,6%
22
. Em 2013 e 2014 registou-se uma ligeira redução do vel
de concentração para 42.8% mas esta tendência não se consolidou voltando a subir em
2015 par 44.1%. Esta elevada concentração verifica-se quer relativamente às
exportações de bens quer às exportações de serviços. No caso do turismo os três maiores
mercados de origem de turistas, Reino Unido, França e Espanha, representavam 49,4%
do total de dormidas (34,4 milhões) e 47% das receitas totais (11,5 mil milhões euros)
em 2015
23
.
Quadro 3 - Nível concentração das exportações portuguesas nos maiores mercados de
exportação, % percentagem
ANO
10 maiores mercados a)
% Exportações Totais
3 maiores mercados b)
% Exportações Totais
2002
83,1
49
2003
82,8
49,1
2004
82,9
49,3
2005
81,7
49,7
2006
81,1
49,6
2007
79,9
49,5
2008
77,7
48,1
2009
78,3
47,8
2010
77,5
47,6
2011
77,1
46,4
2012
75,3
46,6
2013
74.7
42.8
2014
75.4
42.9
2015
75.4
44.1
Fonte: Cálculos do autor a partir de estatísticas Banco de Portugal e AICEP 2002-2015
a) Os 10 maiores mercados de exportação incluem por ordem decrescente Espanha,
França, Alemanha, Reino Unido, Angola, Holanda, EUA, Itália, Bélgica, Brasil
b) Os 3 maiores mercados são por ordem Espanha, França e Alemanha
Se analisarmos os dados relativos aos 10 maiores mercados de destino das exportações
durante o período selecionado Espanha, França, Alemanha, Reino Unido, Angola,
Holanda, EUA, Itália, Bélgica, Brasil - também se detecta um elevado vel de
concentração nestes mercados que absorveram cerca de 4/5 das exportações na primeira
parte do período até 2007 (83% em 2002 e 80% em 2007), diminuindo ligeiramente a
partir de 2008 para ¾ em 2012 (75,3%) valor que se manteve estável em 2014 e 2015
(75,4%). Registou-se, assim, uma ligeira diversificação de mercados de exportação a
partir de 2009 que se detecta mais ao vel do grupo dos 10 maiores mercados e não
tanto ao vel dos três maiores mercados de destino, apesar de o quadro de fundo ser
um índice de concentração muito elevado.
Investimento
No plano do investimento direto estrangeiro (IDE) em Portugal, a evolução entre 2002-
2015 foi errática e pouco favorável, os fluxos tiveram reduzida expressão em função quer
da dimensão da economia portuguesa quer da performance de outras economias
concorrentes. Com referência ao IDE líquido, os fluxos caracterizaram-se por uma grande
22
Para medir o grau de concentração das exportações em mercados de destino são usados normalmente 3
indicadores, o ‘Herfindahl Hirschman Index’, o ‘Gini Hirschman Index’ e o ‘entropy coefficient’.
23
AICEP, Estatisticas, Portugal Ficha País, Set 2016.
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instabilidade e flutuações, como ilustra o quadro 4, com um nível relativamente modesto
em 2002 de 1,9 mil milhões de euros mais do que triplicando em 2003 para 6,3 mil
milhões para voltar a cair nos anos seguintes e crescer novamente em 2006, ano em que
atingiu o pico do período com 8,7 mil milhões de euros. A fase entre 2007-2010 foi de
quebra do nível de investimento a que se seguiu uma fase de recuperação em 2011 e
2012 para 8 mil milhões e 7 mil milhões respetivamente. Os anos seguintes foram
caracterizados por um novo declínio nos fluxos de IDE para 2 mil milhões em 2013 e 2,2
mil milhões em 2014 aumentando novamente em 2015 para 6,2 mil milhões.
Quadro 4 - Investimento Direto em Portugal principais investidores (% do total IDE);
stocks e Investimento Líquido (mil milhões de euros)2002-2012
Países
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
Holanda
14,8
14
13,5
13,2
14,6
14,3
16,3
17,7
12,5
22,5
8,5
Espanha
8,4
11
16,4
14,6
12,8
16,5
15,6
13
14,4
17,7
22,9
França
18,9
11,5
11,4
14,1
13,1
10,4
12,7
17,5
16,8
16,4
18,2
Reino
Unido
14,5
13,4
15,2
12,6
14
16
15,8
20,5
10,8
13,8
15,7
Alemanha
12,8
8,9
12,6
16,8
15,8
19,7
15,1
13,1
16,1
10,1
13,6
Total 5
69,4
58,8
69,1
71,3
70,3
76,9
75,5
81,8
70,6
80,5
78,9
IDE.
Líquido
(€ mil
milhões)
1,9
6,3
1,5
3,2
8,7
2,2
3,2
1,9
1,9
8
6,9
2.0
2.2
6.2
Stocks
(€ mil
milhões)
71,8
79,8
83,5
86,4
86.8
90.4
98.1
105.5
Fonte: Banco de Portugal; AICEP
É interessante notar que, no contexto da crise das vidas soberanas na zona euro, os
fluxos de investimento aumentaram precisamente nos anos de mais acentuada recessão
económica em Portugal, tendo os inflows quadriplicado em 2011 quando comparado com
2010, fenómeno que se registou também na Grécia e em Itália
24
. Este é um fato
paradoxal, mas que pode ser explicado pela interação entre dois fatores, privatizações e
“round-trip investment”.
Em primeiro lugar, a implementação do plano de privatizações, componente do programa
de ajustamento no contexto do Memorando de Entendimento celebrado com a Troika,
que atraiu investidores estrangeiros como foi o caso da privatização em 2011 da
participação de 21,35% do Estado no capital da EDP adquirida pela empresa estatal
chinesa China Three Gorges por 2,7 mil milhões euros. De acordo com dados do Fundo
Monetário Internacional, a receita global das privatizações entre 2010 e 2013 foi de 7,2
mil milhões de euros
25
.
O aumento significativo dos fluxos de IDE em 2011 e 2012 e parte nos anos seguintes é
fundamentalmente explicado pelo novo fenómeno do investimento chinês de grande
escala em Portugal tal como sucedeu noutros países da UE, em especial na Europa do
Sul. Este investimento concretizado através de M&A foi realizado essencialmente por
empresas estatais chinesas, com a exceção da Fosun, que aproveitaram a oportunidade
de adquirir activos a baixo preço num contexto de uma economia fortemente fragilizada
e vulnerável. Regista-se também um padrão de forte concentração em sectores
24
World Investment Report 2012, pp. 62-63.
25
Vd. IMF 2013, Portugal: Seventh Review under the Extended Arrangement, Country Report 13/160, June
2013, table 4.
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estratégicos com consolidação de posições dominantes, em especial no sector da energia
(participações na EDP, EDP Renováveis e REN) e sector financeiro (BES Investimento,
Caixa Seguros Saúde/Fidelidade, mais recentemente BCP) e num segundo plano no
sector da saúde (BES saúde), imobiliário e utilities (água), atingindo até 2014 um
montante total de 5.5 mil milhões de euros. Tal corresponde a um padrão de
investimento com características peculiares: grande carga política, sem valor
acrescentado em termos de tecnologia e criação de emprego, mas com impacto
significativo em termos de restrição da concorrência e de desafios regulatórios
26
.
Em segundo lugar, um efeito de distorção associado ao processo de “round-trip
investment”, através do qual os grandes grupos multinacionais portugueses têm vindo
crescentemente a investir em Portugal a partir do exterior por razões fiscais e estratégias
de evasão fiscal, o que cria um efeito ilusório que não se trata de investimento
estrangeiro real
27
.
Importa sublinhar o elevado grau de concentração do IDE num número muito reduzido
de países de origem, Holanda, Espanha, França, Reino Unido e Alemanha que já
representavam em conjunto cerca de 70% do IDE em Portugal em 2002 e cujo peso
cresceu ainda mais a partir de 2007 atingindo no final da década 80% do total (quadro
4). Em suma, até 2011 não se registou uma tendência de diversificação, mas antes um
reforço da concentração e do papel dos investidores tradicionais, num quadro de quebra
significativa do valor dos investimentos.
Esta situação alterou-se na medida em que a recuperação dos fluxos de IDE em 2011
está associada a um processo de diversificação com a entrada do investimento chinês
atenuando a relevância do efeito round-trip investment”. No entanto, a fase mais
intensa do investimento chinês mostra sinais de se ter esgotado, não obstante novos
investimentos de menor dimensão possam vir a concretizar-se nos próximos anos, o que
volta a dar maior peso ao efeito round-trip investment como é vivel nos dados de
investimento de 2015-2016 em que a Holanda volta a surgir como primeiro investidor
(24,3%) seguido da Espanha (23%) e do Luxemburgo (19,3%)
28
. Esta nova e
surpreendente posição do Luxemburgo que nunca foi um investidor tradicional, parece
explicar-se pela intensificação do fenómeno do round-trip investment surgindo agora dois
centros off-shore como as principais origens do IDE em Portugal representando quase
metade dos fluxos totais (43,6%).
Esta quebra é explicada por uma conjugação de fatores externos e internos. No plano
externo está em causa o reforço da concorrência internacional de outros destinos e o
consequente redireccionamento destes investidores para outros polos de atração (Europa
de Leste futuros membros com reforço após adesão em 2005, e as economias
emergentes em especial a China, a Turquia, a India, o Brasil). Os fatores internos estão
sobretudo relacionados com a instabilidade do quadro legal e do sistema fiscal sujeitos a
26
Sobre o padrão do investimento chinês em Portugal ver Annette Bongardt e Miguel Neves, 2014,The Chinese
Business Community at a crossroads between crisis response and China’s assertive global strategy - The
case of Portugal, MPC Research Report 2014/02, Robert Schuman Migration Policy Centre, European
University Institute.
27
Rodrigo Fernandez, Katrin MaGauran & Jesse Frederik, 2013, Avoiding Tax in Times of Austerity - Energias
de Portugal (EDP) and the Role of the Netherlands in Tax Avoidance in Europe, Centre for Research on
Multinational Corporations SOMO, the Netherlands, September 2013. Sobre o processo e mecanismos da
evasão fiscal dos grandes conglomerados e seu impacto ver James S. Henry, 2012, The Price of offshore
revisited, Tax Justice Network, July 2012.
28
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constantes mudanças que prejudicam o planeamento a longo prazo, a que se juntam os
problemas sistémicos da justiça portuguesa que agrava a incerteza e os custos de
transação das empresas, e não tanto com a conjuntura económica como se viu acima.
Contudo, não obstante estes factores, é possível argumentar que a inexistência de uma
estratégia de ação externa e de uma diplomacia económica estruturada também acabou
por agravar esta evolução negativa que não permitiu proactivamente contrariar, ou
pelo menos atenuar, estas tendências e desenvolver uma ação eficaz de captação de
novos investidores.
Relativamente ao investimento direto português no exterior (IDPE) depois do pico
atingido no final dos anos 90, que constituiu o período dos grandes investimentos
especialmente no Brasil, em boa medida para participar no programa de privatizações, e
em Espanha, o IDPE caiu para veis mais modestos com o investimento bruto a variar
entre um nimo de 7,7 mil milhões euros em 2007 e o máximo de 19,6 mil milhões em
2011, e o investimento líquido a registar níveis modestos e mesmo uma evolução
negativa com fortes reduções, em especial a partir de 2008 com valores entre 1 e 2 mil
milhões, uma queda acentuada em 2010 de -5,6 mil milhões em resultado de um forte
desinvestimento. A evolução positiva em 2011 tem uma natureza excecional, explicada
pelo grande aumento do investimento direto português na Holanda, que cresceu cerca
de 800%, relacionado com o processo de reestruturação das operações dos grandes
grupos multinacionais portugueses, não alterando, contudo, o padrão dominante de
declínio que marca particularmente a segunda metade da década e que foi confirmado
em 2012.
Esta evolução não resulta apenas da crise económica, uma vez que existiam sinais da
redução do IDPE na primeira metade da cada, mas é consequência da interação
entre outros factores, em particular o movimento de retração de muitos investidores
portugueses afectados pelo impacto da crise e o facto de os grupos multinacionais
portugueses terem passado a investir no exterior a partir de centros offshore.
Quadro 5 - Investimento Direto de Portugal no Estrangeiroprincipais países de destino
(% do total IDPE) ; stocks e Investimento Líquido (mil milhões de euros)2002-2012
Países
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
Holanda
51,1
11,2
21,7
25,6
37,5
38,7
32,2
31,1
21,0
73,2
59,4
Espanha
23,8
9,4
22,5
17,7
11
13,1
19,6
16,2
7,9
9,2
12,6
Brasil
9,4
1,9
4,3
3,6
4,3
4,5
4,7
6,7
17,2
3,6
7,3
Angola
0,4
0,4
0,9
2,7
2,8
,0
6,8
8,9
6,8
1,6
3,5
Dinamarca
,02
25,6
23
3,6
1,2
3,0
1,2
6,8
0,1
0,5
1,0
Total %
84,7
48,5
72,4
53,2
56,8
62,3
64,5
69,7
53
88,1
83,8
Investimento
Líquido
(€ mil
milhoes)
4
1,8
0,6
-5,6
10,7
1,5
Stocks
(€ mil
milhões)
11,6
10
11,9
9,7
9,8
14,8
11,3
7,7
9.8
15,6
Fonte: Banco de Portugal; AICEP e cálculos do autor
Também ao vel do investimento direto português no estrangeiro se verifica um
fenómeno de concentração significativa num reduzido número de países de destino
representando os três principais, Holanda, Espanha e Brasil, em média 2/3 do total e
com tendência de agravamento no final da década representando em 2011 cerca de 86%
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e em 2012 cerca de 80% do total de IDPE. As alterações mais significativas relativamente
à década anterior têm a ver com a quebra significativa do investimento no Brasil e com
uma redução do peso da Espanha como destino do IDPE.
Por outro lado, verifica-se um reforço da relevância da Holanda, em especial na segunda
metade da década, como o maior destino do investimento direto português no exterior,
em média representando mais de 1/3, tendência que se acentuou no final da década em
2011-2012 em que passou a representar 73% e 60% do total. Este fenómeno,
juntamente com o facto de ser também um dos maiores investidores estrangeiros em
Portugal, traduz a intensificação do processo de “round-trip investment” , através do qual
os maiores grupos económicos portugueses investem em Portugal a partir da Holanda
motivados pela exploração de mecanismos de evasão fiscal, o que justifica primeiro o
movimento de saída de capitais para investimento na Holanda e num segundo momento
a reentrada de capitais sob a forma de IDE em Portugal
29
. Tal é consistente com o facto
de o IDE em Portugal se concentrar em termos de sectores no comércio por grosso e
retalho que absorvia 38,9% dos stocks em 2011 (contra 31,9% em 2002), seguido das
Actividades Financeiras com 22,3% (contra 19% em 2002) e das Industrias
Transformadoras com 21% (contra 32,1% em 2002). Este último sector, que ocupava o
primeiro lugar em 2002 com 32,1% dos stocks, foi aquele que registou a maior quebra
dos stocks de IDE ilustrando o processo de desindustrialização da economia portuguesa.
Por seu turno a distribuição do IDPE por sectores revela uma esmagadora concentração
no sector financeiro (atividades financeiras e seguros), que em 2012 representava 75,8%
do total, mais de ¾, seguida a grande distância pela Indústria transformadora com 8,2%
e das atividades de consultadoria, científicas e técnicas com 5,1%.
Fluxos migratórios
A gestão dos fluxos migratórios e a mobilidade do capital humano, em especial a
capacidade de atração de fluxos de quadros altamente qualificados, assume relevância
critica na perspectiva da geoeconomia e da consolidação da capacidade científica,
tecnológica e de inovação de um país no quadro da economia do conhecimento. No
contexto de Portugal o aspecto marcante da evolução dos fluxos migratórios foi a
conjugação entre a quebra dos fluxos de imigração a partir de 2009 e a expansão dos
fluxos de emigração que aceleraram a partir de 2011 de que resultou um saldo migratório
negativo com impacto demográfico disfuncional.
Ao crescimento da imigração até 2009 seguiu-se uma fase de declínio contínuo da
população estrangeira residente que caiu cerca de 15 % de 451.754 em 2009 para
388.731 em 2015 que se explica pelo efeito conjugado da perda de atratividade de novos
fluxos e retorno/re-emigração de imigrantes associado ao agravamento das condições
do mercado de trabalho e pelo aumento dos casos de concessão da nacionalidade
30
. No
plano de emigração depois do pico de 2007 e da redução das saídas até 2010, assistiu-
se a um aumento dos fluxos anuais a partir de 2011 que cresceram de 80,00 para
29
Ver o estudo sobre a evasão fiscal dos grandes grupos multinacionais Rodrigo Fernandez, Katrin MaGauran
& Jesse Frederik, 2013, Avoiding Tax in Times of Austerity - Energias de Portugal (EDP) and the Role of the
Netherlands in Tax Avoidance in Europe, Centre for Research on Multinational Corporations SOMO, the
Netherlands, September 2013.
30
Serviço de Estrangeiros e Fronteiras SEF, Relatórios Imigração, Fronteiras e Asilo, 2010 a 2015.
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109
110.000 em 2013 e 2014 perfazendo um total de cerca de 400.000 saídas entre 2011-
2014 com uma forte incidência de jovens quadros qualificados
31
.
Estas tendências são explicadas quer pelo impacto da recessão económica em Portugal,
com os seus efeitos sobre o mercado de trabalho quer em termos de desemprego quer
de redução dos veis salariais, quer por uma ausência de estratégia para a valorização
de quadros qualificados na dupla perspectiva da atração de quadros do exterior e da
retenção de quadros portugueses.
Não existindo dados consistentes sobre os fluxos de quadros qualificados para Portugal
existem alguns dados dispersos indicativos, designadamente a percentagem de vistos de
residência e de estadia temporária para imigrantes altamente qualificados a qual tem
uma expressão marginal representando em 2011 apenas 3,3% do total de vistos de
residência e 9,5% do total de vistos para estadias temporárias concedidos. De uma forma
geral não existe uma política proactiva e consistente de recrutamento de quadros
estrangeiros qualificados sendo que os dois instrumentos existentes (i) o regime de
investigação científica no âmbito da Lei de Imigração de 2007 (arts. 61º e 90º); (ii) e o
Cartão Azul com a transposição da Directiva Blue Card de 2009 apenas concretizada em
2012 e originando o novo art. 61-A introduzido pela Lei 29/2012 de 9 de Agosto, por
serem recentes ou implementados de forma pontual não têm produzido resultados
significativos.
Existem alguns casos excepcionais de sectores que têm sido objecto de politicas de
recrutamento de quadros qualificados, em especial a medicina com a contratação de
médicos estrangeiros para colmatar necessidades no Serviço Nacional de Saúde, não
existindo acordos bilaterais de migração laboral de imigrantes altamente qualificados
noutros sectores
32
. Por outro lado, algumas instituições de investigação científica de
referência têm também procurado ativamente recrutar quadros estrangeiros altamente
qualificados para o desenvolvimento dos seus projectos
33
.
Relativamente aos quadros qualificados que emigraram, particularmente jovens com
elevados níveis de formação, de forma mais intensa desde 2011 tal foi encarado
exclusivamente de forma negativa como uma perda para a economia e sociedade
portuguesas na lógica tradicional da abordagem do brain drain. Contudo, numa sociedade
de conhecimento marcada por alta mobilidade e migrações circulares, é possível a ligação
simultânea a, e a circulação por diversas redes de conhecimento pelo que a saída para
outro espaço territorial não deve ser mais encarada como uma perda definitiva e
irreversível mas antes deve ser vista como uma oportunidade de envolvimento desta
diáspora qualificada em redes de conhecimento mais internacionalizadas e densas, o que
reforça a sua capacidade de contribuir para a dinamização de redes de conhecimento em
Portugal.
Por outras palavras, mesmo à distância estes quadros portugueses continuam a poder
dar um contributo relevante ao país de origem sendo a estratégia mais adequada não o
incentivo ao retorno imediato, aliás com poucas probabilidades de sucesso, mas sim os
incentivos para a ligação a instituições em Portugal e participação em projectos. Assim,
31
Observatório da Emigração, Relatório Estatístico 2015.
32
SEF 2013, A Atração de Nacionais de Países Terceiros qualificados e altamente qualificados: o caso
português, 2013.
33
Um dos exemplos é a Fundação Champalimaud a qual para o Centre for the Unknow que investiga na área
das neurociências, cancro e biomedicina, tem uma politica activa de atração de cientistas altamente
qualificados recrutados de forma competitiva em todo o mundo.
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a estratégia definida no Plano Estratégico para as Migrações 2015-2020
34
parece
disfuncional não porque coloca o acento tónico no incentivo ao regresso a curto prazo
e reintegração de emigrantes portugueses, em especial os que saíram depois de 2011,
mas também porque não atribui qualquer prioridade à estratégia de atração de recursos
humanos estrangeiros qualificados.
Tendências dominantes
A evolução das diversas dimensões das relações económicas externas de Portugal no
período 2002-2015 revela três tendências fundamentais que importa sublinhar pelas suas
implicações para a estruturação e implementação da diplomacia económica.
Em primeiro lugar, uma excessiva concentração das relações económicas externas num
reduzido número de parceiros, mesmo no seio da UE, e com um peso marginal de países
extra-comunitários, o que gera um contexto desfavorável de forte dependência e elevado
risco que só pode ser diminuído e controlado mediante uma eficaz estratégia de
diversificação. Mais grave, a evolução deste indicador não foi favorável e agravou-se em
algumas dimensões, o que põe em causa as políticas seguidas: no caso do comércio
externo detecta-se um nível muito elevado de concentração e uma redução muito
marginal do nível de concentração das exportações nos 10 maiores mercados de
exportação mas sem alteração ao nível dos 3 maiores mercados; no plano do
investimento, quer do IDE quer do IDPE, a tendência é mesmo de reforço da
concentração que a diversificação transitória introduzida pelo novo fenómeno do
investimento chinês na economia portuguesa não conseguiu inverter. Por outro lado, a
evolução positiva associada a alguma diversificação dos produtos de exportação
(turismo, indústria alimentar, agricultura) não é suficiente para compensar o aumento
de risco associado ao persistente elevado grau de concentração num reduzido número
de mercados.
Em segundo lugar, uma forte financiarização das relações económicas externas quer
através das operações de importação e exportação que em muitos casos são realizadas
via offshores, quer dos fluxos de investimento nos dois sentidos que estão
fundamentalmente ligados a operações financeiras que visam a evasão fiscal, em especial
o fenómeno do round trip investment” em que os conglomerados e empresas
multinacionais portuguesas estão envolvidos. Este processo de financiarização não
debilita o Estado agravando a erosão da sua base fiscal e reduzindo a sua capacidade
para implementar políticas públicas, designadamente a diplomacia económica, como
acentuam a natureza especulativa dos fluxos e reforçam a natureza ilusória dos mesmos.
Em terceiro lugar, a oligopolização dos fluxos económicos, na sua maioria associados à
atividade de grandes grupos económicos com posições dominantes no mercado, quer em
termos de exportações quer de investimento. Nas exportações de bens e serviços os
principais bens/serviços, com a exceção do turismo que ocupa o primeiro lugar, são
sectores com forte peso dos grandes grupos máquinas e aparelhos, veículos e material
de transporte, combustíveis refinados e metais - que em conjunto representaram em
2015 quase 50% do total de exportações de bens e serviços. Tal é bem ilustrado pelo
significativo crescimento do peso das exportações de combustíveis refinados da
34
Aprovado pela Resolução do Conselho de Ministros 12-B/2015 (disponível em
http://jrsportugal.pt/images/memos/20150125-madr-pem-consulta-publica%20(1).pdf).
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responsabilidade da GALP e queda do peso de outros sectores como o vestuário (cujo
peso nas exportações de bens caiu para metade de 11% em 2001 para 5,4% em 2012)
e calçado, em que a participação de PMEs tem maior significado. Esta oligopolização e o
crescimento de rendas de monopólio, gera condições adversas para as PMEs e o
crescimento do empreendedorismo essencial para o reforço do processo de inovação na
economia, ao mesmo tempo que desvaloriza os recursos humanos qualificados
alimentando fluxos migratórios indesejáveis.
Esta tendência reflete o facto de o nível de internacionalização das PMEs ser ainda muito
baixo, e ter mesmo registado um declínio no final da década, que as empresas
exportadoras são uma minoria envolvendo apenas 9,7% do total em 2009
35
. No plano
europeu, um estudo baseado em inquérito em relação a 2006-2008 revela um dado
contraditório apontando para que a percentagem de PMEs portuguesas que exportam ou
exportaram nos 3 anos anteriores seja três vezes superior com 31%, acima da média da
UE de 25%
36
. Contudo, considerando que no estudo da UE os dados se referem a anos
anteriores e inclui empresas que tendo exportado deixaram de o fazer, o estudo do INE
traduz uma imagem mais rigorosa da situação em 2009, sendo possível considerar que
a discrepância seja em parte explicada pelo desfasamento temporal e pelo facto de nos
últimos anos se ter registado uma tendência para diminuição do nível de
internacionalização das PMEs em Portugal.
Importa sublinhar que o reduzido nível de internacionalização das PMEs constitui
precisamente uma consequência da inexistência de uma diplomacia económica, que deve
prioritariamente mobilizar e envolver este sector, bem como de uma estratégia de
clusterização ativa. Por outro lado, esta tendência de oligopolização gera obstáculos para
a estruturação de redes ativas e participadas dado existir uma significativa divergência
de interesses e objectivos entre as PMEs e os grandes conglomerados multinacionais,
que continuam a ter grande influência na definição de políticas públicas, colocando
desafios significativos para promover a cooperação e ações complementares.
3. Modelo de ação externa em Portugal
O modelo de ação externa em Portugal tem sido marcado por quatro traços
fundamentais: dualismo, centralização, estatização e reduzida inovação.
Em primeiro lugar o dualismo envolvendo uma intervenção simultânea de dois sectores
governamentais e uma competição aberta e descoordenação entre o Ministério dos
Negócios Estrangeiros e o Ministério da Economia. O modelo corresponde, no essencial,
ao modelo de “competição” identificado por Rana
37
e que existe igualmente em países
como a França e a India, associado a um elevado nível de descoordenação,
desresponsabilização e reduzida eficácia. A partir da análise de experiências concretas
Rana identificou 5 tipos de modelos organizacionais distintos:
35
De acordo com o estudo de INE, Estudos sobre Estatisticas Estruturais das Empresas 2007-2009, Junho de
2011, só 9.7% das PMEs eram exportadoras embora fossem as empresas mais dinâmicas, sendo
responsáveis por 40% do volume de negócios total das PMEs.
36
European Commission, Internationalisation of European SMEs, 2010, um estudo sobre o nível de
internacionalização das PMEs nos 27 Estados Membros que concluiu que em média 25% das PME na UE-27
exportam ou exportaram nos últimos 3 anos no periodo abrangido pelo inquérito (disponível em
http://ec.europa.eu/enterprise/policies/sme/market-access/internationalisation/index_en.htm#h2-3,
consultado em 10.10.2013). São consideradas diversas formas de internacionalização.
37
Rana, Kishan, 2002 Bilateral Diplomacy, DiploHandbooks, DiploFoundation, pp.70-71.
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(i) Unificados: unificação de foreign affairs e foreign trade, como o que vigora na Suécia
depois da reforma de 2001, no Canadá e na Austrália em que a unificação é feita sob
a liderança do MNE;
(ii) Parcialmente unificado: envolve a criação de uma instituição operacional conjunta
entre o MNE e o Ministério do Comércio como é o caso do UK Trade and Investment
(UKTI)
38
no Reino Unido, criado conjuntamente pelo Foreign and Commonwealth
Office e pelo Ministry of Trade and Industry e preenchido com quadros provenientes
de ambos os Ministérios.
(iii) Terceira Agência: o MNE tem pouco envolvimento na diplomacia económica excepto
na definição das grandes orientações como no caso de Singapura, sem intervenção
no plano operacional que está atribuído a duas instituições especiais Singapore Trade
Board e Singapore Economic Development Board sob a supervisão do Ministério do
Comércio e Indústria.
(iv) Competição: modelo marcado pela competição entre o MNE e o Ministério da
Economia/Comércio ambos com intervenção no plano da diplomacia económica
marcado por elevado nível de descoordenação, desresponsabilização e reduzida
eficácia (casos da França, de Portugal, India)
(v) Renuncia: o MNE não tem papel ativo na diplomacia económica, em especial no plano
bilateral, servindo apenas como apoio predominando o Ministério do Comércio que
tem um estatuto e peso político superior ao do MNE, como sucede nos casos da China
e da Alemanha.
Portugal está atualmente numa fase de indefinição depois de ensaiar uma transição do
modelo de competição para um modelo unificado na sequência da iniciativa de reforma
de 2011, adiante analisada, em que a diplomacia económica passou a ser liderada pelo
MNE. Contudo, em 2013 verificou-se um retrocesso neste processo com o esvaziamento
do papel do MNE e um retorno parcial ao modelo de competição.
Em segundo lugar, é um modelo muito centralizado com reduzida autonomia dos centros
operacionais no terreno, designadamente embaixadas, e quase inexistência de estruturas
descentralizados de associações empresariais, com pouco input na formulação das
politicas, em especial bilaterais.
Em terceiro lugar, um sistema fortemente estatizado, dominado pelo Estado, state-
centric, com uma participação muito reduzida dos atores não-estatais, designadamente
das empresas, ONGs, think tanks e universidades, quer na formulação de politicas quer
na sua implementação e uma ausência de cultura de parcerias multi-actor na promoção
externa dos interesses do país.
Finalmente, um sistema conservador com grande aversão ao risco e à inovação, sem
cultura de avaliação de eficácia e claramente sobredimensionado face aos recursos e
capacidades do país, com uma rede constituída por um total de 79 embaixadas (71
bilaterais e 8 multilaterais) e 51 consulados, com uma estrutura de custos pesada, que
38
Sobre a avaliação de alguns dos programas ver o relatório do Parlamento Britânico (disponível em
http://www.publications.parliament.uk/pa/cm200910/cmselect/cmbis/266/26607.htm).
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em boa parte resulta de custos elevados com património imobiliário e uma estrutura de
recursos humanos assente em pessoal expatriado.
Ao longo da última cada foram propostas e aprovadas, embora muitas vezes não
implementadas, mudanças tendentes a ultrapassar algumas destas limitações e melhorar
a eficácia do sistema de ação externa sendo utilizado o conceito de diplomacia
económica. Contudo, a essência do sistema tradicional não foi alterada nem ocorreu
ainda uma mudança de paradigma, essencial para lidar com os novos desafios da
globalização e da sociedade do conhecimento.
A primeira tentativa falhada de reforma do sistema e de criação das bases de uma
diplomacia económica foi ensaiada no âmbito do XV Governo Constitucional 2002-2004,
cujo programa de governo incluía como objectivo “promover uma diplomacia económica
activa”
39
. A orientação adoptada apesar de se referir ao conceito de diplomacia
económica estava mais próxima do modelo tradicional de diplomacia comercial, em que
o Estado é ator exclusivo da ação externa sem qualquer envolvimento dos atores não-
estatais e as questões económicas são abordadas de forma fragmentada e não numa
lógica interdisciplinar holística. A abordagem era no essencial minimalista uma vez que
a questão central se resumia a uma tentativa de reforço de coordenação entre os
Ministérios dos Negócios Estrangeiros e o Ministério da Economia, “coordenando a ação
dos organismos do Ministério da Economia com a atividade das embaixadas” no contexto
de um sistema que permanecia, no essencial, dualista e dominado por uma lógica
concorrencial entre departamentos do Estado. Importa salientar que, não obstante a
preocupação com a coordenação e a coerência, no mesmo período foram adoptadas
medidas contraditórias que iam num sentido oposto, designadamente a criação em 2002
da Agência Portuguesa para o Investimento (API) que contribuiu para uma ainda maior
fragmentação do sistema, consequentemente aumentando os problemas de
coordenação.
A implementação das novas orientações viria a iniciar-se em 2004 na sequência do
despacho conjunto da ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades
Portuguesas e do Ministro da Economia
40
e centrou-se numa solução de coordenação
formal de topo ao nível ministerial e na adopção de um sistema de dupla tutela em que
os embaixadores podiam receber indistintamente instruções de qualquer um dos dois
ministros sobre questões económicas (ponto 1 do despacho conjunto), o que gerou
ambiguidade e incerteza. Por outro lado, deveriam implementar um plano de negócios
para a ação comercial, elaborado por país, que incluiria objectivos quantificados sobre
exportações para esse país e receitas de turismo originadas por cada mercado (pontos 7
e 9). Em paralelo deveria existir uma articulação entre os embaixadores e o presidente
do ICEP (ponto14) prevista de modo vago e sem mecanismos operacionais. Esta
iniciativa, inspirada no modelo francês, traduz uma lógica correspondente à primeira fase
de promoção da diplomacia económica de acordo com a classificação de Rana. Era uma
abordagem formal a qual acabou por não ser concretizada não produzindo resultados
concretos. Ao vel das exportações, por exemplo, os dados estatísticos referentes a
2004 e 2005 não revelam qualquer tendência nem de crescimento nem de diversificação
39
Programa do XV Governo Constitucional, pp.21.
40
Despacho Conjunto nº 39/2004 de 6 de Janeiro, da Ministra dos Negócios Estrangeiros e das Comunidades
Portuguesas, Teresa Gouveia, e do Ministro da Economia, Carlos Tavares da Silva.
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dos mercados de exportação, mantendo-se os mesmos níveis elevados de concentração
num número reduzido de mercados.
A estratégia no período 2005-2010 foi dominada pela racionalização da máquina estatal
de ação externa exclusivamente na área económica, reduzindo marginalmente a sua
fragmentação com a fusão do Instituto de Comércio Externo de Portugal (ICEP) com a
Agência Portuguesa para o Investimento (API) dando origem à criação em 2007 da
Agência para o Investimento e Comércio Externo de Portugal, a AICEP Portugal Global
E.P.E., dotada de uma natureza empresarial, mais flexível e com uma lógica orientada
para o serviço ao cliente. Contudo, o AICEP permaneceu na tutela exclusiva do Ministério
da Economia pelo que esta reforma não alterou a essência do sistema dualista nem pôs
fim à competição entre o MNE e o Ministério da Economia na área das relações
económicas externas.
A segunda tentativa de implementação de uma estratégia de diplomacia económica
verificou-se a partir de 2011 no contexto do XIX Governo, cujo programa de governo
incluía o reforço da diplomacia económica como uma nova prioridade estratégica
nacional
41
. Com o objectivo de definir um plano operacional para implementar a nova
aposta na diplomacia económica e ponderar diversas soluções alternativas, foi criado um
grupo de trabalho coordenado pelo Prof. Jorge Braga de Macedo, que produziu uma
reflexão sobre um novo modelo de organização e articulação dos serviços e organismos
do Estado envolvidos na ação externa, tendo elaborado um relatório com propostas de
reforma
42
. A identificação da necessidade de reforma tendente ao reforço da eficácia do
sistema, a racionalização da articulação de competências entre o MNE e o Ministério da
Economia e a unificação das redes externas são aspectos positivos que representam um
esforço de racionalização num contexto difícil que exige pragmatismo.
No entanto, este documento apresentava diversas limitações que condicionam a
implementação de uma verdadeira diplomacia económica. Desde logo porque se
concentra quase exclusivamente nas questões do formato institucional das estruturas
dos atores públicos, excessivamente centrado no Estado e nos canais formais, relegando
para segundo plano o papel de outros atores e das redes e canais informais na ação
externa. o se afigura suficiente uma referência marginal à participação de grandes
organizações empresariais num Conselho Consultivo, tanto mais quando estas não
representam os interesses das PMEs. A participação ativa destas no processo decisório,
numa lógica de verdadeira parceria e assunção direta de responsabilidades operacionais
pela promoção externa e a divisão de trabalho com o Estado, parece uma via a explorar
de forma mais sistemática.
Por outro lado, o documento não consagrava uma verdadeira estratégia para a ação
externa com a definição de objectivos e prioridades já que não é possível prosseguir em
simultâneo uma tão grande quantidade de objectivos, acabando por não definir de forma
clara a articulação entre todos os pilares e o estádio de diplomacia económica a
desenvolver. Com efeito não é suficiente a mera ação ao nível do salesmanship, como o
documento sugere ao referir-se à promoção de exportações e atracção de IDE, é
igualmente importante articular este nível com o desenvolvimento do “regulatory
41
Programa do XIX Governo Constitucional pp. 104, com detalhe em termos de objetivos operacionais pp.105-
106.
42
Grupo de Trabalho criado pelo Despacho do Primeiro Ministro 9224/2011, cujo relatório datado de 19
Setembro 2011 foi apresentado publicamente em 26 Setembro.
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management” mais complexo, envolvendo por exemplo a negociação dos tratados de
investimento bilaterais que Portugal tem negligenciado.
Em terceiro lugar, existe um claro deficit de referencia a boas práticas e às experiências
de outros países que iniciaram há vários anos este processo de reforma (por ex há uma
referência meramente marginal de um dos membros à experiência da Suécia e da
Dinamarca em apoio da opção C) as quais numa lógica de benchmarking podem
contribuir positivamente para a reflexão sobre potenciais soluções.
Finalmente, o documento continha uma mera definição de um modelo institucional sem
ponderação de aspectos operacionais fundamentais e questões práticas da ação externa
que condicionam a sua eficácia, designadamente o nível de descentralização e autonomia
das estruturas locais, o perfil e formação dos recursos humanos ou a exploração dos
canais informais nem pondera as implicações da adopção de uma “multitrack diplomacy”.
Tão importante como o modelo organizacional é a filosofia de acção, as práticas
informais, os actores envolvidos, o nível de capital social, a capacidade de inovação ou a
qualidade e formação dos recursos humanos.
Na sequência deste processo o Governo introduziu duas alterações fundamentais. A
primeira alteração consistiu na adopção de um modelo unificado na organização
institucional do Estado, inspirado na reforma da Suécia de 2001, assumindo o Ministério
dos Negócios Estrangeiros a liderança do processo, o que encontra plena justificação no
facto de este assegurar uma ponderação da dimensão política e de coordenar o principal
instrumento de ação externa, a rede de embaixadas e consulados. Em termos potenciais
tal poderia contribuir para eliminar a disfuncionalidade e desperdício de recursos
resultante da competição entre diferentes atores blicos, ao mesmo tempo que cria
condições para uma abordagem mais holística integrando as dimensões económica e
política.
No entanto, aquilo que parecia ser uma linha estratégica clara para o futuro no que
respeita ao modelo organizacional do Estado acabou por ser, surpreendentemente, posta
em causa quando em Julho de 2013 foi adoptada uma orientação contrária à assumida
em 2011 com o regresso do AICEP à tutela única do Ministério da Economia e a atribuição
ao vice-primeiro ministro da coordenação da diplomacia económica, esvaziando o papel
do MNE. Esta evolução errática e o regresso a um modelo dualista concorrencial agora
ainda mais complexo, sem que o modelo unificado tivesse sequer tido tempo para ser
testado e avaliado, não cria condições favoráveis para a consolidação de uma diplomacia
económica eficaz ao recuar naquela que foi, provavelmente, a primeira medida estrutural
que criou uma ruptura com o modelo tradicional.
A segunda alteração, envolveu o processo de alegada racionalização da rede de
representação externa, embaixadas e consulados e representações permanentes, de
modo a redimensioná-la e adaptá-la aos novos objectivos de promoção das exportações
portuguesas, com diversificação de mercados, de atração de IDE e de fluxos turísticos.
Desta iniciativa resultou o encerramento de 7 embaixadas - uma em África (Quénia) e 6
na Europa (Andorra, Eslovénia, Estónia, Letónia, Lituânia, Malta) - de 5 vice-consulados
(dois na Alemanha e três em França) e na eliminação de representação autónoma em
dois postos multilaterais, a UNESCO em que a representação passou a ser assegurada
pelo embaixador de Portugal em Paris, e a OSCE, em que a representação passou a ser
assegurada pelo Embaixador em Viena. Foi ainda criada uma nova embaixada no Qatar.
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Como resultado o número de embaixadas bilaterais que era de 77 em 2011 diminuiu
para 71 em 2012.
No entanto, esta racionalização acabou por ser um exercício marginal, sem alterações
substantivas com impacto duradouro, parecendo ter sido mais determinada por
considerações financeiras de curto prazo no sentido da redução da despesa pública, do
que pelo objectivo de implementação de uma nova estratégia de ação externa de longo
prazo que traduza uma mudança de paradigma. Vários argumentos apoiam esta
perspectiva. Em primeiro lugar, a ausência de uma maior aposta na Ásia, região decisiva
para a economia global, o que teria implicado a criação de algumas novas embaixadas
tendo em conta que é a região que em termos relativos apresenta um maior deficit com
apenas oito embaixadas (Japão, China, India, Coreia do Sul, Indonésia, Tailândia,
Singapura, Timor-Leste) e, em compensação, o encerramento de mais embaixadas
noutras regiões.
Em segundo lugar, a alteração da lista de representações diplomáticas é apenas um
aspecto formal que não garante por si maior eficácia que tem de ser complementada
com uma mudança na filosofia de ação operacional no terreno. Ora não existiu qualquer
definição de um novo modelo de funcionamento operacional das embaixadas, que
responda aos problemas do reduzido vel de autonomia local, do perfil inadequado do
staff, que deve incluir mais quadros locais e menos expatriados, ou da reduzida
articulação operacional local com empresários e outros sectores da diáspora.
Importa igualmente salientar que a tentativa de reforma de 2011 apresenta outras
lacunas essenciais, já detectadas em iniciativas anteriores, uma vez que assume como
premissa essencial que a diplomacia económica é uma atividade essencialmente do
Estado. De facto, ainda que admita uma colaboração marginal das empresas e outros
atores não-estatais, está longe de adoptar uma abordagem multi-actor. As empresas
portuguesas são vistas mais como clientes do Estado e do AICEP e não tanto como
parceiras. Em consequência, a atenção centrou-se apenas na reforma da máquina do
Estado e nas relações entre departamentos públicos, excluindo o plano das relações entre
o Estado e os atores não-estatais no planeamento e desenvolvimento da ação externa e
a perspectiva de desenvolver parcerias ativas. Tal significa que Portugal regista um
atraso e um claro deficit na implementação da segunda fase da diplomacia económica, a
fase de “networking” orientada para a criação de redes consistentes de apoio quer no
país quer no estrangeiro. Tal cria riscos de os esforços de projeção da imagem-país que
têm sido desenvolvidos, integrados na terceira fase, possam ter a sua sustentabilidade
comprometida por não serem suportados por coligações amigáveis nem por um trabalho
em rede robusto e continuado.
Apesar da essencialidade do desenvolvimento de uma nova diplomacia económica para
Portugal de modo a poder responder aos desafios e ameaças da globalização, tirar partido
das oportunidades e projetar os seus interesses numa economia global crescentemente
complexa, a verdade é que a última década foi uma década perdida em termos de
estruturação e efetiva implementação da diplomacia económica com consequências
negativas para a economia e sociedade portuguesas.
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4. Desafios para o reforço da eficácia da ação externa e linhas
estratégicas de uma diplomacia económica
A reforma da ação externa e da diplomacia em Portugal é na sua essência uma questão
de Governance e deve ser pensada e planeada tendo em conta não apenas os factores
condicionantes supra referenciados, mas também os eixos estratégicos para o futuro no
contexto do aprofundamento da glocalização.
A análise envolve três áreas distintas, mas complementares: a dimensão organizacional;
dimensão operacional; dimensão inovação.
4.1. Dimensão organizacional
A dimensão organizacional tem uma natureza estrutural e passa por um conjunto de
mudanças essenciais para responder aos novos desafios a três níveis distintos.
Em primeiro lugar a opção pelo modelo da unificação das estruturas da ação externa no
seio do Estado, desejavelmente no formato do modelo nórdico em especial da Suécia
43
e
Dinamarca, que unifica negócios estrangeiros e comércio internacional/investimento sob
a liderança do Ministério dos Negócios Estrangeiros, tem de ser definitivamente
consolidada. Tal garante não só uma abordagem mais holística, que maximiza as
interligações entre economia, política, segurança e cultura, mas também que o mesmo
grupo de pessoas possa gerir de forma coerente e explorando sinergias a promoção de
exportações, o investimento direto no exterior e atração do IDE e a ajuda ao
desenvolvimento. Esta opção evita os efeitos disfuncionais de uma competição
institucional e elevados custos de descoordenação, ao mesmo tempo que reduz o risco
de um MNE marginalizado pelo ascendente de outros Ministérios sectoriais no plano
externo gerar uma sub-utilização da rede de representação diplomática que constitui um
dos instrumentos fundamentais e absorve recursos muito consideráveis.
Em segundo lugar, o desafio da adopção de uma verdadeira abordagem multi-actor
envolvendo uma maior abertura à participação dos atores não-estatais, empresas, ONGs,
universidades, think tanks, câmaras de comércio, na definição da estratégia e a formação
de parcerias ativas para a ação externa, combinando know hows e recursos financeiros
e humanos. Revela-se fundamental a atribuição de responsabilidade direta a estes atores
pela execução deões concretas (organização de feiras, estudos de mercado, missões
comerciais) de acordo com as suas vantagens comparativas, contribuindo assim para
diluir um excesso de ação estatal, que pode até gerar resistências no exterior, e para
melhor chegar aos atores não-estatais e à sociedade civil do país-alvo. O envolvimento
destes atores não-estatais permite explorar canais mais informais e as dimensões de
track II e track III.
Neste contexto, e por forma a facilitar a lógica de equipa/parceria seria fundamental
promover a circulação de recursos humanos entre as empresas/ONGs e o
MNE/embaixadas, com períodos de estadia limitados de diplomatas em departamentos
internacionais de empresas e de quadros de empresas nas representações diplomáticas.
A promoção da rotatividade é essencial.
43
Swedish Policy for Global Development (2003).
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Em terceiro lugar, o desafio da requalificação dos recursos humanos, envolvendo o
recrutamento de uma maior quota de diplomatas com formação económica e de gestão,
por um lado, e com níveis mais elevados de experiência profissional adequada à
intervenção na área da diplomacia económica, por outro. Neste sentido afigura-se
essencial flexibilizar um sistema demasiado rígido e tradicional e admitir a possibilidade
de entrada de quadros mais qualificados em níveis mais avançados da carreira, sem
passarem pela fase inicial da carreira diplomática tradicional, podendo, assim, de forma
rápida aumentar a capacidade de intervenção e estimular a inovação. Para além do
recrutamento, o reforço da formação on the job é essencial quer inicial quer contínua ao
longo da carreira. A possibilidade de o período de formação inicial dos diplomatas
envolver estágios em empresas portuguesas internacionalizadas, em empresas
multinacionais ou em ministérios sectoriais contribuiria certamente para reforçar a
formação e as parcerias. A criação de equipas de formadores itinerantes que possam
formar os quadros quando colocados no exterior nas representações diplomáticas,
tomando como ponto de partida situações concretas, deveria também ser ponderada.
Por outro lado, o sistema de “rotatividade in-out” através do qual quadros superiores da
Administração Pública se envolvem durante um período determinado na representação
externa, tratando de dossiers na sua área de especialidade técnica, regressando
posteriormente ao país para desempenharem funções no Estado, permite articular
melhor os planos interno e externo com vantagens significativas a dois níveis: o reforço
da qualidade da ação externa em áreas cada vez mais técnicas em que a sua experiência
na gestão de dossiers nacionais lhes permite dar um input fundamental para aumentar
a credibilidade da nossa participação internacional e consequentemente a influência; por
outro lado, a experiência internacional e de negociação -lhes uma perspectiva mais
abrangente e de interligação entre os rios níveis de Governance quando gerem os
dossiers nacionais em Portugal.
De igual modo as instituições devem integrar a dimensão interna e a dimensão
internacional, reconhecendo que as barreiras foram abolidas e que têm de ser pensados
de forma integrada como um todo, pondo fim à divisão artificial que ainda predomina em
Portugal. Uma das implicações práticas é que na vertente empresarial e de promoção de
exportações e investimento não faz sentido existir o IAPMEI, orientado para o plano
interno, e o AICEP, orientado para o plano externo, mas sim uma única estrutura que
combine as iniciativas onshore e offshore partindo de um sistema de apoio à consolidação
da competitividade das empresas, que no caso das PMEs muito depende dos esforços de
promoção da clusterização que o Estado não tem estimulado, e encare a
internacionalização como uma etapa do processo. Esta é a experiência positiva do Reino
Unido com a criação do UK Trade and Investment em 2003 que promoveu a integração
das iniciativas onshore e offshore de apoio à internacionalização
44
.
Assim, a ação no plano externo deverá ser construída a partir da rede de relações interna
criada com as empresas e as associações empresariais sectoriais. A ação externa é, pois,
uma extensão natural da ação no plano interno dependendo da consolidação desta. A
rede interna descentralizada montada para o acompanhamento de proximidade das
empresas planeia com elas o projeto de internacionalização. Tal evita duplicação de
44
Outra das inovações foi a aposta numa estratégia de sectores com a identificação dos sectores prioritários
a partir da qual de decide então sobre os mercados em alternativa à estratégia tradicional de focagem nos
mercados. Vd. https://www.gov.uk/government/organisations/uk-trade-investment, consultado em
5.12.2015.
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esforços e incoerências nas politicas públicas para o empreendedorismo e o reforço da
competitividade das PMEs.
4.2. Dimensão operacional
Em termos operacionais colocam-se também desafios complexos para promover uma
diplomacia económica eficaz.
A redução e racionalização da rede de embaixadas e consulados, orientação que começou
a ser implementada em 2012 mas de forma marginal, tem de ser aprofundada não
apenas numa perspectiva quantitativa mas sobretudo qualitativa. A ideia da criação da
figura de embaixadores itinerantes permitiria introduzir flexibilidade e substituir
parcialmente estruturas permanentes. Não é suficiente reduzir a rede, é preciso alterá-
la qualitativamente fazendo diferente. Com efeito, tão importante quanto a estrutura da
rede é saber como ela funciona e agir sobre pontos de estrangulamento que reduzem a
sua eficácia, sobre o que deve ser a missão e como deve ser desempenhada.
Neste plano duas questões operacionais assumem especial relevância. Em primeiro lugar,
o desafio do reforço da descentralização no sistema de representação externa, reforçando
o poder de decisão local das embaixadas e missões, após a definição prévia pelo centro
de parâmetros de enquadramento, objectivos e da aprovação de um plano anual. Tal
permite maior agilidade e timing mais adequado na resposta perante uma realidade em
rápida mutação, mas também um aumento da qualidade da decisão atento o input
fundamental que as Embaixadas e outras estruturas de representação externa devem
dar para a formulação da política bilateral. Um dos problemas estruturais do nosso
sistema externo é o seu elevado grau de centralização sendo Lisboa chamada a decidir
tanto sobre questões de fundo como sobre questões de pormenor o que se torna
disfuncional criando uma enorme sobrecarga que a reduzida estrutura central do MNE
tem dificuldade em gerir.
O reforço da descentralização foi uma das opções tomadas no âmbito das reformas do
Reino Unido e da Suécia no seu sistema de ação externa. No caso da Suécia e em relação
à ajuda ao desenvolvimento, alguns escritórios de representação externa passaram a ter
um sistema de “delegação plena” com competências para preparar o “plano anual do
país” aprovado pelo centro, monitorizar e avaliar os resultados obtidos, garantir a gestão
financeira e de recursos humanos e dar inputs para a definição da estratégia de
cooperação bilateral com o país em causa.
Em segundo lugar, o reforço do recrutamento local de quadros qualificados, quer
estrangeiros quer membros da diáspora portuguesa, alterando a opção atual de
estruturas de representação com grande peso de expatriados, com vantagens claras a
três veis: (i) redução de custos designadamente dos associados à movimentação de
expatriados; (ii) estabilidade no exercício das funções reduzindo o problema da
rotatividade dos expatriados; (iii) maior conhecimento da realidade e ngua locais e
capacidade para ativar as ligações às redes de conhecimento locais contribuindo para
maior profundidade de ação. Em muitos casos as embaixadas e consulados necessitam
apenas de ter o número um e dois como nacionais, diplomatas de carreira ou técnicos
de outras áreas sectoriais, podendo os restantes quadros ser recrutados localmente.
Neste plano, e na medida em que pode contribuir também para a dinamização das
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relações com a diáspora portuguesa em diversos países, o recrutamento de membros
qualificados da diáspora reveste-se de especial interesse.
4.3. Dimensão Inovação
A terceira dimensão é a inovação, em especial na utilização e dinamização de canais
informais essenciais no contexto do quadro de funcionamento da economia global e da
sociedade do conhecimento, a qual constitui um vector estratégico fundamental. No caso
de Portugal três dimensões afiguram-se prioritárias: diáspora portuguesa; a
paradiplomacia; a inteligência económica.
A mobilização da diáspora portuguesa de mais de 5 milhões de pessoas
45
em especial de
dois sub-sectores, a comunidade empresarial e a comunidade científica nas universidades
e centros de investigação, constitui um factor estratégico da diplomacia económica e da
política externa em geral. O paradigma neste capítulo tem sido a mobilização da diáspora
chinesa que é um dos factores informais decisivos, porventura menos visível, da
integração e sucesso da China na economia global
46
. Esta tem sido uma das falhas mais
significativas da estratégia de ação externa portuguesa, desperdiçando o potencial
contributo da diáspora para a promoção da imagem e interesses do país numa lógica de
benefícios mútuos, designadamente a quatro níveis: (i) portas de entrada das
exportações portuguesas, sobretudo se considerarmos que muitos empresários de
origem portuguesa estão ligados ao sector da distribuição; (ii) fonte de investimento
direto em Portugal quer diretamente quer mobilizando investidores estrangeiros; (iii)
disponibilização de inteligência económica para Portugal; (iv) ligação às redes de
conhecimento mais dinâmicas no país e articulação com redes em Portugal.
Exemplos de medidas práticas para dinamizar este envolvimento incluiriam: (i)
envolvimento de empresários portugueses da diáspora num conselho consultivo das
embaixadas em cada país numa lógica descentralizada; (ii) envolvimento maior com a
comunidade científica através de encomendas de trabalhos de consultadoria e de análise
prospectiva sobre as relações de Portugal com o país em questão e as oportunidades a
explorar; (iii) recrutamento de quadros locais qualificados oriundos da diáspora para as
estruturas da representação diplomática; (iv) maior articulação com as associações
portuguesas da diáspora tendo em vista um reforço da participação dos membros da
diáspora na vida política do país de destino. A criação recente de um Conselho da
Diáspora Portuguesa a vel global, composto por 300 notáveis e assumindo uma lógica
centralizada, não parece ser a resposta mais adequada nem um substituto para um
mecanismo de articulação local, tendo em conta a necessidade de criação de redes de
apoio locais, essencial para a implementação da segunda fase da diplomacia económica.
O desenvolvimento da paradiplomacia é uma outra dimensão informal essencial, em
especial nas áreas da “low politics” envolvendo uma ação mais descentralizada no país
45
A diáspora portuguesa tem crescido nos últimos anos e atingirá atualmente uma dimensão global estimada
superior a 5.5 milhões de pessoas (portugueses e de origem portuguesa) repartido por diferentes países
sendo as principais comunidades localizadas nos EUA (1.380.837), França (1.190.798), Brasil (612.203),
Canadá (429.850), Suiça (288.465), Venezuela (268.500), África do Sul (200.000), Reino Unido (171.497),
Alemanha (171.166), Espanha (148.789), Angola (113.194), Luxemburgo (99.730) e Austrália (50.157)
dados oficiais do Observatório da Emigração 2012.
(http://www.observatorioemigracao.secomunidades.pt/np4/11, consultado em 15.9.2013).
46
Miguel Santos Neves e Annette Bongardt, 2006, The role of Overseas Chinese in Europe in Making China
Global: the case of Portugal, INA Papers, nº 29.
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alvo, com uma estratégia proactiva e resposta eficaz à paradiplomacia dos governos
regionais e locais estrangeiros, muitos deles associados às regiões de conhecimento mais
dinâmicas no mundo. Nesta perspectiva deverá ser atribuída maior prioridade à
promoção das relações diretas com autonomias espanholas, com algumas províncias
chinesas que têm uma paradiplomacia muito ativa, com alguns Estados brasileiros, com
Estados norte-americanos, com Estados indianos e seleção de um ou dois parceiros
privilegiados nas economias emergentes
47
.
Esta mudança estratégica permiti inverter a tendência de primazia das relações
governo central a governo central que Portugal tem seguido, num efeito de espelho como
resultado de um sistema marcado por excessiva centralização. O ndrome da absorção
nas relações com o Governo central tem produzido escassos resultados uma vez que as
economias mais dinâmicas têm um elevado vel de descentralização política e
económica e os respectivos governos centrais têm cada vez menos poder de decisão em
matérias económicas assim como de cultura, ensino e investigação. Tal implica apostar
na celebração de acordos internacionais com governos sub-nacionais e no
desenvolvimento de relações de proximidade institucional.
A inexistência de regiões de conhecimento organizadas e com lideranças proactivas em
Portugal, em parte resultado da não-regionalização, implica algumas limitações na nossa
capacidade de competir no mercado global e tirar maior partido da participação neste
fenómeno da paradiplomacia. Contudo, mesmo no quadro atual de um modelo
centralizado, existem oportunidades uma vez que esses governos sub-nacionais têm
interesse significativo no relacionamento direto com governos centrais estrangeiros.
Existem evidentes sinergias entre estes dois canais informais, uma vez que a diáspora
portuguesa em alguns países está fortemente integrada em comunidades locais, em
alguns casos membros da diáspora integram governos regionais ou locais, e pode, por
conseguinte, ter um papel ativo no acesso e no reforço de laços institucionais
descentralizados. Por outro lado, mantêm em muitos casos ligações ás regiões de origem
em Portugal o que permite funcionar também no sentido inverso.
A terceira dimensão envolve a aposta na criação e gestão de um sistema de inteligência
económica eficaz
48
, envolvendo a recolha, processamento e análise prospectiva e uso de
informação e conhecimento para melhorar a eficiência de atores económicos
49
. Este é
um elemento decisivo para apoiar a decisão e a definição de uma estratégia de diplomacia
económica como demonstram as experiências dos EUA, Reino Unido, França, Alemanha
ou China. Um aspecto critico é o conhecimento tácito, de qualidade, que implica relações
“face to face” e relações de confiança, que permitem melhor analisar os comportamentos
de atores em mercados externos, identificar e explorar oportunidades e prever
antecipadamente ameaças. Nestes termos, esta dimensão depende do funcionamento
eficaz das redes e da capacidade de articulação com a diáspora, das relações com
governos sub-nacionais e empresários estrangeiros, fontes alternativas à informação
acessível que permitem escapar à armadilha do ciberespaço.
47
Sobre a paradiplomacia e regiões do conhecimento ver Miguel Santos Neves, 2010 Paradiplomacy,
Knowledge Regions and Consolidation of Soft Power, in Janus.net, E-Journal of International Relations, nº1.
48
Ver com interesse IEEE, 2013, La inteligencia económica en un mundo globalizado, Cuadernos de Estrategia
162, Instituto Español de Estudios Estratégicos, Ministério de la Defensa.
49
Baulant, C. 2004, Les outils de l’intelligence économique face aux défis de la mondialisation, colloque du 28
septembre 2004 à Angers, 54 pages, disponible sur www.master-iesc-angers.com.
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Finalmente, o desenvolvimento de mecanismos de regulação quer de soft law quer de
hard law, instrumentos jurídicos fundamentais que garantem os direitos dos atores
nacionais e contribuem para a redução do risco e incerteza. Um caso paradigmático de
instrumentos de hard law são os tratados bilaterais de promoção e proteção do
investimento (BITs) que devem enquadrar os processos de investimento direto português
no exterior, protegendo os investidores contra riscos políticos designadamente a
expropriação. Contudo, Portugal descurou esta dimensão durante bastante tempo e
recentemente se registou algum progresso. Atualmente existem 39 tratados em vigor e
11 celebrados, mas ainda não em vigor, embora a maioria tenha sido celebrada
recentemente depois de 2005 tendo a maioria ficado operacional a partir de
2009/2010. A celebração de acordos internacionais com governos sub-nacionais em
áreas tão diversificadas como o comércio, turismo, ciência e tecnologia, ensino, constitui
uma dimensão essencial da paradiplomacia, tal como os instrumentos de soft law que
envolvam os atores o-estatais. Em suma, está em causa o desenvolvimento da
terceira fase mais complexa da diplomacia económica que Rana designa de “regulatory
phase” de natureza sistémica.
5. Conclusões
A diplomacia económica desenvolveu-se na década de 90 no pós-Guerra Fria como uma
das estratégias de resposta aos desafios interligados da globalização e da
sociedade/economia do conhecimento e à emergência da geoeconomia. O processo de
globalização, multidimensional e assimétrico, coloca crescentes desafios aos Estados
soberanos e às respectivas sociedades que são confrontados com um processo de
concentração do poder económico e a formação de conglomerados que consolidam
posições dominantes em vários sectores da economia global e interferem crescentemente
na esfera política. Esta oligopolização da economia global limita a concorrência
internacional, gera ineficiências e crescente desigualdade e pobreza que ameaçam a paz
e a coesão social. Os Estados enfraquecidos, em primeira linha pela erosão da sua base
fiscal em resultado de um processo concertado de evasão fiscal de grande escala, são
impotentes para exercer uma regulação eficaz, controlar o abuso de poder e salvaguardar
os interesses da maioria protegendo-a do síndroma do “too big to fail”. Numa economia
global distorcida e sujeita a crescentes restrições às regras da concorrência, não basta a
um país e às suas empresas serem competitivos e eficientes para terem sucesso, existem
factores o-económicos fundamentais que requerem articular e implementar uma
diplomacia económica que não se limita nem à economia nem à diplomacia.
Contrariamente à visão tradicional, o conceito de diplomacia económica implica um novo
paradigma de ação externa, não apenas retoques numa diplomacia tradicional dominada
pela dimensão política, para responder aos desafios da geoeconomia. Esta mudança
implica três vectores essenciais: uma abordagem holística multidisciplinar articulando
economia, política, cultura, segurança, considerando as interligações e os efeitos
cruzados; uma abordagem multi-actor rejeitando a ideia de que se trata de um processo
exclusivo ou dominado pelos Estados, pelo contrário pressupõe uma parceria cooperativa
entre os Estados e os atores não-estatais com crescente influência e domínio de canais
informais, operando em rede; uma abordagem multinível capaz de articular diferentes
níveis geográficos de ação e jurisdição, incorporando de forma ativa o nível sub-nacional.
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A análise desenvolvida permite fundamentar três conclusões fundamentais relativamente
à construção de uma diplomacia económica em Portugal. Em primeiro lugar, o argumento
central é o de que não existe ainda uma diplomacia económica consolidada em Portugal,
não obstante a utilização frequente e pouco rigorosa do conceito, prevalecendo ainda um
modelo tradicional de diplomacia comercial. Embora na última década tenham sido
ensaiadas tentativas de reformar o sistema de ação externa, orientadas para a criação
de uma diplomacia económica, a verdade é que algumas não chegaram a ser
implementadas e a mais recente, em 2011, não atingiu o limiar da mudança de
paradigma estando ainda longe de adoptar uma abordagem multi-actor, mantendo a
visão state-centric, e de dinamizar redes internas e externas ou explorar uma abordagem
multitrack.
Contudo, e no domínio restrito da organização institucional dos atores blicos foi
adoptada uma orientação correta em 2011 no sentido de promover uma transição de um
modelo de competição, de inspiração francesa, para um modelo unificado sob liderança
do MNE, a qual foi recentemente revertida confirmando a tendência de evolução errática,
hesitações e a falta de continuidade das políticas públicas nesta área durante a última
década. Em suma, o momento atual é marcado pela transição de uma diplomacia
comercial para uma diplomacia económica, mas para aquilo que se pode designar como
a primeira fase de desenvolvimento da diplomacia económica, a de “promotion”.
Em segundo lugar, as análises de algumas dimensões das relações económicas externas
de Portugal na última década demonstram que a evolução menos positiva quer do
comércio externo quer do investimento estrangeiro, tem causas estruturais e resulta da
não adaptação ás novas condições de funcionamento da economia global e não de
factores meramente conjunturais como o impacto recessivo da crise da dívida soberana
em que o país tem estado envolvido. Não sendo o único factor ou o determinante, a
ausência de uma diplomacia económica ativa foi certamente um dos factores relevantes
na medida em que impediu o controlo dos riscos, a minimização dos impactos negativos
e o aproveitamento de oportunidades.
O elevado grau de concentração de mercados de exportação e um reduzido número de
parceiros, a financiarização dos fluxos económicos e a oligopolização dos mesmos,
tornam por um lado a diplomacia económica urgente, mas levantam também obstáculos
à sua efetiva implementação. Esses obstáculos são mais políticos do que financeiros.
Resultam muito mais da falta de vontade política, da ausência de uma ideia clara sobre
os objectivos ou da resistência da burocracia envolvida na ação externa à mudança, ou
da continuada exclusão das PMEs, do que da falta de meios financeiros do Estado na
exata medida em que a ativação de redes e a participação de atores não-estatais também
permite a partilha de recursos.
Em terceiro lugar, o avanço do processo de transição para uma efetiva diplomacia
económica e a realização das diversas fases do seu desenvolvimento implica parcerias
ativas entre o Estado, empresas, ONGs, think tanks universidades, câmaras de comércio
e opções fundamentais a três veis: organizacional; operacional e de ação prática no
terreno e; inovação, especialmente orientada para os aspectos informais relacionados
com o envolvimento estratégico da diáspora portuguesa, a gestão da paradiplomacia e a
consolidação de um sistema de inteligência económica, dimensões que se articulam e
reforçam mutuamente.
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O desafio da diplomacia económica é um dos mais significativos e prementes para o
futuro do país e exige uma significativa mobilização da sociedade portuguesa bem como
a reforma do Estado, que continua a ter um papel central embora não exclusivo neste
processo, em especial na forma como se relaciona com a sociedade e, sobretudo, um
aumento do vel de capital social que permita consolidar níveis de confiança e
capacidade de cooperar para atingir objectivos comuns entre os diferentes atores
relevantes.
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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Vol. 8, Nº. 1 (Maio-Outubro 2017), pp. 126-150
CONSTITUIÇÃO E RELIGIOSIDADE DA/NA ORDEM CONSTITUCIONAL
DO IMPÉRIO NACIONAL-SOCIALISTA
Pedro Velez
pedrorbavelez@hotmail.com
Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa/FDUNL
(Portugal). Doutor em Direito pela FDUNL, na especialidade de Ciências Políticas (tese intitulada:
Constituição e Transcendência: os casos dos regimes comunitários do entre-guerras). Nos
últimos anos, tem-se dedicado à investigação e ao ensino, leccionando disciplinas de direito
público (Introdução ao Direito Público; Direito Constitucional e Direito Constitucional Português;
Direito Administrativo), na Escola de Direito da Universidade Católica Portuguesa-Porto, na
FDUNL e na Universidade Europeia. Tem também leccionado (FDUNL) disciplinas histórico-
jurídicas História das Instituições (Portuguesas); História do Estado em co-regência com o
Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral.Áreas de interesse: tipos históricos de Estado, formas
políticas, regimes políticos/formas de governo e sistemas de governo, constitucionalismo,
relações entre o político-constitucional e o religioso.
Resumo
Neste artigo, analisar-se o regime nacional-socialista enquanto realidade político-
constitucional. Fá-lo-emos a partir de uma nova maneira de olhar os fenómenos político-
constitucionais, interpretando-os como inscritos num terreno de religiosidade.
Procurar-semostrar que o regime nacional-socialista se caracterizou por ter identificado a
comunidade política uma comunidade política racialmente interpretada e elevada a Absoluto
com uma personalidade histórica empírica tida como personalidade eminentemente
comunitária. Sugerir-se-á que nisso e por isso constitui um caso sui generis, quer num mapa
de regimes convencionalmente classificados como “autoritários e/ou totalitários de direita”,
quer no mapa maior da política contemporânea.
Palavras-chave
Nacional-socialismo; III.º Reich; Constituição; Religião; Cristianismo
Como citar este artigo
Velez, Pedro (2017). "Constituição e religiosidade da/na ordem constitucional do império
nacional-socialista". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 8, N.º 1, Maio-
Outubro 2017. Consultado [online] em data da última consulta,
http://hdl.handle.net/11144/3036
Artigo recebido em 5 de Abril de 2016 e aceite para publicação em 22 de Março de 2017
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Constituição e religiosidade da/na ordem constitucional do império nacional-socialista
Pedro Velez
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CONSTITUIÇÃO E RELIGIOSIDADE DA/NA ORDEM CONSTITUCIONAL
DO IMPÉRIO NACIONAL-SOCIALISTA
Pedro Velez
No que segue deter-nos-emos na estruturação constitucional do regime nacional-
socialista. Almejar-se-á mostrar que o regime nacional-socialista se caracterizou por ter
identificado a comunidade política, racialmente interpretada e elevada a Absoluto, com
uma personalidade histórica empírica tida como personalidade eminentemente
comunitária; e que nisso e por isso se constitui como um caso constitucional sui generis
no mapa da política contemporânea.
Perspectivas analíticas
Analisaremos a estruturação constitucional nacional-socialista a partir de uma nova
maneira de olhar o político-constitucional, uma maneira que se não atém tão-só a formas
ou instituições, ou se limita apenas a sondar uma ocasião favorável ou uma eventual
ocasião social-política “determinante”, ou se fica pela “captação” de uma materialidade
axiológica “fundadora” de baixa intensidade (“demasiado humana”, digamos assim)
momentos do constitucional certamente “reais” e importantes.
Na interpretação das formas constitucionais, tomaremos como grande “hipótese de
trabalho directora” a ideia segundo as “formas das coisas públicas”
1
exprimem e se
reconduzem a escolhas de um “Bem supremo”, ou “Bem Soberano”. Admitiremos ainda
que o Supremo Bem possa ser determinado em termos de distintas intensidades e
abrangências valorativas (“axiofânicas”); assim, poderá ou não ser interpretado como
um Absoluto, como fonte única, exclusiva, ilimitada, incondicional de toda a
normatividade/de todos os valores/de toda a autoridade axiológico-normativa, podendo
eventualmente ser erigida a substância de uma forma de vida ou mesmo de uma ordem
universal-civilizacional.
Olharemos, pois, à luz uma certa “(re)visão teórica”, o político-constitucional como
“lugar” de religiosidade, de res sacrae
2
, de instanciações ou determinações do “religioso”
ou do “sagrado”.
1
Apropriamo-nos aqui de um conceito alheio de filiação aristotélica e cujo sentido (constituição como forma
fundamental da comunidade política) não deixamos, aliás, de incorporar neste estudo Maria Lúcia Amaral,
A Forma da República: Uma introdução ao estudo do direito constitucional, reimp. 1.ª ed., Coimbra Editora,
Coimbra, 2012.
2
Para utilizar uma expressão cara ao conhecido jusconstitucionalista e jusadministrativista Ernst Forsthoff
vide Ernst Forsthoff, Res sacrae, Archiv des öffentlichen Rechts, vol. 31, 1940, pp. 209 a 254.
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Não deixaremos também de ter presente a intuição de Carl Schmitt segundo a qual o
político constitucional moderno não pode deixar de ser compreendido como lugar de
«coisas mistas» («res mixtae»), como decisão (“negociação”) sobre as fronteiras entre
a política propriamente moderna e a “religião-tradicional”
3
.
Adoptamos um tal quadro analítico não porque se afigura o método mais apto a captar
a “estrutura profunda” dos fenómenos constitucionais em geral, mas também, e
sobretudo, porque olhar os também chamados “regimes não democráticos de direita” do
entre-guerras de um modo que sugerimos permitirá aumentar a capacidade analítica
disponível para sobre eles fazer luz.
Vejamos então o fácies político-constitucional nacional-socialista, tentando captar o
núcleo da sua específica estruturação constitucional.
Ocasião favorável
Em 1918, o Reich alemão é um Estado-Nação recente e ainda in fieri. Nesse mesmo ano,
o Kaiserreich é refundado em moldes liberais-democráticos (República de Weimar)
4
.
No período do entre-guerras, a sociedade alemã regista um complexo de crises
económicas, financeiras, políticas , que vão “produzindo” uma crise existencial latente
e difusa. Em tal contexto, vai emergindo e cristalizando um movimento de massas
veiculando uma visão de uma «ordem nova» integralmente construída a partir da ideia
de «comunidade nacional do Povo Alemão» o movimento nacional-socialista
5
.
A partir de 1930, sob a égide do Presidente von Hindenburg, são ensaiadas tentativas de
superação dos impasses weimarianos; tentativas entre a ditadura comissarial, a
repetição (não-idêntica) do esquema de ordem do II.º Império e a construção de um
novo Estado «Nacionalista», baseado na instituição presidencial, no exército e na
Administração Pública
6
.
Goradas tais tentativas, uma parte da classe governativa ligada ao executivo e de
ideologia Nacionalista, cooptaria o movimento nacional-socialista para o Poder.
Iniciava-
se a «Revolução Nacional»(-socialista). Também aqui emergia «um novo estado para
sustentar o Estado» (Voegelin). Em Janeiro de 1933, o Presidente do Reich, Marechal
3
Vide Carl Schmitt, Political Theology II, The Myth of the Closure of any Political Theology, Polity, Cambridge,
2008 (1970) [Ver também Carl Schmitt, Political Theology: Four Chapters on the Concept of Sovereignty,
The MIT Press, Cambridge, Massachusetts/London, England, 1985, obra publicada originalmente em 1922
e reeditada com um prefácio novo em 1934]. Para uma fundamentação do quadro analítico apresentado no
corpo do texto, ver Pedro Velez, Constituição e Transcendência: os casos dos regimes comunitários do
entre-guerras, Dissertação de Doutoramento, FDUNL, 2013; cfr. também Pedro Velez, Sobre a ordem
constitucional no/do fascismo italiano, em Janus.net, e-journal of international relations, Vol. 7, Nº. 2, Nov.
2016-Abril 2017, pp. 70 e ss.
4
Sobre o pano de fundo subjacente à emergência da constituição nacional-socialista vide: Folko Arends e
Gerhard Kümmel, Germany: From Double Crisis to National Socialism, em Conditions of Democracy in
Europe, 191939, cit., 184 a 212; Hans Mommsen, The Rise and Fall of Weimar Democracy, University of
North Carolina Press, Chapel Hill/London, 1995; Eric D. Weitz, Weimar Germany, Promise and Tragedy,
Princeton University Press, Princeton/Oxford, 2007.
5
Sobre este contexto ver também Carl Schmitt, State Ethics and the Pluralist State (1930), em Arthur J.
Jacobson, Bernhard Schlink (ed..), Weimar A Jurisprudence of Crisis, University of California Press,
Berkeley/Los Angeles/London, 2000, pp 300 a 312.
6
Referimo-nos às tentativas dos governos de iniciativa presidencial (Brüning, von Papen, von Schleicher) de
reconstruir a ordem constitucional weimariana na base da instituição presidencial. Sobre este período
político-constitucional, pode ver-se David Cumin, Carl Schmitt: Biografie politique et intellectuelle, Les
Éditions du Cerf, Paris, 2005, pp. 93 e ss.
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Paul von Hindenburg,
nomearia Chanceler do Império, seguindo as formas
constitucionais, o chefe do movimento nacional-socialista, Adolf Hitler
7
.
A «Revolução Nacional»
A referida nomeação abriria um tempo de refundação constitucional
8
; um estado de
excepção possibilitador de desvios e esvaziamentos em relação à Constituição de
Weimar, e, simultaneamente, da cristalização de um soberano capaz de decidir (e sair)
do mesmo (para evocar aqui também a teoria constitucional de Carl Schmitt, neste
aspecto contemporânea e celebremente “actualizada” por um Giorgio Agamben).
A 21 Março de 1933, por ocasião da abertura do novo Reichstag em Postdam, Adolf Hitler
anunciaria os objectivos do Governo a que presidia, dito «de recuperação nacional»
«Queremos restaurar a unidade de espírito e de vontade da Nação Alemã. Queremos
preservar a nossa personalidade étnica, com todos as energias e valores inerentes, como
a eterna fundação da nossa vida», diria o Chanceler. Em 23 Março de 1933 declinaria de
novo um «Programa de reconstrução da Nação alemã», visando o estabelecimento de
uma «verdadeira comunidade nacional», apoiada na «unidade na liderança da Nação»
(implicando a «supressão do marxismo» e uma geral «eliminação de elementos
oposicionistas»). As incursões “pela filosofia do direito” que tiveram lugar nesta ocasião
eram sumamente eloquentes:
«o objecto primário da nossa organização jurídica é o servir para
manter a existência da comunidade nacional. Não o indivíduo, mas
a Nação inteira deve ser a principal preocupação do direito. A única
base possível do direito só pode ser a existência da Nação»
9
.
7
Nas eleições legislativas de Setembro de 1930, o NSDAP recolheria 18,3 % votos (107 assentos
parlamentares). O seu líder, Adolf Hitler, obtém 30 % votos na primeira volta e 37 % na segunda volta das
eleições presidenciais disputadas em Março-Abril de 1932. Neste último ano também, nas eleições
legislativas de Julho de 1932, o movimento torna-se o maior partido parlamentar (38 % dos votos e 230
assentos no Reichstag). Bloqueada a ascensão de Hitler à governação e decretada a dissolução do Reichstag
por von Hindenburg, logo em Novembro de 1932 teriam lugar novas eleições legislativas. A partir da posição
representativa nelas conquistada 33, 1 % votos e 196 assentos , e ainda que esta não espelhasse uma
trajectória ascensional, o NSDAP viria então a ser chamado ao Poder.
8
Sobre a “reconstrução” do politico-constitucional levada a cabo pelo nacional-socialismo, vide: W. Jellinek,
Le Droit Public de l’Allemagne en 1933, em Annuaire de l’Institut International de Droit public-1934, 1934,
pp. 43 e 76 e Le Droit Public de l’Allemagne en 1934, em Annuaire de l’Institut International de Droit public-
1935, 1935, pp. 350 a 363; Carl Schmitt, I caratteri essenziali dello Stato Nazional Socialista, em Oreste
Ranelletti/Gaspare Ambrosini/Carl Schmitt, Gli Stati europei a partito politico único, Panorama, Milano,
1936, pp. 17 a 52 e State, movement, people: the triadic structure of the political unity (1933), vers.
inglesa, em Carl Schmitt; Simona Draghici (trad.), State, movement, people: the triadic structure of the
political unity (1933); The question of legality (1950), Plutarch Press, Corvallis, OR., 2001, pp. 3 a 52;
Martin Broszat, L’État hitlérien, L’origine et l’évolution des structures du troisième Reich, Fayard, Paris,
1985; R. C. van Caenegem, Uma Introdução Histórica ao Direito Constitutional Ocidental, vers. portuguesa,
Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2009, pp. 332 e ss.; Os principais dispositivos jurídicos que
concretizaram a revolução constitucional descrita neste capítulo podem ser vistos nos volumes de 1934,
1935 e 1936 do Annuaire de l’Institut International de Droit Public, pp. 76 e ss., 364 e ss., e 89 e ss.,
respectivamente [entrada «Allemagne»].
9
Cesare Santoro, Hitler Germany as seen by a foreigner, 3.ª edição inglesa, Internationaler Verlag, Berlim,
1939, pp. 35 e ss. Sob proposta do Chanceler Hitler, o Presidente do Reich decretaria a dissolução do
Reichstag a partir de 1 de Fevereiro de 1933, tendo ficado estabelecido que as novas eleições teriam lugar
a 5 de Março de 1933. Um decreto de 4 de Fevereiro para a «Protecção do Povo Alemão» facilitaria a sua
preparação, permitindo a suspensão de jornais e ajuntamentos eleitorais contrários ao NSDAP. O conhecido
«Decreto para a protecção Povo e do Estado» Verordnung zum Schutz von Volk und Staat»), o decreto
presidencial de 28 de Fevereiro de 1933 emanado, ao abrigo do artigo 48.º da Constituição de Weimar, na
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Com a aprovação, pelo Reichstag, da Lei de 24 de Março de 1933, «Lei para a supressão
da miséria do Povo e do Reich» Gesetz zur Behebung der Not von Volk und Reich»),
conhecida como «Lei Habilitadora» ou «Lei de Plenos Poderes» (Ermächtigungsgesetz),
o Governo passa a poder emanar leis em sentido formal e leis de modificação da
Constituição, afastando-se a estrutura institucional do modelo do governo parlamentar
10
.
A nova posição constitucional permitiu à chefia nacional-socialista actuar uma série de
transformações constitucionais.
A nova liderança alemã acabaria a construção estatal-
nacional alemã, com a «gleichschaltung» das organizações e dos poderes não nacionais
socialistas.
O Bundesstaat daria rapidamente lugar a um Einheitsstaat, com a supressão do
federalismo, dos Estados alemães enquanto realidades estaduais.
A Lei de
«harmonização do Reich» de 31 de Março de 1933 e a Lei de 7 de Abril de 1933 «sobre
os Governadores do Reich» (Reichsstatthalter) afectariam num sentido centralizador a
forma de organização político-administrativa do Reich. A Lei de 30 de Janeiro de 1934,
dita de «reconstrução do Reich», emanada pelo Reichstag nacional-socialista, privaria os
Estados-federados alemães de estadualidade, “administrativizando-os” (ex vi art. 3.º)
11
.
A Lei de 14 de Fevereiro de 1934 relativa à supressão do Reichsrat poria um termo à
existência da segunda câmara. A Lei sobre os Governadores do Reich de 30 de Janeiro
de 1935 e a Lei de 30 de Janeiro de 1935 sobre o Governo Municipal desenvolveriam e
completariam tal linha de desenvolvimento constitucional.
É posto um fim ao «Estado pluralístico de partidos» (C. Schmitt), sendo o Partido
Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães erigido a sede institucional de suporte e
segregação da liderança política, da nova classe governativa, a base institucional de
defesa, desenvolvimento e divulgação de uma nova teologia civil referida à comunidade
política alemã. Uma Lei de 14 de Julho de 1933, «sobre a interdição da fundação de
novos partidos», declararia o NSDAP o único partido político existente na Alemanha
(§1.º). A Lei de 1 de Dezembro de 1933 sobre «a identidade entre Partido e Estado»,
por sua vez, viria a inserir positivamente o Partido no Estado. O Partido Nacional-
Socialista era declarado representante da «ideia estatal Germânica» e como estando
«indissoluvelmente fundido com o Estado» (§1.º/1), a tulo de «corporação de direito
sequência do célebre incêndio do Reichstag, previa um estado de emergência de longa duração, destinado,
nos seus próprios termos, a proteger o Estado contra os actos de violência comunistas que o colocavam em
perigo, suspendendo direitos fundamentais como: o direito à liberdade pessoal, o direito a não ser detido,
as liberdades de expressão, de imprensa, de reunião, de associação, os direitos à inviolabilidade da
correspondência e comunicações, da propriedade e do domicílio.
10
Traduzindo a estratégia hitleriana de «revolução legal», o seu preâmbulo referia expressamente que a lei
«cumpria os requisitos estabelecidos para a emanação de legislação emendando a Constituição». O referido
acto normativo fazia do governo um legislador normal: previa, no seu art.1.º, que «as leis podiam (…) ser
igualmente editadas pelo Governo do Reich» (as leis podiam pois ser «Regierungsgesetze»); as leis editadas
pelo governo deviam ser promulgadas pelo Chanceler e publicadas no Reichsgesetzblatt (art.3.º). Depois
da emanação deste acto normativo, muito poucas leis seriam emanadas pelo Reichstag durante o Terceiro
Reich o Reichstag aprovaria, designadamente, as leis de renovação da Lei de Plenos Poderes, a Lei de
Reconstrução do Reich de Janeiro de 1934, bem como as denominadas Leis de Nuremberga de 1935. A Lei
de Plenos Poderes operava também (ex vi art. 2.º) a transferência do poder de emenda da Constituição
para o governo, criando, porém, garantias de preservação de certas instituições: as leis emanadas pelo
governo não poderiam afectar as instituições do Reichstag e do Reichsrat enquanto tais, bem como os
poderes do Presidente do Reich. Nos primeiros tempos, houve quem, na comunidade jurídica, visse em tal
acto uma espécie de “constituição transitória”. A vigência de tal acto legislativo viria a ser sucessivamente
confirmada e prolongada, como já se sugeriu e adiante se verá.
11
Um decreto de 2 de Fevereiro transmitiria, porém, aos antigos Estados federados alemães uma parte dos
direitos soberanos para os exercerem em nome do Reich.
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público» (§1.º/2). Tal instrumento jurídico punia também quem tentasse manter a
organização de um outro partido político ou formar um novo partido político. Nele se
previa, outrossim, que o “Vicário”/“Delegado” do Chefe do Partido, que o substituiria na
gestão corrente do partido, bem como o chefe do estado-maior da força paramilitar
partidária então existente (Secções de Assalto), fossem membros do Governo do Reich
12
.
Para assegurar «a mais estreita colaboração dos serviços do Partido e das SA com o
serviço blico», os membros do “complexo” NSDAP foram investidos de «deveres
superiores» não só em face do seu Chefe (do Führer), mas também do «Povo-Nação
(Volk)» e do «Estado» §3.º/1
13
. Mais tarde, a Lei de 26 de Janeiro de 1937
(Beamtengesetz) estabeleceria que uma pessoa nomeada para um cargo na função
pública deveria estar «imbuída de um ponto de vista Nacional-Socialista»; em tal acto
normativo, o NSDAP era definido «como porta-voz da vontade do povo», como «força
vital por trás do conceito do Estado alemão», Estado por ele «transportado». Com a «Lei
sobre a bandeira do Reich», aprovada no célebre Congresso de Nuremberga, o emblema
do partido nacional-socialista é erigido a símbolo da comunidade política; nas palavras
de Carl Schmitt:
«[O] Reich alemão tem agora uma única bandeira a bandeira do
movimento nacional-socialista e esta bandeira não é composta
apenas de cores, mas também tem um grande, verdadeiro símbolo:
o símbolo da suástica que evoca o povo»
14
.
O mundo laboral seria também reorganizado numa base comunitária nacional-estatal.
Os sindicatos seriam suprimidos logo em Maio de 1933 (decreto de 2 Maio de 1933). A
empresa seria posteriormente “reinstitucionalizada” como comunidade empresarial
(Betriebsgemeinschaft), para incremento do «bem empresarial e do bem comum do Povo
e do Estado», com a emanação da Lei de 20 Janeiro de 1934 sobre a «Organização do
Trabalho Nacional»
15
. Um decreto de 24 de Outubro de 1934 criaria a «Frente Alemã do
Trabalho» (Deutsche Arbeitesfront), organização unitária de empregadores e
trabalhadores, visando a «formação de uma verdadeira comunhão nacional/popular e
laboral de todos os alemães», de modo a que cada um pudesse estar em «condições
intelectuais e físicas de ocupar o seu posto na vida económica da Nação» (art.2.º)
16
.
Esboçar-se-ia também a criação de corpos” e câmaras profissionais
17
. Ficou, porém,
claro que, para utilizar os termos constantes do preâmbulo de uma lei de 22 de Setembro
de 1933, «a instituição de grupos profissionais não é, no seu conjunto, a edificação de
12
Caberia ao Chefe do NSDAP, ao Führer, decidir sobre o seu estatuto (§1.º/2)
13
Previu-se a existência de uma jurisdição especial do Partido e das Secções de Assalto para o conhecimento
de casos relacionados com a lesão de tais deveres §3.º/2.
14
Cfr.
Carl Schmitt, The constitution of Freedom (1935), em Arthur J. Jacobson, Bernhard Schlink (ed.),
Weimar A Jurisprudence of Crisis, cit., p. 325.
15
A empresa-comunidade organizar-se-ia em torno de um chefe, o proprietário da empresa (tipicamente), e
do seu séquito, empregados e operários. Junto do chefe da empresa, deveria funcionar um conselho, com
a incumbência de desenvolver a confiança recíproca no interior da comunidade empresarial,
designadamente. O regulamento empresarial, a lei interna da empresa”, deveria servir «o bem da empresa
e da comunidade nacional». Funcionários estatais comissários (Treuhänder) “tutelariam” a empresa-
comunidade.
16
No seio da Frente, funcionaria a célebre Kraft durch Freude, encarregue da bildund nacional-comunitária
das massas trabalhadoras, ocupando-se da organização do seu tempo recreacional.
17
Note-se também que na Frente Alemã do Trabalho se admitia o enquadramento interno dos seus membros
por profissões (art.5.º).
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um Estado num Estado nem mesmo ao lado dele, mas é o Estado ele próprio na sua
forma nova» A ideia da existência de um senado corporativo (reunindo os reitores das
universidades, o alto clero, designadamente) na ordem nacional-socialista, proposta por
Wilhelm Frick (Ministro do Interior de 1933 a 1943), e que recordava o detestado
“pluralista” Gran Consiglio del Fascismo, seria explicitamente posta de lado.
«Novos modos e ordens»
A comunidade política receberia uma ordenação especificamente nacional-socialista.
O corpo político foi sendo reconstruído a partir do ideal de uma comunidade nacional (-
popular) de base racial. A Lei de 7 de Abril de 1933 sobre a reorganização da função
pública, bem como as leis de Outubro de 1933 sobre a profissão de jornalista e a profissão
de advogado (leis de 4 de 7 de Outubro, respectivamente), incorporando um princípio de
exclusividade racial alemã no acesso à função pública e às referidas profissões, ou a Lei
de 14 Julho de 1933 sobre portadores de doenças hereditárias autorizando a sua
eliminação do processo de reprodução, marcariam os primeiros tempos de um tal
processo.
Com a emanação da «Lei sobre os cidadãos do Reich», uma das célebres Leis de
Nuremberga de 15 de Setembro de 1935, estabelecer-se-ia definitivamente um
destinguo entre dois círculos de cidadania, atendendo-se simultânea e cumulativamente
ao que era tido como uma pertença nacional-racial e a uma exigência de demonstração
de pietas em face da comunidade política. Num círculo geral, mais do que cidadãos,
reentrariam súbditos: segundo o § 1.º do referido dispositivo jurídico
«[É] cidadão do Estado (Staatsbürger) aquele que pertence à
associação de protecção do Reich alemão e está por isto
particularmente obrigado em relação a este».
Um segundo e restrito círculo exprimia uma pertença propriamente dita à civitas
germanica no § 2.º lia-se:
«É somente cidadão do Reich o nacional alemão que é de sangue
alemão ou aparentado e que prove pela sua conduta que tem a
intenção e a qualidade requeridas para servir fielmente o povo e o
Reich alemães». Declinando um idêntico princípio, a «Lei para a
protecção do sangue alemão e da honra alemã» uma outra lei de
Nuremberga , evocando «a pureza do sangue alemão» como «a
condição da manutenção do povo alemã e «uma vontade
inflexível de assegurar para sempre o futuro da Nação alemã»,
interditava «os casamentos entre judeus e nacionais alemães de
sangue alemão ou aparentado»
18
.
18
De acordo com informação de Ernst Rudolf Huber, em 1941 o Grande Reich Alemão articulava-se
distinguindo as seguintes posições jurídicas subjectivas e comunitárias, da seguinte forma: i) portadores
de sangue alemão membros do Povo (Volkszugehörige), súbditos do Estado (Staatsangehörige) e cidadãos
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Por outro lado, o poder político foi sendo progressivamente transferido para a
personalidade histórica de Adolf Hitler, Führer do movimento nacional-socialista;
transferência em que também parece ter pesado um movimento bottom-up de
construção de ordem relativamente espontâneo, com a difusa projecção pelas “massas
alemãs” na figura de Adolf Hitler do idem sentire de republica e de uma visão
monárquica-sacral do Poder
19
. Atente-se, por exemplo, na generalização, de baixo para
cima, da designação «mein Führer», apropriada enquanto “símbolo-político” significando
algo distintivamente alemão.
Em 1933 pairava no ar a compreensão da nova ordem em gestação como
«Führerstaat», como ordem pessoal, uma ordem “consubstanciada”, não numa norma
ou instituição impessoal, mas numa pessoa concreta
20
. Na purga “aniquiladora” da
liderança das SA de 30 de Junho de 1934, justificando os actos que conduziram à
“domesticação” das SA como actos de ordem, como actos de autodefesa do Estado
dimanando de autoridade originária, A. Hitler proclamar-se-ia «enquanto Führer,
Supremo Juiz do Povo Alemão»
21
.
O artigo 4.º da Lei de 30 de Janeiro de 1934 relativa «à reconstrução do Reich», lei
aprovada no Reichstag por unanimidade, havia conferido ao Governo a plenitude do
poder constituinte. Com base nisso, a «Lei sobre o Chefe do Estado» de 1 de Agosto de
1934, promulgada na véspera da morte de Paul von Hindenburg como devendo entrar
em vigor no momento da morte do Presidente (vide § 2 da referida lei), o que
efectivamente veio a acontecer a 2 de Agosto de 1934, estabeleceria a transferência das
funções e competências do Presidente do Reich para o «hrer e Chanceler do Reich»
Adolf Hitler; segundo a letra do seu §1.º: «as antigas competências do Presidente do
Reich passam ao Führer e Chanceler do Reich Adolf Hitler». Por ordem expressa de Hitler
via carta de 2 de Agosto dirigida ao Ministro do Interior do Reich , o título oficial do
incumbente do novo “cargo” devia ser precisamente «Führer und Reichskanzler»
22
. Todos
os funcionários públicos, todos os soldados e todos os hierarcas do Partido Nacional-
do Reich (Reichsbürger), compondo o “núcleo duro” do Reich; ii) portadores de sangue de espécie
aparentada considerados como membros do Povo, súbditos do Estado e cidadãos do Reich (Vênedos,
Mazures, por exemplo); iii) portadores de sangue de espécie aparentada não integrados na
Volksgemeinschaft mas permanecendo súbditos do Estado alemão e cidadãos do Reich (grupos nacionais
polacos e dinamarqueses no território do antigo Reich); iv) portadores de sangue de espécie aparentada
não aceites na Volksgemeinschaft mas considerados súbditos do Estado alemão (valões, Malmedy e Eupen);
v) portadores de sangue de espécie aparentada que eram somente considerados súbditos do Reich alemão
(polacos nos territórios de leste); vi) portadores de sangue de espécie aparentada súbditos de um Estado
subordinado ao Reich caso dos checos no protectorado; vii) portadores de sangue alemão súbditos de um
Estado estrangeiro (não são cidadãos do Reich; grupos nacionais alemães no estrangeiro); viii) membros
de grupos raciais «estrangeiros» considerados súbditos do Estado mas não cidadãos do Reich (judeus no
território do antigo Reich); ix) membros de grupos raciais estrangeiros não tendo o status nem de súbditos
do Estado nem de cidadão do Reich (judeus nos territórios orientais e em Eupen e Malmedy). Cfr. Ernst
Rudolf Huber, Form and Structure of the Reich (1941), em Arthur J. Jacobson, Bernhard Schlink (ed.),
Weimar A Jurisprudence of Crisis, cit., pp. 330 a 331.
19
Ian Kershaw, Le Mythe Hitler, Image et realité sous le III.e Reich, vers. francesa, Flammarion, 2006.
20
Horst Dreier, Die deutsche Staatsrechtslehre in der Zeit des Nationalsozialismus, em Veröffentlichungen der
Vereinigung der Deutschen Staatsrechtslehrer Heft 60, Walter de Gruyter, Berlin, New York, 2001, p. 48 e
49, muito em especial nota 190.
21
Tais actuações extraordinárias seriam, no entanto, normalizadas posteriormente em termos formais, pela
«Lei relativa às medidas de defesa nacional» de 03. 07. 1934. Esta lei continha os seguintes dizeres
expressivos: «as medidas executadas a 30 de Junho e a 1 e 2 de Julho para suprimir os ataques de alta
traição são legais como legítima defesa do Estado». Sobre este episódio da história constitucional do III
Reich e o seu significado, vide Carl Schmitt, Le Führer protège le droit. À propos du discours d’Adolf Hitler
au Reichstag du 13 juillet 1934, em Cités, n° 14, 2003, pp. 165-171.
22
Em tal carta, Hitler ordenava também a submissão a referendo da referida lei de reunião das funções de
Chefe de Estado e de Chanceler.
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socialista deviam prestar um juramento de fidelidade pessoal ao Führer und
Reichskanzler Adolf Hitler. A partir da emanação de tal lei, a designação da ordem
nacional-socialista como «Führerstaat» (ou «völkischer Führerstaat») “democratiza-se”.
A concentração de poder operada pelo referido instrumento jurídico atingiu o ponto limite
em que o Poder começa a transcender regras jurídico-formais, pondo-se a sua autoridade
directa e imediatamente como Grundnorm. A ordem jurídica era cada vez mais
dominantemente interpretada em termos da ideia de ordem que emanava da estrutura
de Poder e não já em termos de validade processual intra-sistemática da normatividade
constitucional weimariana ou em termos de uma nova legalidade formal em gestação. O
Ministro do Reich Dr. Frick, numa conferência de imprensa realizada em 9 de Janeiro de
1935, afirmaria, referindo-se a Hitler: «todos os poderes estão concentrados na sua
pessoa enquanto ele próprio é apenas responsável perante a Nação». Em 30 de Janeiro
de 1936 podia ler-se no oficialíssimo Völkischer Beobachter:
«O Führer, escrevia Wilhelm Stuckart, reúne nas suas os todos
os direitos e obrigações de Chefe de Partido, de Chanceler do
Império e de Presidente do Império. Mas dizer tal não basta; na
realidade, a função de Führer und ReichsKanzler ultrapassa em
muito a esfera de competência dos dois antigos cargos. A evolução
constitucional fez de Hitler o chefe político supremo do Povo, o chefe
supremo da Administração, o juiz supremo do Povo e o comandante
supremo do exército. O poder legislativo pertence-lhe
exclusivamente. O Führer und ReichsKanzler é juridicamente
também, de acordo com a prática dos últimos anos que criou um
direito costumeiro, a fonte do nosso direito»
23
.
A “constituição” nacional-socialista: a Volksgemeinshaft e o Führer
como Absolutos
A partir de 1935/36, o desafio constitucional parecia ter recebido resposta definitiva. «As
tentativas para codificar constitucionalmente o Estado nacional-socialista» foram
definitivamente bloqueadas por A. Hitler em tal período
24
. Depois disso, Hitler não
deixaria, porém, de fazer promessas aos sectores nacionais-conservadores quanto a uma
futura “formalização judica do político”. No seu grande discurso de 30 de Janeiro de
1937, declararia:
«E finalmente a tarefa do futuro se a de selar para sempre e
eternamente, por uma Constituição, a vida verdadeira do nosso
povo, tal como ela se organizou politicamente, e deste modo fazer
dela a lei fundamental imperecível de todos os Alemãe
25
.
23
Jacques Maupas, L’État National-Socialiste, em Sciences Politiques, 53.º Ano, n.º 11, 1938, p. 516.
24
Vide: Martin Broszat, L’État hitlérien, L’origine et l’évolution des structures du troisième Reich, cit., p. 19.
25
Apud Marcel Cot, La conception hitlérienne du Droit, Bibliothèque de l’Institut de Droit comparé de Toulouse
vol. IV, Duchemin, Paris, 1938, p. 247.
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A continuidade com a legalidade e a legitimidade constitucionais formais weimarianas
não seria jamais interrompida. A vigência da Lei de Plenos Poderes viria a ser
sucessivamente confirmada e prolongada em leis votadas pelo Reichstag a 30.01. 1937
e a 30.01. 1939. Em 10 de Maio de 1943, a “lei de delegação de poderes” seria declarada
lei de duração ilimitada por decreto do Führer.
A Constituição de Weimar, se nunca chegou a ser em globo formalmente abolida o que
aconteceria se uma nova Constituição fosse emanada , foi, porém,
desconstitucionalizada, perdendo a antiga e superlativa força formal que lhe era própria,
e ab-rogada enquanto ordem principiológica. Na Alemanha do Terceiro Reich, cristalizaria
uma nova ordem constitucional, uma ordem directamente e imediatamente material
26
.
No dizer descritivo e apologético de um intérprete coevo do ordenamento constitucional
nacional-socialista (Ernst Rudolf Huber):
«[A] nova Constituição do Reich alemão não é uma constituição no
sentido formal, como era típico do século XIX. O novo Reich não tem
declaração constitucional escrita, mas a sua constituição não escrita
existe na ordem política básica do Reich (…) A vantagem de tal
constituição não escrita sobre uma constituição formal é que os
princípios básicos não se tornam rígidos, mas permanecem num
movimento de contínuo devir. Não são instituições mortas, mas
princípios vivos que determinam a natureza da nova ordem
constitucional»
27
.
Acompanhando e reforçando as linhas de força dos processos de transformação
constitucional com a produção de uma nova linguagem em sede de teoria e direito
constitucionais, um novo discurso jurídico-público articularia os «princípios vivos» da
26
No termo do processo de transformação constitucional actuado pelo nacional-socialismo, os enunciados
linguísticos fragmentários subsistentes do texto weimariano podiam, por exemplo, ser modificados por lei
governamental, por lei do Reichstag ou podiam ser pelo governo ou pelo poder judicial considerados
incompatíveis com o sistema ideológico nacional-socialista. Sobre o “destino” do dispositivo jurídico
weimariano, vide Karl Loewenstein, Dictatorship and the German Constitution: 1933-1937, em The
University of Chicago law Review, vol.4, n.º 4, 1937, pp. 545 e ss. Certos actos legislativos (Lei de 24 de
Março de 1933, por exemplo) chegariam a ser reconhecidos, oficialmente e na comunidade jurídica, como
fundamentais, mas foram-no pela importância de que se revesti(r)am na construção da nova ordem
material de poder pessoal Michael Stolleis, A History of Public Law in Germany 1914-1945, vers. inglesa,
Oxford University Press, Oxford, 2004, pp. 333 e 334.
27
Ernst Rudolf Huber, Constitution (1937), vers. inglesa, em Arthur J. Jacobson, Bernhard Schlink (ed.),
Weimar A Jurisprudence of Crisis, cit., p. 329. Tem sido argumentado que Hitler desejava que a ordem
constitucional in fieri evoluísse “organicamente”, como na Inglaterra, e que nutriria uma aversão especial
a juristas e regras jurídicas. Cfr. também Joseph Goebbels, Journal 1943-1945, Tallandier, Paris, 2005, p.
284, para um testemunho revelador da visão dos dirigentes máximos nacionais-socialistas sobre os juristas
e a sua forma mentis. A propósito de personagens como H. Frank (Presidente da Academia do Direito
Alemão, de 1933 a 1945, e Ministro sem pasta do Reich de 1939 a 1945), Thierack Presidente do Tribunal
do Povo (1936) e Ministro da Justiça do Reich (1942-1945) , Gürtner (Ministro da Justiça de 1932 a 1941),
e Roland Freisler (secretário-geral no ministério da justiça do Reich desde 1933 e presidente do Tribunal do
Povo de 1942 a 1945), Hitler e Goebbels podiam comentar: Frank «reconcilia(-se) com a mulher, mas à
maneira de um jurista»; Thierack, «ainda que melhor que Gürtner, não se despojou dos seus preconceitos
de jurista», pois que «os juristas serão sempre juristas»; Freisler faria pensar que «os juristas estão mais
à vontade quando ocupam o posto situado imediatamente abaixo do posto mais elevado», ocupado o qual
podiam tornar-se nacionais-socialistas fanáticos.
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ordem. A nova ordem assentaria num princípio nacional-comunitário princípio que os
símbolos Volk/Volksgemeinshaft evocavam e, como implicação desse princípio, num
princípio de poder pessoal corporizado no Führer (Führerprinzip)
28
.
Volk/Volksgemeinshaft
Segundo o constitucionalista nacional-socialista Ernst Rudolf Huber:
«[N]ão há povo sem uma unidade objectiva, mas também não o
sem uma consciência comum de unidade (…) O novo Reich alemão
procede do conceito de povo político, determinado pelas
características naturais e pela ideia histórica de uma comunidade
sobre si. O povo político é formado através da uniformidade das
suas características naturais. A Raça é a base natural do povo. Como
povo político, a comunidade natural torna-se consciente da sua
solidariedade e luta para se formar a si própria, para se desenvolver
a si própria, para se defender a si própria, e se realizar a si própria.
O "Nacionalismo" é essencialmente este esforço de um povo que se
tornou consciente de si mesmo em direcção à sua auto-direcção e
auto-realização, em direcção a um aprofundamento e renovação das
suas qualidades naturais»
29
.
A ordem política nacional-socialista identificar-se-ia ou aspirava a identificar-se com uma
comunidade nacional Volk/Volksgemeinshaft interpretada como assente numa base
de homogeneidade rácica, étnica e espiritual; a (relativamente) original (em termos da
história do Estado) determinação racial da comunidade política pareceu, no entanto,
tender a ser interpretada de acordo com uma linha holístico-espiritualística («nós não
concluímos da capacidade de um homem a partir do seu tipo físico, mas sim dos seus
feitos a sua raça», salientaria Hitler no começo dos anos 30), bem como em termos
de comunhão de raças aparentadas, tendo como elemento director a raça rdica-
ariana
30
.
28
Sobre a nova construção da ordem fundamental da comunidade política e sobre estes dois princípios vide:
Horst Dreier, Die deutsche Staatsrechtslehre in der Zeit des Nationalsozialismus, cit., pp. 9 a 72; Oliver
Lepsius, The Problem of Perceptions of National Socialist Law or: Was there a Constitutional Theory of
National Socialism?, em Christian Joerges/Navraj Singh Ghaleigh (eds.), Darker Legacies of Law in Europe,
Hart Publishing, Oxford, 2003, pp 19 a 41; Roger Bonnard, Le Droit et l’État dans la doctrine Nationale-
Socialiste, Librairie Général de Droit & de Jurisprudence, Paris 1936; Marcel Cot, La conception hitlérienne
du Droit, cit.; Carlo Lavagna, La Dottrina Nazionalsocialista del Diritto e dello Stato, Giuffrè, Milano, 1938;
Flaminio Franchini, Lineamenti di diritto amministrativo tedesco in regime nazionalsocialista, em Archivio
Giuridico «Filippo Serafini», Quinta Serie, V., vol VIII, 1942, pp. 115 a 141 («la nuova concezione giuridica
tedesca»).
29
Ernst Rudolf Huber, Verfassungsrecht des grossdeutschen Reiches, Hanseatische Verlagsanstalt, Hamburg,
1939, pp. 153-155.
30
Sobre a concepção racial que constituía parte e parcela da doutrina político-constitucional nacional
socialista, vide: Ulrich Scheuner, Peuple, État, Droit et Doctrine Nationale-Socialiste, em Revue de droit
public et de la science politique, tomo 54, 1937, pp. 44 ss e A. James Gregor, National Socialism and Race
em The European, n.º 11, 1958, pp. 273-91. Para uma “genealogia” da ideia racial, vide Eric Voegelin, The
Growth of the Race Idea, em The Review of Politics, vol. 2, n.º 3, 1940, pp. 283-317.
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A comunidade nacional-popular constituía «o específico e originário valor» (Huber)
31
.
Uma tal comunidade era considerada fonte de verdade e valor, de juridicidade e justiça,
e fim de si própria. Daí a divulgação na doutrina jurídico-pública de máximas como: «a
utilidade colectiva tem preeminência sobre a utilidade individual», «[O] teu povo é tudo,
tu és nada»
32
, «Direito é o que beneficia o povo; não-Direito, o que o lhe causa dano»
33
«Direito é o que convém ao Povo e à Raça» (Robert Ley)
34
, «Justo é o que convém ao
Povo alemão» (Roland Freisler), «o propósito do direito é a manutenção da pureza e da
existência, bem como a protecção e o avanço, do Povo Alemão» (Oberlandesgericht de
Jena). No “discurso constitucional espontâneo” do Poder, o Volk podia ser descrito, com
recurso a linguagem que na metafísica ocidental designava o Realissimum, como
«Substância» (Hitler), e «coisa em si» (Goebbels)
35
.
O carácter comunitário da imaginação político-constitucional-axiofânica nacional-
socialista exprimia-se, pela negativa, numa fundamental “recusa” axiomática do discurso
dos direitos subjectivos («de direitos inatos e inalienáveis do indivíduo (…)», de
«liberdades pessoais do indivíduo que se situem fora da esfera do Estado e que devam
ser respeitadas pelo Estado»)
36
. O estatuto dos membros individuais do Povo
(Volksgenossen) era agora compreendido em termos de posições jurídicas na
comunidade e de serviço à comunidade (nas quais «os direitos devem ser considerados
como deveres-direitos
»)
37
.
Führer
No último manual de direito constitucional dado à estampa no Terceiro Reich podia ler-
se:
«O Reich do hrer do Povo [Alemão] é fundado no reconhecimento
de que a verdadeira vontade do povo não pode ser revelada através
de votos parlamentares e plebiscitos, mas que a vontade do povo
na sua forma pura e incorruptível só pode ser expressa através do
Führer. (…)
O Führer reúne em si toda a autoridade soberana do Reich; toda a
autoridade pública no Estado, bem como no movimento, é derivada
da autoridade do Führer. Devemos falar não da autoridade do
Estado, mas da autoridade do hrer, se queremos designar o
carácter da autoridade política dentro do Reich correctamente. O
Estado o detém a autoridade política como uma unidade
impessoal, mas recebe-a do Führer como o executor da vontade
31
Ernst Rudolf Huber, Verfassungsrecht des grossdeutschen Reiches, cit., p. 164.
32
A primeira das referidas máximas podia aliás ler-se no ponto 24.º do programa do Partido Nacional-
Socialista o programa do Partido Nacional-Socialista pode ser consultado em Martin Broszat, op. cit.,
(anexo documental) pp. 573 a 576. A segunda era também lema presente nas moedas do Reich.
33
Hans Frank, em Hans Frank (ed.) Nationalsozialistisches Handbuch für Recht und Gesetzgebung,
Zentralverlag der NSDAP., F. Eher nachf., g.m.b.h., Berlin, 1935, p. XIV.
34
Vide Le Droit national-socialiste: Conférence internationale tenue à Paris les 30 Novembre et 1er Décembre
1935, Librairie Marcel Rivière, Paris, 1936, p. 63.
35
Klaus Vondung, National Socialism as a Political Religion: Potentials and Limits of an Analytical Concept, em
Totalitarian Movements and Political Religions, vol. 6, n.º 1, 2000, p. 90 e p. 94, nota 18.
36
Ernst Rudolf Huber, Verfassungsrecht des grossdeutschen Reiches, op. cit., p. 361.
37
Idem, pp. 365-366.
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nacional. A autoridade do Führer é completa e abrangente, une em
si todos os meios de direcção política, estende-se a todos os campos
da vida nacional, abrange todo o povo, que é vinculado ao Führer
na lealdade e obediência. A autoridade do Führer não é limitada pela
verificação e controlo por órgãos autónomos ou por direitos
individuais, mas é livre e independente, omnicompreensiva e
ilimitada. Não é, no entanto, egoísta ou arbitrária e os seus vínculos
estão dentro de si. É derivada do povo, ou seja, é confiada ao Führer
pelo povo. Ela existe para o povo e tem a sua justificação no povo,
é livre de todos os laços exteriores porque está na sua natureza
mais íntima firmemente ligada com o destino, o bem-estar, a
missão, e a honra do povo.
O Führer nada tem em comum com o funcionário, o agente, ou o
mandatário que exerce um mandato delegado e que está vinculado
à vontade daqueles que o nomearam. O hrer não é
“representante” de um grupo particular cujos desejos deva realizar.
Ele não é um órgão” do Estado no sentido de um mero agente
executivo. Ele é antes em si mesmo o portador da vontade colectiva
do povo»
38
.
Na imaginação constitucional nacional-socialista, a comunidade nacional encarnava no
Führer nisso e por si se constituindo ou se actualizando em comunidade política
39
. A
Volksgemeinschaft implicaria a segregação-epifania comunitária de um condutor, de um
guia, do Povo alemão, possuidor, num grau qualitativamente superlativo, do esrito
objectivo, da essência da Comunidade que investia todos os seus membros (Volksgeist),
e capaz de exprimir a vontade objectiva do Volk.
O Führer era intérprete autêntico do
espírito do povo, portador do «Espírito eterno da Alemanha» (Hans Frank), «a fonte e o
representante do direito» (Hans Frank)
40
: «a vontade do hrer, [tal] é o Direito»,
38
Ibidem, pp. 164 e 230.
39
Note-se que em sectores de uma “nova dogmática” (Reinhard Höhn, por exemplo) que expurgava
inteiramente o discurso jurídico-público de categorias jurídico-dogmáticas (e jurídico-teoréticas) herdadas,
construindo novos conceitos operativos a partir dos símbolos políticos nacionais-socialistas, a palavra
Estado, tida como intrinsecamente associada a um sentido burocrático-administrativo, não era utilizada
para designar a comunidade política (o «povo político»), preferindo-se os conceitos de Volk ou de Reich
para designar a unidade política vide Carlo Lavagna, La Dottrina Nazionalsocialista del Diritto e dello Stato,
cit., pp. 164 e ss. [Sobre as linhas de fractura no campo da doutrina do Estado e do direito público no
nacional-socialismo, vide Michael Stolleis, A History of Public Law in Germany 1914-1945, cit., pp. 335]. No
discurso constitucional do Poder e da doutrina nacionais-socialistas, não era, porém, infrequente uma
utilização da palavra Estado, dando-se-lhe precisamente o sentido de comunidade nacional politicamente
organizada, actual e viva («forma política de um povo»), e não o de aparelho (Apparat) burocrático veja-
se, por exemplo, Karl Larenz, La Filosofía Contemporánea del Derecho y del Estado, vers. castelhana,
Editorial Revista de Derecho Privado, Madrid, 1942, pp. 163 e ss. Sobre esta problemática cfr. António José
de Brito, O Totalitarismo de Platão, em António José de Brito, Ensaios de Filosofia do Direito, Imprensa
Nacional Casa da Moeda, Lisboa, 2006, pp. 157 e 158, nota 7.
40
Marcel Cot, La conception hitlérienne du Droit, cit., p. 156 e Hans Frank, Fondamento Giuridico dello Stato
Nazionalsocialista, vers. italiana, Dott. A. Giuffrè Editore, 1939-XVII, pp. 68 e 29.
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proclamou Goering
41
; a sua vontade, sentenciaria e sintetizaria Schmitt, “é hoje o nomos
do povo alemão
42
.
Como a “sede” e a “manifestação” da autoridade mesma da comunidade nacional, a
autoridade do hrer constituiria uma autoridade pessoal originária exclusiva e absoluta.
Estava em causa uma autoridade «livre e independente, omnicompreensiva e ilimitada»,
para retomar expressivas palavras de Ernst Rudolf Huber citadas. No nacional-
socialismo, o Indivíduo-Comunidade, parece, na imaginação da ordem, por transposição
ou transferência, ocupar o lugar estrutural e possuir as características do indivíduo do
liberalismo. o há aqui lugar a uma norma substantiva superior e exterior à vontade do
Führer. Em tema de qualificação racial, por exemplo, a vontade do Führer definia em
última análise auto-referencialmente o conteúdo da ordem: medite-se por exemplo no
fenómeno dos chamados decretos de arianização. Uma específica combinação de
ordinalismo/institucionalismo comunitário e decisionismo soberano-pessoal, de ordnung
e gestaltung sincretismo coerente, pelo menos do ponto de vista interno à ideia
ordenadora nacional-socialista, mas comportando ligas de fuga potencialmente
antagónicas , tem sido identificada como gramática profunda do nacional-socialismo
43
.
O Führer exerceria os seus poderes de uma maneira conforme ao espírito do povo ao
seu sentimento jurídico, designadamente. Apenas se admitia a existência de limites
internos à hrung, limites ligados à natureza mesma do seu modo de ser, ou seja, à
sua configuração e à sua teleologia. Enquanto garantias pensáveis e admissíveis da
afectação funcional da Führung figuravam tão-só as qualidades inerentes à pessoa do
Führer: penetração do espírito do povo em grau superlativo na pessoa do Führer por
definição o Führer era indivíduo-comunidade como nenhum outro dos seus companheiros
de sangue e qualidades morais do Führer. Como K. Larenz assinalaria expressivamente
(numa imagem como que “crístico-pagã”):
«[A] autonomia relativa do indivíduo é superada no Führer. Ela não
obedece a uma norma que lhe estivesse destinada, mas à lei vital
da comunidade que nele adquiriu carne e osso. A sua vontade é uma
com a da comunidade, porque nele o homem privado é
completamente apagado e ele nada mais quer se não o interesse
comum. Toda a responsabilidade lhe é confiada porque, para ele e
através dele, a comunidade é a mais viva realidad
44
.
No interior do sistema de pensamento constitucional nacional-socialista, se o Führer
deixasse de agir em conformidade com o espírito do povo transformar-se-ia em ditador.
Como garantia limite, a possibilidade existencial/fáctica de epifania comunitária de um
41
Goering, Discurso, em Deutsche Justiz, n.º 28, 1934, p. 881, apud Marcel Cot, La conception hitlérienne du
Droit, cit., p. 243.
42
Apud Olivier Jouanjan, “Pensamento da Ordem Concreta” e Ordem do Discurso “Jurídico” Nazista: Sobre
Carl Schmitt, em Revista Eletrônica do Curso de Direito PUC Minas Serro, n. 2, 2010, p 34.
[http://periodicos.pucminas.br/index.php/DireitoSerro/article/view/1330].
43
Cfr. Olivier Jouanjan, Justifier L’injustifiable, em Astérion, n.º 4, 2006, pp. 123 a 156.
44
K. Larenz, Deutsche Rechtserneuerung und Rechtsphilosophie, Mohr,Tübingen, 1934, p. 44, apud Olivier
Jouanjan, Justifier L’injustifiable, cit., p. 150.
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novo Führer afastar um Führer que houvesse degenerado em ditador ou tirano (que, por
essa sua qualidade, podia de jure afastar o ditador)
45
.
A ordem Nacional-Socialista assentava na instituição pessoal Führer
46
. Daí que Huber
entendesse que «[O] Führer não une os antigos cargos de Chanceler e Presidente lado a
lado dentro de si, mas um novo e unificado cargo»
47
.
E que para o jurista eminentemente
nacional-socialista R. Höhn nem mesmo o conceito de cargo, porque associável a um
universo técnico-burocrático (a uma «unidade hospitalar» «Anstaltseinheit» , por
exemplo), fosse adequado para designar a sede pessoal da ordem nacional-socialista
48
.
A aventada formação junto ao Führer de um senado que o auxiliasse e aconselhasse e
eventualmente pudesse eleger o seu sucessor permaneceria sempre no plano das
hipóteses
49
. Apesar da “multiplicação” da figura do chefe no(s) rearranjo(s) nacionais-
socialistas da civitas germanica (o fenómeno do Unterführer), jamais em tal mimetização
esteve em causa a constituição de figuras dotadas de auctoritas própria autónoma.
Em termos formais-institucionais, a natureza pessoal da ordem implicava também que
quer os tradicionais poderes e funções estatais, quer os poderes “pontualizados” nas
novas instituições especificamente nacionais-socialistas, deveriam ser vistos como
dimanando da auctoritas do Führer. O Governo Reichsregierung (ReichsKabinett) foi
reconceptualizado como conselho do Führer, vocacionado para a discussão de leis e
directrizes políticas (por ele nomeados, os Ministros do Reich mantinham com ele uma
relação jurídico-administrativa), e o Reichstag redefinido como órgão de adesão à
vontade do Führer. A Administração, as Forças Armadas e o NSDAP (Bewegung)
constituíam meios de actuação da Führung
50
. As leis formais eram compreendidas, de
um modo não legal-racional, como picos actos de Führung, como expressão da vontade,
como comandos, do Führer segundo a definição de Schmitt, a lei é «plano e vontade
45
Sobre a conceptualização do tema da limitação do poder no nacional-socialismo, vide Roger Bonnard, op.
cit, pp. 81 e ss.
46
Minoritariamente, podia conceptualizar-se uma tal instituição como «órgão do Estado». Contra o pano de
fundo de uma construção do nacional-popular, do político-estadual e do jurídico-normativo-formal que os
representava como realidades coincidentes, com a utilização da categoria órgão procurava-se significar que
o Führer “existiria” e “viveria” (ainda) no interior de uma certa ordem normativa jurídico-formal (daí
também que nestes sectores se continuasse a utilizar a expressão Rechtsstaat na caracterização da ordem
Nacional-Socialista). Tal era o caso de um Otto Koellreutter, por exemplo. Na “nova dogmática”
quintessencialmente nacional-socialista, o momento político-jurídico era, num sentido inverso, como que
“dissolvido” na auctoritas do Führer. Vide Carlo Lavagna, La Dottrina Nazionalsocialista del Diritto e dello
Stato, cit., pp. 137 e ss. Cfr. também Peter Caldwell, National Socialism and Constitutional Law: Carl
Schmitt, Otto Koellreutter, and the debate over the nature of the Nazi State, 1933-1937, em Cardozo Law
Review, 16, 1994, pp. 339 a 427.
47
Ernst Rudolf Huber, Verfassungsrecht des grossdeutschen Reiches, op. cit., p. 208. Para o autor a expressão
«posição de chefe do Estado» («Stellung des Staatsoberhauptes») da Lei de 1 de Agosto de 1934 deveria
ser interpretada como significando «cargo de Führer do Reich e do Povo alemães» Amt des Führers des
Deutschen Reiches und Volkes») apud Flaminio Franchini, Lineamenti di diritto amministrativo tedesco in
regime nazionalsocialista, cit., p. 151, nota 1 (rementendo para E. R. Huber, Reichsgewalt und
Reichsführung im Kriege, em Zeitschrift für die gesamte Staatswissenschaft, 1941, p. 539).
48
Cfr., de novo, Flaminio Franchini, Lineamenti di diritto amministrativo tedesco in regime nazionalsocialista,
cit., p. 151, nota 1 (que remete para Höhn, Volk und Verfassung, em Deutsche Rechtswissenschaft, 1937,
p. 209 e ss).
49
Na “conversa à mesa” de 31 de Março de 1942, Hitler formularia a mesma ideia Hitler's Table Talk, 1941-
1944: His Private Conversations, Enigma Books, New York, 2000, pp. 385 e ss. Joseph Goebbels antevia a
futura existência de um Sacro Colégio reunindo a elite nacional-socialista (recrutada com base no êxito
individual, na pureza racial e, num tempo futuro, na hereditariedade, vindo então tal colégio a representar
umas centenas de famílias que à semelhança do Império Britânico governariam o Reich ad aeternum)
cfr. Joseph Goebbels, Journal 1943-1945, cit, pp. 280 e 281.
50
Num primeiro momento, distinguiu-se «Führung» e «Leitung», este último termo significando poder dirigir
por meio de ordens e comandos e de ser tempo obedecido no quadro do Estado-Administração. Tal
distinção esbater-se-ia progressivamente. A Juventude Hitleriana, “ departamento“ do Reich directamente
dependente do Führer-Hitler, era dirigida por um Führer (lei de 1 de Dezembro de 1936).
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do Führer» (daí que a generalidade não fosse entendida como sua propriedade
necessária)
51
. A vontade decisional hrer, como vontade comunitária objectiva, podia
exprimir-se para além de qualquer meio formal por ordens orais, por exemplo. Segundo
proclamava uma “personagem representativa”, o Presidente-Chefe do Tribunal de Apelo
hanseático, «o direito nasce do Führer; cada conversa, cada declaração do Führer é em
si mesma uma fonte de direito»
52
.
Afigura-se simbolicamente significativa da estrutura da ordem nacional-socialista, a
reformulação, corrente no Terceiro Reich, do lema do Reich bismarckiano e guilhermino:
«Ein Reich, Ein Volk, Ein Gott (II.º Reich)»/«Ein Volk, Ein Reich, Ein hrer» (III.º Reich).
Como tem sido assinalado, para a doutrina jurídica sob o nacional-socialismo (Larenz,
Binder, por exemplo), o hrer, tido como único partícipe do absoluto (comunitário),
deveria ser compreendido como personalidade dotada de natureza semi ou quási divina.
Nela se podia evocar explicitamente a ideia de uma «missão divina do Führer» die
göttliche Sendung des Führers», W. Sauer), representando o seu nus (Führertum)
como «missão divina originada do espírito da Nação» («der aus dem Geiste der Nation
geborene göttliche Beruf»; Julius Binder)
53
.
A afirmação progressiva da Constituição Nacional-Socialista; do
Ordnungsstaat ao Estado pós-legal-racional
Pelo decreto de 4 de Fevereiro de 1938, o Führer atribui-se o comando directo das forças
armadas. A 1 de Setembro de 1939, o Führer, em discurso no Reichstag, estabeleceria
quem lhe deveria suceder, fazendo-o «como se fosse a coisa mais natural do mundo»
(Carl Schmitt)
54
. No acto de modificação Änderungsgesetz de 16 de Setembro de
1939 reaparecia como «supremo justiceiro e juiz» oberster Gerichtsherr und Richter
sendo-lhe reconhecida a prerrogativa de anular uma sentença criminal passada pelos
tribunais. Uma lei de 26 de Abril de 1942 do Grossdeutsche Reichstag reconhecia-lhe,
designadamente, o direito de demitir os juízes pelos canais administrativos normais.
51
Em tese, a vontade legiferante do Führer podia revelar-se por via das chamadas Regierungsgesetze, de leis
“governamentais” (emanadas de acordo com o art. 1.º da Lei de 24. III. 1933, a que anteriormente
aludimos), por meio de Reichstagsgesetze, actos legislativos aprovados pelo Reichstag segundo formas
previstas na Constituição de Weimar, bem como via Volksbeschlossenes gesetze, leis aprovadas” em
plebiscito (nos termos da Lei de 14 de Julho de 1933 relativa ao plebiscito). Note-se que a diversidade de
“fontes” normativas (designadamente, a tradicional especificidade da fonte normativa Lei) era sempre
anulada (pelo menos parcialmente) pelo facto mesmo de o Führer poder escolher “arbitrariamente”, ao
dizer o direito, de entre um conjunto de várias fontes normativas (nominalmente diversas).
52
Vide Le Droit national-socialiste: Conférence internationale tenue à Paris les 30 Novembre et 1er Décembre
1935, cit., p. 48.
53
Ver Massimo La Torre, La “lotta contra il diritto soggetivo”: Karl Larenz et la dottrina giuridica
nationalsocialista, Dott. A. Guiffrè Editore, Milano, 1988, p. 414, nota 132, de onde retirámos as citações
de Sauer e Binder.
54
Carl Schmitt, Apropos the question of the position of Reich Minister and Chief of the Reich Chancellery:
Observations from the standpoint of constitutional law (1947), em Telos, n.º 72, 1987, p. 122. Acaso os
sucessores designados pelo Führer viessem a morrer, o Reichstag deveria nomear o seu sucessor,
escolhendo o mais digno e valoroso de entre os seus membros. Segundo Huber, um tal discurso constituiria
uma das mais importantes leis (assim mesmo, apesar de não estar aqui em causa a forma lei) do nacional-
socialismo cfr. Flaminio Franchini, Lineamenti di diritto amministrativo tedesco in regime
nazionalsocialista, cit., p. 128, nota 4.
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«Não pode haver dúvidas de que (…) o Führer tem de ter o direito
de fazer tudo o que sirva ou contribua para o alcance da vitória. Ele
tem, portanto, enquanto Führer da Nação…supremo justiceiro e líder
do Partido, de estar na posição de, sem ter de seguir os
procedimentos previstos, poder dar o merecido castigo…a cada
alemão…que não cumpra os seus deveres, independentemente dos
chamados direitos adquiridos»
55
.
O Führer passa a legislar, com normalidade, por via de fontes normativas outras que não
a lei formal. O Decreto do hrer Führer-erlasse , nova fonte de direito com origem
na prerrogativa do Presidente do Reich, inicialmente vocacionado para questões
organizativas, é utilizado na determinação e modificação da substância das leis, como
instrumento de delegação de poder legislativo, por exemplo. No seu dizer o direito, o
Führer manifesta-se mesmo para além de constrangimentos formais “clássicos”: não
raro, em actos jurídicos que podiam (ser assinados mas) não ser publicados, sendo
transmitidos às autoridades superiores do Reich por via hierárquica; em assuntos
secretos de Estado, as suas ordens e instruções puderam assumir carácter oral. Desde o
final de 1942, a titulatura Führer figuraria em exclusivo agora também nos actos
normativos não-militares emanados por Hitler.
No ar constitucional que envolveu e acompanhou a inicial “engenharia constitucional”
nacional-socialista, apresentada então como «revolução legal», pairava, como imagem
de ordem interpretativa-antecipatória do sentido processo em curso, a imagem de um
Ordnungsstaat. Pareceu mesmo poder estar em causa a cristalização de uma organização
hierárquica do Poder que fosse uma organização hierárquica legal-racional de criação de
direito. O tipo ideal de sistema jurídico hierárquico tinha, em certo sentido, recebido
actualização em grau superlativo. A existência de um centro de Poder unificado por detrás
da produção normativa, em particular da produção legislativa, bem como a própria
entrada de tal produção em regime de normalidade, pareciam até anunciar a introdução
de acréscimos de racionalização da ordem jurídica
56
. A ideologia jurídica rechstaatlish de
certos sectores de disposição nacional-alemã ou “nacional-conservadora” do mundo da
política, da alta administração, ou de uma parte da comunidade jurídica era também
parte e parcela do “encontro nacional-socialista com o constitucional” naquela situação
histórica
57
.
No contexto da actualização da constituição nacional-socialista, de uma juridicidade
fundamental simbólica-material de natureza pessoal-biopolítica, emergiria mesmo um
novo paradigma de Estado moderno, uma organização de poder funcionando em termos
55
Cfr. R. C. van Caenegem, Uma Introdução Histórica ao Direito Constitutional Ocidental, cit., p. 340.
56
Como observou Eric Voegelin em Hitler and The Germans, the collected works of Eric Voegelin volume 31,
University of Missouri Press, Columbia/London, 1999, pp. Cfr. também Franz Neumann, Behemoth: The
Structure and Practice of National Socialism, 1933 1944, Harper and Row, New York, 1966.
57
Em tema de identidade da referida “ideologia jurídica” de um certo mundo burocrático, veja-se, sobre um
personagem centralíssimo da burocracia do Ministério da Justiça o Secretário de Estado Franz
Schlegelberger (com a qual parecia estar, aliás, em sintonia a “ideologia jurídica” do primeiro Ministro da
Justiça do Reich, Franz Gürtner), e documentando um modo de pensar o direito na qual o jurídico
(“formalisticamente” representado) aparecia como meio indispensável e insubstituível de domínio do Estado
sobre a sociedade, cfr. Eli Nathans, Legal Order as Motive and Mask: Franz Schlegelberger and the Nazi
Administration of Justice, em Law and History Review, vol. 18.º, n.º 2., 2000, pp. 281-304.
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“neo-feudais” e em termos de uma burocracia não gida (“líquida”), com a recriação
contínua de hierarquias de pessoas, com as formas e as instituições impessoais a
assumirem uma dimensão epifenomenal em tal fluxo
58
. Se o lugar estrutural do direito
positivo formal se tornaria intrinsecamente soft, dada a relativização da sua lógica
sistémica interna, relativamente autónoma e independente, nem por isso, porém, estaria
em vias de desaparecer. Em resposta ao que via como utópicos desejos de ir além do
Direito, ou pelo menos de uma ordem de regras e formas fixas, numa futura instanciação
integral do projecto comunitário nacional-socialista (anseios expressos em sectores que
se auto-interpretavam como quintessencialmente nacionais-socialistas), K Larenz
assinalaria
«[A] Comunidade popular não pode existir sem o seu direito.
Comunidade e direito o originários assim como conteúdo e forma.
A Comunidade dá forma ao seu direito e mediante isto a si própria;
essa existe somente nesta sua auto-organização. (…) A vida não é
pensável sem forma e figura, e assim até a comunidade do povo
desapareceria se o desse à sua existência a sua forma e figura no
direito»
59
.
Da omnicompreensividade da constituição Nacional-Socialista
Do princípio da Volksgemeinschaft que informava o regime nacional-socialista, decorria
que todas as áreas da vida se deveriam regular por uma métrica comunitária tendo como
referente o bem da Civitas Germanica, para utilizar uma expressão que adquiriu foros de
cidade na linguagem dos juristas nacionais-socialistas
60
. Daí que, por exemplo, no
conjunto dos saberes jurídicos, uma linguagem teorético-jurídica e dogmática
originalmente nacional-socialista tendesse a substituir os conceitos teoréticos e jurídico-
dogmáticos tradicionais que pressupunham, ou eram vistos como pressupondo, um
substrato metafísico-ideológico liberal e individualista
61
.
58
Ver Carl Schmitt, Apropos the question of the position of Reich Minister and Chief of the Reich Chancellery,
cit., pp 116 a 123; John H. Hertz, German Administration under the Nazi Regime, em The American political
science review, vol 40, n.º4, 1946 46, 682-702; Robert Koehl, Feudal Aspects of National Socialism, em
The American Political Science Review, vol. 54, n.º 4, 1960, pp. 921-933.
59
Apud M. La Torre, La lotta contra il diritto soggetivo, cit., p. 27, nota 71. Como assinalou E. Forsthoff, as
necessidades existenciais de organização do Estado Moderno tornavam indispensável o nível do direito
positivo (escrito, exterior e formal). Para uma descrição do Estado Nacional-Socialista, precisamente como
Estado Dual, vide (embora escrita em 1941, note-se) Ernst Fraenkel, The Dual State, Oxford University
Press, New York, London, Toronto, 1941/The Lawbook Exchange, Ltd., Clark, New Jersey, 2006.
60
Ainda que a referida métrica comunitária pudesse ser interpretativamente “apropriada no sentido da
conservação de soluções jurídicas “tradicionais”. Assim, por exemplo, pôde entender-se in foro, em tema
de responsabilidade civil, que o dano provocado deve ser reparado não no interesse da parte lesada, mas
no interesse da comunidade, na medida em que um tal dano geraria perturbação na comunidade,
perturbação a que a consideração dos interesses da parte lesada poria cobro (decisão do Tribunal
Superior Administrativo da Saxónia de 18. 1. 1935).
61
Michael Stolleis, Community and National Community (Volksgemeinschaft) Reflections on legal terminology
under National Socialism em Michael Stolleis, The Law under the Swastika, Studies on Legal History in Nazi
Germany, vers. inglesa, The University of Chicago Press, Chicago/London 1998, pp. 64 a 83. Novos modos
genéricos de pensamento jurídico (adequados à ecologia constitucional nacional-socialista) adquiriram foros
de cidade: atente-se, por exemplo, na teoria da ordem concreta de Carl Schmitt (konkretes
Ordnungsdenken) que marca uma inflexão institucionalista do decisionismo do ilustre pensador ou no
“método” dos conceitos concretamente gerais (konkret-allgemeine Begriffe) de Karl Larenz (uma
combinação de neo-hegelianismo metodológico com conteúdo nacional-socialista); sobre estes novos
modos genéricos de pensamento jurídico, vide Oliver Lepsius, The Problem of Perceptions of National
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Também aqui esteve in fieri um novo e abrangente paradigma existencial fundado na
identificação (completa) do indivíduo com a comunidade política. A nova ordem nacional-
popular exigia a instituição de um modo de subjectividade comunitário, de uma
«personalidade comunitári Gemeinschaftspersönlichkeit»), de indivíduos-
comunidade
62
.
O seguinte parágrafo de E. Forsthoff, em Der totale Staat de 1933, e que se referia à
figura que o novo Estado deveria assumir, parece dar bem conta da dimensão abrangente
do Terceiro Reich:
«[O] Estado total deve ser um Estado de responsabilidade total.
Representa o envolvimento total de cada indivíduo ao serviço da
nação. Tal recrutamento remove a privacidade da existência
individual. Todos o responsáveis em tudo, na sua actividade e
manifestações públicas, como no seio da família e da casa, pelo
destino da nação. Não é o facto de o Estado decretar as suas leis e
comandos até às mais pequenas células da vida do povo que é
importante (esse é o Estado quantitativo total, “social”); é o facto
de também poder fazer valer uma responsabilidade, poder pedir
contas ao indivíduo que não submete o seu próprio destino ao da
nação»
63
.
Uma concepção de estruturação da ordem internacional
Para além do mencionado, se é certo que na experiência nacional-socialista se não acha
uma componente verdadeiramente análoga à dimensão de universalidade ideológica-
abstracta ínsita à experiência político-constitucional fascista, nela se detecta, porém, um
momento de universalidade concreta: a comunidade nacional-popular na sua unidade e
totalidade não era concebida como limitada por fronteiras territoriais-geográficas. Como
assinalaria E. R. Huber:
«[O] povo alemão forma uma comunidade fechada que não
reconhece fronteiras nacionais. É evidente que um povo não esgotou
as suas possibilidades simplesmente na formação de um Estado
nacional, mas representa uma comunidade independente que vai
além de tais limites»
64
.
Socialist Law or: Was there a Constitutional Theory of National Socialism?, cit., pp. 36 e 37; Carl Schmitt,
La science allemande du droit dans sa lutte contre l'esprit juif (1936), em Cités, n° 14, 2003, pp. 173-180.
62
Reinhard Höhn, Staat und Rechtsgemeinschaft, em Zeitschrift für die gesamte Staatswissenschaft, vol. 95,
n.º. 4., 1935, p. 676. No discurso constitucional nacional-socialista, tal perspectiva comunitária não
implicaria desconhecer «o valor da personalidade»: «[A]o contrário, na política, na arte e na vida
económica, ele reclama personalidades fortes e livres», salientaria, por exemplo, Ulrich Scheuner, Peuple,
État, Droit et Doctrine Nationale-Socialiste, cit., p. 50.
63
E. Forsthoff, Der totale Staat, Hanseatische Verlagsanstalt, Hambourg, 1933, p. 42 (apud Olivier Jouanjan,
Justifier L’injustifiable, cit., p. 137).
64
Ernst Rudolf Huber, Verfassungsrecht des grossdeutschen Reiches, op. cit., p. 158.
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Daí a adopção das seguintes ideias-força: reunião de todos os alemães num mesmo ente
político a constituição em 1938, com o fim da Áustria como Estado Independente, de
um Reich Grande-Alemão seria disso parte e parcela maior; constituição de um futuro
Reich Germânico (Hitler dixit) que deveria integrar o que se entendia constituirem
populações objectivamente pertencentes ao Volk (Holanda; Noruega), tudo sob liderança
do seu núcleo original e maximamente consciente sedeado na Alemanha; expansão do
alemão para um novo «espaço vital» imperial
65
.
Emergirá mesmo, também a título de derivação da ideia de Reich, um pensamento sobre
a ordem internacional e o direito internacional (e também sobre uma Europa alemã),
designadamente: a teoria dos Grandes Espaços (Grossraumlehre) de um Carl Schmitt,
colhendo inspiração na doutrina Monroe e apontando para uma ordem internacional
assente na constituição de impérios liderando grandes espaços e mantendo relações
entre si assentes num principio de não intervenção em esfera alheia; e uma teoria do
espaço vital (Lebensraum), de inspiração haushoferiana, sustentando o direito da nação
à conquista do território necessário para satisfazer as necessidades da sua população
(teoria com impacto maior na grande estratégia nacional-socialista de expensão a leste
e não sem relação com o racialismo nacional-socialista)
66
.
Comunidade política e cristianismo
O regime adoptou inicialmente o cristianismo como ethos (de formação) nacional-estatal,
tendo procurado cooptar as confissões cristãs no estabelecimento de cima para baixo de
um consenso nacional. Em 23 de Marco de 1933, o Chanceler Hitler declararia ao
Reichstag:
«[O] Governo Nacional considera as duas confissões cristãs factores
essenciais para a manutenção da nossa personalidade étnica. (…)
Mas ao mesmo tempo o Governo espera que a tarefa de
reconstrução nacional e moral a que se propôs seja devidamente
apreciada. (…) O único objectivo do Governo é garantir uma sincera
colaboração entre Igreja e Estado. A luta empreendida pelo Governo
contra o materialismo e o esforço para criar uma verdadeira
comunidade nacional servem ao mesmo tempo os interesses da
nação alemã e os da religião cristã»
67
.
Num tal quadro, apontando-se para uma paz civil estatal-nacional e não sem memória
da Kulturkampf bismarckiana, seria celebrada, a 29 Julho de 1933, uma concordata com
65
Ver: Hitler's Table Talk, 1941-1944: His Private Conversations, cit., pp. 401 e ss.; Reinhard Höhn, Reich,
Sphere of influence, Great power, em Arthur J. Jacobson, Bernhard Schlink (eds..), Weimar A Jurisprudence
of Crisis, cit., pp. 332 e 333.
66
Sobre estas temáticas, ver, por exemplo, os seguintes artigos em Christian Joerges/Navraj Singh Ghaleigh
(eds.), Darker Legacies of Law in Europe, cit.: Ingo J Hueck. ‘Spheres of Influence’ and ‘Völkisch’ Legal
Thought: Reinhard Höhn’s Notion of Europe, pp. 71 a 85; John P McCormick, Carl Schmitt’s Europe: Cultural,
Imperial and Spatial, Proposals for European Integration, 19231955, pp. 133 a 141; Christian Joerges,
Europe a Großraum? Shifting Legal Conceptualisations of the Integration Project, pp. 167 a 191.
67
Cesare Santoro, Hitler Germany, as seen by a foreigner, cit., p. 36.
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a Igreja Católica
68
. Patrocinar-se-ia, durante um certo período de tempo, uma tentativa
de estabelecer uma Igreja protestante do Reich
69
.
Estava também em causa um movimento de enquadramento do universo simbólico
cristão na mundividência nacional-socialista, de acordo com ideia segundo a qual a ordem
deveria dar corpo a um conceito de «cristianismo positivo», a um cristianismo em moldes
nacionais-socialistas. No seu ponto 24.º, o Programa do Partido Nacional Socialista havia
já consagrado um tal conceito:
«[O] partido, enquanto tal, sustenta o ponto de vista de um
cristianismo positivo, sem ligação confessional a uma crença
determinada. O partido combate o espírito judeu-materialista em
nós e fora de nós»
70
.
Numa parte da galáxia nacional-socialista, campearia um «sincretismo racista que
arianizava e germanizava Cristo e Deus» (E. Gentile)
71
.
Um sector da classe governativa favoreceria mesmo explicitamente a substituição do
cristianismo por um novo mythos alemão (Alfred Rosenberg, Heinrich Himmler)
72
. Hitler
distanciar-se-ia explicitamente de um tal projecto, negando publicamente (em 1938, por
exemplo) uma interpretação do nacional-socialismo como movimento cúltico stico,
apresentando-o o-só como movimento portador de uma filosofia política völkisch de
natureza racista
73
.
O Führer permaneceria ainda estritamente liberalmente… ligado à “clareza” da
divisão entre o domínio do Estado e o domínio espiritual das igrejas. Em 1942, Hitler
teorizava assim sobre o espaço próprio dos representantes das igrejas na vida da
comunidade alemã:
«[E]nquanto se preocuparem com os seus problemas religiosos, o
Estado não se preocupa com eles. Mas, assim que tentem, por
68
O texto da concordata pode ser visto em The Persecution of the Catholic Church in the Third Reich, facts
and documents translated from the German, Burns Oates, 1940, pp. 516 a 522.
69
«O Führer não desistiu do plano de criação de uma Igreja Imperial que tinha sido prosseguido, ele
agora rejeita o plano inteiramente», assinalaria Rudolf Hess a Hermann Göring em 18 de Abril 1940. Vide
Hans Mommsen, National Socialism as a political religion, em Hans Maier e Michael Schäfer (ed.),
Totalitarianism and Political Religions: Concepts for the comparison of dictatorships, Volume II, Routledge,
London/New York, 2007, p. 158 e p. 162, nota 18.
70
Sobre o «cristianismo positivo» nacional-socialista, Richard Steigmann-Gall, The Nazis 'Positive
Christianity': a Variety of 'Clerical Fascism'?, em Totalitarian Movements and Political Religions, vol. 8 n.º
2, 2007, pp 315 a 327; cfr., também do mesmo autor, The Holy Reich, Nazi conceptions of Christianity,
1919-1945, Cambridge University Press, Cambridge New York, 2003.
71
Emilio Gentile, New idols: Catholicism in the face of Fascist totalitarianism, em Journal of Modern Italian
Studies, vol 11, n.º 2, 2006, p. 148. Karla Poewe, New Religions and the Nazis, New York/London,
Routledge, 2006; Karla Poewe e lrving Hexham, The Völkisch Modernist Beginnings of National Socialism:
Its Intrusion into the Church and Its Antisemitic Consequence, em Religion Compass, vol. 3, n.º 4, 2009,
pp. 676696; Doris L. Bergen, Twisted Cross: The German Christian Movement in the Third Reich, University
of North Carolina Press, Press, Chapel Hill, 1996.
72
Roger Eatwell, Reflections on Fascism and Religion, em Totalitarian Mouvements and Political Religions, vol
4.º, n.º 3, 2003, p. 157. Sobre o tema da genealogia ocultista-pagã do Nacional-Socialismo, ver Nicholas
Goodrick-Clarke, Raízes Ocultistas do Nazismo, cultos secretos arianos e sua influência na ideologia nazi,
1ª ed. Portuguesa, Terramar, 2002.
73
Emilio Gentile, New idols: Catholicism in the face of Fascist totalitarianism, cit., p. 148.
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qualquer meio por Cartas, Encíclicas, ou outros , arrogar-se
direitos que pertencem ao Estado apenas, forçá-los-emos a
regressar à sua específica actividade espiritual, pastoral. Não têm
nenhum título para criticar a moral de um Estado. Pela moral do
Estado Alemão e do povo alemão, os dirigentes do Estado alemão
serão responsáveis»
74
.
Também à maneira dos liberais do século dezanove, o Führer esperaria mesmo, não sem
um resíduo deísta, que o progresso da ciência e da sua eficácia social viesse a significar
o desaparecimento gradual do cristianismo
75
.
Seja como for, e decisivamente, pela intensidade valorativa posta no quid que
determinou como supremo bem e pela abrangência mesma da sua Ideia, era insíta à
ordem nacional-socialista a possibilidade ou a virtualidade de um ethos comunitário
substituir o cristianismo como paradigma existencial, como gramática da existência
colectiva. Um observador exterior do “sistema” nacional-socialista notaria:
«[N]ão é que o movimento nazi seja anti-religioso. O perigo é antes
o de ter uma religião própria que o é a da ortodoxia cristã. Esta
religião não tem o carácter dogmático do credo comunista, é uma
coisa fluida e incoerente que se expressa em diferentes formas. Há
o neo-paganismo do elemento pan-germânico extremo, o
cristianismo arianizado e nacionalizado dos cristãos alemães, e o
idealismo racial e nacionalista que é característica do movimento
como um todo, e que, se é não religioso em sentido estrito, tende a
desenvolver uma mitologia e uma ética próprias que podem
facilmente tomar o lugar da teologia cristã e da ética cristã»
76
.
Eis dois exemplos desta última realidade essencial: «Uma vez que lhe atribuímos
existência eterna, o Volk é a encarnação do valor. As Religiões só têm valor se servirem
para preservar a substância viva da humanidade», afirmaria Hitler (1937, no Congresso
do Partido Nacional-Socialista)
77
; segundo Hans Frank:
«Para nós Nacionais-Socialistas o povo é por si mesmo um
ordenamento primário, dado por Deus. O Jus Divinum das Igrejas,
enquanto direito divino originário, é em si uma errónea aplicação do
conceito de direito. Mais clara é a formulação do complexo das leis
74
Apud Emilio Gentile, New idols: Catholicism in the face of Fascist totalitarianism, cit., p. 147.
75
Sobre estas dimensões do pensamento do Führer, ver Eric Voegelin em Hitler and The Germans, the
collected works of Eric Voegelin volume 31, cit., pp. 121 a 129 e Roger Eatwell, Reflections on Fascism and
Religion, cit..
76
Referimo-nos ao historiador Christopher Dawson vide Christopher Dawson, Religion and the Totalitarian
State, em The Criterion, vol. 14, n.º 54, 1934, p. 8.
77
Apud Ernst Fraenkel, The Dual State, cit., p. 120.
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naturais, enquanto possam tocar a vida comum de um povo, aquele
direito que a natureza ensina»
78
.
Contra um tal pano de fundo, para além de dimensões “pragmáticas”, se entende
também os conflitos que se faziram sentir com a Igreja Católica; a rede de organizações
católicas foi quase completamente desarticulada, com supressão progressiva das escolas,
das instituições e da imprensa católicas, a que acresceu uma difamação sistemática dos
princípios e das instituições da Igreja
79
. Em 1937, a encíclica Mit brennender Sorge de
Pio XI, ainda que condenando aspectos centrais da concepção de ordem associada ao
regime nacional-socialista e não directamente um regime, parecia responder, em última
análise, à cristalização de um novo absoluto secular abrangente:
«Se a raça ou o povo, se o Estado ou alguma das suas emanações,
se os representantes do poder estatal ou outros elementos
fundamentais da sociedade humana possuem, na ordem natural,
um lugar digno de respeito, quem, contudo, os desprende desta
escala de valores terrenos, elevando-os à categoria de suprema
norma de tudo, mesmo dos valores religiosos, divinizando-os com
culto idolátrico, perverte e falsifica a ordem criada e imposta por
Deus, está longe da verdadeira fé em Deus e de uma concepção da
vida conforme a ela»
80
.
Em tempos de nacional-socialismo em guerra total, nas célebres «conversas à mesa»,
Hitler não deixaria de esclarecer:
«Quando o nacional-socialismo tiver governado o tempo suficiente,
não será ser possível conceber uma forma de vida diferente da
nossa. No longo prazo, o nacional-socialismo e a religião não mais
poderão coexistir»
81
.
78
A ideia de que «o povo era por si mesmo um ordenamento primário dado por Deus» era depois interpretada
de acordo com uma interpretação racista do natural-popular. Ver Hans Frank, Fondamento Giuridico dello
Stato Nazionalsocialista, cit. pp. 24 e 25 (maxime nota 9).
79
Uma notória disputa simbólica entre o crucifixo e o retrato de Hitler nas escolas da Baviera de 1937 a 1941
seria parte e parcela de um tal cenário conflitual (por imposição “de baixo para cima”, e em tempo de
guerra, a proibição da exibição do crucifixo em escolas públicas seria levantada em 1941). Sobre as relações
entre o Reich alemão e a Igreja Católica, ver Guenter Lewy, The Catholic Church and Nazi Germany, 2.ª
ed., Da Capo Press, Boulder, Colo, 2001.
80
Vide: http://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_14031937_mit-
brennender-sorge_it.html). Heinz-Albert Raem, Pius XI und der Nationalsozialismus. Die Enzyklika "Mit
brennender Sorge" vom 14 März 1937, Schöningh, Paderborn, 1979.
81
Os considerandos que se seguiam a uma tal afirmação eram também significativos: «É uma simples questão
de honestidade, à qual tudo finalmente se resume. Em Inglaterra, o estatuto do indivíduo no que respeita
à Igreja é governado por considerações de Estado. Nos Estados Unidos, é tudo puramente uma questão de
conformismo. A qualidade especial do Povo Alemão é a paciência; e é o único dos povos capaz de realizar
uma revolução neste domínio. Poderia fazê-lo, mesmo que tão-só pela razão de que apenas o Povo Alemão
fez da lei moral o princípio que rege a sua acção. O golpe mais pesado que atingiu a humanidade foi a
vinda do cristianismo. (…)». Cfr. Hitler's Table Talk, 1941-1944: His Private Conversations, cit., p. 6-7 (15
Julho de 1941).
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Num tal quadro, se entenderá outrossim a desvinculação/descomprometimento do
regime nacional-socialista em relação às fontes e ao ethos mais infra-estrutural da ordem
concreta da sociedade onde emergiu.
Conclusões
Parece resultar evidente do atrás exposto que o regime nacional-socialista se
caracterizou por ter identificado a comunidade política uma comunidade política
racialmente determinada e elevada a Absoluto com uma personalidade histórica
empírica tida como personalidade eminentemente comunitária. As seguintes afirmações
de Martin Heidegger, contidas num apelo aos estudantes alemães de 3 de Novembro de
1933, talvez traduzam a substância última da ordem nacional-socialista:
«[E]estudantes Alemães! A Revolução Nacional-Socialista traz uma
completa reviravolta à nossa vida alemã. Não deixem que dogmas
e “ideias” sejam as regras do vosso ser. O Führer ele próprio e
ele é a realidade, presente e futura, do Povo Alemão e a sua lei»
82
.
Quanto ao Reich Nacional-Socialista, talvez se deva falar numa formação constitucional,
em última análise, sem paralelo na modernidade política
83
.
Tal como nos regimes do entre-guerras habitualmente classificados como «regimes não-
democráticos de direita» em geral, também no caso alemão, é certo, a Comunidade
política considerada em si e por si foi elevada a referente primeiro e último de construção
de ordem (igualmente se tomando o religioso-tradicional como parte e parcela do
nacional). Tal como em alguns desses regimes, máxime no fascismo italiano, a
comunidade política pôde também ser nele interpretada como Absolutum abrangente. A
fórmula constitucional nacional-socialista não pode, porém, ser essencialmente
assimilada a um tal quadro “genérico” e “sub-genérico”: dele se destaca, sobretudo e de
modo eminentemente singular e sui generis, pela sua construção da ordem constitucional
por referência a uma comunidade política concretamente absolutizada em termos da sua
personificação numa figura humana, num “indivíduo-comunidade”
84
. Ao longo do
82
Martin Heidegger, Political Texts (1933-1934), em Richard Wolin (ed.), The Heidegger Controversy: A
Critical Reader, The MIT Press, Cambridge, Massachusetts, e London, England, 1993, pp. 46 e 47.
83
A ideia de que a personificação da comunidade política num indivíduo-comunidade constitui dimensão
nuclear, senão mesmo a dimensão central, do regime nacional-socialista pode encontrar-se nos escritos de
alguns autores, embora não raro se aponte o caso nacional-socialista com um caso, entre outros, em que
um tal fenómeno de “encarnação comunitária” se verifica superlativamente ou por excelência. Veja-se, por
exemplo: Klaus Vondung, National Socialism as a Political Religion: Potentials and Limits of an Analytical
Concept, cit., pp. 58795; Marcel Gauchet, À l'épreuve des totalitarismes, L'avnement de la Dmocratie
III, Bibliothque des sciences humaines, Gallimard, Paris, 2010, pp. 464 e ss. Cfr. também os pioneiros
escritos de Claude Lefort (primacialmente focados no estalinismo, mas referindo-se também ao nacional-
socialismo e ao fascismo) sobre a figura do «Egocrata» como figura característica do totalitarismo: Claude
Lefort, la logique totalitaire e l’image du corps et le totalitarisme, em Claude Lefort, L’invention
démocratique: les limites de la domination totalitaire, Fayard, Paris, 1981, pp. 85 a 106 e pp. 159 a 176,
respectivamente.
84
Sobre as realidades constitucionais referidas no corpo do texto, ver: Pedro Velez, Das Constituições dos
Regimes Nacionalistas do Entre-guerras, ICS, Lisboa, 2016 e Pedro Velez, Sobre a ordem constitucional
no/do fascismo italiano, cit., pp. 69-96. Eis as várias decisões constitucionais fundamentais (ou
constituições materiais) que nelas concretamente reconhecemos: (i) elevação da comunidade política a
Absoluto (fascismo italiano); (ii) designação da comunidade política como Bem Proeminente, mas não
claramente como principio exclusivo de ordem (diversos projectos de ordem articulados
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 8, Nº. 1 (Maio-Outubro 2017), pp. 126-150
Constituição e religiosidade da/na ordem constitucional do império nacional-socialista
Pedro Velez
150
vinténio fascista cristaliza um Estado quintessencialmente “mono-árquico”, é certo, mas
não propriamente uma doutrina constitucional similar à doutrina alemã do Führerstaat.
Ao contrário do sucedido na Alemanha Hitleriana, o constitucional não aí identificado com
a autoridade originária de uma pessoa comunitária
85
.
A distância em relação à tradição liberal-constitucionalista terá sido aqui máxima pelo
menos à superfície (dada uma certa permanência última da categoria do indivíduo, com
a sua “transferência” para um plano comunitário – para uma comunidade política
postulada como macro-indivíduo e para o indivíduo-comunidade). Algo de idêntico
poderia ser dito, sem qualificação, em relação a uma certa tradição político-constitucional
cristã de vinculação do poder político a um direito a ele anterior e superior. Esteve em
causa uma claríssima manifestação de «religião política», de evocação de um Bem
Absoluto canalizando toda a autoridade axiológico-normativa para a ordem e/ou o poder
políticos.
A experiência constitucional Nacional-Socialista como que reeditou o paradigma dos
Governantes Divinos, paradigma constitucional de origem pré-cristã ou pré-judaico-
cristã, reactivado no final da idade média, princípios da idade moderna, com as teorias
do direito divino dos Reis (padrão teológico-político nos termos do qual um centro
“soberano” instancia (e difunde) o poder/a vontade divina)
86
. A tal não terá sido estranho
o começo da articulação do Estado-Nação alemão num tempo pós-cristão e pós-
idealista
87
. O lastro milenarista/messiânico/apocalíptico da sociedade alemã, porventura
reactivado na conjuntura hiperdisruptiva weimariana, terá sido também sua condição de
possibilidade
88
.
“constitucionalisticamente”, máxime por via da emanação de novas constituições escritas como na
Polónia, na Estónia e na Lituânia, etc…); (iii) vontade de uma ordem estatal-nacional monista de identidade
católica (Espanha sob Primo de Rivera; primeiro franquismo); (iv) definição de uma ortodoxia pública de
radicação cristã, na qual o cristianismo se inscreve não mais do que como elemento nacional-civil (Hungria
restaurada por Horthy; o «Estado Francês»); (v) concepção de uma comunidade política etnocêntrica como
nec plus ultra exclusivo e incondicional (absorvendo em si o religioso-tradicional local) («Estado
Independente Croata», ao «Estado Nacional-Legionário» romeno, por ex.); vi) elevação da comunidade
política a Bem Supremo, mas com submissão da mesma a “uma invariante moral” concretamente cristã-
católica (franquismo cristalizado, em primeira linha; no «Estado Austríaco» e Estado Novo português).
85
Ver, de novo, Pedro Velez, Sobre a ordem constitucional no/do fascismo italiano, cit.
86
Sob o paradigma dos Reis-Divindades ver: Eric Voegelin, The Collected Works of Eric Voegelin Volume 14:
Order and History Volume I, Israel And Revelation, University of Missouri Press, Columbia/London, 2001,
primeira parte The Cosmological Order of the Ancient Near East»). Sobre esse paradigma e a sua
“repetição” nos começos da modernidade, ver Francis Oakley, Kingship: The Politics of Enchantment,
Blackwell, Malden, MA/Oxford, 2006, pp. 108 e ss, e Catherine Pickstock, After writing: on the liturgical
consummation of philosophy, Blackwell, Oxford, 1998.
87
Vide Eric Voegelin, Race and State (1935), em Eric Voegelin, Published Essays 19341939, The Collected
Works of Eric Voegelin Volume 9, University of Missouri Press, Columbia/London, 2001, pp. 40 a 53; Eric
Voegelin, The Growth of the Race Idea, cit.
88
Vide Norman Cohn, The Pursuit of the Millennium: Revolutionary Millenarians and Mystical Anarchists of the
Middle Ages, revised and expanded, Oxford University Press, Oxford/London/New York 1970; Klaus
Vondung, The Apocalypse in Germany, vers. inglesa, University of Missouri Press, Columbia, MO, 2000.