OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017), pp. 14-27
IDEALISMO E REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS:
UM DEBATE ONTOLÓGICO
Vítor Ramon Fernandes
vrf@sapo.pt
Professor Auxiliar de Relações Internacionais na Universidade Lusíada (Portugal), onde leciona
Organizações Políticas Internacionais e Conflitos Regionais na Licenciatura em Relações
Internacionais. É Visiting College Research Associate em Wolfson College (Universidade de
Cambridge), onde leciona seminários sobre Segurança Internacional no Mestrado em Políticas
Públicas (MPhil in Public Policy). Foi Visiting Scholar na Universidade de Cambridge, no
Department of Politics and Internacional Studies e em Wolfson College, do qual é membro. É
Doutor em Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa, Mestre em Economia pela
University of Kent, Mestre em Gestão de Empresas pelo ISCTEIUL e Licenciado em Economia
pela Faculdade de Economia da UNL. Foi Auditor do Curso de Defesa Nacional do Instituto de
Defesa Nacional. As suas áreas de investigação incluem Teoria das Relações Internacionais,
Estudos de Segurança, Conflitos Regionais, Intervenção Humanitária e Responsabilidade de
Proteger. A experiência anterior inclui cargos como Vice President no banco JP Morgan em Paris e
em Madrid. Foi Consultor Associado na McKinsey & Company e Senior Manager na AT Kearney
em Lisboa, e Administrador em empresas como a OGMA Indústria Aeronáutica de Portugal, SA
e a IDD, SA, na área da defesa, e o Diário de Notícias, SA, na área dos media.
Resumo
O debate entre realismo e idealismo continua a marcar a disciplina das Relações
Internacionais. Por um lado, o realismo argumenta que a política internacional é uma luta
pelo poder e uma procura pela sobrevivência, de onde resulta uma circunstância de conflito
permanente entre os Estados, sem qualquer possibilidade de evolução e progresso. Por outro
lado, o idealismo considera que é possível construir um mundo de coexistência pacífica, de
prosperidade e de bem-estar, alcançados através da cooperação fundada em elementos
assentes em valores e aspirações partilhados pelos seres humanos. O objecto deste artigo é
analisar o debate entre idealismo e realismo, considerando-o como um debate ontológico e
tendo em consideração a polémica que tem gerado. O argumento aqui apresentado é que
tanto o realismo como o idealismo constituem duas respostas em relação à criação e à
manutenção da ordem internacional, isto é, à forma como os Estados se relacionam na
sociedade internacional, mas que não são, nem forçosa nem mutuamente, exclusivas,
podendo coexistir em constante tensão uma com a outra. Nesse contexto, apresenta-se
também uma análise do pensamento internacionalista de dois autores referentes nas Relações
Internacionais, Hans Morgenthau e Raymond Aron, relativamente à forma como cada um
deles se posiciona neste debate.
Palavras-chave
Idealismo; Realismo; Ontologia; Poder; Ética.
Como citar este artigo
Fernandes, Vítor Ramon (2016). "Idealismo e realismo nas Relações Internacionais: um
debate ontológico". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 7, N.º 2, Novembro
2016-Abril 2017. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.autonoma.pt/janus.net/pt_vol7_n2_art2 (http://hdl.handle.net/11144/2781)
Artigo recebido em 21 de Março de 2016 e aceite para publicação em 19 de Setembro de
2016
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017), pp. 14-27
Idealismo e Realismo nas Relações Internacionais: um debate ontológico
Vítor Ramon Fernandes
15
IDEALISMO E REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS:
UM DEBATE ONTOLÓGICO
Vitor Ramon Fernandes
As Relações Internacionais
1
têm sido de certa forma dominadas por questões de natureza
ideológica associadas a diferentes correntes de pensamento, o que deu origem aos
chamados ‘grandes debates’. Esses debates fazem parte da historiografia das Relações
Internacionais. Assim, tal como refere Brian Schmidt (2005: 4) na sua contribuição para
o conhecido Handbook of International Relations, a história e a evolução das Relações
Internacionais têm sido contadas “começando com o ‘grande debate’ entre idealistas
2
e
realistas, definidor da disciplina”
3
, debate esse que teve início no período entre as duas
Grandes Guerras, mais especificamente nas décadas de 1920 e 1930. Muito embora
existam diversos documentos relativos ao estudo das relações internacionais, entre os
quais se conta como mais citado a História da Guerra do Peloponeso, da autoria do
historiador e general ateniense Tucídides
4
, para efeitos da presente análise faz-se
coincidir o marco cronológico da análise com a institucionalização universitária da
disciplina, que ocorreu com a criação autónoma da disciplina de Relações Internacionais
na Universidade de Aberystwyth, no Reino Unido, em 1919.
O argumento aqui apresentado é o de se considerar que, no debate entre idealistas e
realistas, estão em oposição ontologias opostas, isto é, duas perspectivas diferentes
relativamente à forma como consideram o ser humano e a existência humana, no fundo
1
No presente texto, é utilizada em letra minúscula a expressão “relações internacionais” sempre que se
refere às dinâmicas que se estabelecem entre os actores da comunidade internacional, utilizando a mesma
expressão em letra maiúscula quando se reporta à disciplina que estuda essas mesmas dinâmicas e que
está associada à criação do Departamento de Política Internacional, em 1919, na Universidade de
Aberystwyth, no País de Gales.
2
Opta-se aqui pela expressão ‘idealismo’ porque essa é a expressão normalmente utilizada quando se faz
referência ao chamado “primeiro grande debate”, que opôs as perspectivas idealista e realista nas Relações
Internacionais, se bem que Edward Carr (1995) utilize a expressão ‘utopia’ e a revisitação dos grandes
debates em Relações Internacionais privilegie a expressão ‘liberalismo’, ou ‘liberalismo idealista’, dado se
considerar que os ideais idealistas se baseiam no pensamento liberal e limite o idealismo a uma das suas
fases, entre-guerras. As expressões ‘liberalismo’ e ‘liberalismo idealista’ não são consideradas aqui como
sendo as mais adequadas, pois prestam-se a confusão no que concerne a evolução e as diferentes variantes
do liberalismo, e dado não existir nenhuma incompatibilidade entre ser, simultaneamente, um realista e
um liberal. Por outro lado, considera-se que a utilização das expressões ‘idealismo’ e ‘realismo’ expressam
melhor as tensões existentes entre essas duas perspectivas opostas. Sobre o debate entre idealistas e
realistas ver, por exemplo, SCHMIDT, B. - On the history and historiography of International Relations. In
CARLSNAES, W., RISSE, T., SIMMONS, B. A., eds. 2005. Handbook of International Relations. 2ª ed.
Londres: Sage Publications, pp. 3-22. Sobre liberalismo ver, por exemplo, DUNNE, T. Liberalism. In BAYLIS,
J. e SMITH, S, eds 2014. The Globalization of World Politics. Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press,
2005, Cap. 7, pp. 113-125.
3
Tradução livre do original. Todas as traduções constantes deste artigo são da autoria do autor salvo
indicação em contrário. No original, “[…] beginning with the disciplinary defining ‘great debate’ between
‘idealists’ and ‘realists’ […]”.
4
Considerado como um autor realista.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017), pp. 14-27
Idealismo e Realismo nas Relações Internacionais: um debate ontológico
Vítor Ramon Fernandes
16
duas concepções do mundo, com filosofias diferentes em relação à actividade humana e
aos elementos que constituem o domínio das relações internacionais. Os idealistas, cujo
pensamento está ligado às ideias do liberalismo internacionalista, consideram que,
apesar do sistema internacional ser anárquico
5
, existe da parte do ser humano uma
consciência comunitária, a possibilidade de progresso no sistema internacional,
alcançados através de cooperação e evolução para uma paz duradoura, de prosperidade
e de bem-estar social, fundada em elementos assentes em valores e aspirações
partilhados pelos seres humanos. Diferentemente, os realistas têm uma opinião negativa
em relação à natureza humana e consideram que a anarquia internacional se caracteriza
por uma luta pela sobrevivência dos Estados e pelo interesse nacional, em que a
conquista de poder assume uma importância vital dada a possibilidade sempre constante
de conflito. Essas visões ontológicas não são conciliáveis, mas podem coexistir em
constante tensão uma com a outra.
O início do debate
Num artigo de Hedley Bull intitulado “The Theory of International Politics 1919-1969”, o
autor registava a existência de um conjunto de autores que intitula de ‘idealistas’, e que
caracteriza genericamente como um conjunto de teóricos que acreditavam na ideia de
progresso e na possibilidade de uma evolução nas relações internacionais de forma a
darem origem a um mundo mais pacífico (Bull, 1972: 185). Estes autores, sobretudo
europeus, consideravam a criação de organizações internacionais como vias para
promoverem o ideal de paz e segurança entre os Estados, das quais se destaca a Liga
das Nações, criada na sequência da assinatura do Tratado de Versalhes em 28 de Junho
de 1919, no fim da Grande Guerra, assim como a criação de regimes internacionais
com normas e regras aceites pelos Estados. As questões de natureza moral também
assumiam uma importância considerável no quadro do seu pensamento. No entanto, os
seus escritos encontram-se algo dispersos, e não é evidente que tenham sido
organizados num corpo teórico homogéneo.
A partir dos finais dos anos 30 do século XX, um conjunto de outros teóricos que ficaram
conhecidos como ‘realistas’, reagiram contra essa visão de que o mundo se poderia reger
com base nos princípios idealistas. De acordo com os realistas, vivia-se um contexto
histórico que se caracterizava por algum conflito, totalmente contrário à ideia de
harmonia veiculada pelos idealistas, e as relações entre Estados teriam de se reger
através do poder. De facto, no contexto europeu, os anos 30 correspondem ao período
em que Adolfo Hitler ascende ao poder na Alemanha, em que Hannah Arendt é exilada,
mais especificamente em Agosto de 1933 após sair da prisão e conseguir atravessar a
fronteira checa, e em que se inicia um processo que culmina na Europa com o início da
2ª Grande Guerra em 1939.
É precisamente nas vésperas da Grande Guerra que se assiste à primeira tentativa de
sistematização das ideias que então circulavam, o que veio a acontecer com a obra de
Edward Carr (1995) The Twenty YearsCrisis. Foi este autor que resumiu a oposição
entre realismo e aquilo a que chamou de ‘utopia’, sendo que o que diferencia as duas
perspectivas são duas visões contrastantes em relação ao domínio das relações
5
Caracteriza-se o sistema internacional como anárquico no sentido da não-existência de um poder soberano
acima dos Estados, e em que cada país é juiz em causa própria.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017), pp. 14-27
Idealismo e Realismo nas Relações Internacionais: um debate ontológico
Vítor Ramon Fernandes
17
internacionais. A perspectiva em relação ao utopismo carateriza-se por uma visão
voluntarista, que acredita no progresso e na evolução enquanto a realista é caracterizada
pela aceitação da realidade sem possibilidade de alteração ou de evolução, como que
caracterizada por um determinismo de recorrência (Carr, 1995): 12). Nas suas palavras,
a sua intenção ao escrever esta obra resultava de uma “vontade apaixonada de evitar a
guerra”
6
(Carr, 1995: 8), não obstante o aspecto teleológico da ciência da política
internacional ser desde o seu início conspícuo, pois tinha surgido no seguimento de uma
terrível guerra entre 1914 e 1918. Esse ambiente internacional, que se vivia muito
particularmente na Europa, é importante pois permite-nos contextualizar esse trabalho
no tempo e também no espaço, pois são essas as dimensões que permitem caracterizar
de forma sistematizada o pensamento idealista, ou utópico como lhes chamou Carr ,
e o pensamento realista.
Na opinião de Edward Carr, a evolução das Relações Internacionais tinha sido até à época
muito utópica, facto que atribui ao carácter ainda pouco estruturado dessa nova ciência.
No entanto, isso não significava que defendesse um afastamento completo do utopismo
das Relações Internacionais, pois acreditava que a utopia e o realismo eram elementos
constantes e necessários, que deviam coexistir numa tensão essencial e permanente. Por
um lado, o utopista é visto como um voluntarista, alguém que acredita na livre vontade
e na capacidade de rejeitar a realidade por vontade própria, acabando por entender essa
realidade, enquanto o realista tende a ser determinista, e aceita a realidade tal como ela
lhe é apresentada, sem nunca a tentar alterar. Citando Carr (1995: 10): “Utopia e
realidade são assim as duas facetas da ciência política. Um pensamento político sólido e
uma vida política sólida apenas poderão ser observados onde ambos estiverem
presentes”.
7
Entre opiniões distintas e tentativas de legitimação de posições
Mas a verdade é que esta obra tem sido alvo das mais diversas controvérsias, tanto sobre
a leitura geral que é feita da mesma, como sobre o enviesamento que o seu autor deu
ao pensamento utopista. Na opinião de Peter Wilson (1998), um debate que tivesse
oposto pontos de vista idealistas e realistas nunca chegou sequer a existir, sendo
inclusive enganador enquanto facto histórico. O pensamento idealista do período entre
as duas grandes guerras, apresentado em The Twenty Years’ Crisis, o passaria de uma
retórica inventada por Edward Carr para desacreditar um conjunto de questões com as
quais estava em desacordo (Wilson, 1998: 13). Opinião semelhante tem Ashworth
(2002: 34-35), para quem um debate entre idealismo e realismo também nunca existiu,
pelo menos na forma como é normalmente relatado nas Relações Internacionais, e o que
a sua construção pretendia essencialmente era desacreditar o pensamento normativo na
disciplina e o liberalismo internacional através da ideia de uma vitória do realismo sobre
o idealismo.
Fundamentalmente, para Wilson (1998: 14), o que existia era um conjunto variado de
opiniões e teorias associadas a diversos autores, em que a maioria estava ligada ao
pensamento liberal internacionalista, designadamente, autores como Alfred Zimmern,
Arnold Toynbee e Norman Angell, sem esquecer o próprio Presidente norte-americano
6
No original “[…] passionate desire to prevent war […]”.
7
No original “Utopia and reality are thus the two facets of political science. Sound political thought and sound
political life will be found only where both have their place”.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017), pp. 14-27
Idealismo e Realismo nas Relações Internacionais: um debate ontológico
Vítor Ramon Fernandes
18
Woodrow Wilson, cujos escritos estão dispersos e cujo pensamento apresentava poucos
aspectos em comum.
A noção de legitimar umas ideias em detrimento de outras é partilhada por rios
autores. Tal como salienta Brian Schmidt (2005: 8), existe frequentemente uma
tendência para escrever a história tendo em vista o objectivo de legitimar um programa
de investigação contemporâneo, o que permite fazer referências ao campo de estudo de
uma forma que revela autoridade. O problema não é apenas, nem tão-só, o facto de a
análise histórica ser utilizada para fazer prevalecer ou corroborar um argumento relativo
ao presente, mas o facto de a própria história ser alterada e distorcida de forma a
legitimar uma posição a priori, ou para criticar uma posição de outrem.
Esta é também a opinião de Cameron G. Thies (2002), que argumenta que a forma mais
comum de avaliar o progresso na teoria das relações internacionais tem sido através da
construção da história da disciplina por determinadas comunidades de investigadores.
No caso de esse exercício ser profícuo, então o mesmo servirá para legitimar as posições
dessa comunidade de investigadores contra as posições dos seus opositores, criando
simultaneamente uma ideia de progresso no âmbito da disciplina. No seu entender, os
chamados ‘grandes debates’ têm marcado o progresso na disciplina das Relações
Internacionais, e têm servido para manter a identidade de determinadas comunidades
de investigadores (Thies, 2002: 148). Na base deste argumento está também, como
refere Peter Wilson (1998: 1), o facto de não existir um corpo unificado de textos e
autores que se intitulem ‘idealistas’, ou um ou mais autores respeitados pela comunidade
investigadora, o que faz com que os ‘realistas’ se refiram a eles de uma forma genérica,
e excepcionalmente se refiram de forma concreta a artigos ou autores conotados com
o idealismo.
Outros autores dão maior relevância às implicações da interpretação da obra de Edward
Carr, e aos fundamentos dos pensamentos idealista e realista para a teoria das relações
internacionais. De acordo com a opinião de Ken Booth (1991), que se pode caracterizar
como desconstrutivista, a obra de Edward Carr padece de alguma confusão no que
concerne à forma como se posicionava relativamente ao utopismo e ao realismo. Esta
posição relativamente ambígua por parte do autor faz com que seja sobretudo lembrado
pela sua crítica em relação à impossibilidade de reconciliação entre utopia e realidade.
Para Ken Booth, e tal como foi acima referido, Edward Carr também relevou a
necessidade de aceitar como necessárias tanto a utopia como a realidade, onde
coexistem poder e moralidade.
A ambiguidade na linguagem de Carr conduziu também a um certo aproveitamento por
parte dos realistas, numa tentativa de colagem deste autor às suas teses, quando na
verdade Carr, em diversos pontos da sua obra, criticou também o realismo, por
considerar que a ordem internacional não podia apenas ser fundada no poder. Na opinião
de alguns autores, como Molloy (2014: 460),
“As críticas de Carr’s ao Utopianismo e ao Realismo são similares
em tom e em conteúdo”.
8
8
No original, “Carr’s critiques of both Utopianism and Realism are similar in tone and content”.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017), pp. 14-27
Idealismo e Realismo nas Relações Internacionais: um debate ontológico
Vítor Ramon Fernandes
19
Para Ken Booth (1996: 329), existe uma simplificação e adulteração da posição de
autores fundamentais, em especial no que toca à interpretação vulgarmente feita da
suposta posição idealista de Davis e da mitificada posição realista de Carr
9
. O que isto
demonstra também, do meu ponto de vista, é a existência de um quase maniqueísmo no
campo das Relações Internacionais desde a institucionalização da disciplina,
caracterizado pelo confronto entre pensamento realista e idealista.
Diferentes filosofias da história
Andreas Osiander (1998: 409) concorda com a ideia de que o debate entre idealistas e
realistas apresentado por Edward Carr em The Twenty Years’ Crisis revela uma
construção distorcida sobre o pensamento idealista. No entanto, Osiander tem uma visão
diferente, na sua opinião revisionista, sobre a forma como o pensamento dos autores
idealistas que são fundamentalmente os mesmos citados por Hedley Bull (1972) em
The Theory of International Politics, 1919-1969 foi interpretada a partir da obra de
Edward Carr por autores realistas, com o objectivo de corroborar as suas teses em defesa
do pensamento realista.
Esses autores idealistas estavam familiarizados com as teses realistas, mas o que os
distinguia destes era sobretudo um modo diferente de encarar a filosofia da história. No
caso dos idealistas, estamos perante uma filosofia da história direccional, enquanto no
caso dos realistas, esta é clica. Osiander (1998: 418-419) argumenta que muita
literatura referente aos idealistas se baseia em falsas premissas, e que enquanto para os
idealistas se adoptou uma interpretação direccional da história, no caso dos realistas
adoptou-se uma interpretação cíclica, associada a uma visão de recorrência e repetição,
tal como refere também Martin Wight (1966: 25) em Why is there no international
theory?”. No entanto, de acordo com Andreas Osiander (1998), embora essa ideia de
que o que separava idealistas de realistas eram visões diferentes da história tenha
circulado no início do século XX, muitos autores das Relações Internacionais argumentam
que o que, de facto, ocorreu à partida foi uma construção por parte dos realistas para
sustentarem a sua própria posição.
A opinião de Andreas Osiander assemelha-se à ideia defendida por Robert Crawford
(2000) sobre a existência de uma dicotomia e de uma tensão entre os pensamentos
idealista e realista, que reflecte visões opostas da realidade. Na opinião deste último
autor, a disciplina das Relações Internacionais tem estado sujeita a uma pressão no
sentido de uma crescente sujeição aos métodos científicos, em que o pensamento realista
aparece como referência, como corrente-padrão em relação à qual todas as outras são
comparadas, o que conduz a uma concepção monista da disciplina.
Mas, na realidade, as Relações Internacionais enquanto área disciplinar, são cruzadas
por múltiplas e variadas tradições intelectuais, não sendo possível eleger nenhuma delas
como preferencial. Ao mesmo tempo, também é verdade que tem havido a tendência
para considerar o debate entre idealismo e realismo como um confronto sério de ideias,
mas facilmente reconciliável numa concepção unitária, através da qual se tenta construir
uma disciplina homogénea e coerente, baseada numa metodologia científica (Crawford,
9
Booth está a referir-se às posições de Davis, um galês, membro do parlamento, mas também industrial e
proprietário, que patrocinou a cadeira Woodrow Wilson na prestigiada University of Wales, Aberystwyth em
1919, e ao citado Edward Carr.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017), pp. 14-27
Idealismo e Realismo nas Relações Internacionais: um debate ontológico
Vítor Ramon Fernandes
20
2000: 4-5). No entanto, para Robert Crawford, o debate idealismo-realismo consiste num
debate de ideias que estão em franca oposição e que não podem ser conciliáveis, na
medida em que se fundam em ontologias diferentes.
A Escola Inglesa enquanto tentativa de conciliar posições extremas
Neste debate ontológico entre realismo e idealismo merece destaque a Escola Inglesa, a
que vulgarmente se denomina como via media nas Relações Internacionais, no âmbito
da tradição grociana entre as tradições realista e revolucionista. A Escola Inglesa tem
sofrido uma grande evolução ao longo do tempo, mas na versão de Hedley Bull e Martin
Wight a discussão essencial centra-se à volta de existência de uma sociedade
internacional e da sua natureza, na tradição de Hugo Grotius, e, mais concretamente das
instituições que constroem essa sociedade, tais como a guerra, a diplomacia e a balança
do poder.
O principal argumento da Escola Inglesa é o de que os Estados soberanos são parte de
uma sociedade. Essa sociedade é anárquica, no sentido em que não existe uma entidade
acima desses Estados que os possa coagir ou punir em caso de incumprimento de leis
estabelecidas, mas tal não significa que seja uma sociedade caótica. No entanto, tal
também não significa que a violência não seja reconhecida e tida em consideração,
embora a Escola Inglesa atribua bastante importância a questões normativas, em
especial às regras, às leis, às instituições, e à moral, enquanto elementos relevantes na
organização dessa sociedade internacional.
Na opinião de Dunne (1998: 1), a Escola Inglesa tem pontos de convergência com o
realismo, embora não se confunda com este.
10
Para Dunne (1995: 128-129), é no
realismo inglês, no período entre os finais dos anos 30 e o início dos anos 50, que se
encontra o ponto de partida para se compreender a evolução da Escola Inglesa. A partir
da publicação em 1939 da obra The Twenty Years’ Crisis de Edward Carr, vários outros
autores se debruçaram sobre o pensamento realista, e sobre as ideias idealistas (até à
altura predominantes), para melhor compreenderem o contexto internacional e o
convívio entre os Estados.
No entender deste autor, o posicionamento de Carr enquanto realista é, no mínimo,
polémico, mas Dunne considera que na análise de Carr sobre as antinomias entre o
realismo e o idealismo, existem pontos comuns com a Escola Inglesa. Tal como considera
Booth (1991: 530-531), Carr não considerava o realismo uma corrente vencedora sobre
o idealismo, pois essa opinião não tem em consideração a visão antinómica do autor.
Como salienta Dunne (1995: 129), a relação de Carr com a Escola Inglesa é ambígua. É
a partir daqui que Hedley Bull critica a falta de reconhecimento de Carr em relação à
sociedade internacional, e Martin Wight (2004) elabora sobre a política internacional,
referindo-se à política de poder como algo inevitável. A evolução que se verifica a partir
do início dos anos 50 no pensamento de autores como Martin Wight vai no sentido de
uma preocupação por normas e instituições internacionais, e a elaboração de teoria deu
origem à criação do British Committee
11
, que reúne pela primeira vez em 1959. Esta
10
Sobre a Escola Inglesa consultar, por exemplo, Dunne (1998), Buzan (2004), Linklater e Suganami (2006).
11
Tradução “Comissão Britânica”. Esta comissão foi formada por um grupo de académicos, criada em 1959
sob a liderança de um historiador, Herbert Butterfield e contando também com outros membros, tais como,
Martin Wight, Hedley Bull e Adam Watson. Era financiada pela Fundação Rockefeller e reunia cerca de três
vezes por ano em Brighton, Cambridge, Londres ou Oxford, entre os anos 50 e 80, com o objectivo de
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017), pp. 14-27
Idealismo e Realismo nas Relações Internacionais: um debate ontológico
Vítor Ramon Fernandes
21
comissão acabou por não envolver Carr, mas os motivos da sua não-inclusão parecem
ter tido mais a ver com questões pessoais do que científicas.
Em relação às situações que podem ocorrer no contexto internacional, e que têm
subjacentes visões ontológicas diferentes, merece destaque a análise que Wight (1994)
faz sobre a política internacional, na qual distingue três tradições: a realista, a
racionalista e a revolucionária. Na mesma linha de pensamento, embora mais atenta a
noções como solidariedade e comunidade do que a de Martin Wight, encontra-se a obra
de Hedley Bull (2002) The Anarchical Society, em que o autor define e elabora sobre as
tradições realista, grociana e kantiana, ou universalista. O argumento de Hedley Bull
(2002: 39) é que a sociedade internacional reflecte as três tradições, mas que em
determinados momentos ou geografias, e tendo em consideração diferentes políticas
adoptadas pelos Estados, um desses elementos pode preponderar sobre os demais. A
ideia fundamental subjacente a esta perspectiva racionalista, ou grociana, de Hedley Bull
é a de que as relações entre os Estados são condicionadas pela prudência, mas também
por imperativos morais e de cooperação. Tanto Martin Wight como Hedley Bull
consideram que esta perspectiva se situa entre as perspectivas realista e kantiana, e daí
a designação de via media entre a corrente realista e a idealista.
Hedley Bull (2002: 13) distingue também entre sistema internacional e sociedade
internacional, na medida em que uma sociedade internacional implica a existência de um
sistema internacional, mas não o inverso, pois a existência de uma sociedade
internacional pressupõe que determinadas características estão presentes no sistema
internacional. Mais especificamente, na sociedade internacional existe por parte dos
Estados a consciência da existência de interesses e valores comuns que os ligam e os
unem de alguma forma, fazendo-os partilhar os seus esforços nos trabalhos
desenvolvidos por instituições comuns, tal como ocorre com várias instituições
internacionais. No fundo, o pensamento destes autores contempla os três conceitos
acima referidos.
Os membros das Escola Inglesa aparentam estar sempre a oscilar entre o realismo e o
idealismo, numa tensão permanente entre ontologias diferentes, tendendo para uma
destas noções, ou então, como sublinha Tim Dunne (1995: 126), através da combinação
das três tradições de Martin Wight, em que a noção de sociedade internacional deriva do
racionalismo de Vattel.
Morgenthau, o poder e a ética da responsabilidade
Para Hans Morgenthau (1985: 37), a luta pelo poder está sempre presente em toda a
política, afirmando que
“sendo o desejo de poder o elemento distintivo da política
internacional, como de toda a política, a política internacional é por
necessidade política de poder”
12
.
discutir e analisar aquilo que eram considerados na altura os principais temas e problemáticas nos campos
da teoria e da história das relações internacionais. Os seus estudos são considerados como tendo tido um
impacto significativo no desenvolvimento no campo da história e teoria das relações internacionais.
12
No original, The aspiration for power being the distinguishing element of international politics, as of all
politics, international politics is of necessity power politics”.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017), pp. 14-27
Idealismo e Realismo nas Relações Internacionais: um debate ontológico
Vítor Ramon Fernandes
22
Este autor enfatiza a luta pelo poder mas também a natureza trágica da política, que
atribui à natureza humana, e que se define por um desejo ilimitado de domínio sobre os
outros homens (Morgenthau 1946: 193). Mais ainda, considera que
“[É]esta ubiquidade do desejo de poder que, à parte e para além de
qualquer egoísmo ou propósito maldoso, constitui a ubiquidade da
maldade na acção humana” (Morgenthau, 1946: 194)
13
.
E é por isso que a política é, na sua essência, uma luta pelo poder sem limites nem fim
e dificilmente se lhe consegue escapar (1946: 201).
A posição de Morgenthau denota um certo sentido trágico na relação que o homem tem
com o poder, de tensão dentro de si mesmo, como sublinha Rengger (2007: 124),
reflectindo também o seu posicionamento ontológico. Mas embora a procura de poder
seja a principal ambição do homem na política, tal não significa que ela seja a única
(Cozette, 2008: 668). Existem em Morgenthau preocupações de carácter moral, pois este
autor também refere que
“[O] homem é um animal político por natureza, ele é um cientista
político por acaso ou escolha, ele é um moralista porque é um
homem” (Morgenthau, 1946: 7)
14
.
Isto é, os juízos morais o considerados características do ser humano e é isso que o
torna verdadeiramente humano.
Contrariamente ao que normalmente é considerado, e apesar da sua visão pessimista
sobre a política internacional, este autor tem preocupações de teor ético e moral, para
além da questão da luta pelo poder. Na opinião de Molloy (2003: 82), embora para
Morgenthau todas as decisões políticas se devam abstrair de princípios morais, este autor
considera possível uma abordagem moral da política se esta for baseada numa
moralidade do mal menor.
No entanto, para Morgenthau, na sua essência a política internacional não se coaduna
com boas intenções, requerendo uma ética de responsabilidade, na medida em o que
está em causa é a segurança de um Estado. Contrariamente aos argumentos idealistas,
a política internacional envolve escolhas difíceis, eventualmente até dolorosas.
Morgenthau reconhece a necessidade ética de justificar as acções e -lo através de uma
escolha entre as duas antinomias de Max Weber (1963: 206), a ética da responsabilidade
e a ética da convicção, recaindo a sua preferência claramente sobre a primeira. Esta
13
No original “It is this ubiquity of the desire for power which, besides and beyond any particular selfishness
or other evil purpose, constitutes the ubiquity of evilness in human action” (1946: 194).
14
No original, “Man is a political animal by nature, he is a scientist by chance or choice, he is a moralist
because he is a man”.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017), pp. 14-27
Idealismo e Realismo nas Relações Internacionais: um debate ontológico
Vítor Ramon Fernandes
23
preocupação com a sobrevivência do Estado acima de tudo, e a opção por uma ética da
responsabilidade, são aspectos que claramente o aproximam de Max Weber
15
.
Do que se trata é de considerar que embora existam valores éticos e morais, o homem
político tem de se abstrair deles nas suas decisões políticas, o que é uma resultante da
sua posição ontológica. E por esse motivo, a sua posição não é amoral ou desprovida de
ética, apenas tem de se abstrair da moral nas suas acções e decisões, não obstante ter
de as justificar em termos éticos, justificando assim a sua posição realista e rejeição do
idealismo.
Aron: a tensão entre realismo e idealismo
Ao analisar o idealismo e o realismo, Aron (2004: 567-596) apresenta-nos uma posição
de alguma tensão entre estas duas posições ontológicas
16
Para este autor, é uma ilusão pensar-se que é possível evitar conflitos, em particular a
guerra, e que uma paz duradoura pode ser alcançada através apenas de uma diplomacia
fundada em considerações normativas de boa conduta e baseada em princípios de ordem
moral. O idealismo é visto por alguns autores como uma profunda convicção no
cumprimento total das regras e das normas jurídicas definidas na conduta entre os
Estados, com o objectivo de evitar a guerra. Mais ainda, essa convicção parte do princípio
de que todos os Estados estão interessados na manutenção da ordem jurídica e que, no
caso de agressão a um deles, os outros se prestariam a auxiliar o agredido.
Mas estes princípios de segurança colectiva são de difícil execução, pois implicam
também, e de início, uma concordância dos Estados na definição de quem é o agressor
e uma partilha de sentimento relativa à avaliação dos actos cometidos. Mesmo que o
Estado agressor seja facilmente identificado, é necessária a formação de alianças ou
coligações para defesa do Estado agredido, o que pressupõe que os outros Estados estão,
de facto, interessados e empenhados na manutenção da ordem internacional e
concordam em agir de modo a punir o agressor. Neste tipo de processo poder-se-á
verificar todo um conjunto de situações, e em função da relação de forças entre o Estado
agressor e essa coligação vários desfechos são possíveis, desde a capitulação à guerra
total, resultados que acabam por ser contrários aos objectivos pretendidos. A doutrina
idealista torna-se, assim, perigosa no que respeita à condução da política exterior, na
medida em que ela se fecha sobre si mesma, através da adopção de princípios
normativos. A este propósito, Raymond Aron (2004: 572) refere que
A crítica da ‘ilusão idealista’ não é apenas pragmática, mas também
moral. A diplomacia idealista torna-se frequentemente fanática, ela
divide os Estados em bons e maus, em pacíficos (peace loving) e
15
A oposição entre a ética da responsabilidade e a ética da convicção é apresentada por Max Weber em
(Weber, 1963: 206).
16
No domínio das correntes de pensamento nas Relações Internacionais, Raymond Aron é habitualmente
classificado como um realista clássico, tal como Hans Morgenthau. Para uma análise e uma perspectiva
diferentes relativamente ao pensamento internacionalista de Aron ver, designadamente Ramon-Fernandes
(2015).
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017), pp. 14-27
Idealismo e Realismo nas Relações Internacionais: um debate ontológico
Vítor Ramon Fernandes
24
beligerantes e imagina uma paz definitiva pela punição dos
primeiros e o triunfo dos segundos
17
.
No entanto, é interessante verificar que, quando se refere a esta questão da ‘ilusão
idealista’, Raymond Aron (2004: 578) compara a posição de H. Von Treitschke e a de G.
F. Kennan. Treitschke era um historiador nacionalista alemão que tinha uma posição de
total aceitação da política de poder, inclusive da guerra, considerando-as necessárias, e
que exaltava a prudência a partir da política de poder e do seu nacionalismo, e Kennan
que aceitava, resignado, a política de poder, de modo a evitar outros males maiores.
Tanto Treitschke como Kennan fazem a apologia da prudência e consideram o poder
como importante. Mas curiosamente, e Raymond Aron sublinha este facto, Treitschke
considerava-se um idealista, enquanto G. F. Kennan não se opunha a ser classificado
como realista. O que parece estar em causa é que o idealista, tal como o realista, deverá
compreender a sua época, não ignorando a possibilidade de violência, e aceitando que a
resolução de conflitos requer que se tenha em conta a relação de forças entre os Estados,
e que toda a acção deve contemplar prudência e uma conduta diplomático-estratégica.
Não existe forçosamente incompatibilidade entre ser um idealista e reconhecer a
violência e a guerra. Aquilo a que Raymond Aron se opõe verdadeiramente - e por isso
se refere à ‘ilusão idealista’ - é à atitude de menosprezo da guerra e da violência como
forma de agir nas relações internacionais, que a maioria dos idealistas da época parecia
revelar. Não se trata, pois, de condenar o idealismo por completo, mas apenas de lhe
apontar algumas debilidades
18
.
Apesar disso, Raymond Aron (2004: 581) considera que o realismo tem em consideração
e reconhece melhor aquilo que é o egoísmo dos Estados e os seus interesses do que o
idealismo. No entanto, ao considerarem o poder como o objectivo último dos Estados, os
realistas, em particular os norte-americanos, não têm em consideração a ideia de que
embora os Estados coexistam sem a existência de um árbitro ou de uma política
supranacional, eles limitam a sua liberdade de acção através das obrigações em que
incorrem, designadamente a assinatura de acordos e tratados, embora possam também
recorrer à força armada para resolução de conflitos (Aron, 2004: 582). Assim, a ausência
de um poder soberano não é incompatível com a noção de que a vida internacional não
possa ser regida contratualmente (no sentido da filosofia política), existindo regras e
normas de conduta, que no entanto não excluem nem evitam a utilização da violência. E
salienta que a escola realista está um pouco recuada em relação ao pensamento
tradicional europeu
19
, pois a obsessão dos realistas em relação ao poder fez com que o
vissem sempre como alternativa à lei ou à moralidade, acabando assim por definir a
política internacional pelo poder e não pela ausência de um árbitro ou de uma política
17
No original, “La critique de l’illusion idéaliste n’est pas seulement pragmatique, elle est aussi morale. La
diplomatie idéaliste glisse trop souvent au fanatisme, elle divise les États en bons et mauvais, en pacifiques
(peace loving) et belliqueux, elle imagine une paix définitive par la punition des premiers et le triomphe des
seconds ".
18
Do que se trata é de não aceitar que se adoptem formas absolutas de moralidade, que não dão espaço para
excepções e não têm em consideração as possíveis consequências das acções no plano da política
internacional, caindo na tentação de um moralismo enquanto doutrina que considera a moral absoluta e
valendo-se a ela mesma e que, por esse motivo, facilmente se pode tornar fanática. Relativamente à relação
entre a moralidade e a política, e muito particularmente, a distinção entre diversos tipos de moralismo e
moralidade, ver Coady (2008).
19
Raymond Aron o explicita a que se refere, mas facilmente se identifica o pensamento de autores das
Relações Internacionais, tais como, Martin Wight e Hedley Bull.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017), pp. 14-27
Idealismo e Realismo nas Relações Internacionais: um debate ontológico
Vítor Ramon Fernandes
25
acima dos Estados. Na realidade, face ao egoísmo nacional que prevalece entre os
Estados no “estado de natureza”, a conduta diplomático-estratégica dos Estados para
utilizar a terminologia de Raymond Aron, e que abarca o exercício das funções
diplomáticas inerentes ao diplomata e a estratégia e a guerra, que são funções inerentes
ao soldado, tomando um e outro como personagens simbólicas dos dois tipos de conduta
, deve procurar estar de acordo com princípios normativos e ideias, e não como o que
ocorre com os animais na selva Aron (2004: 568-569).
Esta posição está em sintonia com o facto de, por intermédio dos seus governantes, os
Estados necessitarem e terem a obrigação de salvaguardar os seus interesses vitais,
agindo de acordo com normas e costumes que podem ser mais ou menos respeitados,
mas com o risco, sempre latente, de que a guerra seja decretada pelos dirigentes.
No entanto, tanto o pensamento idealista como o realista são considerados posições
extremas. O idealista, pelas razões que se prendem com a ocorrência das atrocidades da
Grande Guerra, e pela sua rejeição da importância do poder nas relações
internacionais; o realista, precisamente pela sua ênfase no poder, em oposição e reacção
a essa outra corrente de pensamento. É essa necessidade de reacção que explica,
segundo Raymond Aron (2004: 16), o posicionamento tão extremado do realismo em
relação ao idealismo, a seu ver desadequado.
O pensamento internacionalista de Raymond Aron reflecte inúmeras tensões e
antinomias, entre as quais vale a pena salientar precisamente idealismo versus realismo.
Para Aron, o idealismo e o realismo não são concepções contraditórias, mas
complementares; no fundo, este antagonismo mais não é do que uma vertente do
‘debate eterno’ entre maquiavelismo e moralismo
20
.
Conclusões
O debate entre realismo e idealismo pode ser caracterizado por duas visões ontológicas
extremas e opostas sobre as relações internacionais, de onde resultam considerações e
acções diferentes relativamente à forma como os Estados se relacionam na sociedade
internacional. Ainda assim, elas não são, nem forçosa nem mutuamente, exclusivas. No
contexto da política internacional dos Estados, a questão que se coloca é a de saber se
estes, na sua qualidade de soberanos, têm a obrigação de obedecer a critérios morais ou
a outros princípios, designadamente normas jurídicas ou legais, ou se, pelo contrário,
podem agir da forma que melhor sirva os seus desígnios e interesses, regendo-se
unicamente pelo objectivo de maximização do poder. Trata-se, naturalmente, de duas
respostas distintas ao problema da ordem”
21
e que se enquadram mais numa
determinada tradição de pensamento no domínio das Relações Internacionais, podendo,
no entanto, existir sobreposições entre elas.
Referências bibliográficas
Aron, R. (2004). Paix et guerre entre les nations. Paris: Calmann-vy.
20
Sobre este debate, ver Ramon-Fernandes (2013).
21
Sobre o ‘problema da ordem’, ver Rengger (2000).
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017), pp. 14-27
Idealismo e Realismo nas Relações Internacionais: um debate ontológico
Vítor Ramon Fernandes
26
Ashworth, L. (2002). «Did the Realist-Idealist Great Debate Really Happen? A Revisionist
History of International Relations». International Relations, 16 (1), pp. 33-51.
Booth, K. (1991). «Security in anarchy: utopian realism in theory and practice».
International Affairs, 67 (3), pp. 527-545.
Booth, K. (1996). «75 years on: rewriting the subject´s past reinventing its future».
In S. Smith, K. Booth, M. Zalewski (eds). International Theory: Positivism & Beyond.
Cambridge: Cambridge University Press, pp. 328-339.
Bull, H. (1972). «The Theory of International Politics 1919-1969». In B. Porter (ed). The
Aberystwyth Papers: International Politics 1919-1969. Oxford: Oxford University Press,
pp. 30-55. Republicado In J. Der Derian, ed. (1995). International Theory: Critical
Investigations. Londres: Macmillan, pp. 181-211.
Bull, H. (2002). The Anarchical Society: A Study of Order in World Politics. Nova Iorque:
Palgrave.
Buzan, B. (2004). From International Society to World Society? English School Theory
and the Social Structure of Globalization. Cambridge: Cambridge University Press.
Carr, E. (1995). The Twenty Years’ Crisis, 1919-1939. Londres: MacMillan.
Coady, C. A. (2008). Messy Morality: The Challenge of Politics. Oxford: Oxford University
Press.
Cozette, M. (2008). «What Lies Ahead: Classical Realism on the Future of International
Relations». International Studies Review, 10, pp. 667-679.
Crawford, R. (2000). Idealism and Realism in International Relations: Beyond the
Discipline. Londres: Routledge.
Dunne, T. (1995). «International Society: Theoretical Promises Fulfilled?». Cooperation
and Conflict, 30 (2), pp. 125-154.
Dunne, T. (1998). Inventing International Society: A History of the English School,
Houndmills: MacMillan Press, Ltd.
Dunne, T. Liberalism. In Baylis, J. e Smith, S (eds) (2014). The Globalization of World
Politics. Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press, Cap. 7, pp. 113-125.
Linklater, A. e Suganami, H. (2006). The English School of International Relations: A
Contemporary Reassessment, Cambridge University Press.
Molloy, S. (2003). «Realism: A Problematic Paradigm». Security Dialogue, 34 (1), pp.
71-85.
Molloy, S. (2014). «Pragmatism, Realism and the ethics of crisis and transformation in
international relations». International Theory, 6 (3), pp. 454-489.
Morgenthau, H. (1946). Scientific Man versus Power Politics. Chicago: Chicago University
Press.
Morgenthau, H. (1985). Politics Among Nations The Struggle for Power and Peace. Nova
Iorque: McGraw-Hill.
Osiander, A. (1998). «Rereading early Twenty-Century IR theory: Idealism revisited».
International Studies Quarterly, 42 (3), pp. 409-432.
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017), pp. 14-27
Idealismo e Realismo nas Relações Internacionais: um debate ontológico
Vítor Ramon Fernandes
27
Ramon-Fernandes, V. (2013). «As antinomias políticas e a constituição da ordem
internacional segundo Raymond Aron». Revista Portuguesa de Ciência Política,
Observatório Político, nº 3, pp. 135-141.
Ramon-Fernandes, V. (2015). «Ontologia e Epistemologia da Ordem Internacional em
Raymond Aron». Relações Internacionais, IPRI, 45, Mar: 2015, pp. 111-122.
Rengger, N. J. (2000). International Relations, Political Theory and the Problem of Order
Beyond International Relations Theory? Londres: Routledge.
Rengger, N. J. (2007). «Realism, tragedy, and the anti-pelagian imagination in
international political thought». In Michael Willams (ed.). Realism Reconsidered The
Legacy of Hans J. Morgenthau in International Relations. Oxford: Oxford University Press,
Cap. 5, pp. 118-136.
Schmidt, B. (2005). «On the history and historiography of International Relations». In
W. Carlsnaes, T. Risse, B. A. Simmons (eds.). Handbook of International Relations.
ed. Londres: Sage Publications, pp. 3-28.
Thies, C.G. (2002). «Progress, history and identity in International Relations Theory: The
case of the idealist-realist debate». European Journal of International Relations, 8 (2),
pp. 147-185.
Weber, M. (1963). Le savant et le politique. Paris: Librairie Plon.
Wight, M. (1966). «Why is there no international theory?». In J. Der Derian, ed. (1995).
International Theory: Critical Investigations. Londres: Macmillan, pp. 17-34.
Wight, M. (1994). «Edição e notas de G. Wight e B. Porter». International Theory - The
Three Traditions. Londres: Leicester University Press.
Wight, M., (2004). «Edição de H. Bull e C. Holbraad». Power Politics. Londres:
Continuum.
Wilson, P. (1998). «The myth of the First Great Debate’». In T. Dunne, M. Cox, K. Booth,
eds. (1998). The Eighty Years’ Crisis: International Relations 1919-1999. Cambridge:
Cambridge University Press, pp. 1-15.