JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017), pp. 69-96
Sobre a ordem constitucional no/do fascismo italiano
Pedro Velez
Reconstituição e hipostasiação do Estado. A anulação das soberanias
sociais e a construção de uma organização política mono-árquica
integral-integradora
O chamado vinténio fascista é cada vez mais visto como um «sperimento
costituzionale»
. Seguindo a interpretação do arquitecto da sua matriz fundamental, do
«Guardasigilli [Ministro da Justiça] dela Revoluzione» e Jurista do fascismo (como
também não deixou de ser apelidado contemporaneamente) Alfredo Rocco, interpretação
que os chamados constitucionalistas fascistissimi (Sergio Panunzio e Carlo Costamagna)
desenvolveriam, tal processo pode ser visto como (tentativa de) construção de uma
ordem que, enquanto organização monoárquica integradora do social no político, pudesse
actualizar em grau máximo a ideia de Estado
.
Em Janeiro de 1925, em pleno Parlamento, Mussolini anunciou a abertura de um novo
tempo político-constitucional. A partir de tal momento, o governo fascista deixou
efectivamente de ser um “governo normal” passando a ser o agente-director de uma
ditadura soberana (para utilizar terminologia schmittiana) definidora de uma nova
constitucionalidade (formal e material)
. Muito em especial com a “engenharia
e Jeremy Mitchell (eds.), Conditions of Democracy in Europe 1919–39, Systematic Case Studies, Palgrave
Macmillan, Houndmills/London, 2000, pp. 294 a 320.
Vide Enzo Fimiani, Fascismo e regime tra meccanismi statutari e «costituzione materiale», em M. Palla
(dir.), Lo Stato fascista, La Nuova Italia-Rcs, Firenze, 2001, pp. 79 a 176. Sobre a instituição do «regime»
fascista, maxime sobre os processos de transformação constitucional que tiveram lugar no vinténio, vide:
Livio Paladin, Fascismo (diritto costituzionale), em Enciclopedia del Diritto, vol. XVI, Giuffrè Editore, Milano,
1967, pp. 887-901; S. Labriola, la costituzione autoritaria, em S. Labriola, Storia della costituzione italiana,
Esi, Napoli, 1995, pp. 203 a 274; Alberto Aquarone, L’organizzazione dello Stato totalitario, 2.ª ed., Einaudi,
Torino, 2002. Ver também Renzo de Felice, Brève histoire du Fascisme, trad., Éditions Audibert, Paris,
2002; Philip Morgan, Italian Fascism 1915–1945, 2.ª ed., Palgrave Macmillan, Houndmills/New York, 2004,
cap. 3; John Pollard, The Fascist Experience in Italy, Routledge, London/New York 1998/2005, caps. 3 e 4.
Para uma consulta aos instrumentos jurídico-formais que instituíram um edifício constitucional fascista vide
Alberto Aquarone, L’organizzazione dello Stato totalitario, cit., pp. 315 e ss. [«appendice»]; pode ver-se
também Italie, em B. Mirkine-Guetzévitch, Les Constitutions de l’ Europe Nouvelle avec les texts
constitutionnels, parte II.ª, Librairie Delagrave, Dixième Édition, Paris, 1938, pp. 371 a 427.
Alfredo Rocco, La trasformazione dello Stato: dallo Stato liberale allo Stato fascista, La Voce, Roma, 1927
(os escritos de Rocco, designadamente as relações antecedendo as chamadas leis fascistissime, eram
considerados, na publicística fascista, como escritos canónicos, e fonte de interpretação autêntica da
doutrina do Estado e do direito constitucional fascista); Sergio Panunzio, Teoria generale dello Stato
fascista, 2.ª ed., Cedam, Padova, 1937; Carlo Costamagna, Storia e Dottrina del fascismo, Editrice Torinese,
Torino, 1938. Vide Pietro Costa, Lo ‘Stato Totalitario’: un campo semantico nella giuspubblicistica del
Fascismo, em Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, n.º 28, Tomo I, Giuffrè,
Milano, 1999, pp. 61 a 174. Hodiernamente, aqui e ali, parece apontar-se, mais ou menos explicitamente,
para uma caracterização da experiência do regime fascista italiano como projecto de actualização
superlativa da ideia de Estado – vide supra: Marcel Gauchet, À l'épreuve des totalitarismes, L'avènement
de la démocratie III, Bibliothèque des sciences humaines, Gallimard, Paris, 2010, pp. 348 e ss. (capítulo
VIII, «Le fascisme en quête de lui-même»); David D. Roberts, The totalitarian experiment in twentieth-
century Europe: Understanding the poverty of great politics, Routledge, London/New York, 2006, pp.271 e
ss. Pensa-se também na literatura do entre-guerras: vide Rudolf Smend, Constitucion y Derecho
Constitucional, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1985. Para uma topografia dos olhares sobre
o fascismo italiano, ver por todos Emilio Gentile, Qu’est-ce que le fascisme? Histoire et interpretation, versão
francesa, Gallimard, Paris, 2004, maxime pp. 67 e ss.
Certas transformações legislativas inicialmente operadas pelo novo governo de direcção fascista pareciam
já anunciar a superação da forma de Estado democrático-liberal: o Régio Decreto n.º 31 de 14 Janeiro 1923
criaria um corpo militar de defesa da ordem pública directamente dependente do Presidente do Conselho,
a Milícia Voluntária para a Segurança Nacional (Milizia Voluntaria per la Sicureza Nazionale, M.V.S.N.) – por
um posterior Decreto-Lei de 4 agosto de 1924, n.º 1292, a Milícia, tornar-se-ia, porém, parte integrante
das forças armadas, tendo os seus membros de prestar juramento ao Rei. A famosa lei Acerbo, a Lei n.º
2444 de 18 Novembro 1923, operaria uma primeira transformação de fundo da legislação eleitoral,
assegurando dois terços dos assentos parlamentares à lista apoiada por 25 por cento dos sufrágios. O R.D.L.
n.º 3288 de 15 de Julho de 1923, publicado somente a 8 de Julho de 1924, restringiria a liberdade de