OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017)
Artigos
Luísa Godinho - Discurso e Relações Internacionais: uma abordagem teórico-
metodológica - pp. 1-13
Vitor Ramon Fernandes - Idealismo e realismo nas Relações Internacionais: um
debate ontológico - pp. 14-27
María del Pilar Álvarez, María del Mar Lunaklick e Tomás Muñoz - Los límites
del perdón en las relaciones internacionales: Los grupos a favor del Santuario
Yasukuni en Japón y las tensiones políticas en el Este de Asia - pp. 28-53
Vicente Valentim - O debate sobre a relação entre globalização, pobreza e desigualdade:
uma visão crítica - pp. 54-68
Pedro Velez - Sobre a ordem constitucional no/do fascismo italiano - pp. 69-96
Olivia Velarde Hermida e Francisco Bernete García - La producción social de
comunicación cuando el mundo se globaliza - pp. 97-111
Inês Amaral e Silvino Lopes Évora - Interfaces da Lusofonia: lusófonos em rede
no Facebook - pp. 112-128
Maria del Pilar Bueno e Gonzalo Pascual - La arquitectura climática internacional
en ciernes: el rol del BASIC en las negociaciones hacia París - pp. 129-150
Recensão crítica
Matheus Gonzaga Teles - Wight, Martin (2002). A Política do Poder. Brasília:
Editora Universidade de Brasília: 329 pp. ISBN: ISBN: 85-230-0040-2 - pp. 151-156
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DISCURSO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS: UMA ABORDAGEM TEÓRICO-
METODOLÓGICA
Luísa Godinho
lgodinho23@yahoo.com.br
Professora Auxiliar na Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal) e investigadora na área da
Comunicação Política. Os seus interesses académicos situam-se nos campos do discurso, da
comunicação digital e da abordagem computacional às Ciências Sociais.
É doutorada em Ciências Económicas e Sociais pela Université de Genève, Suíça.
Resumo
No presente artigo, a relação entre os agentes internacionais é entendida como um processo
comunicativo que tem no discurso o seu instrumento central, perspetiva que tem conhecido
uma expansão assinalável, nas últimas décadas, no campo das Relações Internacionais. Esta
profusão tem, no entanto, sido acompanhada por frequentes apelos a uma maior clarificação
metodológica nos trabalhos académicos realizados. O presente artigo visa dar um contributo
neste sentido, fornecendo uma visão integrada das abordagens discursivas no campo das
Relações Internacionais e apresentando um quadro atualizado da teoria do contexto.
Palavras-chave
Linguagem; Discurso; Construtivismo; Contexto; Metodologia
Como citar este artigo
Godinho, Luísa (2016). "Discurso e Relações Internacionais: uma abordagem teórico-
metodológica". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 7, N.º 2, Novembro 2016-
Abril 2017. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.autonoma.pt/janus.net/pt_vol7_n2_art1 (http://hdl.handle.net/11144/2780)
Artigo recebido em 5 de Julho de 2016 e aceite para publicação em 25 de Setembro de
2016
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Discurso e Relações Internacionais: uma abordagem teórico-metodológica
Luísa Godinho
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DISCURSO E RELAÇÕES INTERNACIONAIS: UMA ABORDAGEM TEÓRICO-
METODOLÓGICA
Luísa Godinho
Desde a primeira metade do século XX, em particular a partir da década de 1940, que o
interesse das ciências sociais pelo sentido da linguagem foi remetido para a chamada
análise de conteúdo, reproduzindo o paradigma positivista dominante e, de certa forma,
demonstrando um significativo alheamento do legado intelectual de Wilhelm Dilthey
(Dilthey, 1883: 1900).
Dilthey reivindicara, no século XIX, uma cientificidade própria para as ciências sociais
(Dilthey, 1883, 1900), alicerçada no método explicativo, que se opunha ao tradicional
raciocínio das ciências naturais, fundado no paradigma central da demonstração
quantitativa. Ora, a análise de conteúdo, antecedente do estudo do discurso, nasceu
justamente no campo oposto ao diltheano, a partir de técnicas como a lexicografia e
crente na possibilidade do estudo empírico da palavra.
Desde os anos de 1960, graças ao aprofundamento analítico que o estudo do discurso,
entretanto conheceu (Van Dijk, 1972, 1977, 1988; Ducrot,1972, 1980, 1984; Grimes,
1975; Hall, et al., 1978), esse paradigma positivista acabaria sendo desafiado pela
necessidade de explicar o sentido do que era dito, abrindo assim a porta para a análise
qualitativa e para a necessária interdisciplinaridade entre as duas abordagens. O texto
deixou, por isso, de ser considerado um articulado fechado a que a análise estatística
permitia aceder, passando a ser entendido enquanto estrutura de significados, aberta e
dependente do seu contexto, e que muitas disciplinas podiam ambicionar desvendar, da
Sociologia à História, da Psicologia à Antropologia, do Direito às Relações Internacionais
(RI). O potencial científico desta nova abordagem discursiva não tardaria a ser
demonstrado por um galopante número de estudos em todos os setores das
humanidades.
Também no campo das RI se notou um crescente interesse pelo estudo da política
mundial enquanto construção social e um recurso cada vez maior à análise do discurso
como instrumento de análise. Segundo Müller, este interesse tem recaído sobre uma
vasta panóplia de temas, desde «a produção retórica da marginalidade, da resistência e
da alteridadem RI ao
«poder constitutivo e disciplinador dos discursos internacionais
como regimes de verdade. Do mesmo modo, o discurso e a sua
análise têm estado entre os conceitos mais populares no estudo da
formação das identidades geopolíticas» (Müller, 2010: 1).
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Não obstante este interesse crescente pela abordagem discursiva dos fenómenos
internacionais, proliferam as chamadas de atenção para a necessidade de uma maior
sistematização metodológica nos estudos realizados, reparo que se estende aos trabalhos
de análise do discurso produzidos em todos os domínios das ciências sociais.
Tal como notou Müller, o alerta metodológico acompanhou o nascimento das principais
publicações da área do discurso, tendo Van Dijk, um dos mais proeminentes autores,
sublinhado, logo no primeiro editorial que redigiu para a revista Discourse and Society,
a necessidade de
«análises explícitas e sistemáticas baseadas em métodos e teorias
sérios» (Van Dijk, 1990: 14). Mais de uma cada passada sobre as
palavras de Van Dijk, Antaki e Checkel identificavam ainda, entre os
trabalhos realizados no domínio do discurso na área das Relações
Internacionais, uma lacuna descritiva e justificativa das «fontes e
técnicas utilizadas na reconstrução dos discursos» (Checkel, 2004:
7).
A necessidade de exigência metodológica é imperativa numa área de estudo que, como
é o caso da análise do discurso, pode fornecer um contributo inestimável para o campo
das RI. Uma análise do discurso das práticas internacionais, que articule análise textual
e análise contextual, permite a realização de inferências politológicas e sociológicas que
podem revestir-se de grande utilidade para a disciplina que aqui nos reúne. «É
precisamente esta análise integrada», escreve Van Dijk,
«que permite uma compreensão mais adequada da complexidade
das práticas, das instituições e dos processos políticos,
precisamente o tipo de objetos de análise que interessa aos
cientistas políticos» (Van Dijk, 1997: 41).
Van Dijk exemplifica a utilidade da abordagem discursiva em Ciência Política e RI com o
estudo de temas como a relação entre imigração e xenofobia, políticas de imigração e
integração social, posicionamento partidário e propaganda ou o tratamento pelos mass-
media de assuntos étnicos. Segundo o autor,
«o que está em causa aqui (no estudo do discurso sobre a imigração)
não o apenas os ‘fatos’ socioeconómicos da imigração dos outros.
Numa perspetiva simbólica, aquilo que está em causa é a forma como
políticos, jornalistas e blico pensam, falam e escrevem sobre o tema
e como esse discurso e essa cognição influenciam a ação política e, em
consequência, a estrutura política. É aqui que a análise do discurso pode
permitir explicações que, de outro modo, faltariam». (Van Dijk, 1997:
42).
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1. Os fundamentos teóricos da análise do discurso
A análise do discurso possuí profundíssimas raízes intelectuais repartidas entre a filosofia,
a linguística e a pragmática.
Na filosofia, o estudo do discurso nasce do movimento intelectual que consubstanciou a
chamada viragem interpretativa nas ciências sociais. Na raiz dessa viragem encontra-se,
por sua vez, a hermenêutica, que partilha com a filosofia analítica a ênfase na natureza
linguística da subjetividade. Autores como Heidegger, Ricoeur e Wittgenstein sublinharam
a impossibilidade de estudar a realidade sem compreender o(s) sentido(s) das ações dos
agentes sociais, o qual, por sua vez, pode ser apreendido através do estudo da
linguagem. É a linguagem que permite a partilha de conceitos e a construção da vida
social, pressuposto de onde derivam importantes teorias como a de Wittgenstein,
centrada no jogo de linguagem, assim como as revolucionárias escolas de Heidegger e
Gadamer, que sublinham o caráter social e histórico da própria subjetividade.
numa perspetiva linguística, as origens do estudo do discurso encontram-se na retórica
clássica, que reconhecia, mais de 2000 anos, que a qualidade de um texto não residia
apenas na sua correção formal, mas também na sua «eficácia persuasiva» (Van Dijk,
1985: 1). Segundo Van Dijk, o sucesso da disciplina perdurou ainda durante a Idade
Média e os séculos XVII e XVIII mas, no século XIX e no icio do século XX, a
preponderância da retórica nas humanidades acabaria por ser suplantada por áreas como
as linguísticas histórica e comparada bem como pela análise estrutural da linguagem. O
formalismo russo das décadas de 1920-30 fomentou o estudo da narrativa, até
confinado à linguística, noutras disciplinas como a psicologia e a antropologia e os frutos
desta interdisciplinaridade seriam ainda colhidos quarenta anos depois, no estruturalismo
francês, em obras de autores como Lévi-Strauss e Barthes, para nomear apenas alguns.
A linguística passaria, assim, a constituir um veículo para o estudo da cultura, dos mitos
e agora também do discurso, tema que conheceria a sua primeira publicação em 1964.
Tratou-se da obra coletiva Communications 4, dedicada em exclusivo à análise estrutural
do discurso e que incluía um revolucionário conjunto de temáticas, desde a análise
cinematográfica de Metz à análise retórica da publicidade, de Barthes, que assinou
também a primeira introdução à recém-formada disciplina de Semiologia. «Apesar do
enquadramento, das orientações, dos objetos de pesquisa e dos métodos de todos estes
autores estarem longe de ser homogéneos», escreve Van Dijk,
«o interesse comum na análise do discurso dentro do âmbito mais
vasto de uma semiótica inspirada na linguística influenciou e deu
coerência a estas primeiras tentativas» (Van Dijk, 1985: 3).
O estruturalismo francês deu o mote para a nova área do discurso, que cresceria durante
a década seguinte em dezenas de obras publicadas e aplicações em diversas disciplinas.
O impulso seguinte chegaria nos anos 70, com a descoberta pela linguística do trabalho
filosófico de Austin, Grice e Searle em torno dos atos de fala. No livro How to do things
with words (Austin, 1962), demonstra-se, pela primeira vez, de que forma e em que
circunstâncias é que falar é fazer, abrindo o campo da linguística à pragmática. A partir
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de Austin, o falante torna-se um ator social e a compreensão da vida em sociedade não
mais poderia passar sem o estudo da língua e da sua utilização.
À psicologia, o estudo do discurso permitiu desenvolver o cognitivismo contra a
predominância da corrente comportamental das décadas anteriores; a sociologia, pela
mão de autores como Goffman, dedicou-se à análise da estrutura social, estudando as
conversas quotidianas de falantes comuns; a antropologia, por seu lado, deu os primeiros
passos da chamada etnografia da fala, interessando-se pela linguagem e suas simbólicas;
o direito também se renderia ao estudo do discurso, depois de perceber que o seu objeto
- as leis, a ação legal, os documentos legais - possuía uma natureza eminentemente
discursiva; a história, cujas fontes e cujo trabalho são na maioria textuais, veria na
análise do discurso uma metodologia fundamental; no mesmo sentido, o estudo dos
meios de comunicação de massa encontrou na análise do discurso uma poderosa
ferramenta para compreender fenómenos como as condições de produção e receção da
mensagem, bem como o sentido da própria mensagem publicada.
Embora oriunda do campo da linguística, esta expansão da abordagem discursiva foi de
tal modo expressiva que, hoje, um número crescente de linguistas questiona mesmo a
qualificação da análise do discurso como uma área pertencente à ciência da língua.
2. A análise do discurso em Relações Internacionais
É à luz do quadro teórico precedente que o estudo do discurso em RI deve ser entendido.
Esta disciplina recebeu da pragmática a conceção da língua como ação social (Austin,
1962) e, por conseguinte, a dimensão performativa da palavra passou a constituir um
elemento fundamental para a compreensão do relacionamento entre os atores
internacionais.
As chamadas RI constituem, na sua essência, interões discursivas entre povos, ou seja,
textos que simultaneamente refletem e produzem um determinado contexto, tendo a
escola crítica sido pioneira nesta abordagem, baseando-se sobretudo no estudo dos
atores e nos efeitos que o discurso destes provoca nos contextos internacionais (ver
imagem 1).
A análise crítica do discurso parte de dois pressupostos fundamentais: em primeiro lugar,
implica a assunção de um determinado posicionamento por parte do investigador, que
abandona o distanciamento das abordagens clássicas, passando a assumir um conjunto
de premissas ideológicas na forma como estuda a realidade. Em segundo lugar, identifica
uma estreita relação entre a estrutura social e a linguística, tendendo a analisar os
sistemas políticos como sistemas linguísticos e as ideologias como textos que visam criar
uma vontade política coletiva.
Nos últimos anos, contudo, a abordagem tradicional passou a ser complementada por
análises situacionais e de proximidade, interessadas em compreender «os micro
contextos e as práticas quotidianas como focos de construção discursiva das identidades»
(Müller, 2010: 8). Paralelamente a esta expansão do objeto, verificou-se também uma
«reconcetualização do discurso e das identidades» (Müller, 2010: 8) internacionais,
seguindo uma perspetiva pós-estruturalista, passando estas a ser entendidas como
resultado de um complexo processo de construção discursiva e não como um atributo
natural, visão até predominante nas abordagens interpretativas e explicativas. Trata-
se, portanto, de uma viragem profunda no objeto de análise em RI. Os atores
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internacionais deixam de ser a unidade central de análise, o interesse deslocando-se
agora para a identidade desses mesmos atores e os processos discursivos que permitiram
a sua construção.
Imagem 1 – Transformação da abordagem discursiva em Relações Internacionais
Fonte: Müller, 2010.
A chamada viragem discursiva permitiu o aparecimento de uma grande variedade de
temas e abordagens metodológicas em RI (Müller, 2010). Wodak (Wodak, 1999) tem-se
concentrado na construção da identidade nacional, estudando em particular o caso da
União Europeia; Nonhoff (Nonhoff, 2006) investigou de que forma o projeto de uma
economia social de mercado na Alemanha do pós-guerra ganhou um tão amplo apoio
social, tendo demonstrado a existência de uma estratégia hegemónica centrada no texto
e nas condições particulares em que este foi produzido. Glasze (Glasze, 2007), por seu
lado, estudou o processo de construção da chamada francofonia como espaço
geocultural, com base em métodos provenientes da linguística, como a lexicometria e a
análise narrativa. Um conjunto de autores, entre os quais Shapiro (Shapiro, 1992),
debruçou-se ainda sobre os processos de articulação e contestação do sentido na
formação das identidades, tendo concluído que estes processos estão intimamente
dependentes dos contextos em que ocorrem. Neste sentido, as identidades nacionais
consistem em discursos em constante formação e reformulação, em diálogo permanente
com as condições de cada momento histórico.
Não obstante a primazia da escola crítica no reconhecimento do contributo da análise do
discurso para o domínio das Relações Internacionais, o construtivismo seguir-se-lhe-ia,
apostado, mais do que em reivindicar a importância do sentido dos atos internacionais
para a compreensão da relação entre povos, em demonstrar que os atos internacionais
constituem em si mesmos práticas discursivas socialmente construídas, ou seja, que «os
objetos de conhecimento não são independentes da interpretação nem da linguagem»
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(Adler, 2002: 95). Daqui se compreende que os construtivistas tenham incorporado áreas
como as da linguagem, da comunicação e do discurso no debate teórico em RI,
demonstrando, tal como nota Anna Holzscheiter que os factos internacionais «não o
naturais, mas antes resultado» de um processo de construção social (Holzscheiter, 2013:
4).
O volume e a diversidade de estudos seguindo a abordagem discursivo-construtivista em
RI permitem a identificação de diferentes linhas de investigação, segundo distintos
critérios: o da crença na possibilidade de objetivação dos fatos internacionais, seguindo
a proposta de Wendt e Kratochwil; o da dimensão da perspetiva de análise e o da
identidade do poder, seguindo as propostas de Anna Holzscheiter.
A proposta de Wendt e Kratochwil divide os estudos de tipo discursivo-construtivista em
duas categorias: a do chamado thin constructivism e a do thick constructivism, a primeira
crente na possibilidade de existência objetiva dos fatos internacionais, independente da
existência de um sujeito que os concetualiza, a segunda assente numa conceção
discursiva e linguística dos próprios atos internacionais, cuja existência resultaria em
exclusivo da própria intersubjetividade.
Imagem 2 - A abordagem discursivo-construtivista em Relações Internacionais
Critérios de abordagem
Thin constructivism
Thick constructivism
Macro-estrutural
Micro-interacional
Poder inter-subjetivo
Poder deliberativo
Tipo de abordagem
metodológica
Gramática
Estilística
Cognitiva
Não-verbal
Argumentação
Funcionalista
Texto em contexto
Hermenêutica
Análise ideológica
Análise de conteúdo
Análise experimental
Fonte: elaboração própria.
A segunda tipologia, de Anna Holzscheiter, organiza os estudos discursivo-construtivistas
segundo a dimensão da perspetiva de análise adotada: os estudos macro-estruturais,
que concebem o discurso como a estrutura línguística que determina a relação entre
atores internacionais, e os estudos micro-interacionais, abordagens pragmáticas
centradas nos processos comunicativos em tempo-real, em que os agentes constroem,
renegoceiam e transformam ativa e inter-subjetivamente interpretações partilhadas da
realidade» (Holzscheiter, 2013: 6).
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A terceira tipologia, identificada por esta mesma autora, atenta à relação entre poder e
discurso, binómio cuja paternidade moderna cabe a Michel Foucault e Jurgen Habermas
e que ainda hoje permanece como referência entre os cientistas sociais interessados em
compreender o papel da linguagem no processo de construção social. Cada um destes
autores, no entanto, encontra-se na base das duas grandes linhas de abordagem que
podem ser identificadas nos estudos construtivistas em RI: uma primeira que, seguindo
o legado de Foucault, entende os atos internacionais como ões discursivas construídas
inter-subjetivamente e impossível de serem objetivadas, ficando os atores reféns da sua
própria subjetividade; uma segunda, na herança de Habermas, crente na possibilidade
de uma emancipação deliberativa dos atores, emancipação garantida pelo debate público
racional. Os estudos de inspiração foucaultiana, pessimistas, centram-se no discurso
como forma de poder estrutural e totalitária; os de inspiração habermasiana, idealistas,
abordam o discurso como poder de libertação dos atores internacionais.
3. Tipos de análise discursiva em Relações Internacionais
Do ponto de vista metodológico, a análise do discurso em RI tem ao seu dispor um
conjunto de abordagens comum ao que se apresenta às outras ciências sociais e da
linguagem. Em bom rigor, por constituir um recente campo de análise, a área do discurso
não dispõe ainda de um corpo teórico específico e sólido, antes socorrendo-se de técnicas
e conceitos provenientes da linguística, da semântica, da psicologia, da sociologia e de
qualquer outra disciplina que lhe pareça útil à compreensão da linguagem em sociedade.
É justamente nesta interdisciplinaridade que reside a sua riqueza analítica.
As abordagens discursivas hoje disponíveis no estudo das Relações Internacionais
constituem um número e uma variedade consideráveis, dividindo-se em três grandes
grupos: as abordagens descritivas, as abordagens funcionalistas e um conjunto de outras
abordagens autónomas que não possuem relação direta entre si embora forneçam
importantes contributos para o estudo do discurso.
As análises de tipo descritivo consistem num conjunto de perspetivas de interpretação
alicerçadas na linguística, abordagem cuja pertinência advém do fato de o discurso ser,
antes de mais, uma forma de linguagem. Neste grupo enquadram-se a abordagem
gramática, preocupada em entender a formação das palavras e das frases e que se
subdivide na gramática «estrutural, generativa e funcional» e em subdisciplinas como a
«fonologia, a morfologia e a sintaxe» (Van Dijk, 1985:2); a abordagem estilística,
tradicionalmente remetida para a poética, a sociolinguística e a etnografia, auxilia agora
a análise do discurso dando indicações sobre a «adequação de determinado discurso a
uma certa situação social» (Van Dijk, 1985:2); a abordagem cognitiva entende o discurso
como resultado da interação social e, nesse sentido, o investigador deve ter em conta as
condições em que esta interação ocorre, nomeadamente a dimensão psicológica de
ambos os interlocutores; o estudo da atividade não-verbal que acompanha a produção
do discurso, como sejam a «entoação, a gestualidade, a expressão facial ou a posição
corporal» (Van Dijk, 1985:3) e que determina em boa parte a sua interpretação; análise
da estrutura narrativa em presença; a análise da argumentação desenvolvida entre
ambos os interlocutores, nomeadamente dos movimentos argumentativos estratégicos
(Van Eemeren, 1999) que estes realizam.
Enquanto as abordagens de tipo descritivo se centram no texto, quase ignorando a
dimensão semântica que está para da palavra, a abordagem funcionalista incide na
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relação que existe entre o texto e seu contexto, propondo, na opinião de Van Dijk, uma
mais «completa caracterização do discurso» (Van Dijk, 1985:5).
A relação entre texto e contexto constitui o pilar central da análise do discurso, que
motivou, de resto, uma prolífica produção académica nos últimos anos. O estudo do
contexto, em particular, mereceu a atenção de um grande mero de investigadores,
interessados em aprofundar a definição do conceito bem como em desenvolver teorias
capazes de relacioná-lo com a dimensão linguística do discurso.
A conceção tradicional de contexto em análise do discurso consistia em considerar este
conceito uma variável social objetiva, tal como o género, a etnia ou a classe social.
Segundo esta conceção, todo o discurso é determinado pelo conjunto das condições
sociais, económicas e biológicas dos interlocutores e foi nesta ótica que trabalharam
disciplinas como a antropologia, a sociologia e a psicologia, a primeira no âmbito da
etnografia da fala, a segunda focada principalmente na análise da conversação e a
terceira através da psicologia discursiva, uma área da psicologia social (Van Dijk, 2008:
6-7) (ver imagem 3).
Imagem 3 – Transformação da abordagem contextual no estudo do discurso em RI
Fonte: elaboração própria.
Recentemente, contudo, uma nova perspetiva surgiu a partir do trabalho de Teun Van
Dijk (Van Disk, 2008) (ver imagem 3). Alicerçado naquilo a que o autor chamou a teoria
cognitiva do contexto, esta abordagem constituiu a primeira tentativa multidisciplinar de
pensar um tema tão central como este. Para o autor, não é a situação histórica ou social
do sujeito que determina per se o discurso, mas antes a forma como este perceciona a
situação comunicativa em causa, o entendimento que faz de dimensões como a posição
relativa dos interlocutores, os motivos e os fins da comunicação, a negociação linguística
em presença.
Neste processo cognitivo intervêm de forma determinante as chamadas construções
mentais subjetivas, que compõem verdadeiros modelos contextuais e que são
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responsáveis pela forma como cada um dos participantes entende a situação
comunicativa e adapta a sua produção da linguagem ao ambiente situacional que se lhe
apresenta. Este processo de adaptação, por sua vez, consiste em selecionar e utilizar os
recursos linguísticos que cada um tem ao seu dispor no decorrer do diálogo e em
empregá-los no momento por cada um considerado como mais oportuno. Neste sentido,
os modelos contextuais constituem o elo fundamental que une discurso, situação
comunicativa e sociedade.
Paralelamente às abordagens descritivas e funcionalistas, existem finalmente várias
outras abordagens autónomas mas de inegável valor para o estudo do discurso (Imagem
2), como sejam a hermenêutica, preocupada com a dimensão subjetiva da interpretação;
a análise ideológica, de raiz marxista, que no discurso um indicador dos conflitos
sociais; a análise de conteúdo, voltada para uma abordagem eminentemente quantitativa
do texto e utilizada sobretudo no estudo de corpus muito vastos; e a chamada análise
experimental, muito utilizada em psicologia, focada na dimensão processual do discurso,
interessando-se por aspetos como os processos de ativação do discurso, a medida dos
tempos de reação e de interpretação ou as redes de transição.
Não obstante a diversidade das perspetivas de análise que revisitámos nos parágrafos
precedentes, existe alguma comunhão entre elas e que foi bem sumariada por Van Dijk:
«Em primeiro lugar, elas demonstram um interesse pelo conteúdo explícito (e por vezes
implícito ou ausente) do discurso» (Van Dijk, 1985: 12-13). Em segundo lugar, estas
perspetivas de análise desde sempre possuíram um caráter instrumental para as ciências
sociais, permitindo o acesso ao sentido e a realização de inferências sociológicas.
Contrariamente à semântica e à linguística, cujo objetivo último é captar o sentido do
texto, às ciências sociais o sentido interessa na medida em que permite a compreensão
dos fenómenos sociais em estudo.
Nesta linha, o interesse das RI pelo discurso residiria no caráter reflexivo deste último,
entendido como amostra do tecido social que permite compreender a realidade
internacional. Nos últimos anos, contudo, esta perspetiva instrumental do discurso tem
vindo a ser abandonada em prol de um entendimento autónomo, entendimento que
rejeita o estudo da palavra como expressão de outra coisa, preferindo encará-la como
uma forma autónoma de ação e interação entre povos.
4. Conclusão
A abordagem discursiva dos fenómenos internacionais conheceu nos últimos anos uma
transformação assinalável, transformação esta que traduziu significativos ampliação e
aprofundamento científicos.
Tradicionalmente, a análise do discurso alicerçava-se numa conceção descritiva do papel
da palavra na vida em sociedade mas, desde a abordagem pragmática de Austin, o texto
passou a ser entendido como produtor de realidade, o que permitiu uma mudança
substancial do entendimento das RI. Esta profunda transformação epistemológica
permitiu o desenvolvimento de uma nova perspetiva discursiva dos fenómenos
internacionais, embora recorrentes apelos na literatura científica denunciem a
necessidade de maior clarificação metodológica nos estudos realizados.
O presente artigo pretendeu dar um contributo para o preenchimento desta lacuna. Aqui
se reconstituiu a herança intelectual do estudo do discurso, se elencaram as três linhas
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de investigação passíveis de serem identificadas nos estudos discursivo-construtivistas
em RI e se apresentaram as principais abordagens metodológicas seguidas.
Em distintas perspetivas, todas estas abordagens reconhecem a importância do binómio
texto-contexto para a compreensão dos fenómenos internacionais, podendo este último,
tal como vimos, ser entendido distintamente consoante os interesses de pesquisa e tendo
recentemente conhecido uma ampliação do seu campo.
Deste artigo, três passos surgem como fundamentais na busca de uma maior clarificação
metodológica nos estudos discursivo-construtivistas em RI. Em primeiro lugar, a
explicitação do critério de análise selecionado quanto à objetivação dos fatos
internacionais, à dimensão da perspetiva de análise e à identidade do poder discursivo;
em segundo lugar, a identificação do tipo de abordagem escolhido descritiva,
funcionalista ou autónoma; em terceiro e último lugar, o posicionamento face ao que se
entende por contexto, identificando claramente a conceção seguida económica,
biológica, social e/ou cognitiva.
A adoção desta tríade metodológica na investigação discursiva em RI constitui um
importantíssimo fator de clarificação que o apenas conferirá maior rigor e
transparência aos estudos realizados como facilitará o exercício de replicação, condição
determinante daquilo a que se designa cientificidade.
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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IDEALISMO E REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS:
UM DEBATE ONTOLÓGICO
Vítor Ramon Fernandes
vrf@sapo.pt
Professor Auxiliar de Relações Internacionais na Universidade Lusíada (Portugal), onde leciona
Organizações Políticas Internacionais e Conflitos Regionais na Licenciatura em Relações
Internacionais. É Visiting College Research Associate em Wolfson College (Universidade de
Cambridge), onde leciona seminários sobre Segurança Internacional no Mestrado em Políticas
Públicas (MPhil in Public Policy). Foi Visiting Scholar na Universidade de Cambridge, no
Department of Politics and Internacional Studies e em Wolfson College, do qual é membro. É
Doutor em Relações Internacionais pela Universidade Nova de Lisboa, Mestre em Economia pela
University of Kent, Mestre em Gestão de Empresas pelo ISCTEIUL e Licenciado em Economia
pela Faculdade de Economia da UNL. Foi Auditor do Curso de Defesa Nacional do Instituto de
Defesa Nacional. As suas áreas de investigação incluem Teoria das Relações Internacionais,
Estudos de Segurança, Conflitos Regionais, Intervenção Humanitária e Responsabilidade de
Proteger. A experiência anterior inclui cargos como Vice President no banco JP Morgan em Paris e
em Madrid. Foi Consultor Associado na McKinsey & Company e Senior Manager na AT Kearney
em Lisboa, e Administrador em empresas como a OGMA Indústria Aeronáutica de Portugal, SA
e a IDD, SA, na área da defesa, e o Diário de Notícias, SA, na área dos media.
Resumo
O debate entre realismo e idealismo continua a marcar a disciplina das Relações
Internacionais. Por um lado, o realismo argumenta que a política internacional é uma luta
pelo poder e uma procura pela sobrevivência, de onde resulta uma circunstância de conflito
permanente entre os Estados, sem qualquer possibilidade de evolução e progresso. Por outro
lado, o idealismo considera que é possível construir um mundo de coexistência pacífica, de
prosperidade e de bem-estar, alcançados através da cooperação fundada em elementos
assentes em valores e aspirações partilhados pelos seres humanos. O objecto deste artigo é
analisar o debate entre idealismo e realismo, considerando-o como um debate ontológico e
tendo em consideração a polémica que tem gerado. O argumento aqui apresentado é que
tanto o realismo como o idealismo constituem duas respostas em relação à criação e à
manutenção da ordem internacional, isto é, à forma como os Estados se relacionam na
sociedade internacional, mas que não são, nem forçosa nem mutuamente, exclusivas,
podendo coexistir em constante tensão uma com a outra. Nesse contexto, apresenta-se
também uma análise do pensamento internacionalista de dois autores referentes nas Relações
Internacionais, Hans Morgenthau e Raymond Aron, relativamente à forma como cada um
deles se posiciona neste debate.
Palavras-chave
Idealismo; Realismo; Ontologia; Poder; Ética.
Como citar este artigo
Fernandes, Vítor Ramon (2016). "Idealismo e realismo nas Relações Internacionais: um
debate ontológico". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 7, N.º 2, Novembro
2016-Abril 2017. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.autonoma.pt/janus.net/pt_vol7_n2_art2 (http://hdl.handle.net/11144/2781)
Artigo recebido em 21 de Março de 2016 e aceite para publicação em 19 de Setembro de
2016
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Idealismo e Realismo nas Relações Internacionais: um debate ontológico
Vítor Ramon Fernandes
15
IDEALISMO E REALISMO NAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS:
UM DEBATE ONTOLÓGICO
Vitor Ramon Fernandes
As Relações Internacionais
1
têm sido de certa forma dominadas por questões de natureza
ideológica associadas a diferentes correntes de pensamento, o que deu origem aos
chamados ‘grandes debates’. Esses debates fazem parte da historiografia das Relações
Internacionais. Assim, tal como refere Brian Schmidt (2005: 4) na sua contribuição para
o conhecido Handbook of International Relations, a história e a evolução das Relações
Internacionais têm sido contadas “começando com o ‘grande debate’ entre idealistas
2
e
realistas, definidor da disciplina”
3
, debate esse que teve início no período entre as duas
Grandes Guerras, mais especificamente nas décadas de 1920 e 1930. Muito embora
existam diversos documentos relativos ao estudo das relações internacionais, entre os
quais se conta como mais citado a História da Guerra do Peloponeso, da autoria do
historiador e general ateniense Tucídides
4
, para efeitos da presente análise faz-se
coincidir o marco cronológico da análise com a institucionalização universitária da
disciplina, que ocorreu com a criação autónoma da disciplina de Relações Internacionais
na Universidade de Aberystwyth, no Reino Unido, em 1919.
O argumento aqui apresentado é o de se considerar que, no debate entre idealistas e
realistas, estão em oposição ontologias opostas, isto é, duas perspectivas diferentes
relativamente à forma como consideram o ser humano e a existência humana, no fundo
1
No presente texto, é utilizada em letra minúscula a expressão “relações internacionais” sempre que se
refere às dinâmicas que se estabelecem entre os actores da comunidade internacional, utilizando a mesma
expressão em letra maiúscula quando se reporta à disciplina que estuda essas mesmas dinâmicas e que
está associada à criação do Departamento de Política Internacional, em 1919, na Universidade de
Aberystwyth, no País de Gales.
2
Opta-se aqui pela expressão ‘idealismo’ porque essa é a expressão normalmente utilizada quando se faz
referência ao chamado “primeiro grande debate”, que opôs as perspectivas idealista e realista nas Relações
Internacionais, se bem que Edward Carr (1995) utilize a expressão ‘utopia’ e a revisitação dos grandes
debates em Relações Internacionais privilegie a expressão ‘liberalismo’, ou ‘liberalismo idealista’, dado se
considerar que os ideais idealistas se baseiam no pensamento liberal e limite o idealismo a uma das suas
fases, entre-guerras. As expressões ‘liberalismo’ e ‘liberalismo idealista’ não são consideradas aqui como
sendo as mais adequadas, pois prestam-se a confusão no que concerne a evolução e as diferentes variantes
do liberalismo, e dado não existir nenhuma incompatibilidade entre ser, simultaneamente, um realista e
um liberal. Por outro lado, considera-se que a utilização das expressões ‘idealismo’ e ‘realismo’ expressam
melhor as tensões existentes entre essas duas perspectivas opostas. Sobre o debate entre idealistas e
realistas ver, por exemplo, SCHMIDT, B. - On the history and historiography of International Relations. In
CARLSNAES, W., RISSE, T., SIMMONS, B. A., eds. 2005. Handbook of International Relations. ed.
Londres: Sage Publications, pp. 3-22. Sobre liberalismo ver, por exemplo, DUNNE, T. Liberalism. In BAYLIS,
J. e SMITH, S, eds 2014. The Globalization of World Politics. Oxford e Nova Iorque: Oxford University Press,
2005, Cap. 7, pp. 113-125.
3
Tradução livre do original. Todas as traduções constantes deste artigo são da autoria do autor salvo
indicação em contrário. No original, […] beginning with the disciplinary defining ‘great debate’ between
‘idealists’ and ‘realists’ […]”.
4
Considerado como um autor realista.
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duas concepções do mundo, com filosofias diferentes em relação à actividade humana e
aos elementos que constituem o domínio das relações internacionais. Os idealistas, cujo
pensamento está ligado às ideias do liberalismo internacionalista, consideram que,
apesar do sistema internacional ser anárquico
5
, existe da parte do ser humano uma
consciência comunitária, a possibilidade de progresso no sistema internacional,
alcançados através de cooperação e evolução para uma paz duradoura, de prosperidade
e de bem-estar social, fundada em elementos assentes em valores e aspirações
partilhados pelos seres humanos. Diferentemente, os realistas têm uma opinião negativa
em relação à natureza humana e consideram que a anarquia internacional se caracteriza
por uma luta pela sobrevivência dos Estados e pelo interesse nacional, em que a
conquista de poder assume uma importância vital dada a possibilidade sempre constante
de conflito. Essas visões ontológicas não são conciliáveis, mas podem coexistir em
constante tensão uma com a outra.
O início do debate
Num artigo de Hedley Bull intitulado “The Theory of International Politics 1919-1969”, o
autor registava a existência de um conjunto de autores que intitula de ‘idealistas’, e que
caracteriza genericamente como um conjunto de teóricos que acreditavam na ideia de
progresso e na possibilidade de uma evolução nas relações internacionais de forma a
darem origem a um mundo mais pacífico (Bull, 1972: 185). Estes autores, sobretudo
europeus, consideravam a criação de organizações internacionais como vias para
promoverem o ideal de paz e segurança entre os Estados, das quais se destaca a Liga
das Nações, criada na sequência da assinatura do Tratado de Versalhes em 28 de Junho
de 1919, no fim da Grande Guerra, assim como a criação de regimes internacionais
com normas e regras aceites pelos Estados. As questões de natureza moral também
assumiam uma importância considerável no quadro do seu pensamento. No entanto, os
seus escritos encontram-se algo dispersos, e não é evidente que tenham sido
organizados num corpo teórico homogéneo.
A partir dos finais dos anos 30 do século XX, um conjunto de outros teóricos que ficaram
conhecidos como ‘realistas’, reagiram contra essa visão de que o mundo se poderia reger
com base nos princípios idealistas. De acordo com os realistas, vivia-se um contexto
histórico que se caracterizava por algum conflito, totalmente contrário à ideia de
harmonia veiculada pelos idealistas, e as relações entre Estados teriam de se reger
através do poder. De facto, no contexto europeu, os anos 30 correspondem ao período
em que Adolfo Hitler ascende ao poder na Alemanha, em que Hannah Arendt é exilada,
mais especificamente em Agosto de 1933 após sair da prisão e conseguir atravessar a
fronteira checa, e em que se inicia um processo que culmina na Europa com o início da
2ª Grande Guerra em 1939.
É precisamente nas vésperas da Grande Guerra que se assiste à primeira tentativa de
sistematização das ideias que então circulavam, o que veio a acontecer com a obra de
Edward Carr (1995) The Twenty Years’ Crisis. Foi este autor que resumiu a oposição
entre realismo e aquilo a que chamou de ‘utopia’, sendo que o que diferencia as duas
perspectivas são duas visões contrastantes em relação ao domínio das relações
5
Caracteriza-se o sistema internacional como anárquico no sentido da não-existência de um poder soberano
acima dos Estados, e em que cada país é juiz em causa própria.
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internacionais. A perspectiva em relação ao utopismo carateriza-se por uma visão
voluntarista, que acredita no progresso e na evolução enquanto a realista é caracterizada
pela aceitação da realidade sem possibilidade de alteração ou de evolução, como que
caracterizada por um determinismo de recorrência (Carr, 1995): 12). Nas suas palavras,
a sua intenção ao escrever esta obra resultava de uma “vontade apaixonada de evitar a
guerra”
6
(Carr, 1995: 8), não obstante o aspecto teleológico da ciência da política
internacional ser desde o seu início conspícuo, pois tinha surgido no seguimento de uma
terrível guerra entre 1914 e 1918. Esse ambiente internacional, que se vivia muito
particularmente na Europa, é importante pois permite-nos contextualizar esse trabalho
no tempo e também no espaço, pois são essas as dimensões que permitem caracterizar
de forma sistematizada o pensamento idealista, ou utópico como lhes chamou Carr ,
e o pensamento realista.
Na opinião de Edward Carr, a evolução das Relações Internacionais tinha sido até à época
muito utópica, facto que atribui ao carácter ainda pouco estruturado dessa nova ciência.
No entanto, isso não significava que defendesse um afastamento completo do utopismo
das Relações Internacionais, pois acreditava que a utopia e o realismo eram elementos
constantes e necessários, que deviam coexistir numa tensão essencial e permanente. Por
um lado, o utopista é visto como um voluntarista, alguém que acredita na livre vontade
e na capacidade de rejeitar a realidade por vontade própria, acabando por entender essa
realidade, enquanto o realista tende a ser determinista, e aceita a realidade tal como ela
lhe é apresentada, sem nunca a tentar alterar. Citando Carr (1995: 10): “Utopia e
realidade são assim as duas facetas da ciência política. Um pensamento político sólido e
uma vida política sólida apenas poderão ser observados onde ambos estiverem
presentes”.
7
Entre opiniões distintas e tentativas de legitimação de posições
Mas a verdade é que esta obra tem sido alvo das mais diversas controvérsias, tanto sobre
a leitura geral que é feita da mesma, como sobre o enviesamento que o seu autor deu
ao pensamento utopista. Na opinião de Peter Wilson (1998), um debate que tivesse
oposto pontos de vista idealistas e realistas nunca chegou sequer a existir, sendo
inclusive enganador enquanto facto histórico. O pensamento idealista do período entre
as duas grandes guerras, apresentado em The Twenty Years’ Crisis, não passaria de uma
retórica inventada por Edward Carr para desacreditar um conjunto de questões com as
quais estava em desacordo (Wilson, 1998: 13). Opinião semelhante tem Ashworth
(2002: 34-35), para quem um debate entre idealismo e realismo também nunca existiu,
pelo menos na forma como é normalmente relatado nas Relações Internacionais, e o que
a sua construção pretendia essencialmente era desacreditar o pensamento normativo na
disciplina e o liberalismo internacional através da ideia de uma vitória do realismo sobre
o idealismo.
Fundamentalmente, para Wilson (1998: 14), o que existia era um conjunto variado de
opiniões e teorias associadas a diversos autores, em que a maioria estava ligada ao
pensamento liberal internacionalista, designadamente, autores como Alfred Zimmern,
Arnold Toynbee e Norman Angell, sem esquecer o próprio Presidente norte-americano
6
No original “[…] passionate desire to prevent war […]”.
7
No original “Utopia and reality are thus the two facets of political science. Sound political thought and sound
political life will be found only where both have their place”.
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Woodrow Wilson, cujos escritos estão dispersos e cujo pensamento apresentava poucos
aspectos em comum.
A noção de legitimar umas ideias em detrimento de outras é partilhada por rios
autores. Tal como salienta Brian Schmidt (2005: 8), existe frequentemente uma
tendência para escrever a história tendo em vista o objectivo de legitimar um programa
de investigação contemporâneo, o que permite fazer referências ao campo de estudo de
uma forma que revela autoridade. O problema não é apenas, nem tão-só, o facto de a
análise histórica ser utilizada para fazer prevalecer ou corroborar um argumento relativo
ao presente, mas o facto de a própria história ser alterada e distorcida de forma a
legitimar uma posição a priori, ou para criticar uma posição de outrem.
Esta é também a opinião de Cameron G. Thies (2002), que argumenta que a forma mais
comum de avaliar o progresso na teoria das relações internacionais tem sido através da
construção da história da disciplina por determinadas comunidades de investigadores.
No caso de esse exercício ser profícuo, então o mesmo servirá para legitimar as posições
dessa comunidade de investigadores contra as posições dos seus opositores, criando
simultaneamente uma ideia de progresso no âmbito da disciplina. No seu entender, os
chamados ‘grandes debates’ têm marcado o progresso na disciplina das Relações
Internacionais, e têm servido para manter a identidade de determinadas comunidades
de investigadores (Thies, 2002: 148). Na base deste argumento está também, como
refere Peter Wilson (1998: 1), o facto de não existir um corpo unificado de textos e
autores que se intitulem ‘idealistas’, ou um ou mais autores respeitados pela comunidade
investigadora, o que faz com que os ‘realistas’ se refiram a eles de uma forma genérica,
e só excepcionalmente se refiram de forma concreta a artigos ou autores conotados com
o idealismo.
Outros autores dão maior relevância às implicações da interpretação da obra de Edward
Carr, e aos fundamentos dos pensamentos idealista e realista para a teoria das relações
internacionais. De acordo com a opinião de Ken Booth (1991), que se pode caracterizar
como desconstrutivista, a obra de Edward Carr padece de alguma confusão no que
concerne à forma como se posicionava relativamente ao utopismo e ao realismo. Esta
posição relativamente ambígua por parte do autor faz com que seja sobretudo lembrado
pela sua crítica em relação à impossibilidade de reconciliação entre utopia e realidade.
Para Ken Booth, e tal como foi acima referido, Edward Carr também relevou a
necessidade de aceitar como necessárias tanto a utopia como a realidade, onde
coexistem poder e moralidade.
A ambiguidade na linguagem de Carr conduziu também a um certo aproveitamento por
parte dos realistas, numa tentativa de colagem deste autor às suas teses, quando na
verdade Carr, em diversos pontos da sua obra, criticou também o realismo, por
considerar que a ordem internacional não podia apenas ser fundada no poder. Na opinião
de alguns autores, como Molloy (2014: 460),
“As críticas de Carr’s ao Utopianismo e ao Realismo são similares
em tom e em conteúdo”.
8
8
No original, “Carr’s critiques of both Utopianism and Realism are similar in tone and content”.
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Idealismo e Realismo nas Relações Internacionais: um debate ontológico
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Para Ken Booth (1996: 329), existe uma simplificação e adulteração da posição de
autores fundamentais, em especial no que toca à interpretação vulgarmente feita da
suposta posição idealista de Davis e da mitificada posição realista de Carr
9
. O que isto
demonstra também, do meu ponto de vista, é a existência de um quase maniqueísmo no
campo das Relações Internacionais desde a institucionalização da disciplina,
caracterizado pelo confronto entre pensamento realista e idealista.
Diferentes filosofias da história
Andreas Osiander (1998: 409) concorda com a ideia de que o debate entre idealistas e
realistas apresentado por Edward Carr em The Twenty Years’ Crisis revela uma
construção distorcida sobre o pensamento idealista. No entanto, Osiander tem uma visão
diferente, na sua opinião revisionista, sobre a forma como o pensamento dos autores
idealistas que são fundamentalmente os mesmos citados por Hedley Bull (1972) em
The Theory of International Politics, 1919-1969 foi interpretada a partir da obra de
Edward Carr por autores realistas, com o objectivo de corroborar as suas teses em defesa
do pensamento realista.
Esses autores idealistas estavam familiarizados com as teses realistas, mas o que os
distinguia destes era sobretudo um modo diferente de encarar a filosofia da história. No
caso dos idealistas, estamos perante uma filosofia da história direccional, enquanto no
caso dos realistas, esta é clica. Osiander (1998: 418-419) argumenta que muita
literatura referente aos idealistas se baseia em falsas premissas, e que enquanto para os
idealistas se adoptou uma interpretação direccional da história, no caso dos realistas
adoptou-se uma interpretação cíclica, associada a uma visão de recorrência e repetição,
tal como refere também Martin Wight (1966: 25) em Why is there no international
theory?”. No entanto, de acordo com Andreas Osiander (1998), embora essa ideia de
que o que separava idealistas de realistas eram visões diferentes da história tenha
circulado no início do culo XX, muitos autores das Relações Internacionais argumentam
que o que, de facto, ocorreu à partida foi uma construção por parte dos realistas para
sustentarem a sua própria posição.
A opinião de Andreas Osiander assemelha-se à ideia defendida por Robert Crawford
(2000) sobre a existência de uma dicotomia e de uma tensão entre os pensamentos
idealista e realista, que reflecte visões opostas da realidade. Na opinião deste último
autor, a disciplina das Relações Internacionais tem estado sujeita a uma pressão no
sentido de uma crescente sujeição aos métodos científicos, em que o pensamento realista
aparece como referência, como corrente-padrão em relação à qual todas as outras o
comparadas, o que conduz a uma concepção monista da disciplina.
Mas, na realidade, as Relações Internacionais enquanto área disciplinar, são cruzadas
por ltiplas e variadas tradições intelectuais, não sendo possível eleger nenhuma delas
como preferencial. Ao mesmo tempo, também é verdade que tem havido a tendência
para considerar o debate entre idealismo e realismo como um confronto sério de ideias,
mas facilmente reconciliável numa concepção unitária, através da qual se tenta construir
uma disciplina homogénea e coerente, baseada numa metodologia científica (Crawford,
9
Booth está a referir-se às posições de Davis, um galês, membro do parlamento, mas também industrial e
proprietário, que patrocinou a cadeira Woodrow Wilson na prestigiada University of Wales, Aberystwyth em
1919, e ao citado Edward Carr.
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2000: 4-5). No entanto, para Robert Crawford, o debate idealismo-realismo consiste num
debate de ideias que estão em franca oposição e que não podem ser conciliáveis, na
medida em que se fundam em ontologias diferentes.
A Escola Inglesa enquanto tentativa de conciliar posições extremas
Neste debate ontológico entre realismo e idealismo merece destaque a Escola Inglesa, a
que vulgarmente se denomina como via media nas Relações Internacionais, no âmbito
da tradição grociana entre as tradições realista e revolucionista. A Escola Inglesa tem
sofrido uma grande evolução ao longo do tempo, mas na versão de Hedley Bull e Martin
Wight a discussão essencial centra-se à volta de existência de uma sociedade
internacional e da sua natureza, na tradição de Hugo Grotius, e, mais concretamente das
instituições que constroem essa sociedade, tais como a guerra, a diplomacia e a balança
do poder.
O principal argumento da Escola Inglesa é o de que os Estados soberanos são parte de
uma sociedade. Essa sociedade é anárquica, no sentido em que não existe uma entidade
acima desses Estados que os possa coagir ou punir em caso de incumprimento de leis
estabelecidas, mas tal não significa que seja uma sociedade caótica. No entanto, tal
também não significa que a violência não seja reconhecida e tida em consideração,
embora a Escola Inglesa atribua bastante importância a questões normativas, em
especial às regras, às leis, às instituições, e à moral, enquanto elementos relevantes na
organização dessa sociedade internacional.
Na opinião de Dunne (1998: 1), a Escola Inglesa tem pontos de convergência com o
realismo, embora não se confunda com este.
10
Para Dunne (1995: 128-129), é no
realismo inglês, no período entre os finais dos anos 30 e o início dos anos 50, que se
encontra o ponto de partida para se compreender a evolução da Escola Inglesa. A partir
da publicação em 1939 da obra The Twenty Years’ Crisis de Edward Carr, rios outros
autores se debruçaram sobre o pensamento realista, e sobre as ideias idealistas (até à
altura predominantes), para melhor compreenderem o contexto internacional e o
convívio entre os Estados.
No entender deste autor, o posicionamento de Carr enquanto realista é, no nimo,
polémico, mas Dunne considera que na análise de Carr sobre as antinomias entre o
realismo e o idealismo, existem pontos comuns com a Escola Inglesa. Tal como considera
Booth (1991: 530-531), Carr não considerava o realismo uma corrente vencedora sobre
o idealismo, pois essa opinião não tem em consideração a visão antinómica do autor.
Como salienta Dunne (1995: 129), a relação de Carr com a Escola Inglesa é ambígua. É
a partir daqui que Hedley Bull critica a falta de reconhecimento de Carr em relação à
sociedade internacional, e Martin Wight (2004) elabora sobre a política internacional,
referindo-se à política de poder como algo inevitável. A evolução que se verifica a partir
do início dos anos 50 no pensamento de autores como Martin Wight vai no sentido de
uma preocupação por normas e instituições internacionais, e a elaboração de teoria deu
origem à criação do British Committee
11
, que reúne pela primeira vez em 1959. Esta
10
Sobre a Escola Inglesa consultar, por exemplo, Dunne (1998), Buzan (2004), Linklater e Suganami (2006).
11
Tradução “Comissão Britânica”. Esta comissão foi formada por um grupo de académicos, criada em 1959
sob a liderança de um historiador, Herbert Butterfield e contando também com outros membros, tais como,
Martin Wight, Hedley Bull e Adam Watson. Era financiada pela Fundação Rockefeller e reunia cerca de três
vezes por ano em Brighton, Cambridge, Londres ou Oxford, entre os anos 50 e 80, com o objectivo de
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comissão acabou por não envolver Carr, mas os motivos da sua não-inclusão parecem
ter tido mais a ver com questões pessoais do que científicas.
Em relação às situações que podem ocorrer no contexto internacional, e que têm
subjacentes visões ontológicas diferentes, merece destaque a análise que Wight (1994)
faz sobre a política internacional, na qual distingue três tradições: a realista, a
racionalista e a revolucionária. Na mesma linha de pensamento, embora mais atenta a
noções como solidariedade e comunidade do que a de Martin Wight, encontra-se a obra
de Hedley Bull (2002) The Anarchical Society, em que o autor define e elabora sobre as
tradições realista, grociana e kantiana, ou universalista. O argumento de Hedley Bull
(2002: 39) é que a sociedade internacional reflecte as três tradições, mas que em
determinados momentos ou geografias, e tendo em consideração diferentes políticas
adoptadas pelos Estados, um desses elementos pode preponderar sobre os demais. A
ideia fundamental subjacente a esta perspectiva racionalista, ou grociana, de Hedley Bull
é a de que as relações entre os Estados são condicionadas pela prudência, mas também
por imperativos morais e de cooperação. Tanto Martin Wight como Hedley Bull
consideram que esta perspectiva se situa entre as perspectivas realista e kantiana, e daí
a designação de via media entre a corrente realista e a idealista.
Hedley Bull (2002: 13) distingue também entre sistema internacional e sociedade
internacional, na medida em que uma sociedade internacional implica a existência de um
sistema internacional, mas não o inverso, pois a existência de uma sociedade
internacional pressupõe que determinadas características estão presentes no sistema
internacional. Mais especificamente, na sociedade internacional existe por parte dos
Estados a consciência da existência de interesses e valores comuns que os ligam e os
unem de alguma forma, fazendo-os partilhar os seus esforços nos trabalhos
desenvolvidos por instituições comuns, tal como ocorre com várias instituições
internacionais. No fundo, o pensamento destes autores contempla os três conceitos
acima referidos.
Os membros das Escola Inglesa aparentam estar sempre a oscilar entre o realismo e o
idealismo, numa tensão permanente entre ontologias diferentes, tendendo para uma
destas noções, ou então, como sublinha Tim Dunne (1995: 126), através da combinação
das três tradições de Martin Wight, em que a noção de sociedade internacional deriva do
racionalismo de Vattel.
Morgenthau, o poder e a ética da responsabilidade
Para Hans Morgenthau (1985: 37), a luta pelo poder está sempre presente em toda a
política, afirmando que
“sendo o desejo de poder o elemento distintivo da política
internacional, como de toda a política, a política internacional é por
necessidade política de poder”
12
.
discutir e analisar aquilo que eram considerados na altura os principais temas e problemáticas nos campos
da teoria e da história das relações internacionais. Os seus estudos são considerados como tendo tido um
impacto significativo no desenvolvimento no campo da história e teoria das relações internacionais.
12
No original, The aspiration for power being the distinguishing element of international politics, as of all
politics, international politics is of necessity power politics”.
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Este autor enfatiza a luta pelo poder mas também a natureza trágica da política, que
atribui à natureza humana, e que se define por um desejo ilimitado de domínio sobre os
outros homens (Morgenthau 1946: 193). Mais ainda, considera que
“[É]esta ubiquidade do desejo de poder que, à parte e para além de
qualquer egoísmo ou propósito maldoso, constitui a ubiquidade da
maldade na acção humana” (Morgenthau, 1946: 194)
13
.
E é por isso que a política é, na sua essência, uma luta pelo poder sem limites nem fim
e dificilmente se lhe consegue escapar (1946: 201).
A posição de Morgenthau denota um certo sentido trágico na relação que o homem tem
com o poder, de tensão dentro de si mesmo, como sublinha Rengger (2007: 124),
reflectindo também o seu posicionamento ontológico. Mas embora a procura de poder
seja a principal ambição do homem na política, tal não significa que ela seja a única
(Cozette, 2008: 668). Existem em Morgenthau preocupações de carácter moral, pois este
autor também refere que
“[O] homem é um animal político por natureza, ele é um cientista
político por acaso ou escolha, ele é um moralista porque é um
homem” (Morgenthau, 1946: 7)
14
.
Isto é, os juízos morais são considerados características do ser humano e é isso que o
torna verdadeiramente humano.
Contrariamente ao que normalmente é considerado, e apesar da sua visão pessimista
sobre a política internacional, este autor tem preocupações de teor ético e moral, para
além da questão da luta pelo poder. Na opinião de Molloy (2003: 82), embora para
Morgenthau todas as decisões políticas se devam abstrair de princípios morais, este autor
considera possível uma abordagem moral da política se esta for baseada numa
moralidade do mal menor.
No entanto, para Morgenthau, na sua essência a política internacional não se coaduna
com boas intenções, requerendo uma ética de responsabilidade, na medida em o que
está em causa é a segurança de um Estado. Contrariamente aos argumentos idealistas,
a política internacional envolve escolhas difíceis, eventualmente até dolorosas.
Morgenthau reconhece a necessidade ética de justificar as acções e -lo através de uma
escolha entre as duas antinomias de Max Weber (1963: 206), a ética da responsabilidade
e a ética da convicção, recaindo a sua preferência claramente sobre a primeira. Esta
13
No original “It is this ubiquity of the desire for power which, besides and beyond any particular selfishness
or other evil purpose, constitutes the ubiquity of evilness in human action” (1946: 194).
14
No original, “Man is a political animal by nature, he is a scientist by chance or choice, he is a moralist
because he is a man”.
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preocupação com a sobrevivência do Estado acima de tudo, e a opção por uma ética da
responsabilidade, são aspectos que claramente o aproximam de Max Weber
15
.
Do que se trata é de considerar que embora existam valores éticos e morais, o homem
político tem de se abstrair deles nas suas decisões políticas, o que é uma resultante da
sua posição ontológica. E por esse motivo, a sua posição não é amoral ou desprovida de
ética, apenas tem de se abstrair da moral nas suas acções e decisões, não obstante ter
de as justificar em termos éticos, justificando assim a sua posição realista e rejeição do
idealismo.
Aron: a tensão entre realismo e idealismo
Ao analisar o idealismo e o realismo, Aron (2004: 567-596) apresenta-nos uma posição
de alguma tensão entre estas duas posições ontológicas
16
Para este autor, é uma ilusão pensar-se que é possível evitar conflitos, em particular a
guerra, e que uma paz duradoura pode ser alcançada através apenas de uma diplomacia
fundada em considerações normativas de boa conduta e baseada em princípios de ordem
moral. O idealismo é visto por alguns autores como uma profunda convicção no
cumprimento total das regras e das normas jurídicas definidas na conduta entre os
Estados, com o objectivo de evitar a guerra. Mais ainda, essa convicção parte do princípio
de que todos os Estados estão interessados na manutenção da ordem jurídica e que, no
caso de agressão a um deles, os outros se prestariam a auxiliar o agredido.
Mas estes princípios de segurança colectiva são de difícil execução, pois implicam
também, e de início, uma concordância dos Estados na definição de quem é o agressor
e uma partilha de sentimento relativa à avaliação dos actos cometidos. Mesmo que o
Estado agressor seja facilmente identificado, é necessária a formação de alianças ou
coligações para defesa do Estado agredido, o que pressupõe que os outros Estados estão,
de facto, interessados e empenhados na manutenção da ordem internacional e
concordam em agir de modo a punir o agressor. Neste tipo de processo poder-se-á
verificar todo um conjunto de situações, e em função da relação de forças entre o Estado
agressor e essa coligação rios desfechos são possíveis, desde a capitulação à guerra
total, resultados que acabam por ser contrários aos objectivos pretendidos. A doutrina
idealista torna-se, assim, perigosa no que respeita à condução da política exterior, na
medida em que ela se fecha sobre si mesma, através da adopção de princípios
normativos. A este propósito, Raymond Aron (2004: 572) refere que
A crítica da ‘ilusão idealista’ não é apenas pragmática, mas também
moral. A diplomacia idealista torna-se frequentemente fanática, ela
divide os Estados em bons e maus, em pacíficos (peace loving) e
15
A oposição entre a ética da responsabilidade e a ética da convicção é apresentada por Max Weber em
(Weber, 1963: 206).
16
No domínio das correntes de pensamento nas Relações Internacionais, Raymond Aron é habitualmente
classificado como um realista clássico, tal como Hans Morgenthau. Para uma análise e uma perspectiva
diferentes relativamente ao pensamento internacionalista de Aron ver, designadamente Ramon-Fernandes
(2015).
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beligerantes e imagina uma paz definitiva pela punição dos
primeiros e o triunfo dos segundos
17
.
No entanto, é interessante verificar que, quando se refere a esta questão da ‘ilusão
idealista’, Raymond Aron (2004: 578) compara a posição de H. Von Treitschke e a de G.
F. Kennan. Treitschke era um historiador nacionalista alemão que tinha uma posição de
total aceitação da política de poder, inclusive da guerra, considerando-as necessárias, e
que exaltava a prudência a partir da política de poder e do seu nacionalismo, e Kennan
que aceitava, resignado, a política de poder, de modo a evitar outros males maiores.
Tanto Treitschke como Kennan fazem a apologia da prudência e consideram o poder
como importante. Mas curiosamente, e Raymond Aron sublinha este facto, Treitschke
considerava-se um idealista, enquanto G. F. Kennan não se opunha a ser classificado
como realista. O que parece estar em causa é que o idealista, tal como o realista, deverá
compreender a sua época, não ignorando a possibilidade de violência, e aceitando que a
resolução de conflitos requer que se tenha em conta a relação de forças entre os Estados,
e que toda a acção deve contemplar prudência e uma conduta diplomático-estratégica.
Não existe forçosamente incompatibilidade entre ser um idealista e reconhecer a
violência e a guerra. Aquilo a que Raymond Aron se opõe verdadeiramente - e por isso
se refere à ‘ilusão idealista’ - é à atitude de menosprezo da guerra e da violência como
forma de agir nas relações internacionais, que a maioria dos idealistas da época parecia
revelar. Não se trata, pois, de condenar o idealismo por completo, mas apenas de lhe
apontar algumas debilidades
18
.
Apesar disso, Raymond Aron (2004: 581) considera que o realismo tem em consideração
e reconhece melhor aquilo que é o egoísmo dos Estados e os seus interesses do que o
idealismo. No entanto, ao considerarem o poder como o objectivo último dos Estados, os
realistas, em particular os norte-americanos, não têm em consideração a ideia de que
embora os Estados coexistam sem a existência de um árbitro ou de uma política
supranacional, eles limitam a sua liberdade de acção através das obrigações em que
incorrem, designadamente a assinatura de acordos e tratados, embora possam também
recorrer à força armada para resolução de conflitos (Aron, 2004: 582). Assim, a ausência
de um poder soberano não é incompatível com a noção de que a vida internacional não
possa ser regida contratualmente (no sentido da filosofia política), existindo regras e
normas de conduta, que no entanto não excluem nem evitam a utilização da violência. E
salienta que a escola realista está um pouco recuada em relação ao pensamento
tradicional europeu
19
, pois a obsessão dos realistas em relação ao poder fez com que o
vissem sempre como alternativa à lei ou à moralidade, acabando assim por definir a
política internacional pelo poder e o pela ausência de um árbitro ou de uma política
17
No original, “La critique de l’illusion idéaliste n’est pas seulement pragmatique, elle est aussi morale. La
diplomatie idéaliste glisse trop souvent au fanatisme, elle divise les États en bons et mauvais, en pacifiques
(peace loving) et belliqueux, elle imagine une paix définitive par la punition des premiers et le triomphe des
seconds ".
18
Do que se trata é de não aceitar que se adoptem formas absolutas de moralidade, que não dão espaço para
excepções e não têm em consideração as possíveis consequências das acções no plano da política
internacional, caindo na tentação de um moralismo enquanto doutrina que considera a moral absoluta e
valendo-se a ela mesma e que, por esse motivo, facilmente se pode tornar fanática. Relativamente à relação
entre a moralidade e a política, e muito particularmente, a distinção entre diversos tipos de moralismo e
moralidade, ver Coady (2008).
19
Raymond Aron não explicita a que se refere, mas facilmente se identifica o pensamento de autores das
Relações Internacionais, tais como, Martin Wight e Hedley Bull.
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acima dos Estados. Na realidade, face ao egoísmo nacional que prevalece entre os
Estados no “estado de natureza”, a conduta diplomático-estratégica dos Estados para
utilizar a terminologia de Raymond Aron, e que abarca o exercício das funções
diplomáticas inerentes ao diplomata e a estratégia e a guerra, que são funções inerentes
ao soldado, tomando um e outro como personagens simbólicas dos dois tipos de conduta
, deve procurar estar de acordo com princípios normativos e ideias, e não como o que
ocorre com os animais na selva Aron (2004: 568-569).
Esta posição está em sintonia com o facto de, por intermédio dos seus governantes, os
Estados necessitarem e terem a obrigação de salvaguardar os seus interesses vitais,
agindo de acordo com normas e costumes que podem ser mais ou menos respeitados,
mas com o risco, sempre latente, de que a guerra seja decretada pelos dirigentes.
No entanto, tanto o pensamento idealista como o realista são considerados posições
extremas. O idealista, pelas razões que se prendem com a ocorrência das atrocidades da
Grande Guerra, e pela sua rejeição da importância do poder nas relações
internacionais; o realista, precisamente pela sua ênfase no poder, em oposição e reacção
a essa outra corrente de pensamento. É essa necessidade de reacção que explica,
segundo Raymond Aron (2004: 16), o posicionamento tão extremado do realismo em
relação ao idealismo, a seu ver desadequado.
O pensamento internacionalista de Raymond Aron reflecte inúmeras tensões e
antinomias, entre as quais vale a pena salientar precisamente idealismo versus realismo.
Para Aron, o idealismo e o realismo não são concepções contraditórias, mas
complementares; no fundo, este antagonismo mais não é do que uma vertente do
‘debate eterno’ entre maquiavelismo e moralismo
20
.
Conclusões
O debate entre realismo e idealismo pode ser caracterizado por duas visões ontológicas
extremas e opostas sobre as relações internacionais, de onde resultam considerações e
acções diferentes relativamente à forma como os Estados se relacionam na sociedade
internacional. Ainda assim, elas não são, nem forçosa nem mutuamente, exclusivas. No
contexto da política internacional dos Estados, a questão que se coloca é a de saber se
estes, na sua qualidade de soberanos, têm a obrigação de obedecer a critérios morais ou
a outros princípios, designadamente normas jurídicas ou legais, ou se, pelo contrário,
podem agir da forma que melhor sirva os seus desígnios e interesses, regendo-se
unicamente pelo objectivo de maximização do poder. Trata-se, naturalmente, de duas
respostas distintas ao problema da ordem”
21
e que se enquadram mais numa
determinada tradição de pensamento no domínio das Relações Internacionais, podendo,
no entanto, existir sobreposições entre elas.
Referências bibliográficas
Aron, R. (2004). Paix et guerre entre les nations. Paris: Calmann-vy.
20
Sobre este debate, ver Ramon-Fernandes (2013).
21
Sobre o ‘problema da ordem’, ver Rengger (2000).
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Noviembre 2016-Abril 2017), pp. 28-53
LOS LÍMITES DEL PERDÓN EN LAS RELACIONES INTERNACIONALES:
LOS GRUPOS A FAVOR DEL SANTUARIO YASUKUNI EN JAPÓN Y LAS
TENSIONES POLÍTICAS EN EL ESTE DE ASIA
María del Pilar Álvarez
mpam1979@gmail.com
Profesora-Investigadora de la Facultad de Ciencias Sociales de la Universidad del Salvador
(USAL, Argentina) y Profesora Invitada del Departamento de Estudios Internacionales de la
Universidad T. Di Tella (UTDT). Coordinadora del Grupo de Investigaciones sobre el Este de Asia
del Instituto de Investigaciones en Ciencias Sociales (IDICSO) de la USAL. Becaria Posdoctoral
del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET) de la Argentina.
Doctora en Ciencias Sociales por la Universidad de Buenos Aires (UBA). Master en Estudios del
Este de Asia- Corea por la Universidad Yonsei. Licenciada en Ciencia Política (UBA).
María del Mar Lunaklick
Licenciada en Relaciones Internacionales de la Universidad del Salvador (USAL). Investigadora
Asistente del Grupo de Investigaciones sobre el Este de Asia del Instituto de Investigaciones en
Ciencias Sociales (IDICSO) de la USAL (Argentina).
Tomás Muñoz
Estudiante avanzado de la Licenciatura en Relaciones Internacionales de la Universidad del
Salvador (USAL). Colaborador del Grupo de Investigaciones sobre el Este de Asia del Instituto de
Investigaciones en Ciencias Sociales (IDICSO) de la USAL (Argentina).
Resumen
Las visitas (o tentativas) de funcionarios japoneses al Santuario Yasukuni han generado una
serie de controversias y tensiones entre los países ocupados por el Japón imperialista durante
la Guerra del Pacífico. El dilema central es que Yasukuni, emblema del militarismo nipón, pone
en cuestión la coherencia y consistencia de los pedidos de perdón efectuados por diferentes
primeros ministros japoneses a los países de la región en arrepentimiento por las atrocidades
y violaciones a los derechos humanos cometidas en el pasado. La debilidad de las disculpas
no es una problemática exclusiva del caso de Japón. Por el contrario, el perdón oficial otorgado
por un estado a otro se ha convertido en una práctica cada vez más común pero cuestionada
en las relaciones internacionales. Los límites de las disculpas en los procesos de reconciliación
entre estados han dado lugar a una nueva línea de investigación, alineada a los debates sobre
la justicia transicional, que discute dimensiones de la categoría de perdón en términos de
procesos de rectificación. Desde esta perspectiva, se ha observado en el relevamiento de
investigaciones previas que se tiende a analizar el caso de Yasukuni sin ahondar en los grupos
sociales que apoyan al Santuario y definen la agenda de personalidades destacadas de la
política local, especialmente vinculadas al partido de gobierno, el Partido Liberal Democrático
(PLD), quienes reivindican Yasukuni. Frente a este vacío, el presente artículo examina las
características y modos de acción de los grupos a favor de Yasukuni y las respuestas de China
y Corea del Sur a las visitas de funcionarios al Santuario a fin de comprender las peculiaridades
y alcances del perdón en el Este de Asia.
Palabras claves
Yasukuni, perdón en relaciones internacionales, reconciliación, Este de Asia.
Como citar este artículo
Álvarez, MP; Lunaklick, MM; Muñoz, T (2016). "Los límites del perdón en las relaciones
internacionales: los grupos a favor del santuário Yasukuni en Japón y las tensiones políticas
en el este de Asia". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 7, N.º 2, Noviembre
2016-Abril 2017. Consultado [en línea] en fecha de la última consulta,
observare.autonoma.pt/janus.net/pt_vol7_n2_art3 (http://hdl.handle.net/11144/2782)
Articulo recebido en el 3 de Marzo de 2016 y aceptado para publicación en el 10 de
Septiembre de 2016
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Noviembre 2016-Abril 2017), pp. 28-53
Los limites del perdón en las relaciones internacionales: los grupos a favor del santuario Yasukuni en Japón y
las tensiones políticas en el Este de Asia
Maria del Pilar Álvarez; Maria del Mar Lunaklick; Tomás Muñoz
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LOS LÍMITES DEL PERDÓN EN LAS RELACIONES INTERNACIONALES:
LOS GRUPOS A FAVOR DEL SANTUARIO YASUKUNI EN JAPÓN Y LAS
TENSIONES POLÍTICAS EN EL ESTE DE ASIA
1
María del Pilar Álvarez
María del Mar Lunaklick
Tomás Muñoz
Introducción
Desde los años 80, se suscitaron una serie de cambios en el Este de Asia (China, Corea
del Sur y Japón) que posibilitaron el protagonismo de controversias históricas olvidadas.
El fin de la guerra fría, el revisionismo histórico impulsado por distintos sectores
académicos de la región, la democratización de Corea del Sur y la educación patriótica
de Deng Xiaoping (He, 2007; Pye, 1993), dieron lugar a un renovado acercamiento entre
estos países. Desde entonces, el afianzamiento de los lazos económicos, sociales y
culturales en la región convive con el aumento de tensiones políticas relacionadas con
las agresiones y violaciones a los derechos humanos cometidas por Japón en la época de
avance imperialista (desde la incorporación de Taiwán como colonia en 1895 hasta el fin
de la guerra del Pacífico en 1945).
Más allá de las reparaciones y pedidos de disculpas realizadas por Japón en el marco del
restablecimiento de relaciones diplomáticas con China (1972) y Corea del Sur (1965),
durante años estos países no le exigieron a Japón rendir cuentas de manera exhaustiva
por las atrocidades cometidas en el pasado. Esta actitud se sustentó en la necesidad de
establecer acuerdos económicos que facilitaran las políticas desarrollistas. En las últimas
décadas, esta dualidad entró en crisis. Los gobiernos de China y Corea del Sur exigen a
Japón pedidos de disculpas coherentes y creíbles. Las disculpas ya no son entendidas
como un simple evento diplomático, sino, fundamentalmente, como el inicio de un
proceso de reconciliación con los países de la región.
En este nuevo escenario confluyen varias controversias políticas relacionadas con el
pasado agresor de Japón en la región y las bases de paz sentadas luego de la guerra
(Tribunales de Tokio y Tratado de San Francisco). Entra las principales tensiones se
destacan los dilemas en torno a los libros de texto japoneses, las demandas de las ex
esclavas sexuales de la armada imperial de Japón (eufemísticamente denominadas
mujeres de confort), los reclamos de los trabajadores forzados durante la Guerra del
Pacífico, las visitas de funcionarios públicos a Yasukuni y las disputas territoriales
1
Este artículo fue preparado en el contexto del Proyecto VRID-1452, dirigido por la Dra. María del Pilar
Álvarez, del Instituto de Investigaciones en Ciencias Sociales (IDICSO) de la Facultad de Ciencias Sociales
de la Universidad del Salvador (USAL)-Argentina.
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(Dokdo/Takeshima y Sensaku/Diaoyu). Todas estas problemáticas son percibidas por los
países de la región como un intento de glorificación del imperialismo nipón. Por ejemplo,
los libros de texto en cuestión omiten las atrocidades cometidas por Japón durante la
guerra (Bukh, 2007; Hundt y Bleiker, 2007).
Las visitas (o tentativas) de funcionarios japoneses al Santuario Yasukuni también son
consideradas un acto de provocación y contradicción respecto de las disculpas
efectuadas. Los gobiernos de China y Corea del Sur al igual que diversos grupos sociales
al interior de Japón han manifestado su disconformidad por considerar al Santuario como
un emblema del militarismo nipón. Interesantemente, el aumento de la indignación entre
los países de la región se ha dado a la par de un crecimiento en la conformación y
reposicionamiento de grupos y/o asociaciones japonesas en defensa de Yasukuni. Éstos
tienen un alto nivel de incidencia en la agenda política local dado sus vínculos estrechos
con el partido de gobierno, el Partido Liberal Democrático (PLD). Primeros ministros,
funcionarios de alto rango, periodistas y profesores son miembros activos y visibles de
estos grupos. ¿La defensa de Yasukuni por parte de los mismos funcionarios que han
pedido disculpas por las atrocidades cometidas en el pasado refleja una debilidad del
perdón? ¿La existencia de grupos sociales que defienden y fomentan las visitas a
Yasukuni contradice el proceso de reconciliación regional?
El presente trabajo articula el caso del Santuario Yasukuni con los debates académicos
sobre el perdón en las relaciones internacionales a fin de comprender en qué medida los
grupos a favor contradicen las disculpas efectuadas. Retomando la propuesta de Daase
(2010), analizamos el rol de los grupos en defensa de Yasukuni y las reacciones oficiales
de los gobiernos de China y Corea del Sur a las visitas efectuadas por los funcionarios
japoneses a Yasukuni. Se espera así vislumbrar las singularidades y alcances del perdón
en el Este de Asia.
Perdón y relaciones internacionales
En 1990, el emperador Akihito pidió disculpas a los coreanos por las atrocidades
cometidas durante la colonización. En 1992, en un discurso efectuado en la Asamblea
Nacional de Corea
2
, el por entonces primer ministro de Japón, Miyazawa Kiichi, pidió
sinceras disculpas a sus ex colonias. Tres os después, Tomiichi Murayama realizó un
perdón oficial por los ataques a los países de la región durante la guerra e impulel
Fondo de Mujeres Asiáticas para compensar a las ex esclavas sexuales de la armada
imperial de Japón. A pesar de sus contradicciones, Shinzo Abe también se disculpó por
los errores del pasado en 2007 y en 2015. Estos reiterados pedidos de perdón no son
exclusivos del proceso de reconciliación de Japón con sus vecinos. Por el contrario, es
una práctica extendida en la comunidad internacional como lo demuestran las disculpas
a los maoríes de Nueva Zelanda realizado por la Reina de Inglaterra, el perdón por la
esclavitud a los ugandeses manifiesto por Clinton en una visita al país, las disculpas
efectuadas por Canadá a sus pueblos originarios, el perdón de Juan Pablo II por la
inquisición (Cunningham, 1999: 287-288) y del papa Francisco por las persecuciones de
la iglesia católica a los evangélicos, entre tantos otros ejemplos.
¿Qué es la culpa política y es posible un arrepentimiento colectivo? ¿Cuál es el valor del
perdón en las relaciones internacionales? ¿Por q algunos representantes de estado
2
Se utilizará Corea para referir a Corea del Sur.
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piden perdón y otros no? ¿Cómo impacta en los procesos de integración regional? Estas
preguntas que surgen en el seno de los estudios de memoria, justicia transicional y
derechos humanos dieron lugar a una nueva línea de investigación en las relaciones
internacionales que articula el perdón con el arrepentimiento, la responsabilidad y la
reconciliación (Cohen, 2004; Lazare, 2005; Lind, 2008; Smith, 2008; Thompson, 2002).
Lind (2008) señala que la mayor parte de los países logran reconciliarse sin necesidad
de un pedido de perdón o reparación. Es decir, la reconciliación y la disculpa no son,
necesariamente, parte de un mismo proceso político. Su trabajo discute la existencia de
un vínculo positivo entre reconocer las agresiones del pasado y mejorar las relaciones
internacionales. A tal fin, compara el proceso de reconciliación entre Alemania y Francia
con el de Corea del Sur y Japón, y llega a la conclusión de que a veces los pedidos de
disculpas pueden ser contraproducentes en términos diplomáticos. Su argumentación
omite, entre otros aspectos, diferencias históricas y culturales relacionadas con las
particularidades de la idea de perdón en dichas sociedades y con las peculiaridades del
proceso de rectificación del pasado llevado a cabo por Japón durante la ocupación y en
el marco de la Guerra Fría. De todos modos, introduce una reflexión interesante sobre
los límites del arrepentimiento en política exterior en clave al impacto que éste tiene en
la política doméstica.
Otro autor que retoma el caso de Japón para discutir el perdón en las relaciones
internacionales es Daase (2010). A diferencia del trabajo de Lind, construye categorías
analíticas que definen el perdón colectivo y el proceso de reconciliación. Este autor
entiende la disculpa no como una simple retórica sino como un acto cargado de
contenido. Es decir, un cambio paradigmático en la forma de interpretar y perpetuar el
pasado. Destaca cuatro categorías que permiten estudiar la factibilidad de que un perdón
sea aceptado por las víctimas. En primer lugar, es clave el estatus y el rol de la persona
que pide la disculpa, quien debería representar a la máxima autoridad del país
considerado culpable. Segundo, el nivel de credibilidad entendido como el costo material
y político que debe asumir el estado que se disculpa. Tercero, el nivel de arrepentimiento
medido en términos de la coherencia entre el perdón y las políticas simbólicas o de
memoria aplicadas o no. El último aspecto es la aprobación social o nivel de aceptación
colectiva ya que se pide disculpa en nombre de un colectivo: la nación. Por ende, debería
el estado evitar que grupos locales disconformes incidan en la agenda política y
contradigan la postura oficial.
Si bien las categorías no son necesariamente excluyentes y, en cierta medida, se hace
difusa la separación entre el nivel de credibilidad y arrepentimiento, y entre las políticas
de memoria implantadas (costo político) y el nivel de aprobación social, esta definición
del perdón en sentido amplio nos permite operacionalizar la discusión en torno al
Santuario Yasukuni. Luego de una breve reseña histórica, analizaremos el nivel de
aprobación social considerando solamente los principales grupos sociales japoneses a
favor de Yasukuni: miembros, objetivos, tipos de reclamos, canales de acción y logros;
y el nivel de credibilidad y arrepentimiento a partir del desarrollo del tipo de disculpa
efectuada (de qué se arrepienten) por funcionarios japoneses de alto rango, su relación
con las asociaciones a favor del Santuario y el impacto en los gobiernos de Corea del Sur
y China.
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El caso del Santuario Yasukuni
Breve reseña histórica
La Restauración Meiji (1868) modificó el mapa religioso del país. Inmediatamente
después de instalado el grupo renovador en el poder, los deres del gobierno imperial
procedieron a desactivar con coerción y violencia las instituciones budistas al mismo
tiempo que prohibían otras prácticas religiosas populares. El sintoísmo, culto animista
folklórico, se impuso como religión de estado. A tal fin, se declaró que todos los
santuarios del país eran sitios destinados a realizar ritos de estado y los pastores
quedaban bajo estricta supervisión gubernamental (Breen, 2008: 12).
En este contexto, Yasukuni, construido con anterioridad a la restauración Meiji, fue
denominado “país en paz” (yasukuni) en 1879, fecha en la cual se lo elevó a la condición
de Santuario especial: símbolo del nuevo estado-nación japonés. Un sitio militarista en
el cual el estado era el benefactor que debía conmemorar a quienes se sacrificaron por
la nación. Los espíritus (kami) ya no pertenecían a la esfera privada, eran almas de todos
los nipones y, a su vez, respondían a una deidad mayor (el emperador) quien debía
honrar por ellos.
A pesar del papel preponderante del sintoísmo, en la constitución Meiji de 1889 se
estableció (artículo 28) la libertad religiosa. Doak destaca que hasta el inicio de la Guerra
del Pacífico hubo ciertas libertades. De hecho, varios cristianos como Imanaka Tsugimaro
y el profesor Tanaka Kotaro participaron en actividades gubernamentales sin sufrir
discriminaciones por su opción religiosa (2008: 28).
El cambio radical data de 1931 (Incidente de Manchuria), fecha en la cual se impuso en
Japón y sus colonias la política de movilización para la guerra. Las ambiciones del Japón
imperialista se basaban en poder independizar a los países de la región del dominio
occidental y construir la Esfera de Co-Prosperidad de la Gran Asia Oriental bajo su
dominio. En los os de la guerra, especialmente a partir de 1937 (ocupación de
Nanjing), Yasukuni
3
se convierte en el emblema de la militarización y el expansionismo:
“Querida madre: Lamento haberte descuidado y no haberte escrito
antes. Espero todos estén a salvo. Me he unido a las Fuerzas de
Ataques Especiales. No olvidaré tu amabilidad durante mi vida. Mi
deber final hacia vos como madre es cumplir con mi objetivo. En un
ataque contra un barco enemigo entregaré mi vida. Madre, cuídate.
Protege a la familia por mí. Por favor, envía mis saludos a todos los
vecinos del pueblo. Encontrémonos en Yasukuni” (Testimonio de
Kaneyuki Fukuda (kamikaze) extraído de: Kamikazeimages.net)
Como ocurrió en las discusiones previas a los Tribunales de Tokio sobre la necesidad de
otorgar la amnistía al Emperador Hirohito, la permanencia de Yasukuni también fue
3
En 1943 el torii de bronce ubicado en la entrada a Yasukuni fue removido por instrucción del primer ministro
Tojo a fin de utilizadar au material para el desarrollo de la industria pesada. El actual torii fue construido
en 1978 (Breen, 2008: 18).
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motivo de debate. El jesuita Bitter fue uno de los representantes del vaticano durante la
ocupación estadounidense y aconsejó a MacArthur no destruir el Santuario:
“(…) su consejo fue que cada persona que había muerto por la
nación tenía derecho a que su espíritu fuera conmemorado en
Yasukuni, independientemente de su creencia personal” (Doak,
2008: 51).
El Santuario no sólo no fue destruido, sino que a los casi 2 millones y medio de soldados
rememorados por haber entregado su vida por la nación nipona (1853-1945) se agregó
posteriormente, en 1978, una placa en memoria a los 14 condenados por el Tribunal
Internacional Militar para el Lejano Oriente como criminales clase A.
La nueva constitución de Japón sancionada en mayo de 1947 estableció la separación
entre religión y política. Por lo cual, el Santuario dejó de estar en manos del estado y
pasó a ser financiado y mantenido por asociaciones diversas no gubernamentales
nucleadas en la recién creada Asociación de Devotos de Yasukuni (Yasukuni Jinja
Hosankai). Ésta estaba constituida por personalidades de la cúpula de poder que el
régimen de la ocupación pretendía demonizar: una princesa imperial como presidenta,
un ex ministro de relaciones exteriores como vice-presidente y un ex primer ministro
como asesor (Breen, 2008: 20). En cuanto se retiraron las fuerzas de la ocupación, el
emperador Hirohito visitó el Santuario; y en 1953 se formó la Sociedad Japonesa de
Dolidos por la Guerra para tratar de concientizar a las autoridades gubernamentales
sobre la importancia de que el Estado garantizara la nacionalización del Santuario y
otorgara fondos públicos para los ritos. Estas presiones no lograron imponerse.
Los intentos oficiales por subvertir el orden de paz aparecen en 1969 cuando el Partido
Liberal Democrático (PLD) envió un proyecto de ley solicitando que el estado proteja el
Santuario. El mismo fue denegado. Cinco años después, el por entonces primer ministro,
Miki Takeo, visitó Yasukuni y fue obligado a pedir perdón.
La polémica cobra fuerza internacional a partir de los años 80. El primer ministro
Nakasone Yasuhiro visitó Yasukuni en 1982 y 1983, manifestó que era el fin de la
posguerra y afirmó que expresar gratitud por quienes entregaron la vida por Japón era
un deber del estado. Al mismo tiempo, autorizó un consejo de estudio para investigar las
visitas oficiales al Santuario. Los resultados de la investigación fueron publicados en
noviembre de 1984 provocando tensiones internas y preocupación regional (Rose, 2008:
29).
El creciente interés oficial por revalorizar Yasukuni se dio en el marco de un revisionismo
histórico producido en los países vecinos que cuestionaba el pasado agresor de Japón.
Por ejemplo, en 1982 Deng Xiaoping adoptó una posición dura respecto de los libros de
texto japoneses y estableció una nueva política de memoria nacional que rememoraba
(a través de publicaciones y la construcción de un museo y un prominente memorial) las
atrocidades cometidas por los japoneses en Nanjing (He, 2007). Por otro lado, en Corea
del Sur, los movimientos de lucha por la democracia reivindicaron una relectura crítica
de la historiografía poscolonial que, en tiempos de democracia, generó la creación de
institutos de investigación sobre las actividades de los colaboracionistas, comisiones de
verdad, publicaciones y diversas políticas de memoria al respecto (Álvarez, 2015a).
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Foto 1 - Activistas japoneses a favor y en contra del Santuario en Yasukuni (mayo de 2005)
Fuente: Captura del documental Annyeong Sayonara
La tensión llegó a su punto más alto durante el período 2001-2006 cuando Koizumi
Junichiro visi en reiteradas oportunidades el Santuario. Desde entonces, Yasukuni
provoca desacuerdos diplomáticos entre los países de la región (He, 2007; Hei, 2008;
Rose, 2008; Selden, 2008; Wang, 2008) y conflictos al interior de la sociedad japonesa
(pionera en los reclamos en contra del Santuario)
4
. En este escenario de memorias en
disputas, la sociedad civil local y transnacional ha tenido un rol muy activo en organizar
los debates e imponer determinados sentidos del pasado. A través de la conformación de
grupos a favor y en contra de Yasukuni, se han suscitado distintas interpretaciones sobre
lo sucedido que plantean los límites a los perdones otorgados por los gobiernos de Japón.
Como sostiene Lind (2008), la disculpa oficial no es condición necesaria para la
disminución de los conflictos generados por agresiones pasadas ni tampoco una señal de
consenso ideológico interno al respecto.
Grupos a favor de Yasukuni
Existen diversos grupos sociales a favor y en contra del Santuario Yasukuni. La mayoría
de los grupos o asociaciones en contra de Yasukuni no sólo reclaman la suspensión de
las visitas al santuario por parte de funcionarios japoneses, sino también un profundo
revisionismo histórico. Tienen un carácter s trasnacional que los grupos a favor y
actúan en colaboración con gobiernos extranjeros para ejercer presión sobre Japón.
Asimismo participan en demandas referidas a otras tensiones políticas como los libros de
texto y las reivindicaciones de las víctimas de la esclavitud sexual. Se destacan el Global
Alliance for Preserving the History of WWII in Asia, Asia Victims of the Pacific War Family
of the Deceased of Korea, Northeast Asian History Foundation (NEAHF), Center for
Research and Documentation on Japan´s War Responsibility, Institute of Research into
4
La primera querella contra el gobierno nipón exigiendo retirar de las placas conmemorativas el nombre de
un ex combatiente fue presentada en 1968 por familiares de una víctima japonesa (Tsunoda Saburo).
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Collaboratist Activities, el Korean Council for Redress and Reparations for the Victims of
WWII Atrocities, entre otros (Shin, 2008).
Si bien estas organizaciones tienen un papel muy importante la internacionalización de
la problemática y en presionar a los gobiernos de Japón, en este artículo nos centramos
únicamente en los grupos a favor del Santuario por dos razones. La primera se debe a
que el análisis sobre ellos nos permite reflexionar acerca de los límites en los niveles de
arrepentimiento colectivo en la sociedad japonesa. La segunda se sustenta en la estrecha
relación que existe entre el Partido Liberal Democrático y estas asociaciones, lo cual nos
lleva a profundizar en el análisis de las variables del perdón sugeridas por Daase: nivel
de arrepentimiento y coherencia.
Las asociaciones a favor del Santuario Yasukuni juegan un rol esencial en la
revalorización del pasado imperialista japonés dada su estrecha conexión con el partido
que prácticamente domina la vida política de Japón desde el fin de la segunda guerra
mundial: el Partido Liberal Democrático (PLD). Sin embargo, en el relevamiento de
trabajos previos
5
se encontraron pocos estudios que tomen a estos grupos o asociaciones
como actores centrales en las disputas generadas en torno a Yasukuni. Entre los aportes
más significativos se destacan las publicaciones de Daiki Shibuichi (2005) y Yongwook
Ryu (2007). Shibuichi explora las posturas respecto del Santuario manifestadas por las
fracciones de “derechae “izquierda” en Japón. En esta división del espectro ideológico
político algo clásica y poco consistente, incorpora a los grupos sociales a favor de
Yasukuni. Si bien no profundiza en sus acciones y características, señala la conexión
entre éstos y el PLD. No considera que sea un sector mayoritario, pero sí muy poderoso.
Funcionarios, profesores, periodistas y políticos reconocidos promueven las visitas a
Yasukuni entendiéndolo como símbolo del nacionalismo que sustenta la identidad nipona.
Por otro lado, Ryu sostiene que el apoyo al Santuario forma parte de un crecimiento del
conservadurismo en Japón que perjudica las relaciones diplomáticas con China y Corea
del Sur. Al igual que Shibuichi destaca que el PLD es el único partido que defiende
Yasukuni.
Considerando la importancia destacada a ciertos grupos a favor de Yasukuni en trabajos
previos (Shibuichi, 2005; Tetsuya Takahashi, 2007; Ryu, 2007; Yuji, Keito y Kei, 2015),
la repercusión de sus actividades en los medios de comunicación regional (Japan Herald,
Korea Herald, The Japan Times, The Korean Times, China Daily, Xinhuanet, Asahi
Shimbun) y el nivel de accesibilidad a información, seleccionamos las siguientes
organizaciones:
Conferencia de Japón (Nippon Kaigi)
Asociación de familias dolidas por la guerra de Japón (Nippon Izokukai)
Asociación de Parlamentarios que visitan el Santuario Yasukuni juntos (AMPVYST,
por su nombre en inglés).
Asociación Central de Santuarios Sintoístas (Jinja Honcho)
Conferencia de Japón o Nippon Kaigi es el grupo más joven, formado en 1997. Surge de
la unión de dos grupos nacionalistas: Sociedad para la defensa de Japón (formado por
organizaciones religiosas) y Asociación Nacional para de Defensa de Japón (formada por
varios líderes militares) (Kuji, Keita y Kei, 2015: 1). Bajo el lema “construyamos un país
del que estemos orgullosos”, su objetivo central es propagar un revisionismo histórico
5
Se ha llevado a cabo una búsqueda exhaustiva de trabajos en idioma inglés y español.
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integral del pasado imperialista de Japón mediante la promoción de las visitas de
funcionarios al Santuario, la instauración de una educación patriótica y un estado
monárquico sintoísta (lo que conlleva a una reforma constitucional).
Como observa Shibuichi (2005), este grupo mantiene una relación muy estrecha con
funcionarios públicos de alto rango. Por ejemplo, el actual presidente de la organización,
Miyoshi Toru, es el ex presidente de la Suprema Corte de Japón. También se encuentran
afiliados a este grupo el actual primer ministro Shinzo Abe, Aso Taro y Koizumi Junichiro;
todos miembros del Partido Liberal Democrático (Kim, 2014).
De acuerdo a un informe publicado en el periódico Asahi Shimbun, Nippon Kaigi posee
250 oficinas en el país y en el parlamento, tiene representación de 289 miembros (un
40% de bancas), casi todos del PLD, aunque el partido de oposición, el Partido
Democrático de Japón (PDJ) también tiene partidarios dentro de este grupo. En el 2014,
quince de los diecinueve representantes del gabinete eran miembros de esta organización
(Kato, 2014). En la actualidad, el 80% del gabinete de Shinzo Abe y la mitad de los
parlamentarios pertenecen a este grupo. Según la página oficial, entre las distintas
personalidades de la vida pública nipona, participan gran cantidad de miembros
destacados del PLD: Shinzo Abe, Junichiro Koizumi, Akira Amari, Haruko Arimura,
Kazuhiro Haraguchi, Kunio Haraguchi, Bunmei Ibuki, Yoshio Mochizuki, Eisuke Mori,
Satoichi Nakawa, Hiroshi Nakai, Gen Nakatani, Keinji, Kosaka, Yoshitaka Shindo,
Yoshihide Suga, Sunichi Suzuki, Sanae Takaichi, Wataru Takeshita, entre otros;
profesores universitarios: Tadae Takubo, Shiro Odamura, Keiichiro Kobori, Takemoto
Tadao, Irie Takamori, Yoshio Keino (presidente de la asociación de profesores de Japón),
Masayuki Shibuki (Kohken Co.), etc.; destacados empresarios y profesionales: Keiichiro
Uchino (director de un prestigioso estudio jurídico), Kosaku Inaba (ex presidente de una
industria pesada), etc.; y otros representantes de la sociedad civil como Sadanoyama
Shimatsu (director de la Asociación de Sumo de Japón), Yoshiko Sakurai (periodista y
presentador de televisión), Seiho Okano (líder de un culto religioso denominado
Gedatsukai).
Además de poseer entre sus miembros a personalidades destacadas de la política local
que ocupan o han ocupado importantes puestos de gobierno, Tomomi Yamaguchi
destaca:
“movimientos como Nippon Kaigi que no sólo poseen la habilidad de
movilizar miembros de la Asamblea Nacional sino también
parlamentarios de prefecturas y grupos religiosos, han jugado un rol
clave en la consolidación de una tendencia de derecha desde fines
de 1990 que culminó con la Ley Fundamental de Educación, las
visitas de primeros ministros a Yasukuni, etc.” (citado en Kuji, Keita
y Kei, 2015: 2).
Su clara y directa articulación en ciertas decisiones de gobierno no implica que no existan
sectores dentro del PLD que desestiman a Nippon Kaigi. Sin embargo, han logrado
promulgar proyectos de ley controvertidos, por ejemplo, el que establecía como bandera
nacional a la antigua bandera imperial del Sol Naciente y al himno imperial Kimi ga yo
(“Que su reinado dure eternamente”) como himno nacional en 1999.
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Maria del Pilar Álvarez; Maria del Mar Lunaklick; Tomás Muñoz
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Otro de los grupos relevados es la Asociación de familias dolidas por la guerra de Japón
o Nippon Izokukai fundada en 1947 con el objetivo de reivindicar los intereses de los
descendientes de los veteranos de la guerra del Pacífico. Este grupo es s poderoso y
nacionalista que Nippon Kaigi, pero al igual que éste cuenta con un amplio apoyo del PLD
y los cargos de su organización lo ejercen miembros parlamentarios del partido de
gobierno. Al principio, luchó por la obtención de asistencia económica gubernamental
para las familias que perdieron parientes directos durante la guerra. En 1957, logró que
el Ministerio de Bienestar le cediera un edificio de su propiedad sin cargo por su alquiler.
Y en 1960, habiendo alcanzado su objetivo inicial, presionaron al gobierno para que
Yasukuni sea protegido por el estado y que los funcionarios, en especial el emperador y
primer ministro, acudieran al Santuario como lo hacían antes de la guerra. A partir de
esta época, la Asociación comenzó a presentar proyectos de ley (a través de los
parlamentarios fieles al grupo) para garantizar el apoyo estatal al Santuario y establecer
ritos oficiales a los caídos en combate. Asimismo, incorporaron otro modo de acción más
visible: marchas callejeras, distribución de panfletos, recolección de firmas y sentadas
frente a la oficina del primer ministro. El proyecto de ley fue rechazado en cinco
oportunidades durante el período 1969-1974. (Daiki, 2005: 70-71).
Frente a estas negativas, definieron una nueva estrategia centrada en incentivar a los
funcionarios públicos a visitar Yasukuni. Para que Nakasone Yasuhiro acudiese
oficialmente al santuario, varios subgrupos que conforman la Asociación hicieron huelgas
de hambre, incluso dentro del santuario. El ex primer ministro, Hashimoto Ryutaro
(1996-1998), era miembro de este grupo y en apoyo visiel Santuario durante el primer
año de su gestión (Pollack, 1996). Del mismo modo, en el 2000 lo hizo el alcalde de
Tokio, Ishihara Shintaro, se convirtió en el primer gobernador en realizar una visita oficial
(Tanaka, 2001). Un cambio interesante en sus demandas se produjo en el 2014 cuando
la Asociación pasó una resolución mediante la cual apoyaba la remoción de las placas
donde se encuentran conmemorados los criminales de guerra de clase A para ser
trasladados a otro lugar y así evitar controversias alrededor del santuario (Fackler, 2014).
Esta nueva estrategia busca eliminar las discusiones en torno a qué caídos debe
conmemorar el estado y así avanzar con el proyecto de su nacionalización.
Además de estos dos grupos, existen otros tantos más pequeños. Entre ellos se destaca
por su capacidad de incidencia, la Asociación de Parlamentarios que visitan juntos el
Santuario Yasukuni (AMPVYST, por su nombre en inglés). Esta asociación fue fundada en
1981 y refleja el poder alcanzado por los grupos a favor del Yasukuni. Está conformado
por parlamentarios del PLD y del PDJ que desean visitar y/o lograr concretar visitas
oficiales al Santuario, especialmente cada 15 de agosto cuando se conmemora el fin de
la guerra. La AMPVYST considera que estas visitas aumentarán la conciencia política
nacional. Entre 2008 y 2013, unos 40 o 50 parlamentarios visitaron el santuario para
conmemorar el fin de la guerra.
Finalmente, es importante mencionar la Asociación Central de Santuarios Sintoístas o
Jinja Honcho. De acuerdo a su página oficial, es un conglomerado de instituciones
religiosas privadas que se encarga de impulsar la religión sintoísta y hacer respetar los
valores tradicionales y culturales japoneses. Desde el fin de la guerra y la consecuente
separación religión de estado, esta Asociación intenta fortalecer el resurgimiento del
sintoísmo como la religión folklórica que define la identidad nacional nipona. En este
sentido, propugna retomar los valores anteriores a la guerra, tales como la divinidad del
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emperador y el respeto a la familia imperial. Por otro lado, se encarga de administrar la
totalidad de los santuarios nacionales y certificar las promociones sacerdotales.
Su principal canal de acción es el semanario Jinja Shimpo que dirige la agenda social y
religiosa de los santuarios sintoístas nacionales. Está estrechamente ligada a Nippon
Izokukai y suelen colaborar en la elaboración de su agenda. Por ejemplo, durante el
período 1969-1974, Jinja Honcho apoyó activamente a Nippon Izokukai y al PLD en el
reclamo por la nacionalización del Santuario. En su fundamento ideológico, se asemeja
más a Nippon Kaigi ya que articula la defensa de Yasukuni con la importancia de
restablecer lo que consideran los “valores tradicionales de la sociedad japonesa” (Seig,
2014).
Todos estos grupos son asociaciones civiles. En ningún caso fueron creadas por los
partidos políticos, aunque éstos constituyen su principal actor de presión. Con el objetivo
de aumentar el nivel de adhesión a sus demandas, en especial las visitas a Yasukuni,
cada organización distribuye material (libros y panfletos) que refleja su perspectiva
revisionista del pasado. Los grupos también mantienen relación con funcionarios de
algunas prefecturas (en general pertenecen al PLD) que se encargan de atraer nuevos
miembros y captar donaciones. Los canales de acción que utilizan para alcanzar sus
objetivos son pacíficos: medios legales (impulsan nuevas normativas),
conmemoraciones, actividades de promoción social y proyectos educativos. Asimismo,
cuentan con el apoyo implícito del periódico Yumiuri Shimbun, uno de los de mayores
tiradas del país, y el diario Sankei Shimbun y la revista mensual Shokun!
Pollmann (2016) destaca la importancia de los medios de comunicación pues explica que
éstos pueden favorecer a la realización o no de una visita. A través de encuestas de
opinión pública, analiza que los funcionarios y primeros ministros suelen concretar su
visita si se sienten apoyados por la población. Este consenso doméstico acarrea
consecuencias internacionales negativas en Corea y China, pero, si el funcionario cuenta
con un apoyo amplio, éstas son superadas. Si el apoyo a un primer ministro resultara ser
menor al esperado, la visita será repudiada o ni siquiera realizada. Cuando Koizumi visitó
Yasukuni, lo hizo siendo consciente de que las encuestas favorecían una eventual visita.
La autora explica que, a mayor apoyo, la visita se efectuará y el funcionario
correspondiente seguirá teniendo apoyo, aunque éste se habrá reducido.
Por otro lado, los grupos a favor de Yasukuni están conectados entre y además cuentan
con diversos canales de acción y presión. El lobby que realizan a nivel político les ha
permitido consolidar su poder de incidencia en la esfera gubernamental (nacional y local).
La mayor parte de los representantes con puestos directivos en estas
asociaciones/grupos son a su vez miembros del PLD y ocupan cargos importantes en los
gobiernos (primeros ministros, ministros, parlamentarios y prefectos). Esto no significa
que los grupos formen parte del PLD, sino que sus miembros son simultáneamente
partícipes en las actividades partidarias y aquellas fuera de ellas. Como mencionamos en
el caso de los grupos en contra del Santuario, en Japón no existe una sola voz respecto
a la cuestión de Yasukuni. Por lo contrario, en su interior podemos encontrar una
diversidad de posiciones que reflejan la heterogeneidad de perspectivas que existen
respecto a las visitas. Tampoco sería correcto afirmar que existe homogeneidad al interior
del PLD. Dentro de éste, hay quienes se oponen a que el primer ministro visite el
Santuario. Se observan también diferentes percepciones sobre el significado de este sitio
de memoria, para algunos es un lugar para honrar a los caídos mientras que para otros
es un mbolo del militarismo (Ryu, 2007). La pluralidad ideológica rige en los otros
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partidos políticos. Según los datos expuestos por Ryu (2007), los parlamentarios
adherentes al PLD suelen ser más proclives a visitar el santuario y considerar que al
hacerlo honran a los caídos, y quienes no pertenezcan a este partido suelen ser más
proclives a oponerse al santuario y considerar que representa al militarismo.
Interesantemente, los grupos en contra cruzan trasversalmente la lógica de partidos.
Por ejemplo, el grupo AMPVYST es una asociación que involucra parlamentarios a favor
del santuario tanto del PLD como del PDJ. De todos modos, el PLD simplemente por tener
una ideología liberal en lo económico y conservadora-nacionalista en lo político es s
cercano a estos grupos que apoyan el santuario y cuyos miembros forman parte de sus
filas.
El alcance de los grupos a favor y su intrínseca relación con la cúpula de poder dominante
en Japón, pone en cuestión el nivel y tipo de aprobación colectiva de las disculpas
efectuadas por funcionarios japoneses por las atrocidades cometidas en el pasado. El
auspicio y legitimación de las visitas a Yasukuni vislumbra la dificultad de conciliar el
arrepentimiento nacional con la revalorización del ser nacional. Como analizaremos en la
próxima sección, este dilema plantea también otros tipos de incompatibilidades con el
proceso de reconciliación de Japón con sus vecinos.
Cuando el perdón se vuelve inconsistente
Desde los años 50, distintas autoridades japonesas han pedido disculpas por las
atrocidades cometidas durante la guerra a los países de afectados por la ocupación [Ver
Cuadro 1]. Sin embargo, el perdón no parece haber estado acompañado de una política
de memoria adecuada que refuerce la mera retórica de la disculpa. O quizás, aún más
complejo, la noción de perdón no ha sido consensuada por los países de la región,
especialmente Corea y China. Surgen así una serie de preguntas relacionadas con el nivel
de arrepentimiento y el nivel de aceptación colectiva del perdón: ¿En qué medida las
exigencias de los grupos a favor de Yasukuni se contraponen con los pedidos de
disculpas? ¿A quiénes puede y debe conmemorar el estado japonés?
Cuadro 1. Pedidos de disculpas por parte de los gobiernos de Japón
Año
Autoridad
Destinatario de la disculpa
1957
Primer Ministro Kishi Nobusuke
República de la Unión de Myanmar
1957
Primer Ministro Kishi Nobusuke
Australia
1965
Ministro de Relaciones Exteriores Shiina
Etsusaburo
Corea del Sur (Tratado de Restablecimiento de
Relaciones Diplomáticas)
1972
Primer Ministro Kakuei Tanaka
República Popular China
1982
Primer Ministro Zenko Suzuki
Todos los territorios de Asia ocupados por
Japón durante la guerra.
1982
Director de la Secretaría de Gabinete
Kiichi Miyazawa
Corea
1984
Emperador Hirohito
Corea
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1984
Primer Ministro Yasuhiro Nakasone
Corea
1985
Primer Ministro Yasuhiro Nakasone
Todos los territorios de Asia ocupados por
Japón durante la guerra en Naciones Unidas.
1989
Primer Ministro Takeshita Noboru
Corea
1990
Ministro de Relaciones Exteriores Taro
Nakasome
Corea
1990
Emperador Akihito
Corea
1990
Primer Ministro Toshiki Kaifu
Corea
1992
Primer Ministro Kiichi Miyazawa
Las ex mujeres de confort
1992
Primer Ministro Kiichi Miyazawa
Corea
1992
Director de la Secretaría de Gabinete
Koichi Kato
Las ex mujeres de confort
1993
Director de la Secretaría de Gabinete
Yohei Kono
Las ex mujeres de confort
1993
Primer Ministro Morihiro Hosokawa
Todos los afectados por la guerra
1993
Primer Ministro Morihiro Hosokawa
Todos los afectados por la guerra
1993
Primer Ministro Morihiro Hosokawa
Por las agresiones cometidas durante la guerra
1994
Primer Ministro Tomiichi Murayawa
Todas las personas de los territorios de Asia
ocupados por Japón durante la guerra
1995
Primer Ministro Tomiichi Murayawa
Las ex mujeres de confort
1996
Primer Ministro Ryutaro Hashimoto
Corea del Sur (por la colonización y las ex
mujeres de confort)
1996
Emperador Akihito
Corea del Sur
1998
Primer Ministro Ryutaro Hashimoto
Holanda
1998
Primer Ministro Keizo Obuchi
Corea
1998
Primer Ministro Keizo Obuchi
República Popular China
2000
Consul General de Japón en Hong Kong,
Itaru Umeza
Todos los territorios de Asia ocupados por
Japón durante la guerra
2000
Ministro de Relaciones Exteriores Yohei
Kono
República Popular China
2001
Ministro de Relaciones Exteriores
Makiko Tanaka
Por las agresiones cometidas durante la guerra
2001
Primer Ministro Junichiro Koizumi
Corea por la colonización del país
2001
Primer Ministro Junichiro Koizumi
Las ex mujeres de confort
2002
Primer Ministro Junichiro Koizumi
Corea
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2003
Primer Ministro Junichiro Koizumi
Todos los territorios de Asia ocupados por
Japón durante la guerra
2005
Primer Ministro Junichiro Koizumi
Todos los territorios de Asia ocupados por
Japón durante la guerra
2005
Primer Ministro Junichiro Koizumi
Todos los territorios de Asia ocupados por
Japón durante la guerra
2007
Primer Ministro Shinzo Abe
Las ex mujeres de confort
2010
Ministro de Relaciones Exteriores
Katsuya Okada
Corea
2010
Primer Ministro Naoto Kan
Todos los territorios de Asia ocupados por
Japón durante la guerra
2010
Ministro de Relaciones Exteriores
Katsuya Okada
A los Estados Unidos por los prisioneros de
guerra
2010
Primer Ministro Naoto Kan
Corea
2011
Ministro de Relaciones Exteriores Seiji
Maechara
Australia por el maltrato a prisioneros de
guerra
2011
Vice Ministro de Relaciones Exteriores
Toshiyuki Kat
Canadá por el maltrato a prisioneros de guerra
2013
Primer Ministro Shinzo Abe
Todos los territorios de Asia ocupados por
Japón durante la guerra
2014
Embajador en Filipinas Toshinao Urabe
Todos los territorios de Asia ocupados por
Japón durante la guerra
2015
Primer Ministro Shinzo Abe
Todos los territorios de Asia ocupados por
Japón durante la guerra
2015
Ministro de Relaciones Exteriores Fumio
Kishida
Acuerdo con el Ministro de Relaciones
Exteriores de Corea del Sur: Las ex mujeres de
confort
Fuente: Elaboración propia en base a los datos proporcionados por la página oficial del Ministerio
de Relaciones Exteriores y la Cámara de Representantes de Japón.
Como se puede observar en el Cuadro 1, en los años 90 aumentaron notablemente la
cantidad de disculpas efectuadas por los primeros ministros de Japón, pasando de 4 en
la década anterior a 12. Esta alza marcó una tendencia, registrándose 7 en 2000. Las
disculpas suelen enfatizan la responsabilidad y el profundo arrepentimiento por parte de
Japón:
“Durante un cierto tiempo, en el pasado no muy lejano, Japón
siguiendo una política nacional equivocada, optó avanzar por medio
de la guerra, para dejar al pueblo de Japón subsumido en una crisis
terrible y, a través de la agresión y sus dominios coloniales, causó
un daño profundo y un gran sufrimiento a los pueblos de muchos
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países, en particular, las naciones de Asia (…) Permítanme también
expresar mis sentimientos de profundo duelo por todas las víctimas
(…)” (Tomiichi Murayama en el discurso por los 50 años de la guerra,
15 de agosto de 1994)
“En el pasado, Japón, a través de la agresión y sus dominios
coloniales, causó un tremendo daño y sufrimiento a la gente de
muchos países, en particular a los de las naciones asiáticas.
Sinceramente, frente a estos hechos de la historia, una vez s
expreso mis sentimientos de profundo arrepentimiento y sentidas
disculpas (…)” (Junichiro Koizumi, 15 de agosto de 2015)
Irónicamente, se observa que Junichiro Koizumi mientras ejercía el cargo de primer
ministro se disculpó por los horrores del pasado anualmente, pero también visitó cada
año el Santuario Yasukuni. Una actitud similar se repite en Shinzo Abe quien contin
defendiendo Yasukuni a pesar del perdón otorgado en 2007. Tanto Nakasone Yasuhiro,
como Koizumi Junichiro y Shinzo Abe, entre otros funcionarios de alto rango, son
miembros activos de la organización Conferencia de Japón. Lai (2014: 84) señala que
desde 1990s surge un movimiento s articulado e ideológico encabezado por Nippon
Kaigi que refleja el resentimiento popular hacia lo que ellos entienden como el uso de los
archivos de guerra para denigrarlos permanente y obligarlos a mantener una diplomacia
de la disculpa. A diferencia de las otras asociaciones estudiadas, ésta cuenta con un
amplio protagonismo político y adhesión. De acuerdo a los datos relevados en los sitios
oficiales de internet, Nippon Izokukai tiene como eje promover el bienestar
socioeconómico de las víctimas de la guerra (y sus familiares) al mismo tiempo que busca
apoyo oficial para cuidar memoriales ubicados fuera de Japón: en Sakhalin, en las Kuriles,
en Malasia, en las Filipinas, entre otros. Nippon Kaigi, en cambio, posee objetivos políticos
más controversiales; por ejemplo, modificar la constitución para permitir el resurgimiento
de un ejército japonés independiente. Cuenta con una publicación mensual donde se
discute cómo interpretar la historia del país, la necesidad de restablecer el “orgullo
nacional”, “respetar y revalorizar la tradición y la cultura”, restablecer la “verdadera
identidad de Japón”. Respecto a Yasukuni, declaraciones recientes enfatizan el rechazo
a una propuesta de convertir el Santuario en un cementerio público porque “pisotea la
historia nacional”. Asimismo, han habilitado un canal en YouTube donde suben videos de
actos, charlas, conmemoraciones y otros eventos de difusión. Llama poderosamente la
atención, la cantidad de declaraciones de funcionarios públicos subidas al sitio y el
protagonismo de ciertas autoridades del estado en sus actividades, como ocurre con
Shinzo Abe.
Las visitas al Santuario suelen efectuarse en días determinados, por ejemplo, durante el
Festival de Primavera (a mediados de abril), el Festival de Otoño (a mediados de octubre)
y el Día de la Capitulación de Japón en la Guerra Mundial el 15 de agosto. Según Pollmann
(2016), el 15 de agosto es la fecha más elegida para las visitas de parlamentarios y
miembros del gabinete. Ese día representa el fin de la guerra para Japón, mientras que
sus vecinos celebran la liberación nipona. Lo cual constituye una fecha sensible en las
relaciones entre Corea, China y Japón. Otras fechas elegidas por primeros ministros y
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funcionarios para las visitas son los Festivales de Primavera y de Otoño durante los cuales
se efectúan servicios religiosos.
Los primeros ministros que visitaron Yasukuni fueron Nakasone, Hashimoto, Koizumi y
Abe. Tanto Nakasone como Koizumi visitaron el santuario el 15 de agosto, Hashimoto y
Abe lo hicieron en otras fechas. Según los datos obtenidos por Pollmann, se produjeron
constantes visitas de parlamentarios al santuario desde el 2003 tanto en época de
festivales como el 15 de agosto. El tamaño de las delegaciones en los festivales pareciera
sugerir que esos as son más importantes que la conmemoración por el fin de la guerra.
Por otro lado, los miembros del gabinete visitaron el Santuario cada 15 de agosto en los
períodos 1999-2008 y 2012-2014. Estos datos indican que, a pesar de la etapa de no-
visitas de primeros ministros entre 2006-2013, tanto miembros del gabinete como
parlamentarios continuaron concurriendo a Yasukuni en época de festivales y los 15 de
agosto.
Entre 2006 y 2013 los primeros ministros decidieron no asistir. Es el caso de Obuchi,
Mori, Abe (durante su primer mandato, 2006-2007), Fukuda, Aso, Hatoyama, Kan y
Noda. Sin embargo, Abe, en sus dos períodos, y Aso enviaron ofrendas. Abe lo hizo una
vez en su primer período, Aso lo hizo dos veces, una en cada festival, y luego Abe envió
ofrendas en cada festival, los 15 de agosto y visitó personalmente el santuario en 2013.
El envío de ofrendas es una muestra de que a pesar de no poder concretar las visita,
sigue legitimando al Santuario.
Esta valorización del significado local de Yasukuni en detrimento del impacto en las
relaciones regionales, sugiere que para varios funcionarios la política doméstica parece
importar s a que la internacional. Si bien las visitas permiten ganar apoyo de los
amplios sectores a favor del mismo, éstas menoscaban las relaciones con China y Corea.
En cambio, si optan por no asistir, no hay daño internacional que reparar. El período de
no-visitas por parte de los primeros ministros puede indicar un respeto mayor hacia sus
vecinos, aunque esta actitud no logró impedir las visitas de otros funcionarios públicos
generando cierta incoherencia e inconsistencia en las disculpas efectuadas.
Por otro lado, articulando el acto de visitar Yasukuni con los pedidos de disculpas de los
primeros ministros, se observa que, al igual que lo manifestado por las organizaciones a
favor del Santuario (especialmente Nippon Kaigi), el acto de honrar a los caídos en la
guerra no es sinónimo de legitimar las violaciones a los derechos humanos cometidas
por el Japón imperialista. Los pedidos de disculpas enfatizan el arrepentimiento y la
responsabilidad por el daño causado y las conmemoraciones en Yasukuni se basan en la
necesidad de dignificar a quienes, injustamente, perdieron su vida por la nación nipona.
Esta dicotomía, discutida y criticada por los países de la región (y hasta por amplios
sectores de la sociedad japonesa), plantea la diversidad de modos de interpretar el
pasado que dominan la agenda regional y el consecuente problema de absolutizar el valor
del perdón:
“No es mi intención herir los sentimientos del pueblo chino y
coreano. Es mi deseo respetarlos y proteger la libertad y la
democracia, y construir una amistad respetuosa con China y Corea,
como lo han hecho todos los primeros ministros que han visitado
Yasukuni” (Shinzo Abe, 26 de diciembre de 2013)
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El impacto regional: China y Corea del Sur
Los gobiernos de China y Corea del Sur consideran las visitas a Yasukuni por parte de
funcionarios públicos japoneses, en especial los primeros ministros, como una
provocación que ponen en cuestión el nivel de arrepentimiento y aceptación colectiva de
las “sentidas” disculpas efectuadas por los gobiernos de Japón en distintas
oportunidades.
Corea del Sur es el país más activo en sus reclamos
6
. De acuerdo a los documentos
publicados en el sitio oficial del Ministerio de Relaciones Exteriores (MOFAT) de este país,
las primeras demandan datan de los os 80 cuando Nakasone Yushihiro acudió a
Yasukuni. Durante el período de Junichiro Koizumi (2001-2006) las declaraciones de
disconformidad aumentaron. En 2001, durante la 53º reunión de la Subcomisión de
Promoción y Protección de los Derechos Humanos de las Naciones Unidas, se mencionó
la visita de Koizumi al Santuario junto otros temas. Asimismo, en la declaración por el
aniversario 56 del fin de la guerra, Junichiro Koizumi se refirió a las visitas a Yasukuni y
pidió comprensión hacia los sentimientos del pueblo japonés por el Santuario. En los años
subsiguientes, se destacan varias declaraciones de rechazo realizadas por el Ministerio
de Relaciones Exteriores de Corea en las cuales se enfatiza el carácter militarista del
mismo y la existencia de las placas conmemorando criminales de guerra. En agosto de
2003, las visitas fueron uno de los temas que trataron los ministros de relaciones
exteriores durante la reunión que sostuvieron sin lograr un consenso. En los documentos
relevados (Ver Cuadro 2), se observan las críticas a las visitas en clave a la errónea
concepción de la historia que difunde Japón. A la “equivocada” mirada de la historia se
unen otros conflictos vigentes entre ambos países, como la disputa territorial por la isla
de Dokdo/Takeshima y los pedidos para que Japón modifique una serie de libros de texto
escolares que minimizan su rol agresor en el pasado.
La indignación de Corea por las visitas de los primeros ministros a Yasukuni continuó. En
abril de 2013 se cancelaron los encuentros oficiales luego de que Shinzo Abe concurriera
al Santuario y en diciembre la Asamblea Nacional presentó una condena formal por las
visitas efectuadas y se suspendieron las reuniones sobre defensa e intercambio militar.
En este sentido, cabe destacar la declaración del portavoz del gobierno coreano que
resaltó:
“Si Japón quiere realmente contribuir activamente a la paz mundial,
es importante que enfrente su historia y construya confianza a
través de manifestar un profundo arrepentimiento y disculpas a los
gobiernos y pueblos de los países vecinos que sufrieron el dolor de
su dominio colonial y agresión militarista” (Declaración del Portavoz
sobre Yasukuni, 26 de diciembre de 2013, MOFAT).
A comienzos del 2014, el Representante Permanente de la República de Corea en las
Naciones Unidas, Oh Joon, señaló la tensión que generan las visitas a Yasukuni y condenó
6
Lo es también en otras disputas regionales por el pasado agresor de Japón en la región como el caso de
las ex esclavas sexuales de la armada imperial de Japón y los tensiones por los libros de texto.
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45
a los deres de Japón por mantener una actitud confrontativa. Ese año también se
registraron varios comunicados del gobierno coreano que expresaba su descontento tras
la visita de Shinzo Abe y miembros del gabinete a Yasukuni. El 22 de abril del 2015, el
gobierno de Corea manifestó que:
“(...) Japón debe mostrar su sincero arrepentimiento y disculpas
por los errores cometidos en el pasado para satisfacer la aspiración
de ambos países a mejorar las relaciones bilaterales” (Declaración
del Portavoz sobre Yasukuni, 22 de abril de 2015, MOFAT)
Al igual que Corea, China también ha señalado en reiteradas oportunidades su
preocupación por las visitas de los primeros ministros de Japón al Santuario (Ver Cuadro
2). En sus denuncias solicita que éstas se detengan argumentando, como Corea, la
equivocada interpretación de la historia que tiene el gobierno de Japón. Los pedidos no
solo se dieron por medio de comunicados, sino que también en reuniones entre
funcionarios. Una de las quejas más importantes que realiza China es que la actitud de
Japón imposibilita la fluidez en las relaciones diplomáticas entre ambos países. Por
ejemplo, Hu Jintao declaró en 2005 que Japón debía considerar los tres documentos que
funcionan como base de sus relaciones: el Comunicado Conjunto Sino-japonés, el
Tratado de Paz y Amistad entre China y Japón y la Declaración Conjunta Sino-japonesa.
Al año siguiente, Takako Doi vinculó el impasse en las relaciones chino-japonesas a las
visitas sostenidas por dirigentes japoneses al Santuario Yasukuni. Además, calificó a la
visita como un acto que:
“desafía a la justicia internacional y pisotea el conocimiento intuitivo
de la humanidad, ha tenido un fuerte impacto sobre el proceso de
mejoramiento de las relaciones entre China y el Japón y ha dañado
también la imagen internacional y los intereses nacionales del
Japón”. (Entrevista a Tang Jia Xuan, 20 de agosto de 2006, MOFAT
de China).
Los reclamos continuaron a lo largo de las décadas. En 2013, Qin Gang, el portavoz del
MOFAT de China, declaró que la visita de Shinzo Abe a Yasukuni es indignante:
pisotea groseramente el sentimiento del pueblo chino y otros
pueblos asiáticos víctimas de la guerra y desafía abiertamente la
justicia histórica y la conciencia humana (…) instamos a Japón a que
cumpla con su compromiso y reflexione sobre su pasado agresivo,
tome medidas para corregir sus errores y eliminar los efectos
adversos, y adopte acciones concretas para recuperar la confianza
de sus vecinos asiáticos y de la comunidad internacional en general”
(Qin Gang, Declaración sobre Yasukuni, 26 de diciembre de 2013).
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las tensiones políticas en el Este de Asia
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Cuadro 2. Impacto regional de las visitas a Yasukuni, 2001-2015
Período:
2001-2015
China
Corea del Sur
Japón
Motivo de
protesta
- El MOFA chino acusa a
Yasukuni como símbolo del
expansionismo y agresión,
siendo el punto nodal la forma
en la que el Gobierno japonés
entiende y se acerca a su
historia de agresión.
- Presencia de placas
conmemorativas a criminales
de clase A como el principal
indicador de la percepción
errónea del gobierno japonés.
- El Ministerio coreano destacó
que el Santuario de Yasukuni es
un lugar donde las guerras de
agresión del imperialismo
japonés se encuentran
justificadas y glorificadas.
- Presencia de placas
conmemorativas a criminales de
clase A.
-
Pedidos
/
Respuestas
- “Extraer lecciones de la
historia y mirar hacia el futuro
para desarrollar las relaciones
Sino-Japonesas”.
- Desarrollar las relaciones
considerando el “espíritu de
tomar la historia como un
espejo y mirar hacia el futuro”
(acuñado por Hu Jintao).
- Cumplimiento de los cuatro
documentos políticos
establecido entre China y Japón
(la Declaración Conjunta China-
Japón de 1972, el Tratado de
Paz y Amistad China-Japón de
1978, la Declaración Conjunta
China-Japón de 1998, y la
declaración conjunta sobre
avanzar en las relaciones
estratégicas y de beneficios
mutuos de una manera integral
de 2008), sobre los cuales
deberían desarrollar sus
relaciones.
- Pedido de un correcto
entendimiento de la historia
mediante acciones para que las
relaciones prosperen.
- Respeto hacia los
sentimientos de la población
China y las víctimas de otros
países asiáticos.
- Cualquier homenaje en
Yasukuni es esencialmente un
intento de negar y encubrir la
historia invasión del militarismo
japonés, y desafiar los
resultados de la Segunda
Guerra Mundial y el orden
internacional de la posguerra.
-Se instó a la parte japonesa
mostrar remordimiento por la
- Aprobación de la propuesta
por parte del “Grupo Asesor
sobre instalaciones
conmemorativos para servicios
recordatorios y Oración por la
Paz de Japón" de construir un
nuevo memorial.
- Descontento ante una lectura
distorsionada de la historia por
parte del gobierno japonés.
- Pedido de no realizar cualquier
acción que pueda obstaculizar la
normalización y el arreglo de
una relación constructiva y
orientada al futuro como visitar
el Santuario Yasukuni.
- Pedido de “asumir un enfoque
humilde y sincero sobre la
historia de Japón para ganar la
confianza y jugar papeles de
responsabilidad en el ámbito de
la comunidad internacional”,
- Se califica a las visitas como
irresponsable por ignorar los
sentimientos de los pueblos
vecinos a Japón.
- Cuestionamiento sobre la
presencia de placas que
conmemoran a coreanos.
- La retórica y las acciones
llevadas a cabo por Japón, entre
ellas las visitas a Yasukuni, son
señaladas como un
impedimento para el desarrollo
y estabilización de las relaciones
bilaterales.
- Pedido de correspondencia en
las acciones de Japón con sus
disculpas.
- Se considera que las visitas no
pueden más que negar el orden
internacional y anular las bases
- Primer
Ministro Taro
Aso: aseguró
que
consideraba
antinatural no
honrar a
aquellos que
habían muerto
por Japón por lo
que era
necesario
visitar el
Santuario
(MOFA China,
02/08/2013).
- El gobierno
japonés afirma
que las
declaraciones
Murayama,
Koizumi y Abe
expresan la
forma en la que
comprenden la
historia,
repitiendo la
idea de un
“profundo
remordimiento
y sincera
disculpa”
respecto a lo
acontecido en el
pasado. El
pedido de
disculpa se
extiende a otros
sucesos como
el caso de las
mujeres de
confort o la
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historia de agresión y a realizar
esfuerzos tangibles para ganar
la confianza de los vecinos
asiáticos y de la comunidad
internacional.
por las cuales Japón volvió a la
comunidad internacional luego
de la Segunda Guerra Mundial
(MOFAT Corea, 17/04/2014).
- Quejas ante el
comportamiento “anacrónico”
que representan las visitas a
Yasukuni para el gobierno
coreano.
masacre de
Nanjing.
- El Gobierno
japonés
aseguró que las
visitas se hacía
en carácter de
ciudadano y no
en el de
funcionario.
- Se justifica las
visitas
afirmando que
buscan honrar a
aquellos que se
sacrificaron
para construir
la paz que hoy
disfruta Japón
Temas
relacionados
(mencionados
en
declaraciones
junto a
Yasukuni como
problemas
históricos)
- Conflicto de Soberanía de
Islas Diaoyu/Senkaku
- Controversia en torno a cómo
se relata la historia en libros de
textos escolares japoneses.
- Reconocimiento de China por
sobre Taiwán
- Cooperación en materia de
seguridad entre Estados Unidos
y Japón y la futura orientación
militar de éste último.
- La cuestión de las Mujeres de
Confort.
- La masacre de Nanjing.
- Disputas que emergen en el
mar Oriental y Meridional de
China.
- Cuestión nuclear de Corea del
Norte.
- Conflicto de Soberanía Islas
Dokdo/Takeshina
- La cuestión de las mujeres de
confort.
- Las protestas por los libros de
texto escolares de historia.
- La visitas reflejaban para el
gobierno coreano una mirada
histórica errónea y comenzó a
vincularse con las intenciones
de revisar la Constitución por
parte del gabinete de Abe.
- Cuestión nuclear de Corea del
Norte.
Repercusiones
concretas
- Declaraciones de diferentes
funcionarios e instituciones
chinas condenando los actos.
- Pedidos de reuniones de
emergencia con el embajador y
el Canciller japonés para
expresar el descontento
- Negativa de funcionarios
chinos a reunirse con Abe
debido a las visitas (MOFA
China, 30/12/2013); (MOFA
China, 9/1/2014).
- Cancelación de las
conversaciones con el Primer
Ministro Koizumi que iban a
realizarse en el marco del Foro
de Cooperación Económica
Asia-Pacífico (APEC por sus
siglas en inglés) en Busan y la
cumbre trilateral que se
realizaría en la Asociación de
- Pedidos de reunión con el
embajador japonés en Seúl y el
Ministro de Asuntos Exteriores
de Japón, pidiendo no
obstaculizar el desarrollo de las
relaciones de amistad entre
Corea y Japón, así como el
mantenimiento de la paz y la
cooperación en el noreste de
Asia.
- Cancelación en 2013 de la
reunión prevista entre el
Ministro Yun Byung-se y su par
japonés.
- Aprobación por parte de la
Asamblea Nacional coreana de
una resolución que denunciaba
las visitas oficiales a Yasukuni y
los comentarios de políticos
japoneses sobre temas
históricos.
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Naciones del Sudeste
Asiático+3 (ASEAN por sus
sigla en inglés) luego de su
visita a Yasukuni en 2005
- Cancelación de las
conversaciones con el Primer
Ministro Koizumi que iban a
realizarse en el marco del Foro
de Cooperación Económica Asia-
Pacífico (APEC por sus siglas en
inglés) en Busan y la cumbre
trilateral que se realizaría en la
Asociación de Naciones del
Sudeste Asiático+3 (ASEAN por
sus siglas en inglés) luego de su
visita a Yasukuni en 2005.
Fuente: elaboración propia en base a las declaraciones y conferencias de prensa brindadas por los
Ministerios de Asuntos Exteriores de China, Japón y Corea (2001-2015).
De la información relevada y analizada se desprende que, tanto en Corea como en China,
las visitas a Yasukuni generan tensiones diplomáticas que no parecen afectar los
compromisos económicos y comerciales entre estos países y Japón, aunque dificultan las
posibilidades de un acercamiento político más profundo. En ningún caso se mencionan
los grupos a favor de Yasukuni que promueven las visitas y mantienen viva la memoria
al interior de la sociedad nipona. Las argumentaciones utilizadas para rechazar las visitas
a Yasukuni suelen ser similares. Éstas se basan en la profundización de las heridas
históricas, la mala lectura del pasado y el innecesario bloqueo en las relaciones
diplomáticas. Las visitas al Santuario reflejan las paradojas del perdón, acto que lejos de
representar memorias históricas consensuadas, se reconstruye permanentemente en la
multiformidad.
De esta forma y considerando lo expresado por los distintos Ministerios, la cuestión de
las visitas a Yasukuni es un tema ante el cual Corea y China no pueden evitar
pronunciarse en contra dado el peso simbólico e histórico del Santuario. En las críticas
se destaca como problema sustancial la presencia de placas que conmemoran a
criminales de clase A, pero no parece existir un debate sustantivo respecto a la historia
que se relata en el museo que linda al Santuario. A pesar de las permanentes
manifestaciones de disconformidad y la consecuente cancelación de visitas oficiales de
China y Corea a Japón, no han surgido propuestas oficiales
7
tendientes a conformar
instancias de diálogo entre estados que permitan discutir y coordinar una resolución
pacífica a este conflicto.
Conclusiones
En base al material relevado y las fuentes indagadas sostenemos que las tensiones en
torno al Santuario Yasukuni reflejan una contradicción en la estrategia del perdón como
camino a la reconciliación con Corea del Sur y China. Principalmente, se destaca la
ausencia de un consenso respecto a qué tipo de disculpas son las requeridas por los
Estados afectados como así también la falta de acuerdo sobre cuál es el significado o
7
Es importante recordar que, frente a otros dilemas, como los libros de texto, los estados conformaron
comités de diálogo (por ejemplo: el Comité de Investigación Conjunta de la Historia Corea-Japón 2001-
2002 y 2007, y el Comité de Investigación Conjunta de la Historia China-Japón 2006-2010) que contaron
con la participaron funcionarios y académicos de los tres países: Corea, China y Japón. Aunque éstos no
lograron resolver el conflicto, constituyen un antecedente de cooperación interesante en cuestiones de
memoria. (Nozaki, 2002, 2005 y 2007; Nozaki y Selden, 2009).
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intención de las visitas a Yasukuni. El período de no-visitas por parte de primeros
ministros disminuye relativamente las tensiones regionales, aunque no genera un cambio
significativo en la inconsistencia de la diplomacia de las disculpas. Esto se debe, en gran
medida, a que durante 2006-2013 continuaron las visitas de otros funcionarios públicos
japoneses. Asimismo, la política de no-visitas no afectó las actividades de las
organizaciones a favor, especialmente Nippon Kaigi, que continuaron promoviendo no
sólo las visitas a Yasukuni sino también, y fundamentalmente, una mirada de la historia
considerada, en las declaraciones de repudio al Santuario, controvertida y provocativa
por parte de los países vecinos.
Retomando las categorías que permiten estudiar el nivel de factibilidad del perdón en las
relaciones internacionales propuestas por Daase (2010), encontramos que las máximas
autoridades en Japón han sido las encargadas de pedir disculpa, ya sea el emperador,
primeros ministros y otros funcionarios de alto rango. En cuanto a las otras tres
categorías, se observa que los pedidos de perdón no han sido acompañados de políticas
de memoria que refuercen el valor de la palabra. Como destacamos, los aumentos en la
cantidad de disculpas efectuadas por los primeros ministros de Japón se dan a la par de
un crecimiento cuantitativo y cualitativo del poder de los grupos que defienden Yasukuni,
especialmente Conferencia de Japón, y la efectivización de las visitas por parte de
funcionarios públicos. Las actividades de estos grupos reflejan una creciente
revalorización de Yasukuni en tanto mbolo del origen del estado- nación japonés
moderno que desafía la noción del perdón. Es así como la dicotomía honrar a los caídos
versus legitimar lo ocurrido genera serias limitaciones al entendimiento político regional
que conllevan a la necesidad de repensar el Santuario como sitio de memoria.
El perdón no necesariamente implica un proceso de rectificación histórica por parte del
país arrepentido. Esta incompatibilidad encuentra sus orígenes en el proceso de justicia
transicional experimentado por Japón, el contradictorio escenario de la guerra fría, las
motivaciones económicas que impulsaron el restablecimiento de relaciones diplomáticas
con sus vecinos, el despegue de China y el cambio en el posicionamiento regional de
Japón. Si bien la incorporación de esos aspectos excede la presente investigación, es
importante tenerlos en cuenta para no caer en una simplificación del proceso actual de
reemergencia de asociaciones nacionalistas ligadas a personalidades de alto rango de la
política japonesa que defienden Yasukuni. Otras cuestiones que impiden la reconciliación
son: los trabajadores forzados durante la Guerra del Pacífico, el caso de las esclavas
sexuales de la armada imperial de Japón, las disputas territoriales (islas Senkaku/Diaoyu
y Dokdo/Takeshima), la cuestión de los libros de texto que provoca reacciones muy
negativas en China y Corea por la justificación de crímenes como la Masacre de Nanjing,
la colonización de Corea, el reclutamiento forzoso de las mujeres de confort, todas
cuestiones agrupadas bajo el argumento de la liberación de estas naciones del yugo
colonizador europeo.
Finalmente, cabe destacar que la extensión de la práctica de las disculpas en las
relaciones internacionales no significa que exista un concepto monolítico y universal de
perdón. En el arrepentimiento se funden connotaciones culturales, sociales y políticas
que deberían tenerse en cuenta en futuras investigaciones. Si como sostiene Lind (2008)
el caso alemán es una excepción más que una norma, nos preguntamos por qué en los
reclamos de Corea del Sur y China la excepción se ha vuelto la norma. Y si la excepción
se normatiza, por qué continuar reclamando disculpas de manera esporádicas y no
pensar en crear instituciones de diálogo entre los estados involucrados para resolver el
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conflicto. Frente a esta limitación, el perdón entonces podría pensarse no sólo como
parte de un proceso de reconciliación sino también como un instrumento legítimo para
negociar posicionamiento político a nivel regional. Por lo tanto, la imposibilidad de
avanzar en el proceso de reconciliación no sólo yace en las tensiones sobre el pasado
agresor de Japón que cruzan transversalmente Yasukuni, sino también en la falta de una
acción conjunta por parte de los países de la región.
Las visitas a Yasukuni por parte de funcionarios públicos japoneses, sea o no en nombre
del estado, impacta negativamente en el mantenimiento de la paz y la estabilidad
regional. Mientras continúe esta práctica en el marco de un crecimiento significativo de
los grupos a favor de Ysukuni y una política poco conciliadora por parte de sus vecinos,
la importancia del perdón en el proceso de reconciliación regional deberá ser repensada
y reevaluada.
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Filmografía
Annyeong Sayonara (2005, Corea del Sur). Directores: Kim Tae Il y Kato Kumiko.
OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017), pp. 54-68
O DEBATE SOBRE A RELAÇÃO ENTRE GLOBALIZAÇÃO, POBREZA E
DESIGUALDADE: UMA VISÃO CRÍTICA
Vicente Valentim
vicentedinisvalentim@gmail.com
Mestrando em Ciência Política (ISCTE-IUL, Portugal). Licenciado em Piano Jazz pela Escola
Superior de Música de Lisboa, Instituto Politécnico de Lisboa. Concluiu o Minor em Ciência Política
na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.
Resumo
Neste artigo teórico, apresento de forma crítica o debate em curso sobre a relação entre
globalização, pobreza e desigualdade, recorrendo à tipologia proposta por Held & McGrew
(2007), que divide os autores em duas abordagens principais: os globalistas e os céticos.
Na primeira abordagem, podemos fazer a distinção entre globalistas neoliberais e globalistas
transformacionalistas. Na segunda, fazemos a distinção entre os céticos realistas e os céticos
marxistas. Irei analisar os pensadores mais importantes de cada uma dessas quatro
abordagens, resumindo os argumentos mais influentes que avançam para sustentar os seus
pontos de vista. Ao agrupar os pontos de vista desses autores, indicarei as semelhanças e as
diferenças entre as quatro perspetivas para, assim, contribuir para tornar o debate mais claro.
Numa outra seção, examino criticamente esses argumentos, identificando alguns dos seus
pontos fortes e fracos.
Palavras-chave
Globalização; Desigualdade; Pobreza; Globalismo; Ceticismo.
Como citar este artigo
Valentim, Vicente (2016). "O debate sobre a relação entre globalização, pobreza e
desigualdade: uma visão crítica". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 7, N.º
2, Novembro 2016-Abril 2017. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.autonoma.pt/janus.net/pt_vol7_n2_art4 (http://hdl.handle.net/11144/2783)
Artigo recebido em 5 de Fevereiro de 2016 e aceite para publicação em 19 de Setembro
de 2016
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017), pp. 54-68
O debate sobre a relação entre globalização, pobreza e desigualdade: uma visão crítica
Vicente Valentim
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O DEBATE SOBRE A RELAÇÃO ENTRE GLOBALIZAÇÃO, POBREZA E
DESIGUALDADE: UMA VISÃO CRÍTICA
1
Vicente Valentim
2
1. Introdução
Este artigo teórico visa introduzir os principais argumentos que polarizam o debate sobre
a relação entre globalização, pobreza e desigualdade, numa abordagem crítica.
Este debate é extremamente importante. Em primeiro lugar, a sua importância baseia-
se no facto de no seu núcleo se encontrar uma preocupação com a miséria humana e a
maneira mais eficaz para lidar com ela. Além disso, nos últimos anos, as divergências
sobre esta questão provocaram uma intensa controvérsia, não a vel académico,
como também a vel político, com os distintos lados a defenderem conjuntos divergentes
de propostas de políticas para combater a pobreza e a desigualdade. Esta discordância
gerou uma grande quantidade de literatura sobre este tema nos últimos anos.
Neste contexto, este artigo tem dois objetivos principais. O primeiro é apresentar os
principais pontos de vista relativamente a este relacionamento, referindo o pensamento
de alguns dos seus autores mais influentes. Nesse sentido, abordarei a posição defendida
por cada um desses pontos de vista relativamente aos seguintes três pontos: se a
globalização é um fenómeno empiricamente verificável, ou não; de que forma, se é que
existe, a globalização, a pobreza e a desigualdade interagem; e que tipo de políticas se
devem conduzir para combater a pobreza e a desigualdade. O foco temporal do artigo é
sobre a evolução pós-guerra fria, pois este foi o período em que os vários debates sobre
a globalização se intensificaram, incluindo aquele que artigo aborda. No entanto, far-se-
ão referências ocasionais a estudos anteriores cuja influência não nos permite deixa-los
de lado.
O segundo objetivo do artigo é analisar criticamente as respostas dadas a estas
perguntas pelas várias perspetivas apresentadas, focando alguns de seus pontos fortes
e fracos.
Realizarei estes dois objetivos dividindo os pontos de vista de estudiosos distintos de
acordo com duas opiniões, e cada uma das quais será posteriormente subdividida em
duas perspetivas. Tal divisão é extremamente útil, pois permite identificar semelhanças
e diferenças entre o pensamento de um grande número de estudiosos, tornando assim
o debate muito mais claro.
1
A tradução deste artigo foi financiada por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e
a Tecnologia no âmbito do projeto do OBSERVARE com a referência UID/CPO/04155/2013, e tem como
objectivo a publicação na Janus.net. Texto traduzido por Carolina Peralta.
2
O autor gostaria de agradecer a Emmanouil Tsatsanis por toda a sua ajuda preciosa e sugestões, assim
como aos dois referees anónimos, cujos comentários melhoraram substancialmente o texto.
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Os critérios utilizados para dividir os estudiosos em diferentes perspetivas tiveram em
consideração que o debate compreende duas dimensões: uma analítica, ou empírica, e
uma normativa (Gilpin, 2001). A dimensão empírica tem a ver com a questão se os
estudiosos entendem a globalização como um processo real e poderoso, ou não. A
dimensão normativa analisa se os estudiosos acreditam, ou não, que as consequências
da globalização sobre os níveis gerais de pobreza e desigualdade são, apesar de tudo,
positivas.
Os estudiosos apresentados neste artigo serão divididos de acordo com a sua posição
relativamente a estas duas dimensões, seguindo a tipologia apresentada por Held &
McGrew (2007). Segundo estes autores, em primeiro lugar podemos identificar uma
oposição em toda a dimensão empírica, entre estudiosos globalistas -
transformacionalistas e neoliberais -, que consideram a globalização como um fenómeno
observável, e estudiosos céticos - marxistas e realistas -, que não consideram. No que
respeita à dimensão normativa, podemos colocar os estudiosos neoliberais numa
extremidade, pois são altamente favoráveis a políticas que provocam uma maior
integração no mercado. No polo oposto situam-se os marxistas, que encaram a
globalização como um processo normativamente indesejável. Os transformacionalistas
encontram-se no meio, pois mesmo acreditando que a globalização trouxe muitas
consequências negativas, as suas prescrições políticas são geralmente no sentido de
mudar a maneira como a integração é feita, não no sentido de tentar pará-la. Os realistas
têm uma posição mais ambígua sobre esta questão, uma vez que encaram os resultados
gerais do processo de globalização como sendo positivos ou negativos. Em vez disso,
argumentam que esses resultados não são mais do que reflexos das interações entre
estados distintos com relações de poder desiguais, cada um perseguindo seus próprios
interesses nacionais.
Antes de entrarmos na discussão propriamente dita, é importante definir os três
principais conceitos que este artigo examina. O primeiro é o da globalização. Neste artigo,
adoto a definição de Steger (2003: 13), para quem esta é
"um conjunto multidimensional de processos sociais que criam,
multiplicam, prolongam, e intensificam interdependências e trocas
sociais em todo o mundo, ao mesmo tempo que promovem nas
pessoas uma consciência crescente do aprofundamento das
conexões entre o local e o distante".
Na mesma linha de pensamento deste autor, eu assumo que a globalização compreende
quatro dimensões principais: económica, política, cultural e ecológica. O debate aqui em
causa refere-se à primeira, à qual Steger (2003: 37) se refere como
"a intensificação e prolongamento de inter-relações económicas em
todo o mundo".
Central a esta dimensão é a extensão do alcance dos mercados em todo o mundo, que
cria novas ligações entre as economias nacionais.
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O segundo conceito central é o da desigualdade. Existem vários tipos de desigualdade:
as pessoas podem ser desiguais em termos de acesso à saúde, poder, segurança, ou
rendimentos, por exemplo. Este artigo refere-se a este último tipo. No entanto, mesmo
quando nos concentramos exclusivamente no rendimento, a desigualdade pode ser
medida de acordo com conceitos diferentes. É preciso distinguir a desigualdade entre os
países medida através das diferenças observadas nos rendimentos de cada um desses
países; a desigualdade entre os países medida através das diferenças observadas nos
seus rendimentos médios, ponderada pela sua população; e a desigualdade entre os
indivíduos do mundo, independentemente do país em que vivem (Milanovic, 2006: 1).
Em terceiro lugar, a respeito da pobreza, confio na definição avançada pela UNESCO
(2016: 1), segundo a qual
"a pobreza de rendimentos é quando o rendimento de uma família
não consegue cumprir um limite estabelecido federalmente que
difere entre países".
Um padrão normalmente utilizado para a definição da pobreza extrema é o limiar de $1
por dia (paridade de poder de aquisição dos EUA).
Uma vez definidos estes três conceitos, o resto do artigo estrutura-se da seguinte forma:
a segunda e terceira secções abordam o primeiro objetivo do artigo - apresentar as
quatro principais perspetivas que polarizam o debate sobre a globalização, pobreza e
desigualdade. Começo por apresentar as duas perspetivas globalistas e continuo com a
apresentação das abordagens céticas. Em cada perspetiva, examino as três questões
mencionadas acima: se os estudiosos acreditam, ou não, que a globalização é um
fenómeno empiricamente observável; qual é a natureza da relação entre globalização,
pobreza e desigualdade, se é que essa relação de facto existe; e quais as políticas que
devem ser seguidas para combater a pobreza e a desigualdade. Posteriormente, a quarta
seção analisa o segundo objetivo: o de avaliar criticamente as quatro perspetivas
apresentadas nas seções anteriores. Finalmente, a quinta seção conclui o artigo,
referindo-se às suas principais contribuições.
2. Os globalistas: transformacionalistas e liberais
Quanto ao primeiro ponto que irei abordar - se a globalização é um fenómeno
empiricamente observável ou não - há concordância nas duas perspetivas globalistas em
discussão. Tanto os autores transformacionalistas como os neoliberais consideram o
processo de globalização como algo significativamente diferente de todos os outros
processos que a humanidade tem testemunhado. Assim, a discussão entre essas
perspetivas incide sobre os restantes dois pontos aqui em discussão: a maneira como a
globalização interage tanto com a pobreza como com a desigualdade; e o tipo de políticas
que devem ser seguidas para combater a pobreza e a desigualdade. Posto de forma clara,
as suas discordâncias giram em torno da dimensão normativa de Gilpin (2001).
Relativamente ao facto de a globalização ter uma relação com a pobreza e a desigualdade
ou não, os neoliberais afirmam que tem, e que o resultado dessa relação é
maioritariamente positivo. De acordo com este ponto de vista, a globalização conduz a
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níveis de pobreza e desigualdade mais reduzidos porque permite que empresas
estrangeiras invistam nos países pobres, criando assim novos empregos e promovendo
o crescimento económico que tira as pessoas da pobreza (Stiglitz, 2001).
Além disso, a remoção de tarifas de comércio permite a criação de um mercado
competitivo a nível global, onde o protecionismo é desencorajado, o que significa que os
países pobres têm mais facilidade em exportar os seus produtos (Martell, 2010). Mais
uma vez, isso conduz a melhores oportunidades comerciais, à criação de emprego e ao
crescimento económico, bem como à criação de uma divisão de trabalho mundial, o que
aumenta as hipóteses de desenvolvimento dos países pobres (Held & McGrew, 2007).
Além disso, a globalização provoca veis mais elevados de partilha de conhecimentos
que podem beneficiar as atividades económicas dos países pobres (Friedman, 2005),
bem como a liberalização das finanças, o que incentiva o investimento estrangeiro nessas
nações (Martell, 2010). E o facto de os países estarem abertos à ajuda externa tem
permitido um grande número de programas de desenvolvimento que lidam com
problemas como a SIDA, a educação, e muitos outros (Stiglitz, 2001).
Por outro lado, os transformacionalistas também veem uma relação entre globalização,
pobreza e desigualdade, mas, em tido contraste com a perspetiva neoliberal,
consideram que o resultado dessa relação é maioritariamente negativo. De acordo com
este ponto de vista, o processo contemporâneo da globalização empurra para veis mais
altos de pobreza e desigualdade.
Os autores transformacionalistas criticam vários pontos do argumento neoliberal. A
primeira crítica é que um alto nível de hipocrisia por parte dos Estados desenvolvidos:
mesmo que exerçam pressão sobre os países pobres para que eliminem as restrições
sobre o comércio, a maioria deles não remove as suas próprias restrições (Held &
McGrew, 2007). Mas, mesmo que não houvesse essa hipocrisia, a liberalização do
comércio quando os países estão em fases de desenvolvimento desigual deixa os países
pobres sem hipótese de competir com produtos provenientes de pses mais ricos
(Martell, 2010). Além disso, a nova divisão do trabalho que os neoliberais elogiam não
está realmente a reduzir os níveis de desigualdade e pobreza. Em vez disso, apenas
remodela os seus padrões: em vez de uma divisão Norte-Sul, agora temos vencedores
da globalização versus perdedores da globalização (Hoogvelt, 2001). Além disso, a
desregulamentação financeira traz consigo saídas abruptas de dinheiro, o que torna as
economias dos países em desenvolvimento muito instáveis (Stiglitz, 2001). E, na medida
em que a ajuda externa é vista, força os países pobres a realizarem ajustamentos
estruturais que conduzem a maiores veis de pobreza e desigualdade (Martell, 2010).
Por causa disso, até mesmo os programas de assistência estrangeiros que conduziram a
resultados positivos acabaram por deixar o país ajudado com grandes dívidas para pagar
(Stiglitz, 2001).
As razões acima mencionadas fizeram com que os transformacionalistas tivessem
problemas com a ideia neoliberal que a globalização conduz a níveis mais baixos de
pobreza e desigualdade. Enquanto para os neoliberais são os níveis insuficientes de
abertura comercial e financeira os responsáveis pelos veis persistentes de desigualdade
e pobreza, para os transformacionalistas é o próprio processo de globalização que deve
ser visto como a principal explicação para tais níveis.
Para ilustrar esta discussão sobre como a globalização, a pobreza e a desigualdade
interagem, é importante olhar para os resultados de alguns estudos empíricos influentes.
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Debrucemo-nos primeiro sobre a desigualdade dentro de cada país. Kuznet é autor de
um estudo famoso publicado muito antes do fim da guerra fria (1955), onde analisa as
economias dos Estados Unidos, Inglaterra e Alemanha, concluindo que a evolução da
desigualdade dentro de cada país segue o que ficou conhecido por Curva de Kuznet:
inicialmente no início da industrialização e da urbanização - a desigualdade dos
rendimentos tende a aumentar. Mas, num segundo período,
"uma variedade de forças convergiu para reforçar a posição
económica dos grupos com rendimentos mais baixos" (Kuznet,
1955: 17),
reduzindo assim a desigualdade.
No entanto, tem havido algumas objeções a essa ideia. Um autor famoso que a desafiou
é Piketty de (2014), que estudou a distribuição da riqueza em França, Estados Unidos e
Grã-Bretanha, através de um intervalo de tempo longo de um século - no caso dos dois
países anglo-saxões - e de mais de dois séculos - no caso da França. A partir desta
análise, Piketty conclui que, historicamente, a desigualdade dentro dos países tem
assumido a forma de Curva em U: após os grandes níveis de desigualdade registados
antes da Primeira Guerra Mundial, o período do pós-guerra assistiu a uma diminuição
destes níveis. No entanto, desde a década de 1980 tem havido um novo aumento dos
níveis de desigualdade, uma descoberta que levou o autor a argumentar que poderíamos
estar a entrar numa nova Belle Époque.
Estes dois estudos são um primeiro sinal de que tanto os globalistas como os neoliberais
têm dados empíricos que sustentam as suas reivindicações. Também encontramos essa
controvérsia quando nos concentramos sobre a desigualdade entre países. Por exemplo,
os dados de Milanovic (2011: 4) sugerem que em meados do século XIX,
"a relação entre a parte superior e a parte inferior (do rendimento
médio do país) teve um rácio inferior a 4 para 1".
Mas esse rácio aumentou significativamente de 100 para 1 em 2007, o que significa,
portanto, que a maioria das atuais diferenças de rendimentos a vel global dependem
da localização.
Por outro lado, os autores neoliberais assumem que o crescimento é a distribuição
neutra, o que significa que mudanças na desigualdade de rendimentos ao longo do tempo
não estão correlacionadas com os veis de crescimento económico. Assim, se o nível de
crescimento económico não conduz, por si , a uma maior desigualdade de rendimentos,
então os veis mais elevados de crescimento levarão a uma diminuição nos veis
absolutos de pobreza (Ravallion, 2004).
O famoso estudo de Dollar & Kraay’s (2004) faz uma afirmação semelhante. Além disso,
estes autores desenham um nexo de causalidade entre abertura comercial e crescimento:
a subida dos níveis de crescimento que acompanham a integração no mercado traduz-
se num aumento proporcional do rendimento dos pobres, o que explica a diminuição dos
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níveis de pobreza absoluta que esses autores têm encontrado nos pses globalizantes.
Além disso, sustentam que os chamados "globalizadores" (isto é, países em
desenvolvimento que abriram as suas economias ao comércio mundial) estão a alcançar
os países ricos, enquanto os países que não se abriram à economia mundial estão a ficar
para trás. No entanto, os autores reconhecem que a globalização produz vencedores e
perdedores, especialmente no curto prazo, e alertam para a necessidade de adotar
políticas sociais como complemento à abertura do mercado. Contudo, sustentam que,
devido ao facto da integração no mercado produzir riqueza, os estados globalizantes
estarão mais bem posicionados para implementar essas políticas.
Examinemos agora a última definição de desigualdade, a que é medida entre indivíduos,
sem olhar ao país em que vivem. Alguns autores (por exemplo, Fischer, 2003) defendem
que não se pode encontrar uma tendência para níveis mais elevados deste tipo de
desigualdade em todo o mundo, porque os países com grandes populações, como a Índia
e a China, estão a ficar mais ricos. Da mesma forma, Sala-i-Martin (2006) escreve que,
após o pico no final dos anos setenta, a desigualdade mundial diminuiu consistentemente
ao longo dos anos oitenta e noventa - o período de maior integração no mercado.
No entanto, também existe alguma controvérsia sobre este ponto. Alguns estudiosos
transformacionalistas discordam do ponto de vista segundo o qual o enorme crescimento
da China e da Índia nas últimas décadas comprova que a integração no mercado deve
ser encarada como um caminho para a expansão económica. Pelo contrário, de acordo
com autores como Martell (2010), o sucesso destes países deveu-se, em parte, ao facto
de que foram, por vezes, capazes de restringir a globalização e proteger as suas
indústrias da concorrência feroz da economia global.
Os casos da Índia e da China também chamam a nossa atenção para uma questão
metodológica que poderá explicar a razão pela qual os vários estudos produzem
resultados diferentes: a necessidade de ter em conta as características específicas de
cada país, a fim de chegar a conclusões sólidas sobre os efeitos da globalização em
relação aos veis de pobreza e desigualdade. Alguns autores (por exemplo, Srinivasan
& Bhagwati, 1999) argumentam que se deviam seguir estudos de caso em profundidade,
em vez de estudos regressivos entre países, pois estes últimos são incapazes de apreciar
adequadamente algumas diferenças relevantes entre casos. Caso contrário, pode
acontecer que os resultados de um estudo dependam dos países específicos incluídos na
amostra.
Antes de avançarmos para o último ponto a ser discutido o que diz respeito às políticas
propostas por cada perspetiva - deve referir-se que alguns autores neoliberais
argumentam que a discussão em torno dos níveis de desigualdade é realmente
irrelevante enquanto a pobreza em termos absolutos estiver a diminuir. Se os pobres
estão a melhorar os seus rendimentos, será que realmente importa que as diferenças
entre eles e os mais ricos estejam a aumentar?
Este ponto de vista é bem expresso por autores como Lucas (2004) e Feldstein (1999).
O primeiro afirma que o potencial para elevar os padrões de vida das populações mais
pobres do mundo é muito maior se nos concentrarmos na melhoria dos níveis de pobreza
do que nos centrarmos na promoção da igualdade. Feldstein defende que o foco na
desigualdade, em vez de na pobreza, é uma violação do princípio de Pareto, que afirma
que todas as políticas que trazem uma melhoria para alguns, sem piorar a condição de
ninguém, devem ser postas em prática.
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No entanto, este ponto de vista também está sujeito a debate. Por exemplo, Milanovic
(2007) argumenta que o rendimento de outras pessoas também entra na nossa função
de utilidade pessoal. Isto porque em todo mundo toda gente inevitavelmente compara o
seu vel de rendimento com o dos outros, e terá um sentimento de injustiça quando
confrontado com o facto de a diferença em relação aos outros estar a aumentar.
Tendo em conta os dois pontos de vista teóricos divergentes e os resultados
contrastantes dos estudos empíricos mencionados, não constitui surpresa que os
estudiosos destas duas perspetivas também discordem em relação ao último ponto que
pretendo discutir aqui: quais as prescrições políticas com melhor hipótese de reduzir os
níveis de pobreza e desigualdade. Por um lado, como mencionado acima, a visão
neoliberal sustenta que a remoção de barreiras ao comércio internacional leva a maiores
níveis de crescimento económico, que por sua vez melhora a condição dos mais pobres.
De acordo com esta perspetiva, a globalização é uma força que conduz a menos pobreza,
e deve, portanto, ser prescrita (por exemplo, Dollar e Kraay, 2004). O efeito da
globalização sobre a pobreza é considerado benigno e, assim, mais globalização, através
de uma maior integração no mercado global, é o caminho para a erradicação da pobreza
que ainda persiste.
Por outro lado, conforme também mencionado acima, os estudiosos
transformacionalistas defendem que a globalização está a conduzir ao aumento dos níveis
de desigualdade, e que devem ser tomadas medidas para neutralizar esse efeito. Esta
escola propôs uma série de modelos ambiciosos de regulação do mundo, através da
criação de organismos políticos democráticos supranacionais, que seriam tanto
representativos como responsáveis perante a população do mundo (por exemplo, Held &
McGrew 2007; Rodrik, 2011). Seja qual for a configuração específica desse governo
mundial, seria capaz de implementar políticas de combate à desigualdade e à pobreza.
Alguns exemplos concretos de políticas mundiais para combater a desigualdade são as
propostas por Piketty (2014), que defende impostos progressivos globais sobre o capital,
em articulação com um elevado nível de transparência das finanças; ou a proposta
avançada por Milanovic (2006) de transferências de rendimentos a nível nacional, tendo
em conta a desigualdade dentro do país, bem como entre países.
3. Os céticos: realistas e marxistas
Esta terceira seção tem como objetivo discutir duas abordagens céticas à globalização:
a realista e a marxista. Quanto ao primeiro ponto em análise neste artigo, tanto os céticos
realistas como os marxistas argumentam que os globalistas tendem a exagerar a
relevância empírica do processo de globalização, bem como o seu carácter inovador. No
entanto, existem diferenças importantes entre estes dois pontos de vista.
Comecemos com a escola realista, que se concentra principalmente na relação entre os
estados. Para esses estudiosos, não podemos falar de um verdadeiro processo de
globalização económica, pois isso exigiria uma verdadeira economia integrada, algo que
verdadeiramente não existe. Em vez disso, o que podemos encontrar é a
interdependência: nada mais do que uma relação de mutualismo entre estados (Waltz,
1999). As relações de poder entre estados ainda são importantes, e sem compreendê-
las, não podemos apreciar plenamente as interações que ocorrem a nível mundial (Wolf,
2002). A visão realista do cenário internacional é a de anarquia, com cada estado a tentar
defender os seus próprios interesses. Na definição desses interesses, grupos sub-estatais
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desempenham um papel importante. Portanto, nos seus assuntos externos os estados
comportam-se de maneiras que são determinadas em grande parte pela pressão exercida
sobre eles pelos seus grupos internos (Gilpin, 2001).
Devido a este ponto de vista, os realistas são também céticos em relação à segunda
questão em análise: a existência de uma relação entre a globalização, a desigualdade e
a pobreza. Na verdade, um dos pensadores realistas mais proeminentes, Krasner (1985),
argumenta que a maioria dos estudiosos tende a exagerar a importância das questões
económicas, ignorando outras condições importantes, especialmente as políticas. A
divisão entre os estados poderosos do Norte e os estados menos poderosos do Sul não
constitui nada de novo. Na verdade, é
"uma das características que definem o atual sistema internacional"
(ibidem: 267).
Com uma visão um pouco diferente, Gilpin (2001) reconhece o facto que desde o fim da
Guerra Fria, as questões económicas têm tido uma importância que não tinham antes.
Este autor realista defende a necessidade de tomar as questões económicas em
consideração quando se estuda a situação da desigualdade atual. Mas reafirma que
devemos ter cuidado para não nos concentrarmos excessivamente na economia. Fazer
uma distinção muito clara entre os assuntos económicos e os relacionados com a
segurança pode induzir em erro, porque
"o sistema político e de segurança internacional fornece a estrutura
essencial dentro da qual a economia internacional funciona"
(ibidem: 22-23).
A distinção entre economia e política deve ficar clara se considerarmos os diferentes
objetivos de cada uma. A primeira supostamente explica a forma como as interações
entre mercado e os agentes económicos têm lugar. Mas é tarefa da última decidir quais
as políticas que devem ser tomadas. Até não regulamentar o mercado é uma escolha
política - que é feita pelos estados. Portanto, longe de ser verdadeiramente global e
ingovernável, os realistas sustentam que a economia mundial contemporânea é
realmente dominada pelos estados mais poderosos:
"a Tríade formada pela Europa, Japão e América do Norte" (Hirst,
1997: 410).
Em suma, os realistas sustentam que colocar o foco na relação entre globalização,
pobreza e desigualdade é não perceber a questão. São os estados, e não o processo de
globalização, que o os culpados pelos sucessos ou fracassos subjacentes a estes
problemas. Assim, em relação ao último ponto em análise quais as políticas mais
adequadas para lidar com a pobreza e a desigualdade -, os realistas defenderiam a
adoção de medidas específicas estatais, aquelas que permitem que os países em
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desenvolvimento possam alcançar os mais desenvolvidos economicamente. Na sua
opinião, e apesar de alguns países em desenvolvimento estarem atrasados, o facto de
alguns países da América Latina e do Leste Asiático estarem a alcançar os mais
desenvolvidos economicamente prova que as diferenças entre países são produto das
diferentes estratégias desenvolvidas por cada um deles (Held & McGrew, 2007).
O segundo grupo de pensadores céticos a ser apresentado aqui é o marxista. Como
mencionado acima, os marxistas e os realistas compartilham o mesmo ponto de vista
quanto ao facto dos globalistas tenderem a exagerar a relevância empírica do processo
de globalização. A diferença é que para os estudiosos da globalização marxistas (por
exemplo, Cammack, 2014), os textos de Marx e Engels são a melhor forma de entender
o atual processo de globalização. Isso porque o mundo do qual estes autores falavam -
aquele onde o capitalismo se tornaria uma força dominante em todo o mundo
apareceu na recente ascensão da economia globalizada.
No entanto, deve notar-se que existem algumas diferenças importantes entre o
pensamento de Marx e os desenvolvimentos recentes da abordagem marxista. Enquanto
o primeiro argumentou que a expansão do capitalismo ao mundo inteiro conduziria à
formação de sociedades capitalistas com características semelhantes às das sociedades
capitalistas ocidentais, os últimos consideram esse processo de globalização como um
processo de imperialismo conduzido pelo Ocidente, mais concretamente pelos Estados
Unidos (por exemplo, Kumbamu, 2010). De acordo com a visão contemporânea, a
globalização levou à criação de uma relação de dependência dos países periféricos em
relação aos centrais, em vez de conduzir ao desenvolvimento dos pses do Terceiro
Mundo e transformá-los em sociedades capitalistas avançadas.
Os estudiosos marxistas suspeitam da verificabilidade empírica da globalização,
principalmente porque consideram a globalização mais como uma questão retórica do
que uma empírica. Ao associar a globalização ao imperialismo, estes autores
argumentam que o discurso neoliberal hegemónico - segundo o qual os resultados da
integração nos mercados reforçada para as condições materiais da população mundial
são, apesar de tudo, benignos - não é mais do que atirar poeira aos olhos do público
para impedi-lo de realizar os níveis crescentes de desigualdade de classe em todo o
mundo, tornando o objetivo imperialista neoliberal mais viável (Berberoglu, 2010). E
porque
"o domínio imperial evidente resulta em guerras dispendiosas e
perturbação, especialmente entre uma ampla gama de classes
afetadas negativamente pela presença imperial" (Petras &
Veltmeyer, 2011: 136),
este tipo de camuflagem é necessário para conquistar o apoio das classes dominantes,
bem como o da população em geral, em países dominados pelas forças imperialistas.
Outra grande diferença entre esta abordagem e a dos estudiosos realistas diz respeito
ao papel crucial que os últimos atribuem ao estado para determinar o estado atual das
coisas. Isto é ilustrado pelo facto de um dos mais famosos estudiosos da globalização
marxista, Wallerstein (2004), ter elaborado a sua bem conhecida análise dos sistemas
mundiais em grande parte por causa da sua insatisfação com a centralidade que os
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debates sobre a globalização atribuem ao estado. Segundo este autor, em vez disso
deve-se olhar para o mundo em que vivemos como um sistema único, cujas raízes
remontam ao século XVI, e para o desenvolvimento do capitalismo. Desde então, o
crescimento do capitalismo e a expansão do sistema mundial moderno têm sido
concomitantes, com o primeiro a atuar como a força unificadora deste último, que carece
de um modelo político ou de uma cultura comum capaz de agir como tal. Mesmo se o
estado pudesse ter um papel importante neste processo, não é o seu principal ator
assim como o indivíduo não o é. A principal força motriz da natureza imperialista da
globalização contemporânea é, em vez disso, o mercado (Cammack, 2014).
Deste ângulo, a perspetiva marxista alinha-se com a neoliberal na sua visão da economia
como elemento central no processo de globalização. No entanto, a primeira apresenta
um quadro muito mais sombrio das consequências das forças económicas, assim como
das razões que lhe estão subjacentes, do que a última.
Dado que na visão marxista do processo de globalização os estados periféricos têm uma
relação de dependência para com os centrais, é difícil falar sobre receitas políticas para
lidar com a pobreza e a desigualdade. A globalização é considerada como um processo
no qual surgem novas formas de divisão do trabalho, levando à criação de uma luta de
classes em todo o mundo. Assim, a luta contra as consequências da globalização não é
algo que pode ser feito de uma forma de cima para baixo ao nível de estado. Dito isto,
os autores marxistas não pensam na globalização como algo que não possa ser parado.
Pelo contrário, sustentam que o seu desenvolvimento foi desencadeado por decisões
conscientes tomadas por atores humanos. Portanto, poderiam ter sido tomadas
diferentes decisões, e ainda há tempo para mudar o curso atual da globalização. Assim,
estes estudiosos pedem uma organização das forças de trabalho sob uma liderança
competente, permitindo assim que a classe operária enfrente as forças do capitalismo,
colocando um ponto final à sua exploração (por exemplo, Berberoglu, 2010). Sem esse
tipo de reação não pode haver uma maneira de parar o imperialismo. E, enquanto o
imperialismo persistir, o mesmo acontecerá à pobreza e à desigualdade global.
4. Uma discussão crítica da perspetiva transformacionalista, neoliberal,
realista, e marxista
A última seção apresentou os principais argumentos avançados pelas quatro teorias em
análise neste artigo. Esta secção analisa-las brevemente de forma crítica.
Relativamente à dimensão empírica, parece ser cada vez mais difícil argumentar que o
processo de globalização contemporâneo não é algo fundamentalmente novo, como os
céticos dizem. Certamente que tem os seus antecedentes. Mas poucos, se os houver,
são os fenómenos humanos cujo icio é o radical e imprevisto que não tenham
antecedentes. Na maioria das vezes, os fenómenos desenvolvem-se como uma
acentuação das tendências anteriores que, a partir de um certo ponto, tornam-se algo
novo. Isto é, eu diria que o que aconteceu com o processo de globalização, como as
últimas décadas testemunharam, foi uma série de desenvolvimentos que constituem um
salto qualitativo para algo que não existia antes.
No entanto, isso não nos deve levar a perder de vista alguns dos pontos fortes das
perspetivas dos céticos. Por exemplo, a visão marxista segundo a qual a globalização
levou à construção de relações desiguais entre países é, até certo ponto, partilhada por
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alguns estudiosos não-marxistas (por exemplo, Steger, 2003). Além disso, em relação à
perspetiva realista, deve-se reconhecer que cada estado ainda tenta defender os seus
próprios interesses, e que a sua capacidade de fa-lo é uma função de seu poder relativo
em relação aos outros. Mais uma vez, esta é uma posição que é mantida até mesmo por
estudiosos não-realistas. Por exemplo, Rodrik (2011) argumenta que sempre que houver
conflito entre os interesses nacionais e os supranacionais, os estados tendem a favorecer
os primeiros em detrimento dos últimos. No entanto, a defesa de um estado dos seus
próprios interesses tem lugar no seio de uma teia complexa e em constante mudança de
outras relações que ocorrem simultaneamente. Muitas vezes, essas relações têm
resultados conflituantes e imprevisíveis. A prossecução dos interesses próprios de um
estado é, assim, influenciada por uma série de fatores que não controla, a maioria dos
quais trazidos pela globalização contemporânea.
As razões acima expostas levam-me a alinhar com a perspetiva globalista no que respeita
à dimensão empírica. Em relação à dimensão normativa, no entanto, sou incapaz de
concordar com a perspetiva neoliberal, porque algumas das provas que atestam os
crescentes níveis de desigualdade causados pela globalização ilimitada são difíceis de
refutar. o se deve ignorar tal facto, mesmo que os veis absolutos de pobreza
estejam, na verdade, a diminuir. Porquanto os benefícios da globalização devem ser
repartidos de forma equitativa, a desigualdade é um problema em si e deve ser abordado
como tal.
Para além das questões económicas, uma das maiores preocupações relativamente aos
altos veis de desigualdade está relacionada com as suas consequências políticas. O
discurso neoliberal tende a associar liberdade de mercado a benefícios que vão além da
esfera económica, como a promoção da democracia. No entanto, embora o capitalismo
e a democracia possam efetivamente conviver, os altos níveis de desigualdade de
rendimentos ameaçam algumas das premissas básicas da democracia, como a da
influência política de igualdade. Sob contextos altamente desiguais, os mais ricos tendem
a ter uma capacidade de promover as suas agendas que pode bloquear eficazmente o
potencial da restante população de fazer ouvir a sua voz (para um estudo clássico sobre
este assunto, consulte-se Schattschneider, 1960).
Por mais bem-sucedida que a perspetiva neoliberal possa ter sido no seu discurso sobre
a inevitabilidade, a verdade é que a globalização o precisa de ser acompanhada por
um laissez faire económico. Aqui, é importante relembrar a distinção de Steger (2003)
entre globalização e globalismo: a primeira define um processo de maior integração e
interdependência entre os estados em todo o mundo, enquanto o último se refere a um
discurso específico que faz com que a natureza da globalização seja inevitavelmente
neoliberal. Ao ter em conta a distinção entre estes dois conceitos, podemos apreciar a
forma como o processo de globalização não precisa de ser acompanhadp pelo
neoliberalismo.
As considerações feitas até agora parecem empurrar-me em direção à abordagem
transformacionalista. Na verdade, essa perspetiva tem feito críticas importantes para o
processo de globalização contemporâneo. No entanto, nas políticas de reforma propostas
pelos estudiosos falta certamente algum realismo. As propostas relativas à construção
de uma espécie de governo mundial parecem muito improváveis numa altura em que a
confiança nos organismos supranacionais se encontra contaminada pelo défice
democrático desses órgãos. É verdade que os transformacionalistas têm alertado para o
perigo de um défice esse tipo. Ainda assim, torna-se cada vez mais difícil acreditar que
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esses órgãos possam ser reformulados de forma a permitir que o público os considere
totalmente legítimos, até porque esses próprios órgãos parecem resistir à reforma. Além
disso, parece altamente improvável conceber um edifício dessa ordem num período em
que o apoio eleitoral aos discursos nacionalistas em todo o mundo está em ascensão.
As considerações expostas tornam difícil imaginar como é que podemos encorajar um
tipo de globalização que conduz a veis mais baixos de desigualdade e pobreza. No
entanto, à luz dos desenvolvimentos recentes, parece que o Estado-nação ainda pode
ter um papel a desempenhar, que é provavelmente mais importante do que muitos de
nós teríamos imaginado alguns anos. À medida que um número crescente de eleitores
adere à retórica nacionalista, importa reconhecer o quão importante é para cada estado
ser capaz de escolher seu próprio nível de abertura ao comércio e investimentos
externos, bem como as suas próprias políticas de combate à pobreza e à desigualdade.
5. Conclusão
Este artigo propõe apresentar e avaliar de forma crítica as principais perspetivas sobre a
relação entre globalização, pobreza e desigualdade. Para tal, os autores mais importantes
relacionados com esta questão foram divididos de acordo com os seus pontos de vista
sobre duas dimensões (empírica, e normativa). As suas posições foram posteriormente
discutidas de forma crítica, fazendo referência a alguns dos pontos fortes mais
importantes e às deficiências de cada uma delas. Ao fazê-lo, este artigo prestou uma
dupla contribuição para a nossa compreensão e pensamento sobre essa relação. Por um
lado, sintetizou um debate muito intenso, que tem tido um grande número de publicações
nos últimos anos, através da apresentação de um número de estudos influentes relativos
à perspetiva mais ampla à qual se referem, tornando assim o debate muito mais claro e
permitindo uma melhor compreensão das principais questões em jogo. Por outro lado,
através da avaliação crítica das quatro perspetivas aqui apresentadas, o artigo contribui
para a identificação de alguns dos pontos fortes das várias abordagens, alertando ao
mesmo tempo para a necessidade de tomar em consideração vários argumentos, mesmo
que originalmente partam de perspetivas distintas.
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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SOBRE A ORDEM CONSTITUCIONAL NO/DO FASCISMO ITALIANO
Pedro Velez
pedrorbavelez@hotmail.com
Licenciado em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa/FDUNL. Doutor
em Direito pela FDUNL (Portugal), na especialidade de Ciências Políticas (tese intitulada:
Constituição e Transcendência: os casos dos regimes comunitários do entre-guerras). Nos
últimos anos, tem-se dedicado à investigação e ao ensino, leccionando disciplinas de direito
público (Introdução ao Direito Público; Direito Constitucional e Direito Constitucional Português;
Direito Administrativo), na Escola de Direito da Universidade Católica Portuguesa-Porto, na
FDUNL e na Universidade Europeia. Tem também leccionado (FDUNL) disciplinas histórico-
jurídicas História das Instituições (Portuguesas); História do Estado em co-regência com o
Professor Doutor Diogo Freitas do Amaral.Áreas de interesse: tipos históricos de Estado, formas
políticas, regimes políticos/formas de governo e sistemas de governo, constitucionalismo,
relações entre o político-constitucional e o religioso.
Resumo
Neste artigo, analisar-seo regime fascista enquanto realidade político-constitucional. Fá-lo-
emos a partir de uma nova maneira de olhar os fenómenos político-constitucionais,
interpretando-os como inscritos num terreno de religiosidade.
Procurar-semostrar que o regime fascista se caracterizou por ter identificado a comunidade
política como Absoluto. Sugerir-se que nisso e por isso parece constituir um caso
diferenciado numa genérica família político-constitucional de regimes que se
caractareiza(ra)m por terem feito da comunidade política bem supremo.
Palavras-chave
Fascismo; Constituição; Religião; Autoritarismo; Totalitarismo
Como citar este artigo
Velez, Pedro (2016). "Sobre a ordem constitucional no/do fascismo italiano". JANUS.NET e-
journal of International Relations, Vol. 7, N.º 2, Novembro 2016-Abril 2017. Consultado
[online] em data da última consulta, observare.autonoma.pt/janus.net/pt_vol7_n2_art5
(http://hdl.handle.net/11144/2784)
Artigo recebido em 5 de Abril de 2016 e aceite para publicação em 17 de Setembro de
2016
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Sobre a ordem constitucional no/do fascismo italiano
Pedro Velez
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SOBRE A ORDEM CONSTITUCIONAL NO/DO FASCISMO ITALIANO
Pedro Velez
Neste artigo, iremos analisar o regime fascista enquanto fenómeno político-
constitucional
1
. Fá-lo-emos a partir de uma nova maneira de olhar o político-
constitucional, uma maneira que se não atém tão-só a formas ou instituições, ou se limita
apenas a sondar uma ocasião favorável ou uma eventual ocasião social-política
“determinante”, ou se fica pela “captação” de uma materialidade axiológica “fundadora”
de baixa intensidade (“demasiado humana”, digamos assim) momentos do
constitucional certamente “reais” e importantes. Procuraremos concretamente reatar o
projecto teórico-constitucional do célebre constitucionalista alemão Carl Schmitt na sua
dimensão de lugar de investigação sobre as identidades, paralelos e fertilizações
cruzadas entre o “político-jurídico” ou, mais especificamente, “o político-constitucional”
e o “religioso”
2
.
Perspectiva directora: conjectura sobre “o político-constitucional” como
realidade axiofânica; do Summum Bonum como invariante do Político-
constitucional
Neste estudo tomamos como ponto de partida uma concreta hipótese de leitura dos
fenómenos político-constitucionais. Seria, aliás, ilusório, como tem sido sublinhado
quanto à fenomenologia em geral, pretender que pode existir tal coisa como uma
descrição constitucional pura a partir de um aparecer puramente “dado”.
1
Sobre o regime fascista, veja-se, na literatura nacional mais recente, designadamente: António Costa Pinto,
O Regime Fascista Italiano, em Fernando Rosas e Pedro Aires Oliveira (coord.), As Ditaduras
Contemporâneas, edições Colibri, 2006, pp. 27 a 36; Diogo Freitas do Amaral, História do Pensamento
Político Ocidental, Almedina, Coimbra, 2011, pp. 499 e ss. (ditadura anticomunista e Estado fascista), e
Uma Introdução à Política, Bertrand Editora, Lisboa, 2014, 83 a 85; Jaime Nogueira Pinto, Ideologia e Razão
de Estado: uma história do poder, Civilização Editora, 3.ª ed., Porto, 2012, capítulo xi (o Fascismo: Ideologia
e Conquista do Estado). Na doutrina jus-constitucionalista, veja-se Jorge Bacelar Gouveia, Manual de Direito
Constitucional Volume I, Almedina, Coimbra, 5.ª Edição, 2013, pp. 204 a 207 e Jorge Miranda, Manual
de Direito Constitucional - Tomo I - Preliminares - O Estado e os Sistemas Constitucionais, 7.ª edição,
Coimbra Editora, Coimbra, 2003, pp. 213 e ss. Sobre os sistemas jurídico-constitucionais do entre-guerras
usualmente categorizados como «regimes não-democráticos de direita», mormente o brasileiro pós 1937,
ver Pedro Velez, Constituição e Transcendência: os casos dos regimes comunitários do entre-guerras, tese
de doutoramento, Lisboa, FDUNL, 2013. Sobre esta temporalidade político-constitucional, ver ainda, entre
nós: António Manuel Hespanha, em Os modelos jurídicos do liberalismo, do fascismo e do Estado social:
Continuidades e rupturas, em Análise Social, vol. XXXVII, n.º 165, 2003, pp. 1285-1302 e Diogo Freitas do
Amaral Corporativismo, Fascismos e Constituição, em Fernando Rosas, Álvaro Garrido (Coord.),
Corporativismos, Fascismos, Estado Novo, Almedina, Coimbra, 2012, pp. 81 a 98.
2
Vide Carl Schmitt, Political Theology: Four Chapters on the Concept of Sovereignty, The MIT Press,
Cambridge, Massachusetts/London, England, 1985 (1922/1934) e Carl Schmitt, Political Theology II, The
Myth of the Closure of any Political Theology, Polity, Cambridge, 2008 (1970).
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Na interpretação das formas de existência constitucional, suporemos que tais formas se
estruturam como identificações de um algo sumamente/maximamente
valioso/normativo, de um Summum Bonum, de um Bem Supremo; ou, dito de forma
mais subjectivista, supuremos que o pensamento ou a imaginação constitucional dirigem
sempre uma intencionalidade axiológica/normativa a um quid tomado como bem
supremo.
O que significa que interpretaremos os fenómenos político-constitucionais, em
última análise, como “escolhas” ou “decisões” religiosas, dada a convicção comum de
que a “eleição” de um Summum Bonum é característica do comportamento religioso
3
.
A formulação de uma tal possibilidade de leitura do político-constitucional não emergiu,
quanto à sua orientação fundamental, ex nihilo.
A reperspectivação como que extrai novos desenvolvimentos de modos habituais de olhar
os ordenamentos constitucionais, maxime de modos que os compreendem como formas
das coisas públicas e como realidades materiais-axiológicas: quem diz forma pode dizer
fim (e, como tal, identificação de um bem); quem diz axiologia pode dizer axiofania
(identificação de um supremo bem)
4
. Fá-lo aliás, na sequência de seminais tentativas de
interpretação do jurídico(-político) e do jurídico-constitucional que parecem ir nesse
sentido
5
.
No gizar da referida possibilidade de leitura, parte-se da compreensão clássica do
político-constitucional, na qual os “fenómenos” políticos são precisamente identificados,
comparados, diferenciados enquanto interpretações do Supremo Bem. Nos quadros da
filosofia clássica, o comportamento humano é, aliás, genericamente visto como um
comportamento que visa o mais alto bem para os seres humanos Summum Bonum
6
.
A ideia de que o comportamento” humano individual e colectivo exprime sempre uma
intencionalidade de ordem religiosa dirigida a um Bem Supremo tem sido explicitamente
tematizada no universo da filosofia contemporânea. Tivemos especialmente presente o
pensamento de Max Scheler e de Eric Voegelin:
Em Max Scheler encontramos uma descrição da acção humana como acção sempre
informada por uma valoração fundamental dirigida a um bem/valor tido por supremo,
sendo nisso e por isso intrinsecamente religiosa
7
. No divulgado «Religiões Políticas»
(1938/1939), mas também em escritos posteriores, Eric Voegelin sugere que a existência
pessoal e social-política, os sistemas de pensamento filosófico-políticos ou teológico-
políticos, se organizam à luz de um algo (religiosamente) “experienciado” como
3
Sobre a identificação de um centro de superlatividade axiológica, separando o “sagrado” do “profano”, como
característica do comportamento religioso, vide Mircea Eliade, The Sacred and The Profane: The Nature of
Religion, A Harvest Book, Harcourt Brace & World. Inc, New York, 1987.
4
Pensamos, sobretudo, na teoria da «constituição em sentido material» elaborada por Costantino Mortati
La Costituzione in Senso Materiale, Giuffrè Editore, Milano, 1940.
5
Vide Eric Voegelin, A Natureza do Direito e outros textos jurídicos, vers portuguesa com prefácio de José
Adelino Maltez, Veja, Lisboa, 1998.
6
Varrão (116 aC - 27 aC), em De Philosophia, classificaria as várias escolas filosóficas de acordo com as
concepções do bem supremo para os seres humanos por estas veiculadas vide Alasdair MacIntyre, God,
Philosophy, Universities, A Selective History of the Catholic Philosophical Tradition, Rowman & Littlefield
Publishers, Inc, Lanham, Boulder, New York, 2009, p 30. Hodiernamente, em certos autores
contemporâneos que têm procurado reactualizar a herança clássica, pode observar-se uma retoma da ideia
de que os mundos humanos se constituem como determinações do Bem (pensamos, por exemplo, em Leo
Strauss; Alasdair MacIntyre e Charles Taylor).
7
Max Scheler, On the Eternal in Man, with an Introduction by Graham McAleer, Transaction Publishers, New
Brunswick, N.J., 2009.
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sumamente (real) e valioso (Realissimum/Summum Bonum)
8
. Tais autores retomaram,
ainda que em termos de repetição não-idêntica, o pensamento agostiniano, segundo o
qual o comportamento humano seria sempre informado por um
amor/um desejo
fundamental dirigido a um certo quid, a Deus ou um a ídolo
9
.
Note-se, porém, que na utilização do conceito Summum Bonum não remetemos aqui
necessariamente para algo mais do que um “lugar estrutural” formal de tipo
fenomenológico-existencial (uma dimensão ontológica soft, se se quiser) e susceptível
de receber distintos direccionamentos. Colhendo inspiração noutros lugares, admitiremos
ainda que o “transcendental político constitucionalSupremo Bem possa ser determinado
em termos de intensidades e abrangências “axiofânicas” distintas; assim: o Supremo
Bem poderá ou não ser interpretado como fonte única, exclusiva, ilimitada, incondicional
de toda a normatividade/de todos os valores/de toda a autoridade axiológico-normativa,
como um Absoluto
10
.
Tal forma das formas político-constitucionais poderá eventualmente ser erigida a
substância de uma forma de vida ou mesmo de uma ordem universal-civilizacional. Tem-
se aqui presente, na abertura desta sub-hipótese, a circunstância de a
capacidade/potencialidade para gerar uma forma de vida, ou pelo menos uma axiologia
abrangente, ser, não raro, considerada característica do religoso. Segundo Jürgen
Habermas, por exemplo:
«[T]oda a religião é originalmente uma “concepção do mundo” ou
uma “doutrina abrangente” no sentido de que se arroga a autoridade
de estruturar uma forma de vida na sua totalidade»
11
J. Rawls assinalou que
8
Cfr. Eric Voegelin, The Political Religions, em Eric Voegelin, Collected Works, vol. 5., Modernity without
Restraint: The Political Religions, the New Science of Politics, and Science, Politics, and Gnosticism,
University of Missouri Press, Columbia, MO, 2000, p. 32. Veja-se também, por exemplo: The New Science
of Politics, em Eric Voegelin, Collected Works, vol. 5., Modernity without Restraint, ... , cit., maxime pp.
235, 236; Necessary Moral Bases for Communication in a Democracy (1956), em Collected Works, vol. 7,
Published Essays, 1953-1965, University of Missouri Press, Columbia, MO/London, 2000, pp. 55 a 57.
9
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Louisville, Kentucky, 2006. Sobre a influência de Sto. Agostinho em Scheler e Voegelin (e sobre a influência
de Scheler sobre Voegelin) ver William Petropulos, The Person as Imago Dei: Augustine and Max Scheler in
Eric Voegelin’s Herrschaftslehre and The Political Religions,em Glenn Hughes (ed.), The Politics of the
Soul: Eric Voegelin on Religious Experience, Rowman & Littlefield, Lanham, MD 1999, pp. 87114.
10
Entre nós, o filósofo idealista António José de Brito pôde sugerir que os regimes políticos, ou pelo menos
alguns deles, são declinações do que é tido pelos seus fundadores e protagonistas como um Absoluto. A
questão de saber se a modernidade pode verdadeiramente prescindir da “categoria” Absoluto foi colada por
Hannah Arendt; ver: Hannah Arendt, Authority in the Twentieth Century, em The Review of Politics, vol.
18, n.º 4, 1956, pp. 403-417 e Samuel Moyn, Hannah Arendt on the Secular, em New German Critique, vol
35, n.º 3105, 2008, pp. 71-96.
11
Jürgen Habermas, On the Relations Between the Secular Liberal State and Religion, em Hent de Vries,
Political Theologies, Public Religions in a Post-Secular World, Fordham University Press, New York, 2006, p.
259.
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«[M]uitas doutrinas religiosas e filosóficas aspiram a ser
simultaneamente gerais e abrangentes»
12
.
“Pistas” adicionais sobre o político-constitucional
Para além da hipótese-conjectura que acabámos de substanciar, neste trabalho
exploraremos ainda, prolongando o registo analítico fundamental que subjaz a uma tal
hipótese, certas pistas sobre o “terreno” em que o político-constitucional se inscreve.
No corpus schmittiano podemos encontrar a ideia de que na modernidade a “construção
da ordem” se faz pela elevação de objectos imanentes/intramundanos/terrenos ao
estatuto de “ídolo”
13
. Neste estudo, para além dessa, não deixaremos também de ter
presente uma outra intuição de Carl Schmitt, segundo a qual o político constitucional
moderno não pode deixar de ser compreendido como lugar de res mixtae, de coisas
mistas, como decisão (“negociação”) sobre as fronteiras entre a política propriamente
moderna e a “religião-tradicional”
14
.
Observou ainda o jurisprudente alemão que o que o é normalmente tido como o discurso
religioso por excelência (e, em especial, o cristianismo), como fenómeno no mundo, não
pode deixar de ter uma tradução político-constitucional. Na ciência do direito
constitucional hodierna pensamos, por exemplo, nos trabalhos do constitucionalista e
filósofo político espanhol Miguel Ayuso , indo além dessa intuição, tem-se mesmo
“redescoberto” o cristianismo, maxime o catolicismo, enquanto tradição político-
constitucional; uma tradição político-constitucional que “postula” uma referência da
ordem político-constitucional a uma axiologia e a uma normatividade transcendente
anterior, exterior e superior ao político-constitucional (e mais especificamente a definição
de uma ordem que reconhece uma concreta fundação católica e se estrutura como ordem
não monista respeitadora de “soberanias sociais”)
15
. Eis também um elemento que
teremos em conta na análise que posteriormente desfiaremos, maxime quando
averiguarmos a natureza e medirmos” a intensidade dos “investimentos axiofânicos”
subjacente aos fenómenos político-constitucionais em que atentaremos o
entendimento político-constitucional veiculado pela referida tradição qualificará mais ou
menos intensamente alguns desses investimentos?
Objecto e método
Será a partir de um tal modo de ver a essência do político-constitucional que partiremos
para in concreto identificar e diferenciar aplicadamente formas de existência política.
Na senda das teorias da constituição material, o jurídico-constitucional em sentido
convencional, os instrumentos jurídico-constitucionais num sentido (convencionalmente
tido por) estrito (constituições formais) ou realidades equivalentes (leis fundamentais,
por exemplo), bem como os seus processos genéticos processos de constitucionalização
processos de institucionalização fundamental , as formas das coisas blicas a que se
12
John Rawls, Political Liberalism, Columbia University Press, New York, Chichester, West Sussex, 1996, p
.13.
13
Carl Schmitt, Politische Romantik, Dunker & Humbolt, Berlin, 1968, p. 23.
14
Vide o já mencionado Political Theology II, cit.
15
Sobre esta temática político-constitucional e teológico-política ver, por todos: Miguel Ayuso, La constitución
cristiana de los Estados, Ediciones Scire, Barcelona, 2008.
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reconduzem, serão considerados como instâncias que manifestam decisões “axiofânicas”
fundamentais, ou mais especificamente, escolhas de Summa Bona.
Neste trabalho, o recurso à contextualização histórica será instrumental e subsidiário em
relação à tarefa de interpretação ou de reconstrução teórico-jurídico-constitucional que
nos propomos empreender o uso da história auxiliará tão-só o desenvolvimento de um
metódo jurídico com uma especial orientação teleológica e teológico-política; e será por
ditado por esse mesmo desenvolvimento.
Adoptamos quadro analítico atrás avançado não porque se afigura o método mais apto
a captar a “estrutura profunda” dos fenómenos constitucionais em geral, mas também,
e sobretudo, porque olhar os também chamados “regimes não democráticos de direita”
do entre-guerras do modo que sugerimos permiti aumentar a capacidade analítica
disponível para sobre eles fazer luz.
Comecemos então a nossa viagem pelo vinténio fascista e pela sua sequela terminal
republicana.
Ocasião favorável
No pós-primeira guerra mundial, a articulação da Itália como Estado-Nação, quer no
plano organizacional-legal, quer num plano “espiritual”, afigurava-se incompleta.
A ordem liberal, ordem a que faltava suporte numa tradição parlamentar ou até mesmo
uma verdadeira classe governativa, encontrava-se em processo de democratização. No
quadro da activação política das massas e da sua gestão, as instituições estaduais,
maxime a instituição parlamentar, bloqueiam, gerando-se uma crise de
governabilidade
16
. Segundo muita da publicística italiana coeva, o Estado,
incapaz de
fazer face à explosão de focos de poder e politicidade privatísticos alternativos,
centrífugos e dissolventes da ordem social, havia-se tornado o Estado: a expressão
«crise do Estado Moderno» da autoria do jurista Santi Romano, expressão
difundidíssima
no entre-guerras,
seria cunhada precisamente num tal contexto
17
.
Em tal cenário, emerge um novo movimento de massas evocando um «Estado Novo»
construído a partir da ideia de Nação o movimento fascista
18
.
O movimento fascista seria cooptado por uma parte do establishment como «um novo
estado para suster o Estado»
19
. A 31 de Outubro de 1922, o líder do movimento fascista,
Benito Mussolini, é feito Presidente do Conselho de Ministros. Foi a «Revolução nacional»
fascista
20
.
16
Uma lei de 30 de Junho de 1912 instituiria um sufrágio quase universal. Em 1919, o sistema eleitoral
passaria a basear-se num princípio de representação proporcional.
17
Ver Aldo Sandulli, Santi Romano, Orlando, Ranelleti e Donati sull’ “eclissi dello Stato”. Sei scritti di inizio
secolo XX, em Rivista trimestrale di diritto pubblico, n. 1º, 2006, pp. 77 a 97. E. Laclau e Zac não deixaram
de assinalar que na Itália na década de 1920 em desorganização social et pour cause, o fascismo
apresentou-se e consolidou-se como encarnando «o princípio abstracto da ordem social enquanto tal»
apud Benjamin Arditi, Politics on the edges of liberalism: difference, populism, revolution, agitation,
Edinburgh University Press, Edinburgh, 2007, p. 27.
18
Ver Emilio Gentile, Il mito dello Stato nuovo, Editori Laterza, Roma-Bari 1999.
19
Para utilizar formulações de uma descrição contemporânea de Eric Voegelin.
20
Sobre a occasio do regime fascista vide: Alexander De Grand, The Hunchback’s Tailor Giovanni Giolitti and
Liberal Italy from the Challenge of Mass Politics to the Rise of Fascism, 18821922, Praeger, Westport,
Connecticut/London, 2001; Marco Tarchi, Italy: Early Crisis and Fascist Takeover, em Dirk Berg-Schlosser
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Reconstituição e hipostasiação do Estado. A anulação das soberanias
sociais e a construção de uma organização política mono-árquica
integral-integradora
O chamado vinténio fascista é cada vez mais visto como um «sperimento
costituzionale»
21
. Seguindo a interpretação do arquitecto da sua matriz fundamental, do
«Guardasigilli [Ministro da Justiça] dela Revoluzione» e Jurista do fascismo (como
também não deixou de ser apelidado contemporaneamente) Alfredo Rocco, interpretação
que os chamados constitucionalistas fascistissimi (Sergio Panunzio e Carlo Costamagna)
desenvolveriam, tal processo pode ser visto como (tentativa de) construção de uma
ordem que, enquanto organização monoárquica integradora do social no político, pudesse
actualizar em grau máximo a ideia de Estado
22
.
Em Janeiro de 1925, em pleno Parlamento, Mussolini anunciou a abertura de um novo
tempo político-constitucional. A partir de tal momento, o governo fascista deixou
efectivamente de ser um “governo normal” passando a ser o agente-director de uma
ditadura soberana (para utilizar terminologia schmittiana) definidora de uma nova
constitucionalidade (formal e material)
23
. Muito em especial com a “engenharia
e Jeremy Mitchell (eds.), Conditions of Democracy in Europe 191939, Systematic Case Studies, Palgrave
Macmillan, Houndmills/London, 2000, pp. 294 a 320.
21
Vide Enzo Fimiani, Fascismo e regime tra meccanismi statutari e «costituzione materiale», em M. Palla
(dir.), Lo Stato fascista, La Nuova Italia-Rcs, Firenze, 2001, pp. 79 a 176. Sobre a instituição do «regime»
fascista, maxime sobre os processos de transformação constitucional que tiveram lugar no vinténio, vide:
Livio Paladin, Fascismo (diritto costituzionale), em Enciclopedia del Diritto, vol. XVI, Giuffrè Editore, Milano,
1967, pp. 887-901; S. Labriola, la costituzione autoritaria, em S. Labriola, Storia della costituzione italiana,
Esi, Napoli, 1995, pp. 203 a 274; Alberto Aquarone, L’organizzazione dello Stato totalitario, 2.ª ed., Einaudi,
Torino, 2002. Ver também Renzo de Felice, Brève histoire du Fascisme, trad., Éditions Audibert, Paris,
2002; Philip Morgan, Italian Fascism 19151945, 2.ª ed., Palgrave Macmillan, Houndmills/New York, 2004,
cap. 3; John Pollard, The Fascist Experience in Italy, Routledge, London/New York 1998/2005, caps. 3 e 4.
Para uma consulta aos instrumentos jurídico-formais que instituíram um edifício constitucional fascista vide
Alberto Aquarone, L’organizzazione dello Stato totalitario, cit., pp. 315 e ss. appendice»]; pode ver-se
também Italie, em B. Mirkine-Guetzévitch, Les Constitutions de l’ Europe Nouvelle avec les texts
constitutionnels, parte II.ª, Librairie Delagrave, Dixième Édition, Paris, 1938, pp. 371 a 427.
22
Alfredo Rocco, La trasformazione dello Stato: dallo Stato liberale allo Stato fascista, La Voce, Roma, 1927
(os escritos de Rocco, designadamente as relações antecedendo as chamadas leis fascistissime, eram
considerados, na publicística fascista, como escritos canónicos, e fonte de interpretação autêntica da
doutrina do Estado e do direito constitucional fascista); Sergio Panunzio, Teoria generale dello Stato
fascista, 2.ª ed., Cedam, Padova, 1937; Carlo Costamagna, Storia e Dottrina del fascismo, Editrice Torinese,
Torino, 1938. Vide Pietro Costa, Lo ‘Stato Totalitario’: un campo semantico nella giuspubblicistica del
Fascismo, em Quaderni fiorentini per la storia del pensiero giuridico moderno, n.º 28, Tomo I, Giuffrè,
Milano, 1999, pp. 61 a 174. Hodiernamente, aqui e ali, parece apontar-se, mais ou menos explicitamente,
para uma caracterização da experiência do regime fascista italiano como projecto de actualização
superlativa da ideia de Estado vide supra: Marcel Gauchet, À l'épreuve des totalitarismes, L'avnement
de la dmocratie III, Bibliothque des sciences humaines, Gallimard, Paris, 2010, pp. 348 e ss. (capítulo
VIII, «Le fascisme en quête de lui-même»); David D. Roberts, The totalitarian experiment in twentieth-
century Europe: Understanding the poverty of great politics, Routledge, London/New York, 2006, pp.271 e
ss. Pensa-se também na literatura do entre-guerras: vide Rudolf Smend, Constitucion y Derecho
Constitucional, Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1985. Para uma topografia dos olhares sobre
o fascismo italiano, ver por todos Emilio Gentile, Qu’est-ce que le fascisme? Histoire et interpretation, versão
francesa, Gallimard, Paris, 2004, maxime pp. 67 e ss.
23
Certas transformações legislativas inicialmente operadas pelo novo governo de direcção fascista pareciam
anunciar a superação da forma de Estado democrático-liberal: o Régio Decreto n.º 31 de 14 Janeiro 1923
criaria um corpo militar de defesa da ordem pública directamente dependente do Presidente do Conselho,
a Milícia Voluntária para a Segurança Nacional (Milizia Voluntaria per la Sicureza Nazionale, M.V.S.N.) por
um posterior Decreto-Lei de 4 agosto de 1924, n.º 1292, a Milícia, tornar-se-ia, porém, parte integrante
das forças armadas, tendo os seus membros de prestar juramento ao Rei. A famosa lei Acerbo, a Lei n.º
2444 de 18 Novembro 1923, operaria uma primeira transformação de fundo da legislação eleitoral,
assegurando dois terços dos assentos parlamentares à lista apoiada por 25 por cento dos sufrágios. O R.D.L.
n.º 3288 de 15 de Julho de 1923, publicado somente a 8 de Julho de 1924, restringiria a liberdade de
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constitucional” sistemática-global projectada e actuada por Rocco até 1928, os contornos
de uma nova ordem político-constitucional foram sendo definidos.
Nos primeiros momentos de transformação constitucional, operar-se-ia um reforço do
poder que no entender do protagonista-mor dessa transformação (Rocco) constituía a
«expressão mais genuína do Estado», do poder executivo. A Lei n.º 2263 de 24 de
Dezembro de 1925 e a Lei n.º 100 de 31 Janeiro de 1926 operariam o reforço do lugar
estrutural do Governo e do seu chefe no sistema de governo. Com o primeiro desses
diplomas, termina a responsabilidade política do Governo perante o Parlamento, é criada
a nova figura institucional do «Capo del Governo, Primo Ministro Segretario di Stato»,
sucedâneo da figura do «Presidente del Consiglio» (revogados ou esvaziados os princípios
da colegialidade e solidariedade ministeriais, a nova figura deixa de ser um mero primus
inter pares) e são atribuídos ao Governo poderes determinantes no respeitante à direcção
da vida interna das câmaras parlamentares (tais instituições deixam de gozar de
liberdade de disposição sobre a ordem do dia). A segunda dessas leis, regularia com
grande latitude o uso dos actos normativos emanados pelo poder executivo, desviando-
se do princípio da separação de poderes
24
. Nas transformações constitucionais
posteriores, as quais acrescentariam o poder do Chefe do Governo, designadamente a
sua capacidade jurídica de acção sobre a composição e a vida interna das novas
instituições, cristalizaria uma sede directora e unificadora da vida interna do Estado e da
sua acção sobre a “sociedade”
25
.
Projectar-se-ia um complexo de formas institucionais jurídico-públicas de “incorporação”
permanente, objectiva e subjectiva, do social-económico no político: o chamado, na
semântica fascista, «ordenamento sindical-corporativo».
A Lei n.º 563 de 3 Abril de 1926,
dispondo sobre a disciplina das relações laborais, proibiria e incriminaria a greve e o
lockout, criaria sindicatos legalmente reconhecidos representantando operários e patrões
aos quais se concedia a faculdade de celebrar contratos colectivos válidos erga omnes
e estruturaria um magistratura do trabalho
26
. Com o regulamento executivo dessa lei
Decreto Real n.º 1130 de 1 Julho de 1926 principiaria a reforma corporativa em
sentido estrito: tal regulamento previa o estabelecimento de mecanismos institucionais
de conexão entre sindicatos simétricos de cada sector da actividade produtiva,
imprensa, no lado substancial e no lado instrumental. Várias comissões de base partidária haviam sido
constituídas, em 1923 e 1924, para “trabalhar” o tema da reforma constitucional. Por decreto do Presidente
do Conselho de 31 Janeiro 1925, seria constituída a célebre Commissione dei Diciotto ou dei Soloni,
presidida por Giovanni Gentile e mandatada para meditar e apresentar conclusões em tema de reforma
constitucional; comissão de composição «mestiça», não terá chegado a exprimir plenamente tendências de
reforma constitucional puramente fascistas, mas conclusões substancialmente «liberais depuradas», para
utilizar a linguagem do constitucionalista fascistíssimo Carlo Costamagna. Vide Alberto Aquarone,
L’organizzazione dello Stato totalitario, cit., pp. 51 e ss.
24
Apesar de também apresentada como servindo um telos de ordenação racionalizadora do poder e das suas
práticas constitucionais, a nova engenharia constitucional consagrava, não obstante, um claro predomínio
do poder executivo em face do poder legislativo: os regulamentos organizativos dos serviços públicos
passam a poder contrariar as leis pré-existentes, constituindo-se assim uma espécie de reserva de decreto,
antitética em relação às clássicas reservas de lei; os decretos-leis tornam-se leis provisórias, aptos a durar
por um tempo de dois anos tempo esse renovável por decretos sucessivos , e produzindo efeitos
permanentes mesmo na hipótese de as Câmaras não confirmarem tais decretos.
25
Também o governo local, seria redesenhado em sentido eminentemente estatal-nacional, com os órgãos
pessoais directores de comunas e províncias Podestà e Preside a passarem a ser nomeados pelo
governo, e com órgãos colegiais auxiliares de base corporativa a substituírem os órgãos “parlamentares”
locais anteriormente eleitos (Leis de 4 Fevereiro 1926, n.º 237, de 2 Junho 1927, n.º 957; Leis n.º 2962
de 27 de Dezembro 1928 e n.º 383 de 3 Março 1934).
26
A inscrição no sindicato era facultativa; não era excluída a existência de facto de associações profissionais;
para além dos contratos de trabalho, a quota sindical e certas taxas especiais eram obrigatórios para todos
os que pertencessem a uma dada categoria.
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denominando tais mecanismos corporações. A autodenominada «Carta del Lavoro» de
1927 (vide infra), na sua VI.ª declaração, consagraria doutrinariamente, por seu turno,
o carácter estatal-nacional da corporação como base do projecto corporativo:
«[A]as corporações constituem a organização da produção e
representam os seus interesses integralmente. Em virtude desta
representação integral, sendo os interesses da produção interesses
nacionais, as corporações são reconhecidas por lei como órgãos do
Estado»
27
.
O Decreto Real n.º 1131 de 2 Julho de 1926 criaria um Ministério das Corporações. A Lei
n.º 206 de 20 Março 1930 viria a estruturar um órgão de vértice do ordenamento
corporativo, o Conselho Nacional das Corporações (Consiglio Nazionale delle
corporazione)
28
; com base na Lei n.º 163 de 5 Fevereiro de 1934, a criação das
corporações seria progressivamente efectuada, ainda que a reforma-experiência
corporativa não tivesse chegado a ser plenamente actuada
29
. O projecto corporativo daria
origem a vivo debate no “espaço público e político” fascista um debate cujas linhas de
fractura não deixavam de revelar um pressuposto básico partilhado: a funcionalidade do
projecto corporativo à “produção” (objectiva e subjectiva) de comunidade política. Na
orientação de um Rocco, o projecto corporativo parecia ser entendido num sentido
“imperial e “burocrático-centralista”, como cnica de reconstrução, em tempos de
complexificação da sociedade e de reemergência dos grupos, de um Estado plenamente
soberano que pudesse integrar e unificar, de cima para baixo, o “magma social”, de tal
modo que o “político” coincidisse (ou voltasse a coincidir) com o estadual”, ou seja,
como um esquema de domínio do braço imperial da comunidade política sobre a
sociedade
30
. Puderam cristalizar também orientações centralistas matizadas, nas quais o
Estado cuja reconstrução, reforço e aumento de poderio não deixou de ser objectivo
principal se devia estruturar a partir de instituições societárias, de cujo dinamismo
intrínseco, relativamente autónomo, o processo político estadual receberia um impulso
de baixo para cima minimamente influente. No registo doutrinário de Giuseppe Bottai,
um dos grandes arquitectos do Estado Fascista, o corporativismo era concebido como
meio de restruturação e reconstrução sólidas do Estado e de controlo ordenador do
magma social, mas também esquema de auto-governo da economia. Em outras
27
As corporações eram concebidas como organizações unitárias das forças de produção, como representantes
integrais dos interesses objectivos e supra partes intervenientes no processo produtivo da produção, e
como produtoras de normas obrigatórias sobre as relações de trabalho e sobre a coordenação da produção.
28
Tendo também previsto a existência, no seio deste órgão, de um órgão mais restrito: o Comité Corporativo
Central (Comitato corporativo centrale).
29
Segundo Mussolini (14 de Novembro de 1933): «para aplicar o corporativismo pleno, completo, integral,
revolucionário, ocorrem três condições: Um partido único, que permita a acção da disciplina política
juntamente com a acção da disciplina económica, que esteja acima dos interesses em jogo, e que seja um
vínculo que una a todos na mesma fé. Isto porém, não basta. É necessário além do partido único, um
Estado totalitário, isto é, um Estado que absorve para transformar e fortalecer todas as energias, todos os
interesses, todas as esperanças de um povo. Mas ainda não basta. Terceira, última e mais importante
condição: é preciso viver um período de altíssima tensão ideal, como o que actualmente vivemos» Benito
Mussolini, O Estado Corporativo, Vallecchi Editore, Firenze, 1938, pp.34 e 35.
30
Num certo sector da publicística fascista, tinha-se mesmo em vista um projecto “de corporativismo sem
corporações”, um esquema de ordem no qual o Estado era concebido como corporação integral e suprema
e as “corporações” como meros órgãos estaduais de formatação do magma social. M. Toraldo di Francia,
Per un corporativismo senza corporazione: “Lo Stato” di Carlo Costamagna, em Quaderni fiorentini, XVIII,
Giuffrè Editore, Milano, 1989, pp. 267 a 327.
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orientações ainda, o corporativismo apresentava-se como sistema eminentemente
governado por uma lógica de “baixo para cima”, mas sistema de realidades de base
sempre já comunitárias, de lugares de aprendizagem de uma forma mental civil-
comunitária corporações proprietárias (Ugo Spirito), grandes sociedades por acções
(Volpicelli)
31
. Um registo de controlo pelo Estado-Aparelho, maxime pela sede de direcção
da vida do Estado, da formação, da vida interna, da vontade normativa das instituições
do ordenamento sindical-corporativo viria a prevalecer. Tal não impediu, contudo, que
no Estado Fascista, pelo facto de este se ter estruturado “corporativamente”, a
“sociedade” se tivesse podido exprimir em termos de influência nima, ao
corporativismo sendo intrínseca uma dimensão última de reconhecimento de um certo
pluralismo social irredutível
32
.
Numa outra linha de transformação político-constitucional, articular-se-ia
institucionalmente o Partido Nacional Fascista e o Estado. A Lei n.º 2693 de 9 de
Dezembro 1928 erigiria a instituição partidária Grande Conselho do Fascismo Gran
Consiglio del Fascismo») a órgão constitucional, a «órgão supremo, que coordena e
integra todas as actividades do Regime» para reproduzir os termos do seu artigo I.º
33
.
Tal órgão, de composição e disciplina de vida interna determinadas, directa ou
indirectamente, pelo Chefe de Governo, passaria a ter de ser obrigatoriamente
consultado no procedimento de emanação de normas constitucionais. Foi também
investido do poder de propor à Coroa uma lista de três nomes de potenciais incumbentes
da Chefia do Governo em caso de vacatura desta com esta última atribuição, alterava-
se (a favor da monoarquia fascista in fieri) o lugar estrutural da instituição monárquica
no sistema de governo, reduzindo-se a latitude das possibilidades da sua intervenção em
tema de nomeação e demissão do Chefe de Governo. Pela Lei n.º 2099 de 14 Dezembro
de 1929, o PNF torna-se instituição plenamente inserida no Estado: de acordo com esta
lei o estatuto do PNF teria de ser aprovado por decreto real, sob proposta do Chefe do
Governo, ouvidos os pareceres do Gran Consiglio e do Conselho de Ministros; e os
dirigentes mais importantes do Partido deveriam ser nomeados por decreto do Chefe do
Governo, sob proposta do Secretário-Geral do Partido. Equiparar-se-ia o «fascio littorio»
ao emblema nacional (R.D.L. 12 Dezembro 1926, n.º 2061), sendo neste posteriormente
introduzido (Decreto n.º 504 de 11 de Abril de 1929). Mais tarde, pelo Decreto-Lei n.º 4
de 11 Janeiro de 1937, seria conferida ao Secretário-Geral do PNF a dignidade e função
de Ministro Secretário de Estado
34
. A ordem política deveria assentar num novo
31
Sobre a temática do(s) corporativismo(s) no fascismo ver, por todos: Gianpasquale Santomassimo, La terza
via fascista: il mito del corporativismo, Carocci editore, Roma, 2006; Lorenzo Ornaghi, Stato e
Corporazione, Storia di una dottrina nella crisi del sistema politico contemporaneo, Giuffrè Editore, Milano,
1984; Bernardo Sordi, Corporativismo e dottrina dello stato in Italia: incidenze costituzionali e
amministrative, em Aldo Mazzacane/Alessandro Soma/Michael Stolleis (eds.), Korporativismus in den
südeuropäischen Diktaturen/Il corporativismo nelle dittature sudeuropee, Das Europa der Diktatur 6,
Vittorio Klostermann, Frankfurt am Main, 2005, pp. 129 a 145; Paolo Grossi, Scienza giuridica italiana. Un
profilo storico 1860-1950, Giuffrè, Milano, 2000, pp. 171 e ss; cfr. outrossim A. Aquarone, op. cit., pp. 122
e ss. Vide Pietro Costa, Lo ‘Stato Totalitario’: un campo semantico nella giuspubblicistica del Fascismo, cit.
32
Ver neste sentido Sabino Cassese, Lo Stato fascista, Il Mulino, Bologna 2010. A almejada unificação do
social terá sido operada via esquemas institucionais ad hoc, e com o esboço de criação de um Estado social
e managerial”. Vide: S. Lupo, Il fascismo: La politica in un regime totalitario, Donzelli Editore, Roma
Editore, 2000; Maria Sophia Quine, Italy’s Social Revolution: Charity and Welfare from Liberalism to
Fascism, Palgrave Macmillan, Houndmills/New York, 2002; Guido Melis, Fascismo (ordinamento
costituzionale), em Digesto delle Discipline Pubblicistiche, vol. VI, reimpressão, Turim, 1999 (1.ª ed. de
1991), pp. 259-273.
33
Criado a 15 de Dezembro de 1922; a primeira reunião oficial seria anunciada no Povo de Itália a 11 de
Janeiro de 23 mencionando-se que as «reuniões são convocadas e presididas pelo Chefe de Governo».
34
Em 1937 cristalizaria também uma única organização partidária de juventude a Gioventù Italiana del
Littorio.
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dispositivo afectado à criação de uma classe governativa de forma mental
eminentemente estatal-nacional e de uma subjectividade nacional comunitária nos
membros da comunidade política.
Também a representação política parlamentar clássica viria a ser “reinstitucionalizada”.
Num primeiro momento, com a Lei n.º 1019 de 17 Maio de 1928, estabeleceu-se que o
Grande Conselho Fascista (aproveitado para efeitos da vida interna do Estado), com base
em sugestões de nomes apresentadas pelos sindicatos fascistas e outras associações,
seleccionaria (com inteira liberdade decisória) uma lista de 400 deputados, que o
eleitorado devia apoiar ou rejeitar em bloco. Finalmente, pela Lei n.º 129 de 19 de Janeiro
de 1939, a Câmara dos Deputados seria extinta tendo sido criada uma «Camera dei Fasci
e delle Corporazioni». Tal instituição distinguia-se essencialmente dos mecanismos
jurídicos democrático-liberais de representação política. A nova Câmara não seria
segregada (por meio de eleições) com base no tradicional “o povo” individualístico-
abstractamente determinado, mas sim com base no povo pública e politicamente
“nacional-estatalmente” – organizado; reuniria o Chefe do Governo e, assente no
ordenamento sindical-corporativo e no PNF, os membros do Grande Conselho Fascista,
bem como os membros (conselheiros nacionais) do Conselho Nacional das Corporações
e do Conselho Nacional do Partido Nacional Fascista.
A nova instituição deveria colaborar
com o Governo na formação das leis segundo o seu artigo 2.º, «[o Senado e] a Câmara
dos Fasces e das Corporações colaboram com o Governo para a formação de leis». O
Chefe do Governo passa a nomear directa ou indirectamente os membros de tal
instituição; adquire a faculdade de afectar entre o plenário e as várias comissões os
poderes de aprovação dos projectos de lei.
35
Nos tempos finais do regime, a situação político-constitucional pré-anunciava a realização
de uma ordem político-constitucional integralmente fascista, com a
“reinstitucionalização” de instituições até menos “redefinidas” pelos processos de
transformação constitucional Coroa e Senado ou a sua pura e simplesmente
supressão
36
. Seria a realização cabal, ou pelo menos mais perfeita, de uma organização
política de direcção monoárquica, vocacionada para “absorver”, enquadrar, e unificar
integralmente “o social” no político.
A ortodoxia pública fascista/A Comunidade política como Absoluto
Para além de uma reformulação das instituições, a ditadura soberana fascista procuraria
também codificar e declarar solenemente os radicais éticos que a informavam. As
35
O tema da reforma da representação política foi tema muitíssimo debatido na galáxia de suporte do fascismo
(tendo-se feito sempre sentir resistências ao abandono do tradicional princípio eleitoral). No seio da doutrina
jurídica de direito público, a utilização do conceito de representação foi mantida na caracterização do Estado
Fascista. O conceito pôde, no entanto, ser reformulado: por exemplo, com a construção do conceito de
«representação instituciona(Esposito) na caracterização do Estado Fascista sendo uma instituição e
baseando-se em instituições, o Estado fascista não poderia deixar de ser, a vários títulos, representativo.
Certas vozes gentilianas Spirito e Volpicelli sustentariam, porém, a não aplicabilidade do conceito ao
Estado Fascista: para tais vozes, a distinção entre sociedade ou povo e Estado, que a representação
pressuporia, não faria sentido (“ontologicamente” e no específico universo fascista). Vide Pietro Costa, Lo
‘Stato Totalitario’: un campo semantico nella giuspubblicistica del Fascismo, cit., pp. 97 a 101.
36
Note-se que o célebre Discurso de Udine de 20 de Setembro de 1922 (as instituições «não poderiam ser
aprovadas ou desaprovadas sotto la specie dell’ eternità»; o fascismo aceitaria um «monarca
suficientemente monarca») havia posto um termo à «tendência republicana» que se manifestara no período
genético do fascismo. Nas célebres conversas privadas com Ciano, Mussolini expressaria, porém, várias
vezes, a intenção de eliminar a Monarquia.
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instâncias em que tal se reflectiu manifestariam uma constante estima axiológica dirigida
ao quid comunidade política e interpretando-a como esgotando em si o universo do
valioso, e mesmo explicitamente como um absoluto.
A Alfredo Rocco se deve uma das primeiras nteses do credo fascista. O autor declinaria
“imanentisticamente” uma concepção clássica-comunitária da comunidade política sem
referência a um telos supra ou transpolítico: segundo Rocco, o fascismo constituiria uma
nova e mais perfeita interpretação do facto societário-comunitário-político; entenderia a
sociedade política como realidade a se de tempo longo uma unidade potencialmente
englobante de uma série infinita de gerações com uma “estrutura” de finalidades
coincidente com os fins da espécie humana, sendo por isso realização concreta da
humanidade. O fascismo diferenciar-se-ia, assim, dos outros fenómenos políticos
modernos liberalismo, democracia, socialismo todos eles vistos como partilhando a
concepção da sociedade política como soma de indivíduos, como quid que vive para os
indivíduos, cujos fins não são senão os fins “particularísticos” dos indivíduos
37
.
Giovanni Gentile veria o (melhor) conceito do regime na ideia de «Estado Ético» (por sua
vez, essência da ideia de Estado):
[Por isso] Estado ético, não no sentido de uma realidade que fizesse
pensar numa realidade sobreposta à vontade dos indivíduos, mas
no que representa a essência mesma da individualidade do indivíduo
que não se manifesta senão como vontade que quer ser universal.
O Estado fascista maxime pelo projecto corporativo superando divisões de classe
abstractas numa real “likemindness” nacional “reflectiria” e expressaria” o momento
moral-universal dos indivíduos, momento dirigido à comunidade política, ou seja, o
Estado “in interiore hominem”
38
. Daí que o filósofo, encontrando deste modo a
objectividade na subjectividade (palavras nossas), tivesse podido sustentar que
o fascismo é esta afirmação da identidade entre o liberalismo
genuíno e eticidade do Estado
39
.
37
Alfredo Rocco, A doutrina política do Fascismo (vers. portuguesa), em António José de Brito (org.), Para a
Compreensão do Fascismo, Nova Arrancada, Lisboa, 1999, pp. 51 a 74. À formulação e concepção da sua
“doutrina do Estado” esteve subjacente um certo «caminho mental de jurista», que passou, por exemplo,
pela constatação de que a construção do Estado adoptada pela escola de direito público alemã e pela escola
de direito blico italiana (a chamada teoria jurídica do Estado, uma teoria “juridicista” do Estado, cujo
telos pelo menos na versão italiana consistia em expurgar o discurso dos saberes jurídicos de momentos
político-axiológicos), veiculava uma ideia implícita de Estado forte e de Estado monoárquico, contrapondo-
se (na visão do autor) a toda a ideologia individualista da Revolução francesa (v.g., com o conceito de
autolimitação do Estado tal como os conceitos de soberania e da personalidade jurídicas do Estado, dogma
(jurídico) das referidas aproximações jurídico-formais ao Estado a servir de fundamento aos direitos
subjectivos, as liberdades individuais deixavam de ser vistas como direitos pré-positivos do indivíduo
passando a ser representadas como concessões feitas pelo Estado no seu interesse, assim se consagrando
a plena subordinação dos interesses individuais aos interesses colectivos e a derivação do cidadão do
Estado). Vide Paolo Ungari, Alfredo Rocco e l’Ideologia Giuridica del Fascismo, Morcelliana, Brescia, reimp.,
1974 (1.ª ed. 1963).
38
Ver Giovanni Gentile, A Filosofia do Fascismo (1937/1941), em António José de Brito (org.), Para a
Compreensão do Fascismo, Nova Arrancada, Lisboa, 1999, pp. 35 e ss.
39
Sobre a continuidade entre o fascismo segundo Gentile e o liberalismo vide: Augusto del Noce, Giovanni
Gentile. Per una interpretazione filosofica della storia contemporanea, Il Mulino, Bologna, 1990, pp. 393-4;
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A Carta del Lavoro daria uma primeira letra de forma a uma ética pública fascista. Na
galáxia fascista, a Carta não deixou de ser equiparada à Declaração dos Direitos do
Homem da Revolução Francesa. Emanada como documento político ou extra-jurídico-
formal em 1927 pelo Gran Consiglio del Fascismo, o Governo seria legislativamente
autorizado a dar-lhe actuação (lei de 18 de Dezembro de 1928), tendo, finalmente, sido
elevada a fonte (em sentido técnico) de direito positivo, com uma lei de 30 de Janeiro de
1941 a reconhecer às suas declarações o valor de princípios gerais do ordenamento
jurídico e de critério directivo para a interpretação e aplicação da lei; um certo sector da
doutrina entendia mesmo que a Carta pertencia ao ordenamento jurídico-positivo vigente
com valor de verdadeiro e próprio acto constitucional
40
. No artigo I da Carta podia ler-
se:
«A Nação italiana é um organismo que tem os seus fins, vida e meios
de acção superiores aos dos indivíduos que as compõem. É uma
unidade política e económica que está integralmente realizada no
Estado Fascista. A produção, considerada no seu conjunto, é unitária
sob o ponto de vista nacional; os seus objectivos são unitários e
resumem-se no bem-estar dos indivíduos e no desenvolvimento da
potência nacional»
41
.
Um princípio de «finalismo interno do Estado» para utilizar a fórmula interpretativa do
constitucionalista fascistíssimo Constamagna , traduzido na afectação do Estado à
realização prioritária de interesses próprios da comunidade política como um todo
(maximização do poder e da potência desta), daria agora substância ao ordenamento
jurídico.
Uma auto-interpretação “oficial” ou, de um ponto de vista jurídico-formal, quási ou para-
oficial, cristalizaria finalmente com a publicação do texto «Dottrina del Fascismo», da
autoria de Mussolini e de Giovani Gentile
42
. Tal texto evocava e teorizava o Estado e o
indivíduo-Estado como Absolutos. A acção humana era nele compreendida como algo
que se esgota na sociedade política; a sociedade política não aparece claramente
ordenada a um summum bonum meta-político:
«O Homem do Fascismo é o indivíduo que é nação e pátria, lei moral
que une conjuntamente indivíduos e gerações numa tradição e
numa missão, que suprime o instinto da vida encerrada no breve
instante do prazer para instaurar no dever uma vida superior liberta
dos limites do tempo e do espaço: uma vida em que o indivíduo,
cfr. também Richard Bellamy, Idealism and Liberalism in an Italian ‘New Liberal Theorist’: Guido de
Ruggiero’s History of European Liberalism, em The History Journal, vol. 30, n.º 1, 1987, p. 198.
40
Costamagna e a sua revista Lo Stato vide M. Toraldo di Francia, op. cit., p. 309.
41
No ponto II podia ler-se «O trabalho sob todas as suas formas, intelectuais, técnicas ou manuais, quer se
trate de organização quer de execução, é um dever social. dentro deste conceito se encontra sob a
salvaguarda do Estado».
42
Benito Mussolini, Doutrina do Fascismo (vers. portuguesa), em António José de Brito (org.), Para a
Compreensão do Fascismo, Nova Arrancada, Lisboa, 1999, pp. a 13 a 34.
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através da abnegação de si mesmo, do sacrifício dos seus interesses
particulares e até da própria morte, realiza aquela existência
inteiramente espiritual onde reside o seu valor de homem. (…) O
fascismo é uma concepção religiosa na qual o homem se encontra
numa relação imanente com uma lei superior e com uma Vontade
objectiva que transcende o indivíduo em particular e o eleva à
pertença consciente a uma sociedade espiritual. (…) Anti-
individualista, a concepção fascista é a favor do Estado; e é pelo
indivíduo, na medida em que este coincide com o Estado,
consciência e vontade universal do homem, na sua existência
histórica. (…) para o fascista, tudo está concentrado no Estado e
nada existe de humano ou de espiritual, e muito menos tem valor,
fora do Estado. Neste sentido, o Fascismo é totalitário, e o Estado
fascista, síntese e unidade de todos os valores, interpreta,
desenvolve e potencia a totalidade da vida do povo. (…)»
43
. «Base
da doutrina fascista para citar um parágrafo de uma parte do
referido texto (intitulada «doutrina política e social») elaborada pelo
fundador da ordem fascista é a concepção do Estado, da sua
essência, das suas obrigações e finalidades. Para o fascismo, o
Estado é o absoluto, ante o qual os indivíduos e grupos representam
o relativo. Indivíduos e grupos são concebíveis se pertencentes
ao Estado»
44
.
O Fascismo como doutrina abrangente e projecto civilizacional
Segundo o art. 147.º do novo Código Civil fascista, «a educação e a instrução devem ser
conformes aos princípios da moral e ao sentimento nacional fascista». Giovanni Gentile
sublinharia famosamente:
«Não se pode ser fascista na política e não fascista na escola e não
fascista na própria família, não fascista no trabalho. Como um
católico, se é católico, investe toda a sua vida com o sentimento
religioso... se se é verdadeiramente católico, e se tem um sentido
religioso, lembramo-nos sempre na parte mais elevada da mente de
trabalhar, pensar e orar e meditar e sentir como católicos, de modo
que um fascista, que vai ao parlamento, ou para a casa fascista,
escreve no jornal ou lê-os, segue a vida privada ou conversa com
os outros, olha para o seu futuro ou pensa no seu passado e no
passado do seu povo, deve sempre pensar em si como um
fascista!»
45
.
43
Cfr. parágrafos 2, 5 e 7 de Benito Mussolini, Doutrina do Fascismo, cit., pp. 16, 17 e 18.
44
Benito Mussolini, Doutrina do Fascismo, cit., p. 27 (início do ponto 10 da secção da «Doutrina do Fascismo»
mencionada no corpo do texto).
45
Cfr. Giovanni Gentile, Che cosa è il fascismo?, em Giovanni Gentile, Politica e cultura, Herve A. Cavallera
(ed.), vol. 2, Le Lettere, Florença, 1991, p 86, citado em Mabel Berezin, op. cit., p. 51.
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A natureza abrangente do fascismo não sofre dúvida. Todas as “realidades” da existência
eram potencialmente referíveis à Cidade (a uma Cidade fim de si mesma) realidades
como a família, o matrimónio, o “feminino” constituíam realidades potencialmente
reconceptualizáveis e reinstitucionalizáveis como bens essencialmente públicos; e sê-lo-
iam, ainda que em medida incipiente.
Ilustrando a vocação abrangente do fascismo, o constitucionalista fascistissimo
Costamagna, por exemplo, esboçaria mesmo uma nova ciência normativa geral directora
das ciências humanas, com um lugar estrutural arquitectónico no sistema de
conhecimento equivalente ao da antiga teologia, uma ciência do Estado entendida como
ciência do bem comum de uma determinada comunidade particular organizada em
Estado
46
.
Mussolini assinalaria uma vocação universal ao fascismo-ideia e ao fascismo-regime:
«Afirmo hoje que o Fascismo considerado como ideia, doutrina,
realização, é universal; italiano na sua constituição particular, é
universal no seu espírito e nem poderia ser de outro modo. O
espírito é universal pela sua própria natureza. Pode prever-se, pois,
uma Europa fascista, uma Europa que se inspire nas instituições,
nas doutrinas e na prática do Fascismo; isto é, uma Europa que
resolva no sentido fascista o problema do Estado moderno, do
Estado do século XX, bem diferente dos Estados que existiram antes
ou se formaram depois de 1789. Hoje, o Fascismo corresponde a
exigências de carácter universal. Efectivamente, resolve o tríplice
problema das relações entre o Estado e o indivíduo, entre o Estado
e os grupos e entre os vários grupos organizados»
47
.
Durante o vinténio, mbolos políticos como «nova Idade», «nova Civilização», «novo
Homem», eram não-raro evocados no espaço público e político, revelando vontade de
reinstituição global da ordem das coisas humanas
48
. O regime fascista foi-se definindo
como regime portador de um ideal ético-político universalizável, de um projecto de uma
nova civilização, ideal e projecto centrados em torno de um novo modo de subjectividade
consistente na identificação do homem com a comunidade política, da ideia de vida num
contexto civil-político como alfa e ómega da civilização
49
. Como salientaram alguns, o
fascismo foi-se constituindo como ideologia universal. Daí também a desvinculação da
Nação no sentido de comunidade com uma estrutura histórica herdada e uma ordem
própria autónoma imperativas.
O desenvolvimento de Ideias de Império e de Ecumene Universal com um tal sentido de
extensão da vida em polis ocupava a imaginação político-constitucional do estrato
intelectual fascista. consolidado o regime fascista, podia, por exemplo, ser sugerido
que o telos final do projecto fascista consistiria numa ordem mundial baseada num
46
Carlo Costamagna, Storia e Dottrina del fascismo, cit.
47
Benito Mussolini, Doutrina do Fascismo, cit., p. 30, nota 2 (reproduzindo «mensagem do ano IX aos
directorios federais convocados no palacio Venezia em 27 de Outubro de 1930»).
48
Dante Germino, Italian Fascism in the History of Political Thought, em Midwest Journal of Political Science,
vol. 8, n.º 2., 1964, pp. 119 e ss.
49
Emilio Gentile, Qu’est-ce que le fascisme? Histoire et interpretation, cit, p. 122.
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princípio de universalização de um regime de civilidade comunitária. Segundo um A.
Volpicelli, a eticidade a superação incessante de separações e antagonismos seria a
substância e a norma interna do Político; a necessidade humana de incluir os outros
homens no rculo da humanidade conduziria a uma vida espiritual comum e a um regime
de paz. O Telos da política não seria o nacionalismo, mas a articulação dos povos numa
unidade orgânica
50
.
Fascismo e catolicismo: o Estado Ético e a “virtualidade
transcendentista”
Em discurso proferido logo em 1930, Giuseppe Bottai definiria o Fascismo como
«uma religião política e civil (…), a religião de Itália»
51
.
Não obstante, como revolução nacionalista de base “idealista -espiritualista”, o fascismo
afirmava-se favorável ao “facto religioso tradicional”, concretamente à dimensão
religiosa cristã-católica da tradição nacional italiana. A Doutrina do Fascismo codificou
explicitamente uma tal ideia:
«O Estado fascista não permanece indiferente perante o facto
religioso em geral e a religião positiva, que é o catolicismo italiano.
O Estado não tem uma teologia, mas uma moral. O Estado fascista
não cria um seu “Deus” próprio, como em tempos Robespierre, no
cúmulo da insensatez da Convenção, quis fazer; nem procura em
vão, como o bolchevismo, expulsar a religião das mentes dos
homens; o Fascismo respeita o Deus dos ascetas, dos santos, dos
heróis, e também Deus tal como visto e adorado pelo coração
simples e genuíno do povo»
52
.
Em 9 de Janeiro de 1938, no Palazzo Venezia, perante mais de 60 bispos e 2.000 rocos,
o Duce retrataria a ordem fascista como ordem baseada num princípio de «colaboração
cordial» entre o Estado e a Igreja e a Itália fascista como «Nação católica» e «reduto da
civilização cristã»
53
.
50
Cfr. David D. Roberts, Myth, Style, Substance and the Totalitarian Dynamic in Fascist Italy, em
Contemporary European History, vol. 16, n.º 1, 2007, p 31, referindo-se a Arnaldo Volpicelli, prefácio a Carl
Schmitt, Principiî politici, ed. Delio Cantimori, G. C. Sansoni, Florence 1935, vii. Sobre o corporativismo
como gramática universal (susceptível de construir uma ordem europeia e uma ordem universal) veiculada
pelo regime fascista, cfr. também: A. Volpicelli, Corporazione e ordinamento internazionale, em Archivio de
Studi Corporative, vol. V, n ºs III-IV, 1934, pp. 329 a 339; Luca Nogler, Corporatiste Doctrine and the “New
European Order”, em Christian Joerges/Navraj Singh Ghaleigh (dir.), Darker Legacies of Law in Europe,
Hart Publishing, Oxford, 2003, pp. 275 a 304.
51
Apud Emilio Gentile, Qu’est-ce que le fascisme? Histoire et interpretation, cit, p. 255.
52
Trata-se do parágrafo 12 da referida parte desse texto “codificante” elaborado pelo Duce cfr. Benito
Mussolini, Doutrina do Fascismo, cit., p. 29.
53
Cfr. Emilio Gentile, New idols: Catholicism in the face of Fascist totalitarianism, em Journal of Modern Italian
Studies, vol 11, n.º 2, 2006, p. 161.
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Com a assinatura a 11 de Fevereiro de 1929 dos Acordos ou Pactos Lateranenses entre
a Itália e a Santa Sé, o regime fascista cooptaria o cristianismo católico como conteúdo
da ordem, num momento que chegaria mesmo a ser marcado pela adopção de um
paradigma de direito blico cristão
54
. Uma concordata passaria a regular as relações
entre Estado e Igreja no País. Previa-se em tal instrumento que o ensino da doutrina
cristã fosse fundamento e coroamento da instrução pública ministrada nas escolas
elementares e nas escolas secundárias, de acordo com programas acordados entre o
Estado e a Igreja católica e
.
que o direito canónico matrimonial fosse recebido pelo
ordenamento do Estado
55
. Um tratado consagrava a fundação do Estado da Cidade do
Vaticano sob soberania do Sumo Pontífice e o reconhecimento pela Santa Sé do Reino de
Itália «sob a dinastia de Savoia, com Roma capital do Estado italiano». Quer na
Concordata, quer no Tratado, no artigo primeiro de cada um desses documentos,
reafirmava-se um princípio de confessionalidade do Estado, sendo a religião católica
qualificada de única religião oficial do Estado
56
.
O regime fascista instituir-se-ia, porém, explicitamente como ordem fundada numa base
moral independente da religião (Estado ético). Numa “novação” da “tradição”, o
cristianismo católico era conscientemente, teoricamente, recebido como conteúdo de
ordem a partir de um exterior auto-referencial (soberania), por um Estado que se auto-
interpretava como Norma Normarum e nessa qualidade se autovinculava, assim se
repetindo a fórmula original do Estado moderno.
Não era outro o pensamento do negociador-mor da redefinição da relação entre o Estado
e a Igreja, pensamento aliás precocemente formado. Eis palavras de Alfredo Rocco de
1914:
«Os Nacionalistas não acreditam que o Estado deva ser um
instrumento da Igreja; acreditam, ao invés, que o Estado deve
afirmar a sua soberania também em relação à Igreja. Uma vez que,
no entanto, reconhecem que a religião e a Igreja Católicas são
factores importantíssimos da vida nacional, desejam zelar pelos
interesses católicos na medida do possível, salvaguardando sempre
a Soberania do Estado. E nesta fase da vida italiana, tal protecção
deve tomar a forma de respeito pela liberdade de consciência dos
católicos italianos, contra as perseguições anti-religiosas dos
democratas anticlericais. No futuro, talvez seja possível ir mais
longe e estabelecer um acordo com a Igreja Católica, mesmo que
apenas tácito, pelo qual a organização católica poderia servir à
nação italiana para sua expansão no mundo»
57
.
54
Sobre as relações entre o regime fascista e a Igreja Católica e o catolicismo, ver por todos: John Pollard,
Catholicism in Modern Italy, Religion, Society and, Politics since 1861, Routledge, London/New York, 2008,
pp. 69 a 107; John Pollard, The Vatican and Italian Fascism, 1929-32, A study in conflict, Cambridge
University Press, Cambridge/New York, 1985; Alice A. Kelikian, The Church and Catholicism, em Adrian
Lyttelton, Liberal and Fascist Italy, Oxford University Press, Oxford/New York, 2002, pp. 44 a 61.
55
Uma Convenção financeira compensava ainda a Igreja pela perda dos Estados Papais.
56
Os Pactos Lateranenses estão disponíveis em:
http://www.vatican.va/roman_curia/secretariat_state/archivio/documents/rc_seg-st_19290211_patti-
lateranensi_it.html.
57
Apud Michael Burleigh, Sacred Causes: The Clash of Religion and Politics, from the Great War to the War
on Terror, HarperCollins, New York, 2007, p. 66.
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A 13 de Maio de 1929, por ocasião da apresentação dos Pactos de Latrão à Câmara dos
deputados, Mussolini descreveria assim a essência do Estado Fascista:
«[O] Estado fascista reivindica plenamente o seu carácter ético; é
católico, mas é fascista, na verdade acima de tudo, exclusiva e
essencialmente fascista. O catolicismo integra-o, declaramo-lo
abertamente, mas ninguém sonhe em trocar-nos as cartas na mesa
com alegações de filosofia e metafísica. É inútil querer negar o
carácter moral do Estado fascista, porque me envergonharia de falar
nesta tribuna se não me sentisse o representante da força moral e
espiritual do Estado. O que seria o Estado se não tivesse um espírito
próprio, uma moral própria, que é a que dá força às suas leis e em
virtude da qual consegue fazer-se obedecer pelos cidadãos?»
58
.
Nos termos da doutrina para-oficial do Estado Ético, dado o homem se exprimir/dever
exprimir na sua integralidade na comunidade política, a religião estava/devia estar
integrada no espaço da polis como sua componente “interna”. Segundo Giovanni Gentile,
«[O] Estado fascista é um Estado ético, uma vez que a estrita,
completa e concreta vontade humana não pode o ser ética. É
também um Estado religioso. Não significa isto que seja um Estado
confessional, mesmo que ligado com tratados e concordatas a
determinada Igreja, como está ligado o Estado italiano. A limitação
que tais tratados e concordatas trazem à liberdade do Estado (que
no Estado moderno, isto é, segundo a consciência moderna, não
pode deixar de ser liberdade absoluta) é uma autolimitação
semelhante à que o espírito humano pratica para se fixar numa
forma concreta; semelhante àquela que faz com que o italiano não
abdique da sua liberdade quando, para falar, é obrigado a falar uma
língua determinada à qual deve sujeitar-se por possuir uma
gramática. Na realidade histórica da nação, o Fascismo sentiu que
ser religioso equivale a ser católico. Para adequar o Estado à
personalidade do italiano, foi ao encontro da Igreja Católica, pôs fim
ao velho dissídio e pacificou nos ânimos pátria e religião sem nunca
ter deixado de manter intacta e intangível a sua autonomia frente à
Igreja. Por essa razão, reivindicou o direito à educação das novas
gerações que a Igreja, curadora das almas, reservava para si como
matéria da sua exclusiva competência»
59
.
58
Tal excerto do discurso de Mussolini pode ver-se reproduzido em Benito Mussolini, Doutrina do Fascismo,
cit., pp. 32 e 33, nota 12. «Uma guerra santa em Itália, nunca; os padres nunca mobilizarão os camponeses
contra o Estado», diria também o Duce. Sobre o pensamento de Mussolini em tema de religião, vide Didier
Musiedlak, Religion and Political Culture in the Thought of Mussolini, em Totalitarian Movements and Political
Religions, vol. 6, n.º 3, 2005, pp. 395 a 406.
59
Giovanni Gentile, A Filosofia do Fascismo, cit., p. 47.
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O posicionamento perante o catolicismo constituía, pois, assunto não de ordem
substantiva, mas de acidente histórico… Sendo o Estado o “lugar” do ético, o seu carácter
último não poderia nunca ser posto em causa:
«O Estado contém e garante todos os valores espirituais, incluindo
a religião; não pode admitir, sem se privar de todo o princípio de
soberania, poder superior a que essa por isso deva sujeitar-se em
alguma parte do conteúdo compreendido no seu domínio ético»
60
.
Uma atmosfera de tensão entre Estado e Igreja eclodiria no momento mesmo em que a
concordata é assinada, com Mussolini a proferir declarações sobre o cristianismo que o
Papa consideraria heréticas e que ameaçaram a ratificação da concordata. Mais tarde,
em 1931 e 1938, ocorreriam conflitos concretos em torno da problemática (do monopólio
em tema) da educação das novas gerações e o sobre os limites da acção social do
apostolado laical católico enquadrado pela Igreja Hierárquica (Acção Católica)
61
. Se bem
que a tensão explícita intensa tivesse sido pontual, e os referidos conflitos fossem in
extremis sempre “pragmaticamente” compostos, ficou patente a contradição
principiológica entre a doutrina fascista sobre o Estado (e o posicionamento deste em
face da Igreja), por um lado, e a doutrina católica, por outro
62
. Na encíclica Non Abbiamo
Bisogno promulgada em 29 de Junho de 1931, por exemplo, o regime fascista aparece
representado (contra o pano de fundo do que era visto como a sua tentativa de
«monopolizar completamente os jovens, desde a sua tenra idade») como «regime
baseado numa ideologia que claramente se resolve num verdadeiro, real culto pagão do
Estado», como «uma “Estatolatria”, que não está menos em contraste com os direitos
naturais da família do que está em contradição com os direitos sobrenaturais da
Igreja»
63
. Em declaração proferida em Castel Gandolfo, a 18 de Setembro 1938, Pio XI
assinalaria:
«se houver um regime totalitário de facto e de jure [sublinhado
nosso] é o regime da Igreja, porque o homem pertence
60
Giovanni Gentile, Fascismo e Coltura, Treves, Milão, 1928, pp. 173 e ss. Os escritos do filósofo, devido ao
seu carácter imanentista (a religião, por exemplo, era “resolvida” ou “superada” na filosofia, no humano-
espiritual definido imanentisticamente), não deixariam de figurar no Index elaborado pela Congregação do
Santo Oficio. A propósito da celebração da Concordata, Gentile definiria «o Duce do Fascismo», como «a
mais vigilante sentinela da essência e das características inalienáveis do Estado moderno» apud H. S.
Harris, The Social Philosophy of Giovanni Gentile, University of Illinois Press, Urbana, 1960, p. 199.
61
Em 1931, o governo patrocinaria a dissolução dos Clubes da Juventude Católica [já em 1927 havia estado
em acto uma orientação política de sentido idêntico em relação às organizações desportivas católicas]. Em
1938, estaria em causa a contrariedade da Acção Católica em relação às doutrinas raciais adoptadas pelo
Poder Fascista (vide infra). [Criada por Bento XV em 1915 a partir do movimento leigo católico italiano, Pio
XI confirmá-la-ia e universalizá-la-ia, procurando garanti-la nas concordatas celebradas durante o seu
pontificado.]
62
Registe-se também que a cultura católica não deixou de recear a criação de uma Igreja nacional com a
subordinação da Igreja ao Estado.
63
E também como «espécie de religião» e «farsa de religião» inconciliável e contrária à «doutrina e prática
católicas». A encíclica pode ser encontrada em
http://www.vatican.va/holy_father/pius_xi/encyclicals/documents/hf_p-xi_enc_19310629_non-abbiamo-
bisogno_it.html.
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inteiramente à Igreja, e deve pertencer a ela, dado que o homem é
uma criatura do Senhor»
64
.
Independentemente de saber se e até que ponto se registou uma tentativa de, não sem
nostalgia da unidade “pura” da “cidade antiga”, sobrepor uma nova liturgia ao quotidiano
italiano ou de fascização do catolicismo catolicismo como produto da romanidade , à
ordem fascista era certamente ínsita, pela abrangência mesma da sua ideia, a
possibilidade ou a virtualidade de um ethos comunitário substituir o cristianismo como
paradigma existencial, como gramática da existência colectiva
65
.
Em sentido inverso, porém, talvez se possa dizer, seguindo o filósofo Augusto Del Noce,
que, em última análise, no regime fascista não deixou de estar presente uma virtualidade
transcendentista cristã, uma virtualidade de reinterpretação do regime pela
transformação do modus vivendi que veio a ser estabelecido com a Igreja Católica numa
realidade verdadeiramente normativa hipótese que teria deixado de poder passar ao
acto a partir da entrada na guerra ao lado do Reich nacional-socialista. Em 1938, o
constitucionalista fascistíssimo Panunzio, por exemplo, na sua teoria geral do Estado
fascista (uma obra que tudo referia ao Estado…), podia sugerir a ideia, ainda que sem
sair de uma perspectiva idealista e sem se colocar (implícita ou explicitamente) num
ponto de vista cristão ou cristão-católico, de que na visão fascista do Estado este
constituiria (em contraste com o Estado Hegeliano) um penúltimo axiológico:
«[E]nquanto para Mussolini, tudo existe no Estado; nada fora do
Estado; nada contra o Estado; mas não é verdade que nada, não do
lado político, mas daqueloutro filosófico e moral, está acima do
Estado; para Hegel, ao invés, nada está acima do Estado, pela
simples razão que o Estado é tudo e Deus mesmo realizado no
mundo. (…) Pode e deve dizer-se, ao invés, que o Estado fascista
pertence ao ciclo da filosofia idealista transcendente, enquanto que
o Estado hegeliano é baseado na imanência, daí que este seja o
próprio Deus.(…) Orientada em direcção à transcendência é a fase
recentíssima do pensamento idealista italiano, daí a dissolução
“interna” da posição idealístico-actualística visível nos
representantes desta escola descendentes de Gentile. O idealismo
actualístico, invertendo-se a posição de Gioberti, que da
transcendência andou/caminhou em direcção à imanência, de Deus
64
Cfr. Emilio Gentile, New idols: Catholicism in the face of Fascist totalitarianism, cit., p. 163. Conceito similar
podia ser encontrado em outros universos de confissão cristã: vide Graeme Smith, Christian totalitarism,
em Political Theology, vol 3 n.º 1., 2001, pp 32 a 46.
65
O regime erigiria uma escola de Mística fascista em 1930 (e com Julius Evola, também a galáxia fascista
conheceria o seu filão minoritário explicitamente neo-pagão). Do regime fascista talvez se possa dizer o
que tem sido dito sobre a natureza do projecto teológico-político maquiavélico: «[P]or um lado geralmente
apoia uma ‘religião civil’ Cristã ou outra que promoverá “funcionalmente” solidariedade cívica. Por outro
lado, tenta fazer reviver uma sacralidade antiga, produzindo um novo mythos de heróis sem deuses (…)»
vide John Milbank, Theology and Social Theory: Beyond Secular Reason, 2.ª ed., Blackwell Publishing,
Oxford, 2006, p. 25.
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à História, faz hoje o caminho inverso do humano ao divino, da
História à Ideia»
66
.
O compromisso histórico com as forças representativas da Tradição, sempre reafirmado
in extremis, não ultrapassou jamais, porém, um nível de modus vivendi, revelando-se
como intrinsecamente precário. O regime não trouxe a «restauração cristã da sociedade
italiana num sentido católico» almejada por Pio XI em 1929.
Tempos terminais da experiência fascista: mimesis em relação ao
paradigma político-constitucional Nacional-Socialista?
Antes de terminarmos a digressão que temos vindo a empreender pelo chamado vinténio,
cabe agora dizer algumas palavras sobre os últimos tempos da experiência político-
constitucional fascista, tematizando o problema de saber se o paradigma constitucional-
axiofânico que nela se foi definindo sofreu ou não uma transmutação, designadamente
devido a uma mimetização da fórmula político-constitucional que cristalizou no Reich
nacional-socialista uma fórmula assente na elevação a absoluto de uma comunidade
política de base racial identificada com uma pessoa histórica concreta (um indivíduo-
comunidade), como haverá ocasião de comprovar no próximo capítulo.
O fascismo foi uma construção juridicista e, porventura, constitucionalista ao seu modo.
As alterações progressivas ao Estado Albertino alterado sobretudo enquanto
“Constituição total” e não tanto enquanto conjunto de enunciados linguísticos literais
não deixaram de observar as regras de transformação constitucional por este
inicialmente previstas ou as regras de transformação constitucional a cada momento
consolidadas (transformação constitucional formalista)
67
. Durante o vinténio, e pela
primeira vez na história constitucional italiana, distinguir-se-ia, em termos de identidade
e força formais, a legislação constitucional da legislação ordinária, tendo emergido um
verdadeiro direito constitucional (formal): efectivamente, pela Lei n.º 2693 de 9 de
Dezembro 1928 uma das grandes leis de reforma do Estatuto Albertino , a legislação
constitucional adquiriu (ex vi art. 12.º) identidade formal contraposta à da legislação
ordinária, estabelecendo-se um procedimento especialmente qualificado para a sua
emanação. A dinâmica (e o sentido) dos processos de transformação constitucional e o
próprio ambiente político do final do regime tendiam a apontar para que o “estatuto do
político” viesse a ser definido, segundo o cânone do constitucionalismo, numa
constituição escrita originariamente fascista ou passasse a constar de um Estatuto
Albertino totalmente fascizado. A ordem do dia do Grande Conselho do Fascismo
aprovada a 14 de Março de 1938, após deliberação sobre a constituição da Câmara dos
Fasci e das Corporações,
66
Cfr. Sergio Panunzio, Teoria generale dello Stato fascista, cit. pp. 18 e ss., nota 2, remetendo para as
interpretações do idealismo de Balbino Giuliano (Ministro da Educação Nacional 1929-1932) e do filósofo
Ruggero Rinaldi.
67
No entender maioritariamente esmagador da doutrina jurídico-constitucional e na representação dominante
na classe política do liberalismo (e do fascismo), o Estatuto Albertino, a Constituição que enquadrava o
“jogo político” desde a fundação do Reino de Itália, era tido como uma Constituição flexível, como possuindo
uma força formal que se não distinguia da força formal da legislação ordinária.
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«decide que se deve proceder ao completamento/à conclusão da
reforma constitucional com a actualização do Estatuto do Reino»
68
.
O direito constitucional parecia estar a ser (re)imaginado como técnica de maximização
do poder estadual (do poder do Governo) e de integração da “sociedade” no e através
do Estado. A Lei n.º 2693 de 9 de Dezembro 1928, ao estabelecer o novo lugar reforçado
do direito constitucional formal, não deixava de revelar as novas afectações essenciais
deste, assim “desocultando” o padrão-orientador profundo das transformações
constitucionais actuadas pela classe política fascista: do círculo de matérias agora
delimitadas como constitucionais não constavam os direitos fundamentais (deixando
estes, portanto, de relevar do direito constitucional positivo obra da Revolução fascista),
adquirindo estatuto constitucional as matérias atinentes à organização do Estado, e no
processo de emanação de leis constitucionais passando a intervir uma instituição-chave
do Estado-Partido, o
Gran Consiglio del Fascismo, por essa mesma lei erigido em órgão
constitucional.
Como assinalaram os constitucionalistas fascistissimi, o Estado Fascista, dado constituir
concretização histórica mais perfeita e acabada do conceito de Estado, era e devia ser,
num grau superlativo, «Estado Jurídico» (Estado como “domínio” regido por uma ordem
de normas positivas escritas estabelecendo os processos da sua própria mudança):
dando corpo, como nenhuma outra realização da ideia de Estado, a um centro-director
integrador da Comunidade política, o Estado fascista necessitava, também como
nenhuma outra comunidade política estadual, de uma “arquitectura formal” (uma ordem
de regras jurídicas) organizadora (dado o vel sem precedentes de concentração de
poder nele atingido, dada a maior complexidade da sua organização e dada a extensão
das suas afectações funcionais)
69
. Tais autores não deixaram de formular sugestões
tendentes a maximizar a dimensão de Estado Jurídico do Estado Fascista. Para além de
um reforço do poder judiciário em geral, ambos propuseram a instituição de mecanismos
de controlo jurisdicional da constitucionalidade das leis, como modo de assegurar a
coerência da ordem jurídica (passível de ser posta em causa pelo crescente pluralismo
68
Atestando a vocação constitucional do fascismo, os últimos tempos do vinténio foram dominados pelo
debate, no círculo das elites políticas e da comunidade jurídica (designadamente dos seus sectores mais
ligados à classe política fascista), da questão da codificação, em um documento escrito dotado de especial
valor formal, dos princípios fundamentais do ordenamento jurídico fascista hipótese encarada e sentida
como compensação por uma constitucionalização (completa, verdadeira e própria) politicamente (ainda)
não factível. Na sequência, aliás, desse debate, a célebre e modelar Carta del Lavoro (documento que
declarava grandes princípios materiais fascistas de ordenação da convivência na Polis) seria explicitamente
feita, por processo legislativo, juridicamente vinculativa (por Lei de 30 de Janeiro de 1941).
69
Segundo detalhava Costamagna, «a natureza integral e totalitária» do «Stato Nuovo» postulava uma ordem
jurídica (uma ordem normativa formal) quantitativa e qualitativamente mais jurídica, porque mais completa
e mais intensa (em relação às ordens estaduais típicas): tal ordem seria tendencialmente omnicompreensiva
(tratar-se-ia de uma ordem normativa tendencialmente mais concretizadora da completude existência de
respostas sistémicas para a regulação de questões que cabem dentro do potencial regulativo do sistema
que em abstracto e idealmente podia ser apontada como propriedade intrínseca de qualquer
ordenamento jurídico); em tal ordem, as normas imperativas formais emanadas pelo poder multiplicar-se-
iam e a actividade legislativa obedeceria em grau superlativo a um princípio de especialização (decorrente
da distribuição e hierarquização de tarefas imanente à construção de um novo centro de poder político
incorporador da “sociedade”); para além disso, na nova ecologia constitucional a ideia de dever de
obediência ao direito positivo seria restaurada (no quadro da acção de integração ideológica promovida pelo
poder e como consequência da reconstrução do Estado). Vide Carlo Costamagna, Storia…, op. cit., pp.
163 a 165 e 323. Cfr. também Sergio Panunzio, Teoria…, op.cit., p. 49.
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de fontes normativas) e de tutelar os “valores” objectivos da comunidade política vertidos
no direito constitucional
70
.
Com o benefício da retrospecção, talvez se possa dizer que a ordem fascista in fieri
parecia tender a concretizar-se num centro de poder pessoal rodeado de instituições
subordinadas. Nos tempos finais do regime registaram-se mesmo afloramentos de uma
concepção bio-política da ordem, nisso se tendo feito sentir a influência das ideias alemãs
do hrerstaat. A nível da comunidade jurídica, no final do regime, certos operadores
jurídicos representativos tenderam a “descrever” os poderes da sede de direcção da vida
do Estado de Benito Mussolini em termos não especialmente legais-racionais como
poderes não estritamente internos a uma ordem jurídico-formal. Da Lei n.º 129 de 19 de
Janeiro de 1939, dispositivo normativo no qual o Chefe do Governo aparecia designado
como Duce del Fascismo, poder-se-ia extrair suporte normativo para a ideia de que os
“deputados” se achavam vinculados às manifestações de vontade “extra-jurídico-
formais” de Benito Mussolini
71
.
Ao longo do vinténio cristaliza um Estado quintessencialmente “mono-árquico”, é certo,
mas não propriamente uma doutrina constitucional similar à doutrina alemã do
Führerstaat. Ao contrário do sucedido na Alemanha Hitleriana, o constitucional não foi,
porém, identificado com uma pessoa histórica concreta
72
. Na doutrina jurídica, o símbolo
Duce remetia para o papel excepcional de constituinte, assumido por Mussolini, um
constituinte de uma ordem eminentemente jurídico formal; e/ou era figura configurada
como instituição provisoriamente ocupada por um incumbente historicamente
excepcional. Nas palavras de Carlo Costamagna:
«[O] problema do “Chefe” é o mais delicado de todos os problemas
postos pela organização do Estado Novo. Não convém confundi-lo
com o problema do Duce, quer dizer do fundador do regime, nem
deixar-se confundir pelo facto de que o Estado Novo, nascendo de
uma revolução ainda em curso, se actualiza contudo num processo
constituinte que implica a ditadura daquele homem de excepção por
meio do qual a história cumpriu a sua tarefa: a criação da ordem
nova. E, na realidade, uma vez desaparecidas as razões da ditadura,
restam as razões da unidade. Se o Estado novo se deve tornar um
modo de ser permanente, quer dizer, um sistema de vida, não
poderá, dado o facto mesmo da sua estrutura hierárquica, dispensar
a função de Chefe, mesmo que este último não tenha as
extraordinárias proporções Daquele que promoveu a revolução»
(1938)
73
.
70
Vide L. Paladin, op. cit., p. 900.
71
Armando Jamalio, L’“interpretazione autentica” del Duce, em Rivista di Diritto Publico. La Guistizia
Amministrativa, Parte I, n.º 22, 1939, pp. 302 a 325.
72
Apesar da divulgação da conhecida máxima «Mussolini tem sempre razão» (vide o n.º VIII do Decálogo do
Miliciano Fascista; no n.º X desse catálogo lia-se ainda «Uma coisa há que deve ser-te preciosa acima de
tudo: a vida do Duce»). Talvez se pudesse sustentar que durante o vinténio tendeu a cristalizar um
autónomo mito Mussoliniano para além da ideia ordenadora fascista, um mito emergente também como
“criação” “bottom-up” popular-messiânica não fascista.
73
Carlo Costamagna, Storia…, op. cit., p. 419. A posição de líder do fascismo apareceu pela primeira vez
consagrada formalmente no Estatuto do Partido Fascista em 1926: segundo a sua 1.ª Regra: «As
hierarquias do P.N.F. são: 1. o Duce…». A Lei n.º 240 de 2 de Abril de 1938 sublinharia de forma
particularmente simbólica a centralidade da figura do Duce na ordem in fieri: a dignidade de Marechal do
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Por outro lado, nos tempos terminais do vinténio, a existência político-constitucional
começa a ser construída de acordo com uma ideia racial. Uma deliberação do Grande
Conselho do Fascismo de 6 de Outubro de 1938, proclamando uma «carta della razza»,
constituiria o ponto de partida. Seguir-se-ia a emanação de uma legislação racial que
derrogaria total e definitivamente a ideia liberal de igualdade transportada pelo Estatuto
Albertino. Foram impostas proibições específicas dirigidas aos “cidadãos” de «raça
hebraica», comprimindo a sua capacidade jurídica
74
. Proibir-se-ia mesmo (Decreto Real
n.º 1728 de 17 Novembro 1938) a celebração de matrimónio entre cidadão italiano de
raça ariana e pessoa pertencente a outra raça; em derrogação ao regime concordatário,
quando estivesse em causa a celebração de matrimónio católico, tal matrimónio não
adquiriria efeitos civis e não devia ser transcrito. O matrimónio entre cidadão italiano e
pessoa de nacionalidade estrangeira é subordinado à autorização do Ministro do Interior,
sendo proibido aos funcionários civis e militares do Estado, dos entes locais, do PNF, bem
como de qualquer outra administração. Não obstante a utilização legislativa de categorias
como raça ariana e raça hebraica
75
, abrir-se-ia também um espaço de debate sobre o
sentido e alcance do racismo que se queria especificamente italiano, acerca da sua
fundação mais ou menos material-“sanguínea” ou cultural-espiritualista. Subjacente a
esta específica linha de transformação político-constitucional final, parece ter estado em
causa, pelo menos em termos de estratégia mussoliniana, a elaboração e declinação de
um novo mythos de mobilização nacional, de um mythos de elevação da auto-imagem
(da consciência) nacional italiana
76
. Os tempos terminais do vinténio ficariam, aliás,
marcados por um momento de intensificação da produção de uma subjectividade
comunitária, momento de que foi parte e parcela a célebre campanha anti-burguesa
77
.
Seja como for, a declinação de uma ideia racial, ao arrepio de anteriores e célebres
proclamações mussolinianas de «soberano desprezpor «certas doutrinas vindas de
além alpes», não deixa de poder ser interpretada como comprovando a intuição do
constitucionalista alemão H. Heller segundo a qual a gramática político-constiucional
Império seria por ela concedida, nos termos do seu art. 2.º, paritariamente «a S.M. o Rei Imperador e
Benito Mussolini, Duce do Fascismo».
74
Por exemplo, não mais poderiam: ser tutores ou curadores de menores ou incapazes de raça não hebraica;
deter a propriedade ou exercer a gestão de empresas declaradas de interesse para a defesa da nação, ou
que tivessem mais de cem empregados (nem delas serem administradores ou revisores de contas); ser
proprietários de terrenos excedendo um certo valor; ter como empregados domésticos cidadãos de raça
ariana; frequentar o ensino de qualquer ordem e grau (os livros de texto cujos autores fossem de raça
hebraica foram também proibidos). Viriam ainda a ser excluídos das forças armadas, da administração
pública, do exercício de actividades relativas a representações e espectáculos, do comércio de objectos
antigos e de arte, da indústria tipográfica, do comércio ambulante; vedar-se-lhes-ia a possibilidade de
publicar necrologia, e de inserir o nome nas listas telefónicas. Foram estabelecidos limites específicos à sua
faculdade de testar. A admitida possibilidade de revogação da cidadania atribuída depois de 1 de Janeiro
de 1919 afectá-los-ia. No contexto do envolvimento italiano na 2.ª guerra mundial, a partir de 1940, várias
disposições do governo estabeleceriam medidas de internamento e de expulsão tendo como objecto judeus
estrangeiros.
75
Nos termos do R.D.L. de 5 Setembro de 1938, n.º 1390, era considerado de raça hebraica todo aquele
cujos progenitores fossem ambos de raça hebraica, ainda que professasse outra religião. Posteriormente,
o R.D. n.º 1728 de 1938 consideraria de raça hebraica quem nascesse de matrimónio misto e tivesse
professado o judaísmo, bem como todo aquele que pertencesse à religião hebraica a 1 de Outubro de 1938.
Sobre esta dimensão da “revolução constitucional” fascista, ver S. Labriola, la costituzione autoritaria, cit.,
pp. 269 a 271.
76
Aaron Gillette, Racial Theories in Fascist Italy, Routledge, London/New York, 2002.
77
Contexto em que se inscreveram não só mudanças de mores (abandono do tratamento na segunda pessoa
do plural) e militares-coreográficas (adopção do passo romano), bem como a emanação de um novo
estatuto do PNF, uma reordenação da organização de juventude, e uma reforma da educação elaborada
por Giuseppe Bottai (com a nova Carta della Scuola de 1939).
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fascista se caracterizaria pela ausência de uma «dogmática estática de valores»
(impossível de garantir sem uma ancoragem num plano de princípios ao catolicismo; da
concentração de valor na comunidade política considerada em si e por si e desligada de
uma norma que a transcendesse e de carácter indisponível não poderia deixar de resultar
a concessão ao poder político de uma liberdade virtualmente incondicional para ir
construindo a ordem)
78
.
A República Social Italiana (Saló)
Para além do vinténio, o fascismo italiano conheceria ainda uma outra encarnação
político-constitucional. Referimo-nos à chamada República Social Italiana. Antes de
terminarmos este primeiro capítulo consagrado ao “constitucional” fascista, convém,
pois, que atentemos na República de Saló, de modo a averiguar se e até que ponto
introduziu solução de continuidade em relação aos padrões constitucionais-axiofânicos
que atrás realçámos.
Em 29 de Setembro de 1943, «dá-se icio ao funcionamento do novo Estado fascista
republicano» (citando exactos termos de um comunicado oficial desse dia). Até que a
sua definitiva forma constitucional fosse aprovada numa «Constituinte», o Duce
assumiria «as funções de Chefe do novo Estado fascista republicano»
79
. O projecto
fascista deveria assumir agora uma nova forma concreta um «Estado Nacional do
trabalho» , mas continuava a estar em causa uma decisão axiofânica fundamental por
um Estado (monoárquico-)integral-integrador
80
. Um olhar sobre o projecto constitucional
intitulado «Constituição da República Social Italiana», o documento destinado a valer
como Constituição da nova República (mas que não chegaria a entrar em vigor), revela-
o
81
:
Os dois primeiros artigos “relembravam” a ideia fascista de comunidade política (uma
comunidade política tida como fim de si própria e monista-absorvente). Segundo o art.
1.º.
«[A] nação italiana é um organismo político e económico no qual se
realiza plenamente a estirpe com as suas características civis,
religiosas, linguísticas, jurídicas, éticas e culturais. Possui vida,
vontade e fins superiores em potência e durabilidade aos dos
indivíduos, isolados ou agrupados, que em qualquer momento dele
fazem parte».
O art. 2.º especificava
78
Vide Hermann Heller, Europa y el Fascismo, vers. castelhana, Editorial España, Madrid, 1931.
79
Sobre a República de Saló, ver por todos: Giorgio Bocca, La Repubblica di Mussolini, Oscar Storia Mondadori,
Milano, 1994 reimp. 2009, pp 211 a 213; 155 a 170 e Guglielmo Negri, Il Quadro Costituzionale, Tempi e
istituti della libertà, seconda edizione, Giuffrè, 1995, pp. 66 e ss.
80
Para utilizar uma expressão «Stato nazionale del lavoro» do pós-fascista Movimento social italiano.
81
O referido projecto pode ser visto em G. Negri e S. Simoni, Le Costituzioni inattuate, Editore Colombo,
Roma 1990. O manifesto aprovado pelo primeiro congresso nacional do Partido Republicano Fascista
realizado em Castelvecchio em Verona (o célebre Manifesto de Verona de 17 Novembro de 1943), continha
também indicações de política constitucional.
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Sobre a ordem constitucional no/do fascismo italiano
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«[O] Estado italiano é uma República social. Constitui a organização
jurídica integral da Nação. A República social italiana tem como fins
supremos: a conquista e da preservação da liberdade da Itália no
mundo, enquanto eles se desenrolam e desenvolver todos os seus
poderes e desempenhar no consórcio internacional, fundada sobre
a justiça, a missão civil confiada por Deus, marcado por 27 séculos
de sua história e que vivem em consciência nacional o bem-estar do
povo trabalhador, mediante a sua elevação moral e intelectual, o
incremento da riqueza do país e equitativa distribuição desta, em
razão do rendimento de cada um na comunidade nacional»
82
.
Nele se consagrou uma declaração de direitos e deveres (arts. 89.º a 101.º), na qual aos
direitos subjectivos, paradoxalmente tendo em conta a sua matriz genética, era aposta
uma teleologia “objectiva” nacional: de facto, nos termos do art. 93.º
«Os direitos civis e políticos o atribuídos a todos os cidadãos. Todo
o direito subjectivo, blico e privado, importa/implica o dever de
exercício em conformidade com o fim nacional para que foi
concedido. A este tulo o Estado garante e tutela o seu exercício»
83
.
Não faltava a repetição do “ingrediente” religião de/do Estado: nos termos do artigo 6.º
«[A] religião católica apostólica e romana é a única religião da
República Social Italiana»
84
.
A ordem política era agora directa e imediatamente construída a partir da figura do Duce,
mas em termos da institucionalização da mesma. A instituição Duce era configurada
como centro director do Estado (vide arts 35.º e ss), mantendo-se, no entanto, um
pluralismo orgânico na estruturação dos poderes e das funções do Estado. O Duce
exercitaria o poder executivo directamente e por meio do Governo (que era órgão
autónomo, mas sendo os Ministros e o Chefe do Governo por ele nomeados vide arts.
45.º e 49.º a 56.º). O poder legislativo exercê-lo-ia em colaboração com uma «Câmara
de representantes do Trabalho» (Camera dei Rappresentanti del Lavoro), eleita por
sufrágio universal e representando o povo trabalhador (vide art. 17.º a 34.º); e também
82
No chamado Manifesto de Verona dizia-se n.º 9 que a «Base da República Social e seu objecto principal
é o trabalho manual, técnico, intelectual, em todas as suas manifestaçõe. Nele se sugeria n.º 6 «a
participação nos lucros por parte dos trabalhadores». Posteriormente, o Decreto-Lei n. 375 de 12 Fevereiro
1944 daria passos concretos em direcção à socialização das empresas.
83
No ponto 10.º do manifesto de Verona, podia ler-se: «A propriedade privada, fruto do trabalho e poupança
individuais, integração da personalidade humana, é garantida pelo Estado. Não deve tornar-se uma
desintegração física e moral da personalidade de outros homens, através da exploração do seu trabalho».
84
Nos termos dos arts 7.º e 8.º, eram permitidas outras religiões, desde que não observassem princípios e
ritos contrários à «ordem e moralidade pública»; o culto público estaria autorizado, salvo limitações e
responsabilidades estabelecidas por lei. No manifesto de Verona, dizia-se: «a religião da República é a
Católica Apostólica Romana. Qualquer outro culto que não contraste com a lei é respeitado».
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Sobre a ordem constitucional no/do fascismo italiano
Pedro Velez
95
com o Governo art. 40.º
85
. Curiosamente, o poder “simbólico” do Duce
constitucionalmente consagrado incluía mesmo o poder de conceder tulos de nobreza
(art. 48.º), o que se afigura original do ponto de vista da história constitucional.
Previa-
se também a existência de uma Assembleia Constituinte definida como representante
das «forças vivas da Nação», e construída como lugar de expressão de instituições
estaduais e de organizações societais reconhecidas pelo Estado, à qual caberia: eleger o
Duce de sete em sete anos (só podendo este ser reeleito por uma vez por vontade de
Mussolini, parece), alterar o direito constitucional e pronunciar-se sobre magnas
questões de interesse nacional a pedido do Duce ou (de uma maioria de dois terços) da
Câmara dos Representantes (arts 14.º a 16.º).
Conclusões
Os regimes do entre-guerras habitualmente classificados como «regimes não-
democráticos de direita» puderam destacar-se, característica e genericamente, no mapa
da política moderna, mais precisamente num mapa de grandes formas político-
constitucionais(-religiosas), pela identificação mesma da comunidade política,
considerada em si e por si, como bem supremo. Se em todos esses regimes a comunidade
política gozou do estatuto fundante e ordenador de bem eminente, nem em todos,
porém, esta constituiu um bem absoluto (pensamos, por exemplo, em certos
“constitucionalismos autoritários” que ainda transportavam um ingrediente de
“metafísica política” liberal), sendo que algumas ordens político-constitucionais se
estruturaram ou limitaram por referência a uma norma cristã-católica além do político (o
chamado Estado austríaco ou o segundo franquismo, por exemplo)
86
.
Do regime fascista pode dizer-se ter-se constituído elevando a comunidade política a
verdadeiro absolutum, tendo sido considerada algo de incondicionalmente valioso e como
referência ordenadora abrangente e omnicompreensiva. Vimo-lo atrás: o processo de
(re)institucionalização fundamental por que o regime fascista se definiu obedeceu a uma
ideia eminentemente estatal-nacional; para além disso, pôde também ir sendo construída
uma ortodoxia pública na qual o Estado figurou como princípio absoluto; no terreno das
negociações entre o político e o religioso(-tradicional), vital para a cristalização do
regime, a auto-referencialidade da principiologia fascista e o seu carácter de ultima ratio
ficou patente
87
. Foi como se o tema que esteve subjacente às novas experiências
constitucionais do entre-guerras se tivesse afirmado aqui, nuamente, como princípio-
reitor exclusivo e absoluto.
85
Cabendo-lhe o poder de nomear os juízes, devendo a lei organizar a organização judicial (giurisdizione)
vide art. 61.º e ss.
86
Sobre isto ver também, para além da nossa dissertação de doutoramento (Pedro Velez, Constituição e
Transcendência: os casos dos regimes comunitários do entre-guerras…), Pedro Velez, On the modern-
secular religious City: a theologico-political mapping and prospective, em Negócios Estrangeiros, N.º 18,
2010, pp. 217-238 - http://idi.mne.pt/images/rev_ne/2010_12_n_18.pdf .
87
Aqui e ali, parece apontar-se, mais ou menos explicitamente, para uma caracterização da essência do
regime fascista italiano como projecto de actualização superlativa da ideia de Estado vide supra: Marcel
Gauchet, À l'épreuve des totalitarismes…, cit., pp. 348 e ss. (capítulo VIII, «Le fascisme en quête de lui-
même»); David D. Roberts, The totalitarian experiment in twentieth-century Europe, op. cit., pp. 271 e ss.
Pensa-se também na literatura do entre-guerras: vide Rudolf Smend, Constitucion y Derecho Constitucional,
Centro de Estudios Constitucionales, Madrid, 1985. Para uma topografia dos olhares sobre o fascismo
italiano, ver por todos Emilio Gentile, Qu’est-ce que le fascisme? Histoire et interpretation, versão francesa,
Gallimard, Paris, 2004, maxime pp. 67 e ss.
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Sobre a ordem constitucional no/do fascismo italiano
Pedro Velez
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Dado o seu carácter universal-civilizacional, cabe mesmo especular se o fascismo italiano
não terá constituído, pelo menos virtualmente ou vocacionalmente, uma das novas
gramáticas da existência colectiva de tipo mais ou menos puro que tenderam a cristalizar
na modernidade, um dos projectos de
«novos consensos sobre o bem vocacionado para substituir o
consenso medieval sobre o bem»
88
.
88
Para utilizar expressões e intuições de William T. Cavanaugh em Killing For The Telephone Company: Why
The Nation-state Is Not The Keeper Of The Common Good, em Modern Theology, vol. 20, n.º 2, 2004, p.
418, nota 59.
OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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LA PRODUCCIÓN SOCIAL DE COMUNICACIÓN
CUANDO EL MUNDO SE GLOBALIZA
Olivia Velarde Hermida
ovelarde@ucm.es
Doctora en Ciencias de la Información por la Universidad Complutense de Madrid (España).
Profesora Titular de la UCM. Área de conocimiento: Sociología. Entre sus publicaciones se
encuentran: “La mediación comunicativa de las identidades individuales y colectivas”. Revista
Latina de Comunicación Social, 70, pp. 552 a 565. (2015) (Con Martín Serrano, M.) y
“Paradigmas de los efectos de las TIC en la cultura y en el conocimiento” en Revista Latina de
Comunicación Social, 70, pp. 347 a 379. (2015) (Con Bernete, F. y Franco, D.)
Francisco Bernete García
fbernete@ucm.es
Doctor en Ciencias de la Información por la Universidad Complutense de Madrid (España).
Profesor Titular de la UCM. Área de conocimiento: Sociología. Coordinador del Máster
Universitario en Comunicación Social. Entre sus publicaciones se encuentran: “Análisis de
contenido”, en Lucas, A. y Noboa, A (editores): Conocer lo social: estrategias y técnicas de
construcción y análisis de datos. Madrid: Editorial Fragua, 2014 y Designs for Social Science
Study of Globalized Future Scenarios”. International Journal of Humanities and Social Science Vol.
4, No. 11(1); September 2014 ISSN 2220-8488 (Print), 2221-0989 (Online); pp 93-108 (con
Velarde O.).
Resumen
Este trabajo se inscribe en el contexto de las investigaciones y ensayos que se ocupan de los
cambios producidos por la convergencia de la globalización y las TIC que la posibilitan. Retoma
los planteamientos teóricos de Manuel Martín Serrano para examinar algunas de las
transformaciones en la función mediadora de la comunicación pública asociadas a los avances
tecnológicos que se introducen en el Sistema de Comunicación. Se trata de desarrollos
técnicos que posibilitan el acceso a más informaciones, en muchos casos de forma inmediata,
pero no por ello facilitan necesariamente que el usuario tenga un mejor conocimiento de lo
que ocurre en el mundo. El uso actual de las TIC puede conducir a una reproducción de los
estereotipos en el seno de los grupos de afines; a un cerramiento de cada grupo, más que a
una apertura a grupos diferentes con los que dialogar y compartir las interpretaciones del
cambio del entorno.
Palabras clave
Globalización; Conocimiento; Representaciones; Humanización; Uso de las TIC
Como citar este articulo
Hermida, Olivia Velarde; García, Francisco Bernete (2016). "La producción social de
comunicación cuando el mundo se globaliza". JANUS.NET e-journal of International Relations,
Vol. 7, N.º 2, Noviembre 2016-Abril 2017. Consultado [en línea] en la fecha de la última
consulta, observare.autonoma.pt/janus.net/pt_vol7_n2_art6
(http://hdl.handle.net/11144/2785)
Artículo recebido en el 11 de Febrero de 2016 y aceptado para publicación en el 21 de
Septiembre de 2016
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La producción social de comunicación cuando el mundo se globaliza
Olivia Velarde Hermida y Francisco Bernete García
98
LA PRODUCCIÓN SOCIAL DE COMUNICACIÓN
CUANDO EL MUNDO SE GLOBALIZA
Olivia Velarde Hermida
Francisco Bernete García
Introducción
En el año 1986 se publicó La Producción Social de Comunicación, obra en la que Manuel
Martín Serrano desarrolla la Teoría Social de la Comunicación, cuyos fundamentos van a
redimensionar los análisis comunicativos desde un enfoque sociohistórico y
macrosociológico. Son análisis centrados en los vínculos existentes entre los cambios
históricos de las sociedades y las modalidades de comunicación pública que han aparecido
y desaparecido, desde la comunicación asamblearia hasta la comunicación por redes
informático-comunicativas (Bernete, 2011).
La obra citada introduce como un componente necesario para el análisis de los cambios
históricos de las sociedades, las sucesivas transformaciones de la comunicación pública,
en el campo de las tecnologías, de las organizaciones que tienen a su cargo la labor de
proveer de información a la colectividad, y de sus usos en cada comunidad. El escenario
por donde desfila la historia de ajustes y desajustes entre lo que les sucede a las
comunidades y la noticia que se da de lo que les sucede se abre con las primeras
organizaciones sociales, en las que se institucionaliza la producción social de
comunicación cuando se estabilizan las sociedades agrarias y militaristas; y sigue abierto
durante cuatro mil años hasta nuestro tiempo. Ahora es necesario entender la
transformación histórica que está en curso, relacionada con la revolución informático-
comunicativa, y que acabará remodelando, a escala universal, además del papel de las
informaciones y de las organizaciones, las formas de acción social (cfr. Bernete, 2011).
En la tercera edición de La producción social de comunicación publicada en 2004, su autor
incorpora los resultados de sucesivas investigaciones diseñadas ex profeso para verificar
la teoría y en razón de los vertiginosos cambios en la comunicación y la información a los
que nos hemos referido. En dicho texto, se ofrece una interpretación del paso de la era
audiovisual a otra informático-virtual. Se pone en relación las representaciones colectivas
con las actuales formas de obtención, distribución y utilización de la información; y
ambas, con el orden y el desorden en que se conforman, encuentran y enfrentan grupos
y sociedades. Esa impronta sociohistórica, que distingue al autor de La mediación social,
vuelve a demostrar su potencia teórica y esclarecedora. Especialmente cuando integra el
estudio sistemático de los cambios sociales y comunicativos en la predicción de escenarios
alternativos que cabe imaginar a partir de las actuales capacidades informático-
comunicativas. Por eso, consideramos pertinente reseñar algunas de las ideas claves con
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las que se plantea el análisis de las relaciones existentes entre la producción y
reproducción de la comunicación pública y la producción y la reproducción social (cfr.
Bernete, 2011). Iniciamos esa exposición refiriéndonos a los procesos de construcción de
representaciones sociales que son necesarias para la reproducción social.
Como se sabe, los sujetos sociales elaboran representaciones del mundo basadas en
creencias, principios y valores. Esas creencias no sólo les sirven a los grupos para darle
un significado a su pasado y proyectar su futuro sino para comprender su presente. Los
imaginarios colectivos van acogiendo el incesante e inacabable cambio del entorno social,
material o ideal para asumir toda novedad. En cada sociedad, incorporar
cognoscitivamente lo que irrumpe en la realidad o comprender lo que desaparece es una
tarea institucional encaminada al control social. El sentido que tiene esa intervención se
recoge en la siguiente cita:
“La comunidad trata de conseguir con el recurso a la mediación
comunicativa un cierto consenso en las representaciones del mundo
que elaboran los distintos miembros del grupo. La razón por la cual
todas las sociedades necesitan sujetos (como el chamán) o
instituciones (como las empresas informativas) especializados en la
producción y reproducción de representaciones colectivas es la
siguiente: de un suceso que acontece y afecta a todos los miembros
de un grupo no se sigue necesariamente una y la misma
representación, ni el consiguiente acuerdo para reaccionar
solidariamente al evento” (Martín Serrano, 2004: 142).
La elaboración y transmisión de información blica cumple una función mediadora
cuando establece un nexo entre las transformaciones del mundo y el conocimiento de los
cambios por parte de los receptores de la información. Esta función supone seleccionar
objetos de referencia
1
, y proporcionar sobre ellos un conjunto de datos y evaluaciones;
ese conjunto es una representación de aquello a propósito de lo cual se comunica. Al
ofrecer a la comunidad representaciones de lo que existe y de lo que sucede, la
comunicación pública contribuye, junto con otras instancias mediadoras, a que exista una
adecuación suficiente entre los cambios del entorno, las pautas de comportamiento,
sustentadas en creencias compartidas y las instituciones del Sistema Social. La
comunicación pública puede ofrecer esa congruencia, ya sea proponiendo una
reelaboración de las representaciones colectivas o una reorganización de las instituciones
o una interpretación del acontecer que realimente las representaciones y legitime el orden
existente. El ajuste, en todo caso, tiene por objetivo procurar que la acción social no
desborde los marcos establecidos.
La comunicación pública influye sobre la acción social en la medida en que logra que los
miembros compartan una visión de lo que acontece; o, si se prefiere, en la medida en
que ejerza un control sobre las representaciones sociales compartidas en un colectivo. Si
proporciona una interpretación aceptable para el grupo, favorece una cierta visión de la
1
Conocemos con el término objeto de referencia aquello a propósito de lo cual comunican dos o más seres
vivos: una disposición, una necesidad, un peligro o un acontecimiento deportivo pueden ser objetos de
referencia si los comunicantes intercambian datos sobre ellos.
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realidad y de lo que conviene hacer ante la nueva situación creada. Es decir, postula una
cierta acción social y la dota de sentido para los componentes de ese colectivo.
Como bien se sabe, las mediaciones comunicativas que se llevan a cabo en este momento
histórico son distintas de las empleadas hace apenas unas décadas. En los epígrafes
siguientes señalamos algunas de las transformaciones que han ido produciéndose en la
comunicación pública (su producción, distribución, recepción, utilización) y el modo en
que dichas transformaciones afectan a las representaciones cognitivas de los ciudadanos
en una época de transición entre sistemas de comunicación institucional: en nuestros
días, junto al “Sistema de Comunicación de Masas” operan otros sistemas de intercambio
informativo, mediante redes tecno-informáticas.
En el presente artículo nos ocupamos de las formas de proveer indicaciones sobre lo que
acontece - y su incidencia en nuestra percepción de la realidad - que son características
de las actuales redes de intercambio informativo. Lo haremos recordando que algunos
rasgos de sus modos de producir y distribuir información no han emergido con las nuevas
TIC, sino que éstas han acelerado ciertas líneas de “progreso comunicativo” que iniciaron
su andadura mucho antes de la aparición de Internet.
El propósito de este análisis es mostrar que algunos de los desarrollos tecnológicos de la
modernidad, al tiempo que podían suponer ventajas para los receptores (por ejemplo,
más información sobre más cosas, más fiabilidad o s posibilidades de reaccionar en
menos tiempo), comenzaban a generar contradicciones con ciertas funciones
mediadoras, como la de proporcionar interpretaciones de los hechos narrados. Y esas
contradicciones se han agudizado en las últimas décadas.
Nos referimos a continuación a lo que el profesor Martín Serrano (2004) denominó
“grandes conquistas logradas por la Formación Social Capitalista en el desarrollo de la
comunicación referencial” (sincronía, iconicidad, ampliación del universo referencial) y el
modo en que su desarrollo dificulta la función de ofrecer representaciones del acontecer
que sean compatibles con los principios y valores compartidos.
1. La función de proporcionar interpretaciones del acontecer cuando éste
se transmite sincrónicamente
El tiempo transcurrido desde la elaboración de un producto comunicativo hasta su
recepción por parte de los destinatarios, fue reduciéndose hasta conseguir la difusión
sincrónica de la información.
La conquista de la sincronía comunicativa ha hecho posible que más
personas resulten potencialmente concernidas por más aconteceres
públicos en un tiempo útil” (Martín Serrano, 2004: 112).
En efecto, representa un beneficio para los receptores en tanto que el adelanto en el
conocimiento de lo sucedido puede conllevar un adelanto en su decisión ante los hechos.
Si reciben la información al tiempo que ocurren los hechos narrados, su capacidad de
reacción sería tan inmediata como la de los propios testigos presenciales del acontecer.
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Ahora bien, este desarrollo tecnológico puede entorpecer la función mediadora de
proporcionar una interpretación de lo sucedido, porque el mediador, en esta
circunstancia, trabaja fundamentalmente para dar cuenta inmediata de lo observado en
el lugar y el momento presente. (Muchas veces, no se trata de lo observado, sino de lo
emitido por otros mediadores). Otras tareas, como seleccionar datos pertinentes,
comprobarlos, o buscar distintos puntos de vista para la construcción de un relato que
permita relacionar los hechos de este presente con otros anteriores, están subordinadas
al propósito de dar la información tan pronto como sea posible. Lo más habitual es que
el narrador cumpla una función de acompañar al oyente o telespectador en su acceso a
los aconteceres, cuando estos pueden ser contemplados.
Al relato se le supone un carácter enculturizador, en tanto que contribuye a “introducir a
las nuevas generaciones en los patrones culturales de la sociedad y prepararlos para su
recreación” (Echevarría, 2003), pero el hecho de transmitir la información del acontecer
al tiempo que este se produce dificulta enormemente esa función.
2. La función de proporcionar interpretaciones del acontecer cuando se
muestran imágenes de los objetos de referencia
Los avances técnicos dieron lugar a un incremento continuo en la proporción de imágenes
en cuya génesis participa el mismo objeto del que trata la comunicación. Desde el punto
de vista del receptor, saber que la imagen procede directamente del objeto le confiere
un carácter fiable, con independencia de la fiabilidad que merezca el emisor. Cuando se
usan medios que proveen de información icónica y sincrónica son mayores las
posibilidades de prescindir de los mediadores en beneficio de la interpretación autónoma
de los usuarios. Cada receptor podría configurar por mismo una representación del
acontecer retransmitido si posee la capacidad cognitiva para procesar el relato icónico.
Ahora bien,
“la capacidad para expresar en imágenes todo aquello que posee
forma, entra en contradicción con la exigencia de que toda
interpretación responda a alguna norma o código particular,
compartido sólo por los miembros de un mismo grupo” (Martín
Serrano, 2004: 128).
La contradicción señalada en la cita obliga a plantearse lo siguiente: o bien se introducen
indicaciones verbales (necesariamente en un digo particular) para canalizar el amplio
repertorio de interpretaciones individuales hacia el marco interpretativo que ofrece el
mediador, o bien se renuncia al control sobre la interpretación de lo mostrado y se
permite que el significado atribuido a la información dependa de las capacidades
perceptivas y cognitivas de los destinatarios.
La recepción y reconocimiento de las imágenes -fijas o en movimiento- requiere unos
hábitos de procesamiento de información diferentes de los que se requieren para procesar
las expresiones verbales, alineadas en una secuencia espacial o temporal y más
monosémicas que las imágenes. Si nuestra enculturización está basada en códigos
particulares (las lenguas aprendidas), las descripciones y valoraciones del acontecer
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narradas en esos mismos modelos expresivos serán mejor comprendidas que las
narradas con códigos icónicos. Manejarse con estos códigos supondría un nuevo
aprendizaje para la inmensa mayoría de la población.
Sólo cuando los receptores pueden identificar inequívocamente el objeto y el contexto en
el que se toman las imágenes, la narración icónica podría ser suficiente para reconocer
el estado o la actividad de un objeto de referencia (por ejemplo, una competición
deportiva con la cual los destinatarios estén familiarizados), prescindiendo de toda
palabra escrita o hablada de un mediador.
Por lo demás, aun cuando se reconozca lo que muestran las imágenes, mostrar no es
sinónimo de explicar el sentido de lo que ocurre; en muchas ocasiones sólo es una forma
de construir un espectáculo con ese acontecer. La mera visión de las cosas puede producir
una sensación de conocimiento, pero la iconicidad que supuestamente hace transparentes
los hechos con frecuencia produce el efecto de hacerlos más opacos.
2
3. La función de proporcionar interpretaciones del acontecer cuando la
información es sobreabundante
Una s de las conquistas heredadas por los sistemas tecnológicos actuales ha consistido
en poner al alcance permanente de todos los miembros de una comunidad la información
sobre asuntos que conciernen a esa comunidad. Las prestaciones de las TIC han
acelerado la dinámica de ampliar el universo de objetos de referencia: cualquier
emergente puede ser acontecer público y cualquier evaluación puede formar parte de un
punto de vista sobre lo que acontece, cuya manifestación se considera legítima (Martín
Serrano, 2004: 127).
Teóricamente, esta ampliación de lo que se controla referencialmente podría ayudar a
conocer más datos sobre s objetos; más perspectivas distintas, expresadas con mayor
libertad. Si el incremento de información disponible estuviera en función de lo que
conviene saber a los usuarios, éstos podrían mejorar su entendimiento de los cambios
que se producen en el entorno; saber con más fundamento lo que es posible o imposible
hacer para adaptarse a los cambios; presionar para que prospere lo que se considera
deseable y para evitar lo que se considera indeseable.
La sobrecarga informativa de nuestro tiempo es, como bien se sabe, incomparablemente
mayor que la enunciada por Aln Toffler en su libro Future shock" (1970,
3
) pero el
efecto no es necesariamente disponer de s información verdadera, que permita valorar
los hechos y participar en la esfera pública con conocimiento de causa. El incremento de
interacciones comunicativas no cambia un ápice su carácter de “proceso que puede ser
utilizado para decir la verdad o para mentir, para construir o para destruir, para juntar o
para separar, para educar o para deseducar” (Díaz Bordenave, 2012).
La cantidad de información accesible a los ciudadanos usuarios de las TIC no se ofrece
para satisfacer sus necesidades de saber ni obedece a una supuesta igualdad de
oportunidades para colgar en internet sus narraciones particulares y participar en la
esfera pública. Ciertamente, las prestaciones técnicas hacen posible que todo usuario de
2
Sobre el sentido que tiene en la sociedad contemporánea el reclamo de “más exposición”, véase La sociedad
de la transparencia (Han, 2013).
3
Ya Toffler percibía “demasiado cambio en un periodo de tiempo demasiado corto”.
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las redes pueda ofrecer datos de referencia y evaluaciones sobre cualquier asunto de su
interés. Pero no todos los usuarios tienen las mismas capacidades económicas y cnicas;
y, por ello, tampoco tienen las mismas posibilidades de aparecer en las redes ni de influir
en las representaciones sociales del conjunto, con su particular visión de las cosas. Las
desigualdades sociales, económicas, políticas, etc. También se manifiestan en el orden
de la producción comunicativa.
Las aplicaciones que permiten las actuales TIC han acelerado el borrado de dos neas
divisorias: a) la que distingue entre agentes y comunicantes y b) la que distingue entre
emisores y receptores en el Sistema de Comunicación.
a) Entre el conjunto de actores del Sistema Social, la separación funcional entre agentes
sociales (que producen, venden o compran cosas) y comunicantes (que intercambian
información sobre las cosas) sigue existiendo pero la información y el conocimiento
(recursos para la reproducción social) se han convertido en recursos del sistema
productivo y se han estrechado los vínculos entre producir y comunicar. A partir de la
información y el conocimiento se organizan todas las interacciones públicas y privadas.
Una consecuencia de que todos los agentes (políticos, económicos, etc.) sean
comunicantes se manifiesta en la anegación informativa que aparece en internet. Las
grandes corporaciones tienen capacidad para planificarla, de tal modo que el conjunto
de lo vertido entre unos y otros a las redes tecnológicas (todos con la misma
legitimidad) obstaculice el acceso al conocimiento.
Se ha denunciado como “intoxicación informativa” esta nueva forma de opacidad que
consiste en ocultar la verdad bajo el exceso de narraciones. Es otra forma de ejercer
la censura: en lugar de (o más bien, además de) silenciar o prohibir, inundar de
palabras, imágenes, sonidos y números. Así es como la llamada “sociedad del
conocimiento” se convierte también en la sociedad de la incertidumbre, en tanto que
paradójicamente - dificulta el conocimiento proporcionando información a raudales.
b) En la comunicación de masas era funcional la separación entre emisores y receptores:
de un lado, los sujetos autorizados para ejercer la profesión de informantes - para
producir y distribuir en masa los productos comunicativos - y, de otro, los posibles
destinatarios de esos productos (por ejemplo, según la edad, los espacios o los tiempos
del trabajo y el ocio). Esa distinción se ha ido desdibujando. Aunque no ha quedado
minimizada la comunicación institucional, junto a ella se producen otros muchos
intercambios informativos: a veces comentarios sobre las noticias o las columnas de
opinión, otras veces sólo palabras que no componen ni una frase, otras fotografías,
emoticones o direcciones, que remiten a otro espacio informativo. Se han multiplicado
los sujetos que interpretan públicamente el acontecer y, con ello, las visiones del
mundo.
4. La función de proporcionar interpretaciones del acontecer con relatos
fragmentados
El incremento de información que venimos señalando se produce asociado a ciertas
innovaciones en los formatos y en los usos de las prácticas comunicativas: en las últimas
décadas han cambiado, entre otras, las maneras de ver (por ejemplo, con el zapping o
las gramáticas narrativas que mezclan los géneros), las maneras de escribir (por ejemplo,
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con el hipertexto) o las maneras de leer (por ejemplo, con la mensajería instantánea o
los minúsculos relatos de microblogging).
En los nuevos formatos narrativos, proliferan modalidades de comunicación (o
simplemente, de conexión) que más bien tienden a reducir en lo posible la narración. Se
detectan cada vez más intercambios de imágenes y textos de corta duración. Tras los
microrelatos y los blogs aparecieron las “redes sociales” donde cualquier cosa es dicha o
mostrada sin conexión con otras. Más tarde, los servicios de microblogging, como Twitter,
mediante los cuales los usuarios intercambian textos obligatoriamente cortos, usados con
frecuencia, para anunciar la existencia de más alimento informativo en otro espacio de
internet.
Aunque siguen existiendo grandes relatos (por ejemplo, algunas series de televisión con
notable éxito de público), se han multiplicado los microrelatos donde la ausencia de
estructura narrativa es casi total (salvo los publicitarios). Por su naturaleza, no son relatos
ordenados que ofrecen una cierta representación de un objeto de referencia, sino más
bien fragmentos de narración, flujos de imágenes, sonidos y palabras que dejan en manos
de cada usuario la construcción mental de los referentes con esos fragmentos.
En la medida en que las TIC actuales se aplican al sistema educativo, especialmente en
los cursos no presenciales, rige también aquí una ruptura de la secuencialidad que ha
caracterizado la estructura y la utilización del libro de texto. En su lugar se introducen
fragmentos de textos variados, con enlaces a otros; en la composición parece evitarse
un cierre del relato; en la utilización, se facilita la discontinuidad de la lectura, los
ejercicios, etc. en tiempos y lugares diversos. El efecto es, como decimos, dejar la
estructuración del conocimiento en manos del alumnado; que sean ellos y ellas, con sus
variados y transportables dispositivos técnicos, los que decidan donde y cuando hacen
cada cosa.
5. La ausencia de representaciones colectivas proporcionadas por los
mediadores y la dificultad para construir el consenso sobre la base
del conocimiento compartido
Entre producir y difundir relatos y hacerlo con fragmentos, titulares, tweets o simples
emoticonos existe algo más que una diferencia de extensión: los primeros son elaborados
por mediadores del conocimiento (por ejemplo, novelistas, profesionales de la enseñanza
o del periodismo) que seleccionan los referentes, los datos y el orden con los que construir
un producto para destinar a su comunidad; los segundos son difundidos muchas veces
sin orden ni concierto, para que sean los miembros de la comunidad receptora quienes
estimen su valor informativo y compongan con ellos alguna representación. Parece
evidente que de este modo se dificulta la propia existencia de representaciones
compartidas.
Asistimos a la siguiente paradoja: por un lado, la globalización descansa supuestamente
sobre el uso de la información y el conocimiento compartidos a escala global; por otro
lado, proliferan aplicaciones de las TIC que consisten en ofrecer fragmentos informativos,
en lugar de proporcionar representaciones estructuradas que contribuyan a disminuir la
ignorancia sobre lo que pasa en el mundo.
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Crece la incertidumbre al tiempo que la información vertida a la red por el notable
incremento de las mediaciones comunicativas que, en lugar de mejorar nuestro
conocimiento del mundo, de la vida propia y ajena, alimentan los prejuicios y
malentendidos; generan confusiones y promueven conflictos sin fin.
Sin embargo, de las observaciones antedichas no puede concluirse que la reproducción
social corra algún riesgo por una disminución del consenso. De hecho, se promueve el
consenso, pero no de toda la ciudadanía y menos aún a escala global. “Teóricamente la
globalización y las TIC que la hacen posible abren la posibilidad de saber s de la cultura
de otros países y regiones del mundo; lo que teóricamente podría ampliar también las
posibilidades de que se entiendan mejor las personas de diferentes lugares del planeta”
(Bernete, 2010).
El consenso fundamentado en el control de las redes puede alcanzar niveles que nunca
antes han existido. Porque se está promoviendo el consenso que descansa en la
obediencia al grupo propio, reforzando las identidades de unos frente a las de otros; el
consenso de la exaltación localista o nacionalista; el consenso sostenido con la
reproducción de estereotipos de toda naturaleza, que las redes amplifican con facilidad y
rapidez: estereotipos nacionales y locales, de género y orientación sexual, de judíos,
moros y cristianos, como hace cientos de años.
Las mismas tecnologías que permiten la desestructuración del conocimiento, también
permiten un uso orientado a primar determinadas representaciones estereotipadas de la
realidad y su reproducción con “información” redundante. Las visiones del mundo
dominantes en términos cuantitativos acaban convirtiéndose en dominantes en términos
cualitativos. Como en épocas anteriores, pero ahora con más razón, sólo una minoría de
sujetos son capaces de distinguir la verdad de la mentira informativa.
Distinguir la información verdadera de la falsa ha tenido la mayor importancia en la
prevención y solución de los conflictos sociales. Del mismo modo que confundir lo falso
con lo cierto, crea y exacerba los enfrentamientos.
En la comunicación social la verdad se ha utilizado para desactivar los conflictos y la
mentira para crearlos e intensificarlos. Y así sucede en la actualidad. Por ejemplo, la
mentira legitima la agresión a otros países, cuando los medios de comunicación para
masas, exacerban el belicismo o cuando se planifica una invasión militar.
Siguiendo al profesor Martín Serrano (2007: 252-262), una información es veraz si los
datos que proporciona sobre el objeto de referencia son:
objetivos (se corresponden con características del objeto),
significativos (pertinentes para informar de ese objeto desde un determinado punto
de vista) y
el conjunto de los datos es válido o completo para proporcionar a los usuarios de la
comunicación cierta visión del objeto.
La sobrecarga de información que se ofrece actualmente al ciudadano, le exige no sólo
nuevas capacidades técnicas para sacar provecho a las prestaciones informáticas, sino
también y sobre todo, capacidades cognitivas que difícilmente pod adquirir por
mismo. Considere el lector si todo usuario de computadoras, Smartphone, internet, etc.
por el simple hecho de poseer los dispositivos de acceso y encontrarse conectado, tiene
la capacidad de buscar, contrastar, discriminar, relacionar información para producir un
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conocimiento propio con ella; o si puede distinguir los datos objetivos y significativos de
los que sólo lo parecen; o si tiene criterios para evaluar la validez del conjunto de los
datos que se le ofrecen en cada caso; para analizar su estructura y tomar en cuenta otros
conjuntos y estructuras alternativas; en definitiva, para distinguir la verdad entre tanta
palabrería.
Aprender a relacionar, discriminar, etc. para convertir la información en conocimiento
depende de que los modelos, la organización y los recursos del sistema educativo se
orienten en esa dirección y exista para todos la oportunidad de beneficiarse de esa
enseñanza
4
.
Mientras los usuarios no adquieran esas capacidades, puede ocurrir que la gran mayoría
se conforme con ser
“una masa acomodada en su ignorancia, fascinada por la tecnología
y cada vez más alienada” (Brey, 2009: 38).
Si esto es lo que sucede, posiblemente quienes saquen más provecho de las TIC para el
desarrollo del conocimiento no sean los individuos, sino las grandes corporaciones
capaces de correlacionar enormes cantidades de datos, según sostiene este mismo autor
“El centro de gravedad de la sociedad del conocimiento
mercantilizado se desplaza gradualmente desde el individuo hacia
las estructuras colectivas (…) Cada vez hay más saber en las
organizaciones pero menos conocimiento en los individuos, más
información en las memorias de silicio y menos en los cerebros
humanos. El individuo se aleja progresivamente de su posición
central, se diluye, y desde la periferia se muestra más débil y
prescindible que nunca.” (Brey, 2009: 40-41):
En términos generales, en tanto no se haga otro uso de las innovaciones técnicas, parece
consolidarse la dualidad presagiada por Castells (1995b: 11):
“(la sociedad de la información) es a la vez la sociedad de las
proezas tecnológicas y médicas y de la marginación de amplios
sectores de la población, irrelevantes para el nuevo sistema”.
6. El uso social de las innovaciones técnicas determina el sentido de las
mediaciones
4
En las últimas décadas, las autoridades políticas y académicas promueven con sus directrices que los
estudiantes tengan competencias en la gestión de la información y en la adquisición de un conocimiento
aplicable y con valor de cambio. Lo que no es exactamente lo mismo que capacitarles para que aprendan a
manejar criterios de evaluación de la veracidad informativa.
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Si se conocen las capacidades técnicas de los instrumentos informativos y las opciones
de usos posibles, se comprende que las sociedades capitalistas avanzadas hasta ahora
se han defendido de los efectos transformadores no deseados de las innovaciones
tecnológicas restringiendo sus usos sociales.
La Formación Social Capitalista ha hecho un uso de los Medios de Comunicación de Masas
orientado a proveer una información y una formación basadas en la ética del dominio. Ha
cambiado la tecnología, pero con el manejo de las actuales TIC se sigue manteniendo la
misma ética y se ha reforzado el dominio, porque no ha cambiado el modo de producción
capitalista.
Manuel Martín Serrano designa, por “modo de producción de comunicación”, la manera
en la que cada Formación Social se apropia de la información pública.
“La información apropiada se distingue en cada Formación Social
tanto por su utilidad como por su titularidad:
- La utilidad de la información puede referirse a criterios de uso
muy distintos. Pero aquella que se necesita para la propia
reproducción del Sistema Social será apropiada cuando
contribuya a la creación o al menos a la recreación de las
condiciones (materiales, institucionales, culturales) que son
determinantes para el funcionamiento de la Formación Social.
- La titularidad de la información puede asignarse a usuarios
concretos, sean instituciones, grupos o sujetos particulares; o
aparentemente ser inexistente. Pero aquella que sirve para el
mantenimiento de la estructura social, o que eventualmente
pueda ser utilizada para transformar la organización (jerárquica,
estamental, de clases) será apropiada por los grupos dominantes.
La existencia de esa apropiación no es reconocible a nivel jurídico
ni siquiera a nivel funcional en todos los casos. En cambio
siempre es identificable a nivel estructural averiguando quiénes
son aquellos que deciden cuál es el valor de uso que debe tener
la información pública” (Martín Serrano, 2004: 101-102).
Las innovaciones en las infraestructuras del Sistema de Comunicación han sido
incorporadas para mantener un modelo de producción y de reproducción, pero no para
otros usos que generan menos plusvalías o que debilitarían el dominio político y
económico.
El mantenimiento de los modelos productivo y reproductivo permite que las actuales TIC
ofrezcan la posibilidad de participar en un sinfín de actividades lúdicas, educativas,
relacionales o políticas, entre otras. Lo cual no significa que se fomente la participación
política, o la educación, o las relaciones sociales, o las prestaciones y servicios a los
ciudadanos, porque sólo se permiten en el nuevo espacio tecno-informativo. Al mismo
tiempo que se permiten ciertas actividades en el llamado “ciberespacio”, hay más
precariedad e inseguridad en el espacio físico y en las dimensiones materiales de la vida
cotidiana: empleo, ingresos, vivienda, sanidad, etc.
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Nos encontramos ante una revolución tecnológica de enorme trascendencia porque
probablemente da lugar a cambios irreversibles en la condición humana. Y en los
tiempos en que se inicia un proceso histórico de tal envergadura como ahora está
sucediendo, renacen las esperanzas de la humanidad en tomar el control de su futuro
usando las invenciones técnicas para mejorar la naturaleza de las personas, sus
condiciones de vida y la organización de las sociedades. Por eso el empeño en poner las
innovaciones cnicas al servicio de objetivos humanizadores ha renacido y cobra un
nuevo sentido desde que existen las TIC. Son las iniciativas que tratan de utilizar estas
tecnologías para ir introduciendo modos de producción social de comunicación, que no
estén supeditados a la lógica del control y del beneficio económico. (cfr. Martín Serrano,
2014a)
Para caminar hacia un futuro más humano, basado en la información precisa y el
conocimiento compartido, hacen falta mediadores que, en lugar de ejercer guiados por
el principio de la competitividad entre grupos o Estados, lo hagan guiados por la
solidaridad y el hermanamiento en una sola comunidad universal. El etnocentrismo que
pauta nuestras relaciones ha generado tantas divisiones entre géneros, generaciones,
religiones, naciones, etc.- que este horizonte ahora se concibe como utópico.
Conclusión
Los profesionales de la comunicación pública no son los únicos intérpretes del acontecer.
También interpretan lo que hay y lo que sucede otros agentes socializadores, como los
amigos, los familiares o los educadores. Estos agentes y los propios informadores
profesionales están obligados a conocer las transformaciones en los modos de comunicar.
Los procesos de comunicación social se transforman cuando el mundo se globaliza. No
podía ser de otro modo porque la mayor interactividad de carácter material (transporte,
intercambios comerciales, etc.) va necesariamente acompañada de mayores flujos de
información, que son posibles por las actuales TIC. Una dimensión de tales
transformaciones tiene que ver con la naturaleza de las mediaciones que la comunicación
introduce para orientar la acción social. Las mediaciones comunicativas que se llevan a
cabo en este momento histórico son distintas de las empleadas hace apenas unas
décadas.
Este trabajo se centra en las mediaciones comunicativas, que consisten en establecer un
nexo entre lo que cambia en el entorno y el conocimiento de los cambios por parte de los
receptores de la información.
Los epígrafes anteriores describen que la función de proporcionar a la comunidad unas
representaciones de lo que sucede en el entorno está transformándose, en algunos casos
minimizándose, porque los desarrollos tecnológicos hacen prosperar, junto a la
comunicación institucional, otras prácticas comunicativas, donde el relato elaborado con
información completa y ordenada (de acuerdo a algún criterio) no tiene cabida.
Hemos hecho referencia a las dificultades para proveer a los destinatarios de una
interpretación del acontecer cuando se transmite sincrónicamente, cuando predominan
los códigos icónicos sobre los verbales, cuando la información es excesiva y cuando los
formatos predominantes son extremadamente reducidos en extensión y escasamente
narrativos (titulares, tweets, emoticones, etc.).
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Si la comunicación pública no proporciona representaciones colectivas se dificulta la
construcción del consenso sobre la base del conocimiento compartido, porque se deja a
la comunidad receptora la labor de valorar las informaciones y encajarlas en su visión del
mundo. Ello no significa que peligre la cohesión social porque hay otros mediadores,
además de los que trabajan en el sistema de comunicación, y porque el consenso puede
descansar sobre la base de representaciones estereotipadas que se extienden y
reproducen con facilidad; y que alimentan los prejuicios de cada colectivo frente a los
demás. Se refuerza la cohesión grupal y el consenso sobre la cultura propia en el interior
de los colectivos, cuando teóricamente hay más posibilidades (por recursos técnicos y
economía de escala) de dialogar y conocer a los diferentes.
El resultado de este uso de la información y el conocimiento es un incremento de la
ignorancia sobre lo que existe y sucede; y un aumento de la incertidumbre sobre lo que
puede ocurrir y lo que puede hacerse. La ignorancia y la confusión se producen cuando
la información vertida al espacio público es tan abundante que se convierte en un torrente
del que hay que defenderse. En estas circunstancias, la mediación queda abierta a la
mistificación y a la deshumanización, que de hecho se practica por instituciones creadas
exprofeso para controlar las representaciones compartidas a propósito de lo que
acontece.
“Expertos de la mistificación, disfrazan de nobles principios
democráticos y humanitarios los intereses geopolíticos de las
naciones dominantes. Estos manipuladores son piezas
fundamentales en el planeamiento de las guerras de diseño que
asolan al mundo” (Martín Serrano, 2006). (…) “Expertos en la
deshumanización, cuando estén en curso las acciones bélicas,
convertirán la barbarie de los bombardeos en espectáculos. Son los
profesionales al servicio de los actuales señores de la guerra, que
programarán la desinformación para que el sufrimiento y las
tropelías no sean visibles, ni para los cronistas de los medios de
comunicación ni para las audiencias” (Martín Serrano, 2006).
En este contexto, los ciudadanos necesitan hoy más que nunca mediadores que les
ayuden a interpretar los hechos:
“En el mundo globalizado que está emergiendo, profesionales,
docentes, investigadores de la comunicación, asumimos
responsabilidades sociales crecientes. En pocos campos es tan cierto
-como lo es en la comunicación- que el conocimiento experto no
está para legitimar el control y hacerlo más eficaz, sino para
desenmascararlo” (Martín Serrano, 2006).
Las representaciones que traerán la auténtica globalización de la humanidad, sin mengua
de sus identidades y culturas, serán las que vinculen las revoluciones tecnológicas con la
liberación de las personas y de los pueblos, aquellas que se propongan el progreso en la
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humanización. Visiones del futuro que orienten las aplicaciones de las nuevas tecnologías
a compartir el conocimiento y la información que ilustran; a globalizar la solidaridad que
humaniza. Que fue el programa de uso de las tecnologías del conocimiento y de la
información que diseñaron los ilustrados.
Ellos aplicaron la mirada sociológica para averiguar si sería posible, quitándole poder a
los mbolos y restándole valor simbólico al poder, alcanzar otro tiempo donde habría
alcanzado su cenit la historia. Aquel tiempo en el que llegue a existir una única comunidad
humana, enriquecida por toda posible diversidad, sin mengua de su cohesión; porque
finalmente los lazos de solidaridad habrán anudado a toda la especie. (cfr. Martín Serrano,
M. 2014b).
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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INTERFACES DA LUSOFONIA: LUSÓFONOS EM REDE NO FACEBOOK
Inês Amaral
inesamaral@gmail.com
Professora Auxiliar na Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal), Coordenadora Científica da
Licenciatura em Ciências da Comunicação e do Mestrado em Comunicação Aplicada. Docente do
Instituto Superior Miguel Torga, vice-presidente do Conselho Científico e Coordenadora Científica
da Licenciatura em Multimédia e da Pós-Graduação em Audiovisuais e Multimédia. Doutorada em
Ciências da Comunicação. Ensina na área da Comunicação Digital e tem desenvolvido
investigação sobre sociabilidades nas redes sociais digitais, literacia digital, tecnologias e
envelhecimento ativo, consumos mediáticos na era digital. Participado em projetos internacionais
de investigação como EMEDUS e em diversas ações do COST. É membro da IAMCR, ECREA,
INSNA e SOPCOM e co-fundadora da Associação Portuguesa de Formação e Ensino à Distância.
Silvino Lopes Évora
silvevora@hotmail.com
Professor Auxiliar na Universidade de Cabo Verde (Cabo Verde), coordenador da Licenciatura em
Jornalismo. Doutorado em Ciências da Comunicação, vertente Sociologia da Comunicação e da
Informação com a menção de Doutoramento Europeu. Presidente da Associação Cabo-Verdiana
de Ciências da Comunicação. Investiga sobre concentração dos media, liberdade de imprensa,
lusofonia e políticas da comunicação. Ganhou o Grande Prémio Cidade Velha com a tese de
doutoramento (Ministério da Cultura de Cabo Verde) e o Prémio Orlando Pantera com um Ensaio
Sobre a Liberdade na África Ocidental. Aprovado no Concurso do Gabinete para a Comunicação
Social para publicação da tese de Mestrado e no concurso da WAF Editora para publicar um livro
de poemas. Bolseiro de Doutoramento (Fundação para a Ciência e a Tecnologia), de Mestrado
(Fundação Calouste Gulbenkian) e de Licenciatura (Governo de Cabo Verde).
Resumo
O presente artigo assume o novo cenário digital, postulado na teoria da sociedade em rede
defendida por Castells (2000), enquanto quadro contextual. Assumindo que o virtual existe e
produz efeitos (Lévy, 2001), consideramos que assistimos a uma alteração de paradigma
sócio comunicacional. Se do ponto de vista da Comunicação estamos perante a
individualização, é evidente a mudança de paradigma social. A nova perspetiva incutida pelas
ferramentas digitais é a sociabilização e a maximização do coletivo. Neste artigo, partimos do
pressuposto de que os laços relacionais nas redes sociais assimétricas (que não implicam
reciprocidade entre os nós) que se efetivam em plataformas de sociais media é o conteúdo.
Neste sentido, e assumindo uma perspetiva multidisciplinar, consideramos que a apropriação
da cnica evidencia um mapeamento de estruturas que são mediadas tecnicamente e
interações potenciadas pela tecnologia. Apresentamos um estudo empírico que se baseia
numa triangulação metodológica, cruzando análise documental com netnografia. Analisando
grupos e páginas do Facebook como suportes onde a comunicação é recontextualizada pela
distribuição de forma desagregada e por diferentes tipos de interações, objetivamos
categorizar e compreender as representações sociais da Lusofonia. O objetivo central deste
trabalho é analisar se o Facebook, enquanto espaço de interações digitalmente mediadas e a
partilha desagregada de conteúdo, podem induzir uma reconstrução das redes de significância
e representações sociais da Lusofonia, potenciando a criação de um grupo social único, ou
pelo menos de um agrupamento dotado de alguma homogeneidade.
Palavras-chave
Lusofonia; ciberespaço; redes sociais; representações sociais; interação social
Como citar este artigo
Amaral, Inês; Évora, Silvino (2016). "Interfaces da lusofonia: Lusófonos em rede no
Facebook". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 7, N.º 2, Novembro 2016-
Abril 2017. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.autonoma.pt/janus.net/pt_vol7_n2_art7 (http://hdl.handle.net/11144/2786)
Artigo recebido em 18 de Dezembro de 2015 e aceite para publicação em 15 de Junho de
2016
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Interfaces da lusofonia: lusófonos em rede no Facebook
Inês Amaral e Silvino Lopes Évora
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INTERFACES DA LUSOFONIA: LUSÓFONOS EM REDE NO FACEBOOK
Inês Amaral
Silvino Lopes Évora
Para uma introdução: narrativas da Lusofonia e identidades
Entendendo a Lusofonia como um espaço fragmentado repleto de múltiplas significações,
torna-se evidente que os seus discursos, práticas e relações sociais circulam em
diferentes lógicas conceptuais. Neste sentido, interpretamos o espaço lusófono como
sendo construído por sistemas de construção social partilhada e por elementos de
comunicação que potenciam redes de significação dentro de uma subjetividade muito
própria, dependente de uma multiplicidade cultura de significados. Ainda que tanto os
discursos políticos como os mediáticos ocultem as assimetrias e apresentem perspectivas
homogeneizadoras do espaço lusófono como um único.
Como escreveu Eduardo Lourenço,
“A lusofonia o é nenhum reino, mesmo encartadamente folclórico.
É só - e não é pouco, nem simples aquela esfera de comunicação
e compreensão determinada pelo uso da língua portuguesa com a
genealogia que a distingue entre outras línguas românicas e a
memória cultural que, consciente ou inconscientemente, a ela se
vincula” (1999: 81).
O ensaísta sublinha ainda que
“se todos vieram à capital do nosso Norte convocados pela lusofonia,
é porque esta senhora deve ter outros mistérios e outros encantos
ou perplexidades, além dos científicos. Ou que nós lhos atribuímos
para que, de objecto de mera curiosidade histórico-linguística ou até
histórico-cultural, se tenha transformado em tema onde investimos
paixão e interesses que têm a ver não com aquilo que somos
como língua e cultura no passado, mas com o presente e o destino
desse continente imaterial que é, ou queremos que mais
nitidamente o venha a ser, o mundo da lusofonia. Todavia, nem
aqui, nem em parte alguma, devemos fazer de conta, nós,
portugueses, que o conteúdo e, sobretudo, o eco deste conceito de
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aparência tão inocente arrastem consigo as mesmas imagens, o
mesmo cortejo de fantasmas, os mesmos subentendidos ou mal-
entendidos, nos diversos espaços que atribuímos, sem uma onça de
perplexidade, à ideal e idealizada esfera lusófona” (1999: 81).
Martins defende que
“aquilo que se joga nesta luta simbólica entre globalização
cosmopolita e globalização multiculturalista é o poder de definir a
realidade, assim como também o poder de impor,
internacionalmente, essa definição, quero dizer, essa di/visão.
Neste entendimento, a figura de lusofonia não é uma coisa diferente
da realidade social das distintas comunidades nacionais onde se
processa esse combate simbólico. E é pelo facto de as
representações sociais da realidade não serem estranhas à própria
realidade social dos países que as formulam, que, a meu ver, devem
ser reavaliadas as formulações que tendem a negar à figura de
lusofonia não apenas a eficácia simbólica, como também toda a
eficácia política” (2004: 8).
A multiplicidade de narrativas e representações sociais, enquanto decorrentes do
processo de socialização e diretamente associadas à identidade coletiva (Daniel, Antunes
e Amaral, 2015), fragmentadas que ocupam o imaginário da Lusofonia (num sentido
ainda por apurar, e com uma intensidade ainda por estabelecer) decorrem de uma
memória social e cultural que emerge de uma construção simbólica partilhada,
enquadrada e interpretada de forma heterogénea por diferentes gerações. Para uma
análise do ciberespaço enquanto interface lusófono torna-se imperativo analisar se o
discurso digital pode metamorfosear as representações sociais da Lusofonia (quando as
há, um ponto importante visto uma enorme percentagem dos lusófonos não têm sequer
consciência dessa identidade coletiva da sua representação), o que pode potenciar a
criação de novas identidades e relações sociais indutoras de mudança. A expressão
“interface”, neste trabalho, reporta-se ao ponto de intersecção que as Comunicações
Mediadas por Computador (CMC) potenciam no ambiente digital, permitindo a interação
e a comunicação num estado quase contínuo, sem barreiras geográficas ou temporais.
A dinâmica da contemporaneidade, a mobilidade e a mutação são processos que
constroem a questão da cidadania, em micro e macro escalas, num discurso em que o
“eu” e o “outro” são um continuum em alternância. O pressuposto de que a interação
entre lusófonos, no ambiente digital, decorre de uma construção social partilhada implica
também reequacionar o papel do ciberespaço na (re)construção da identidade lusófona,
como referem Macedo, Martins e Macedo (2010). Os autores sublinham que a Sociedade
da Informação
“parece convocar o ciberespaço enquanto um novo lugar da
lusofonia, no qual se estabelecem redes virtuais de comunicação
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entre cidadãos que pensam, sentem e falam em português” (2010:
14).
A narrativa da Lusofonia na contemporaneidade é descrita por Patrisia Ciancio, numa
dissertação de mestrado sobre a Lusofonia Digital, como estando na coexistência de
dois tempos:
(1) o anacronismo separatista de um passado colonial que coloca todos os países e as
regiões tocadas pelos Descobrimentos sob o mesmo teto da história, mas os divide
seu presente existencial;
(2) na pós-modernidade da urgência de sua inserção em uma conjuntura global de
informação, o que, se bem desenvolvida (ou desenvolvida para o bem), pode
contribuir no âmbito da educação e democratização dos meios” (2008: 34).
O conceito de identidade é crucial para compreender os processos relacionais dentro do
quadro controverso do conceito “Lusofonia”. Maria Paula Menezes sublinha que
“as identidades enquanto processos relacionais raramente são
recíprocas Nunca sendo piras, as identidades são, porém, únicas,
garantindo a afirmação da diferença. O acto de identificar produz a
diferença, construída enquanto relação de poder (Santos, 2001)”
(2008: 78, 79).
Também a questão dos referenciais da Lusofonia, como espelho da “imperialização
portuguesa” (Menezes, 2008), e a formatação do pensamento têm sido elementos
questionáveis na produção da contemporaneidade lusófona em ambiente digital, no seu
mais amplo contexto: o diálogo intercultural.
O discurso oficial da Lusofonia remete para conceitos de memória alavancados no
colonialismo e num imaginário em torno do império. No entanto, numa era pós-colonial,
as identidades constroem-se com base na geografia e nas questões geracionais,
ampliando “identidades hifenizadas” (Khan, 2008) porquanto
“não podem ser representadas como um fenómeno estável, fixo,
pois pensar em balizas cronológicas entre o colonial e o pós-colonial
conduz-nos a moradas epistemológicas erróneas, induzindo-nos no
erro de pensar que, historicamente, o colonial como um episódio é
já pretérito” (2008: 97).
Como consequência da s-modernidade que se exprime na atual realidade social e
enquanto expoente da globalização, a Internet implica uma reconfiguração do conceito
de território, que surge como fruto da construção de sistemas de representação
partilhados e dinâmicas sociais. O que lhe sentido/identidade são os elementos
simbólicos adoptados por cada grupo. Os espaços digitais são imateriais e concretizam-
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se em lugares e não-lugares (Augé, 2010), onde coexistem redes de redes e redes de
comunidades.
A Internet tem vindo a assumir-se como uma ruptura com o passado, potenciando
passados reinventados e presentes emergentes. Estaremos perante a emergência de
espaços abstractos digitais, que possibilitam representações da memória e do presente
numa reconfiguração das relações de poder e da sua materialização em pontos de
intersecção digital? A rede pode assumir-se como um possível cenário de renovação e
reforço de laços na Lusofonia? E, nela, o Facebook, que agora substituiu o Orkut como a
rede social mais importante no maior dos Estados lusófonos, o Brasil?
Geografias da Sociedade da Informação
A introdução da tecnologia na vida blica e privada das sociedades promoveu uma
alteração dos comportamentos. Efetivamente,
“as tecnologias de e em rede são atualmente parte integrante da
vida diária de milhões de pessoas e fomentam a inteligência
colectiva (Lévy, 2001, 2004; Jenkins, 2006). uma revolução
social online em curso, no que concerne à utilização e apropriação
da tecnologia. As pessoas estão a alterar os seus comportamentos:
trabalham, vivem e pensam em rede” (Amaral, 2014).
No entanto, é imperativo sublinhar que a introdução da tecnologia e, em particular, da
Internet na vida privada e pública das sociedades também se opera numa lógica de
dimensões socioeconómicas o que, inevitavelmente, nos remete para contextos
geográficos específicos.
As sociedades info-incluídas e info-excluídas têm de ser referenciadas no contexto da
territorialização dos espaços sócio-tecnológicos. Estes territórios têm dinâmicas próprias
que dependem de várias variáveis e originam diferentes potenciais de disseminação de
informação e comunicação através das tecnologias em rede. Os acessos à Internet podem
contextualizar a geografia das sociedades info-incluídas e info-excluídas.
De acordo com estatísticas apresentadas pelo site Internet Live Stats
1
, estima-se que
46.1% da população mundial tem acesso à Internet, sendo que se contabilizam 4 biliões
de não utilizadores. A projeção de crescimento nos últimos quinze anos, segundo o site
Internet Usage Statistics
2
, é de 826.9%. As estatísticas revelam ainda exclusões digitais
geográficas, sendo que a Europa, Austrália e América do Norte têm as maiores taxas de
acesso à rede e o continente africano não ultrapassa os 28%. Refira-se ainda a questão
da América Latina e do Médio Oriente que, de acordo com as estatísticas de 2015, têm
uma taxa de penetração que ultrapassa os 50%.
1
Site do projeto Real Time Statistics Project que disponibiliza estatísticas de acesso à Internet. Disponível
no endereço electrónico http:// http://www.internetlivestats.com/ (Consultado em abril de 2016).
2
Site que disponibiliza estatísticas de acesso à Internet baseadas em dados de provedores locais,
International Telecommunications Union, GfK e consultora Nielsen Online. Disponível no endereço
electrónico http://www.internetworldstats.com (Consultado em dezembro de 2015).
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Castells (1996) remete-nos para a Internet enquanto um espaço de espaços e, neste
sentido, o local e o privado tal como o local e o global habitam em conjunto. Daqui
decorre que a questão territorial digital se define por factores que a perspectivam numa
dimensão global. Os fluxos de informação que habitam na rede traduzem um conjunto
de nós ligados por diferentes laços que tornam os não-lugares em lugares (Au, 2010).
Neste sentido, os lugares correspondem a utilização social da tecnologia. Em última
instância, o acesso à Internet deve ser também equacionado à luz do conceito de literacia
digital.
A iliteracia digital reporta-se a um processo que culmina no afastamento de indivíduos
dos computadores e da Internet por domínio incompetente do seu modus operandi.
Exclui-se a telefonia
“porque embora pertença ao mesmo grupo de produtos de IC
(Informática e Comunicação), até por compartilhar a mesma
infraestrutura, sob uma perspetiva sociológica o telefone possui
características bem diferentes dos demais: é parte da família de
produtos «inclusivos para analfabetos» que podem ser utilizados por
pessoas tecnicamente sem nenhuma escolaridade” (Sorg & Guedes,
2005: 102).
Como sublinha Gomes (2003), Castells defende que a iliteracia é a “nova pobreza” da
contemporaneidade, assumindo-se como um novo tipo de “analfabetismo funcional” que
traduz a ausência de competências para existir e co-existir num contexto de uma
sociedade global da informação. Neste sentido, compreende-se que a exclusão digital
tem um nível macro e múltiplos níveis micro, que decorrem de diferentes condicionantes.
As dimensões da exclusão social assumindo-se que estas não são sinónimo de pobreza
podem, então, aplicar-se à iliteracia digital sendo, assim, multidimensionais, dinâmica,
relacional, activa e contextual. Nesta perspectiva, e no contexto da iliteracia digital,
“grupos desfavorecidos” podem ser definidos no quadro do gradiente de uma amplitude
multidimensional, que compreenda os indicadores de ausência de direitos sociais e os
níveis micro da exclusão social, e delimite os grupos afastados da sociedade da
informação digital por estes motivos. Mayer (2003) refere que um grupo desfavorecido
pode ser definido através de uma simples expressão: “denied access to the tools needed
for self-sufficiency”. Um grupo desfavorecido será, então, aquele se descreve como
assumindo um padrão de falta de acesso a recursos imposto por diferentes barreiras.
Assumindo a rede como a característica central em termos organizacionais nas
sociedades informacionais, o modelo comunicacional que se tem afirmado reduz a uma
condição de subcidadania os cidadãos que são digitalmente excluídos.
Retratos da info-exclusão e info-inclusão nos países lusófonos
Traçar um perfil da info-exclusão e da info-inclusão nos oito países da CPLP não é uma
tarefa objectiva. A leitura dos números do acesso à Internet nos países lusófonos carece,
necessariamente, de um enquadramento mais amplo que contextualize a diferença entre
quatro esferas geográficas de desenvolvimento económico e tecnológico (e,
consequentemente, social e cultural) distintas: a). Portugal; b). Brasil; c). PALOP; d)
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Timor-Leste. Dentro da esfera macro dos PALOP (ou ”Os Cinco”, como se auto-
denominam), há a equacionar diferenças significativas entre os países e, ainda, dentro
dos próprios países.
A própria formação de identidades em contextos históricos, sociais, políticos, culturais e
económicos distintos suscita ciclo permanente de exclusão e inclusão que nada têm a ver
com a tecnologia. Martins afirma que
“como expressão simbólica, mitológica, a lusofonia constitui uma
particular categoria de palavras. Integra o vasto conjunto de
palavras com as quais encenamos a relação entre o mesmo e o
outro, entre s e os outros. Usamo-las para exprimir pertenças e
identidades, e mesmo para delimitar territórios” (2004: 5).
Tabela 1: Estatísticas de acesso à Internet em 2015 nos países lusófonos
País
Utilizadores com acesso
à Internet
Taxa de Penetração
(% da População)
Angola
5,102,592
26%
Brasil
117,653,652
57.6 %
Cabo Verde
219,817
40.3%
Guiné Bissau
70,000
4.1%
Moçambique
1,503,005
5.9%
Portugal
7,015,519
64.9%
São Tomé e Príncipe
48,806
25.2%
Timor-Leste
290,000
23.6%
Fonte: Internet Usage Statistics
No continente africano, o espaço lusófono não é senão um universo de partilha de
conhecimento, informação e afectos, numa dimensão multilingue. Na atmosfera das
produções em ambiente online, o processamento acontece da mesma forma. É notório
que as novas tecnologias de informação e comunicação vieram dar um contributo enorme
na aproximação dos povos lusófonos em África, a avaliar sobretudo pela dispersão dos
territórios que compõem o continente. As variações culturais em África são consideráveis,
de região para região, e a densidade económica desses países saídos do processo de
descolonização na primeira metade dos anos 70 do século XX não é favorável ao trânsito
humano nos circuitos geográficos que marcam o universo offline.
As viagens entre os diferentes países luso-africanos não estão ao alcance da maioria das
famílias dessa comunidade. Associado a isso, encontramos, no continente, milhares de
famílias com dificuldades em formular respostas para as questões básicas que atendem
à sobrevivência da pessoa humana, como a alimentação, a água potável, o vestuário, a
medicação, a educação, a higiene e a saúde blica, entre outras. Nestes casos, ficam
completamente de parte as possibilidades de desenvolvimento de conhecimento mútuo,
através de contactos possibilitados pelo trânsito no mundo offline. Neste sentido, a
mediação da comunicação de massa pode ter um papel de grande importância. A
televisão, pela força da sua imagem e pela capacidade de transportar as realidades
distantes para o interior dos lares planetários, poderia ter um papel de grande
importância nesta matéria. Porém, alguns factores que não concorrem para essa
dimensão da comunicação televisiva no espaço luso-africano:
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a) desde logo, a grande maioria dos conteúdos produzidos pelas televisões de Angola,
Cabo Verde, Guiné-Bissau, o Tomé e Príncipe e Moçambique não chegam aos
outros países da lusofonia africana;
b) essas televisões, sobretudo as públicas que têm mais responsabilidade na
sedimentação dos valores simbólicos dos seus países estão confinadas aos “lugares
comuns” e aos seus “lugares de conforto”, sendo que, muitas delas, não conseguem
cobrir a totalidade dos seus territórios nacionais;
c) uma fraca aposta nos documentários, que constituiriam elementos de grande
valor para ancorar o conhecimento de uma sociedade;
d) as grandes reportagens não são géneros televisivos muito cultivados nos países luso-
africanos. Através da investigação jornalística, as grandes reportagens resgatam
muito daquilo que são valores entranhados na vivência de um povo, trazendo
elementos fecundos para o conhecimento de uma sociedade;
e) carecem, nessas televisões, de programas de entretenimento de alto valor cultural,
que acabam por trazer mais-valia para a tradição simbólica desses povos.
Tendo em conta a carência dos meios materiais, as dificuldades no trânsito geográfico e
o fraco papel dos media tradicionais na constituição de pontes entre as diferentes
comunidades lusófonas em África, um espaço remanescente, potencialmente forte,
para o desenvolvimento da comunicação, dos sistemas de informação e para a troca do
conhecimento. Aqui, o computador arroga, para si, um papel de relevo.
Macedo, Martins e Macedo (2010) citam Wagner para ilustrar a situação brasileira que
“tem experimentado inegáveis avanços no acesso da população à
Internet, embora os números ainda revelem fortes disparidades,
conforme as regiões do país, as classes sociais e o nível de
escolaridade das pessoas”.
Vários autores referem que a taxa de penetração da Internet no Brasil se resume a um
fenómeno urbano, centrado na literacia. Ainda que seja notório que regiões com elevada
densidade populacional, independentemente da questão socioeconómica comecem a
utilizar com regularidade a rede. E aqui a centralidade dos media profissionais e a
extensão que estes fazem ao ciberespaço não seja indiferente.
O caso português é invariavelmente diferente porque se centra no suporte da União
Europeia e em níveis económicos e de literacia mais elevados que os restantes países. O
seu grau de desenvolvimento no acesso à Informação e ao Conhecimento é distinto dos
restantes países lusófonos, facto que a própria proliferação de dispositivos electrónicos
corrobora.
Timor-Leste é um país que viveu um longo período de ocupação e, posteriormente, de
conflito. Neste sentido, a baixa taxa de penetração de Internet parece uma realidade
óbvia, numa altura em que são prementes questões básicas de infra-estruturas.
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Uma outra questão a ter em conta é o número de falantes de língua portuguesa,
originários de qualquer um dos oito países, espalhados pelo mundo. De acordo com o
Observatório da Língua Portuguesa
3
, registam-se 244 milhões de falantes de Português.
No entanto, apenas em Portugal e no Brasil a totalidade da população é contabilizada
como falante de língua portuguesa. Nos restantes países, o Observatório regista que nem
todos os habitantes falam português: Angola (70%), Cabo Verde (87%), Guiné Bissau
(57%), Moçambique (60%), São Toe Príncipe (90%) e Timor-Leste (20%). Cite-se,
a este propósito, Ciancio que sublinha que
a língua portuguesa, que tambm me, em algumas realidades
passa a ser madrasta enquanto mecanismo elitizado. Assim ganha
tambm conotaço de repdio ao sufocar os idiomas nacionais e ser
naturalmente excludente na forma em que utilizada. O povo fica
s margens de um processo educacional de ensino do idioma em
conformidade com suas realidades locais (2008: 63).
Dados do referido estudo do Observatório da Língua Portuguesa revelam ainda cerca de
10 milhões de falantes de Português na diáspora. Neste sentido, e de acordo com o
Internet World Stats, o Português era a quinta língua mais falada na Internet em 2012
com 131.5 milhões de utilizadores. Os dados mostram, então, que a ideia de que se
assiste a uma mudança de um modelo de comunicação de massas para a comunicação
em rede não implica uma anulação, mas antes uma articulação dos e com os modelos
anteriores,
“produzindo novos formatos de comunicação e também permitindo
novas formas de facilitação de empowerment e, consequentemente,
de autonomia comunicativa” (Cardoso, 2009: 57).
A rede, enquanto espaço de multiplicidade de fragmentos, dá às sociedades o impulso
da convergência de meios, culturas, pessoas e conhecimento através de interfaces. O
caso cabo-verdiano ilustra este argumento e cimenta a ideia de que a construção das
narrativas sobre os países está directamente relacionada com os media, instituições e,
essencialmente, a apropriação da língua. Ciancio sublinha que
“o terreno da lusofonia é flutuante porque o delimita um território
de continuidade, e demarca identidades inconscientes que se
perdem no desconhecido e na pluralidade de sua fragmentação”
(2008: 7).
O novo ecossistema de comunicação que emerge com a Internet remete para a relação
entre a tecnologia e a dimensão social da sua utilização. No entanto, as identidades e
3
Dados de 2010 disponíveis em http://observatorio-lp.sapo.pt/pt/dados-estatisticos/falantes-de-portugues-
literacia (Consultado em dezembro de 2015).
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diversidades culturais que compõem o vasto universo da Lusofonia não concorrem uma
ideia una de sociedade lusófona em rede. Esta perspectiva seria, aliás, redutora da rica
multiplicidade cultural de 244 milhões de falantes de ngua portuguesa espalhada pelo
mundo. Ainda assim, arriscamos pensar que o paradigma do colectivo, os conceitos de
rede e comunidade são atualmente centrais no estudo dos espaços sociais que proliferam
pela Internet e permitem mapear mobilizações, representações e expressões da
Lusofonia enquanto um universo único que reúne cidadãos que partilham laços de
identidade, cultura e língua.
O ciberespaço enquanto interface da Lusofonia: uma tentativa de
“conexão lusófona” como ponto de intersecção
As CMC simulam a presença e potenciam a mediação da individualização e do colectivo
através de processos de comunicação, cooperação e conflito que se materializam através
da utilização social das tecnologias. A este propósito, atente-se nas palavras de Jouët:
“Communication practices are often analysed as being the product
of changes in communication systems and equipment, which are
though to define de facto the way in which individuals use them.
Such technical determinism, however, should be avoided. The same
can be said of the limiting model of social determinism which ignores
the role of technical objects and rather sees social change as the
principal factor determining usage” (2009: 215, 216).
Procurando superar as limitações tanto do determinismo tecnológico e como do social,
tentamos nesta secção analisar grupos formados através da interação mediada
digitalmente. Neste sentido, consideramos que as CMC potenciam a comunicação entre
indivíduos dispersos geograficamente, mas também geram cooperação mediada
digitalmente e são potenciais instrumentos de mobilização das sociedades info-incluídas
(Rheingold, 2002). As dinâmicas sociais que ocorrem no ciberespaço remetem para
interações que se desenvolvem via CMC, geram fluxos de trocas e sustentam estruturas
sociais (Recuero, 2009). A representação colectiva centra-se agora nos novos padrões
de interacção social que decorrem da utilização individual e conjunta da tecnologia
(Castells, 2003). Recuero argumenta que
“o início da aldeia global é também o início da desterritorialização
dos laços sociais” (2009: 135).
Recuero apresentou comunidade virtual como a definição para
“os agrupamentos humanos que surgem no ciberespaço, através da
comunicação mediada por computador” (2003a: s/p).
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Daqui decorre que a questão geográfica se esbate e a construção social partilhada se
torna um elemento de destaque.
Entre os diferentes media sociais que ilustram a paisagem da rede, o Facebook é a
plataforma com mais falantes de ngua portuguesa. Dados da agência Social Bakers
4
mostram que o Português era a terceira língua mais falada nesta rede social, em
Novembro de 2012, com 58539940 utilizadores. Um número que se revela
impressionante se comparado com os dados que a mesma agência disponibilizava em
Maio de 2010: 6119680. Ou seja, um aumento exponencial.
Tabela 2: Estatísticas de utilizadores registados no Facebook em 2012 nos países lusófonos
País
Utilizadores registados
no Facebook
Taxa de
Penetração
Angola
645,460
3.2%
Brasil
51,173,660
26.4%
Cabo Verde
107,340
20.5%
Guiné Bissau
NA
NA
Moçambique
362,560
1.5%
Portugal
4,663,060
43.3%
São Tomé e Príncipe
6,940
3.8%
Timor Leste
NA
NA
Fonte: Internet Usage Statistics
Recorrendo a uma triangulação metodológica, que cruzou a análise documental com
análise de conteúdo quantitativa e netnografia, desenvolvemos um estudo de caso que
visa categorizar e compreender as representações sociais da Lusofonia através do seu
mapeamento no Facebook. Assumindo como pressuposto que a lógica de rede traduz nós
(indivíduos e grupos) interligados por diversos laços. O modelo de comunicação em rede
resulta, portanto, de uma fusão entre diferentes esferas tecnosociais que moldam a
sociedade, com este trabalho procuramos responder a duas questões de investigação:
(1) Estaremos perante a emergência de espaços abstractos digitais, que possibilitam
representações da memória e do presente numa reconfiguração das relações de
poder e da sua materialização em pontos de intersecção digital?
(2) A rede pode assumir-se como um possível cenário de renovação e reforço de laços
na Lusofonia?
Delineámos como objetivos:
(1) analisar se o Facebook, pode induzir uma reconstruço das redes de significncia e
representaçes sociais da Lusofonia, através das categorias das páginas identificadas
com a palavra “Lusofonia” e das descrições indicadas;
(2) analisar se o discurso digital pode metamorfosear as representaçes sociais da
Lusofonia, procurando identificar se existe uma representação social única que derive
de uma construção social partilhada materializada em discursos similares nas
conversações nos grupos estudados.
4
Dados disponíveis em http://www.socialbakers.com/blog/1064-top-10-fastest-growing-facebook-
languages (Consultado em agosto de 2014).
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Para um mapeamento da Lusofonia na plataforma Facebook, procedemos a uma pesquisa
pela palavra-chave “Lusofonia” no diretório de páginas e grupos. Um aspecto
interessante a salientar centra-se nas sugestões apresentadas à pesquisa por
“Lusofonia”: “lusofonia games”, “lusofonia games 2014”, “lusofonia games mascot”,
“lusofonia games goa 2014”, “lusofonia games 2013 goa”.
Objectivámos apenas o mapeamento de grupos com mais de 60 membros e páginas com
mais de 100 fãs. Com base nestes requisitos, inventariámos 43 grupos e 28 páginas.
Tabela 3: Membros dos grupos identificados com a palavra “Lusofonia”
Membros
Grupos
60 100
23.25%
101 300
32.56%
301 500
11.63%
501 700
4.65%
701 900
6.98%
901 1100
0%
Mais de 1101
20.93%
Fonte: Elaboração própria
O número de membros entre os grupos identificados e analisados é spar, sendo que
não se estabelece um padrão sequer por categoria. Ainda assim, é possível notar que os
grupos com menos membros são, tendencialmente, os que têm uma tipologia de acesso
fechada.
Tabela 4: Tipologia de acesso aos grupos identificados com a palavra “Lusofonia”
Tipologia de Acesso
Grupos
Aberto
55.81%
Fechado
44.19%
Fonte: Elaboração própria
Verificou-se um equilíbrio entre a tipologia de acesso ao grupo, tendo sido possível
observar que os pedidos de acesso são rapidamente respondidos de forma positiva.
Tabela 5: Categorias dos grupos identificados com a palavra “Lusofonia”
Categorias
Grupos
Cultura
23.26%
Comunidade
18.60%
Comércio
6.98%
Desporto
2.33%
Diáspora
9.30%
Ensino/Estudos
4.65%
História
9.30%
Informação/Media
16.28%
Língua Portuguesa
4.65%
Sem Descrição/Sem Acesso
4.65%
Fonte: Elaboração própria
A categorização dos grupos é interessante de analisar pela sua diversidade. Os grupos
classificados como “Diáspora” estão identificados como comunidades de membros de
países lusófonos fora do seu contexto, particularmente no norte da Europa. Nestes casos,
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todos os grupos são de acesso fechado e verifica-se um pormenor substancialmente
interessante: os membros são quase sempre oriundos de mais de quatro países
lusófonos.
Os grupos que foram classificados como “Comunidade” são essencialmente orientados a
jovens e à partilha de experiências nos diferentes países lusófonos, nomeadamente no
que concerne a interesses musicais.
As categorias Informação/Media” e “Cultura” são as dominantes e tratam
essencialmente temáticas relacionadas com Brasil e Portugal, sendo rara a alusão
assuntos da África Lusófona e inexistente no que concerne a Timor-Leste.
Tabela 6: Fãs das páginas identificadas com a palavra “Lusofonia”
Fãs
Grupos
100 400
28.57%
401 700
21.43%
701 1000
10.71%
1001 1300
7.14%
Mais de 1301
32.15%
Fonte: Elaboração própria
Os grupos que têm mais utilizadores são os que estão classificados como “Cultura” e
“Informação/Media”. Os grupos com a tipologia “aberto” são os que m maior número
de membros. Para além de “fechados”, os grupos com menos utilizadores são os que
correspondem a categorias como “Diáspora”, “Comunidade” e os que o têm
classificação.
Tabela 7: Categorias das páginas identificadas com a palavra “Lusofonia”
Categoria
Páginas
Non-Governmental Organization (NGO)
1
College & University
2
Community
2
Community & Government
1
Sports League
2
Non-Profit Organization
5
Arts & Entertainment
1
Interest
1
Library
1
News/Media Website
1
Magazine
1
Sports Venue
1
Radio Station
1
Media/News/Publishing
1
Arts & Entertainment · Bands & Musicians
1
Community Organization
1
Government Organization
1
Music Chart
1
University
1
Book
1
Local Business
1
Fonte: Elaboração própria
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As páginas identificadas com a palavra “Lusofonia” pertencem a categorias díspares e
não demonstram um padrão único. Sendo que se verifica uma tendência para páginas
associadas a grupos e/ou comunidades e a organizações sem fins lucrativos.
Tabela 8: Número de fãs das páginas identificadas com a palavra “Lusofonia”
Fonte: Elaboração própria
À semelhança das categorias, as páginas também não apresentam um padrão no que diz
respeito ao seu número de fãs. Torna-se evidente que apesar de estarem sob o “chapéu”
da Lusofonia, não existe uma narrativa una nem padrões de agregação evidentes no que
concerne à representação social de um grupo único. Nesse sentido, de uma perspetiva
digital a Lusofonia é ainda tão-somente uma entidade in fieri.
A análise empírica permite concluir que as representações sociais da Lusofonia em
espaços de interação social mediada não evidenciam um grupo social único, que se
materializa numa construção social partilhada que substitui a presença pela pertença nos
lugares e o-lugares (Augé, 2010) que pululam na rede. A distribuição desagregada
dos espaços do Facebook não evidencia que esta seja uma ferramenta de comunicação
mediada por computador que reconstrua significados ou tão pouco se assuma como um
veículo de representações sociais que assumem a Lusofonia como um grupo social único.
Verifica-se que existe uma multiplicidade de narrativas e representações sociais
fragmentadas cuja construção simbólica partilhada é, apenas, a língua portuguesa.
Fãs
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235
Book
1503
Local Business
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 2 (Novembro 2016-Abril 2017), pp. 112-128
Interfaces da lusofonia: lusófonos em rede no Facebook
Inês Amaral e Silvino Lopes Évora
126
Notas conclusivas
A lógica da Internet como plataforma de rede social facilita às pessoas a oportunidade
de se associarem a outros com quem partilhem interesses, encontrar novas fontes de
informação e publicação de conteúdo e opinião. A denominada Web social disponibiliza
recursos que permitem, a quem tem acesso à tecnologia, a possibilidade de ter uma voz.
Plataformas como Facebook, YouTube, Flickr e Twitter o uma «nova ágora», que
combina o poder do capital humano e social com o potencial de comunicação global da
Web social. As possibilidades existem, a rede tornou-se dinâmica e a velocidade é uma
realidade.
O discurso digital não metamorfoseia o campo representacional da Lusofonia. Neste
sentido, não se perspectiva a criação de novas identidades lusófonas nem relações que
evidencie práticas sociais indutoras de mutações representacionais.
A questão dos referenciais simbólicos comuns e da ngua potenciam e maximizam as
interações online entre lusófonos. No entanto, o laço da Lusofonia não se materializa na
construção de uma narrativa única mas antes na propagação de diferentes narrativas,
assentes num determinismo geográfico apenas ultrapassado pela convergência de
convivência típica da rede que é potenciada pela partilha da língua.
A análise do ciberespaço Lusófono carece ainda de estudos de maior envergadura,
nomeadamente no que concerne a espaços de ligação e a amostras de dimensões
consideráveis em relação a cada um dos países tal como à representação social que os
Lusófonos fazem na rede de si e dos outros. Considera-se de urgência um projeto que
estude a interação entre lusófonos no ambiente digital e uma avaliação da construção
social partilhada baseada em análise de conteúdo e análise de redes sociais, o que
interpretamos que pode permitir aferir de forma mais ampla se o ciberespaço permite
reequacionar uma (re)construção da identidade lusófona num contexto fora dos media.
Um projeto a ter em mente.
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LA ARQUITECTURA CLIMÁTICA INTERNACIONAL EN CIERNES:
EL ROL DEL BASIC EN LAS NEGOCIACIONES HACIA EL ACUERDO DE PARÍS
María del Pilar Bueno
pilarbueno@hotmail.com
Doctora en Relaciones Internacionales, Magíster en Sistemas Ambientales Humanos, Licenciada
en Relaciones Internacionales, Investigadora de CONICET (Argentina), Asesora y negociadora
climática del Ministerio de Relaciones Exteriores Comercio Internacional y Culto de la Argentina.
Negociadora del Acuerdo de París. Líneas de investigación: políticas exteriores latinoamericanas,
políticas ambientales, cambio climático
Gonzalo Pascual
gonzalofpascual@outlook.com
Licenciado en Relaciones Internacionales, Universidad Nacional de Rosario. Líneas de
investigación: cambio climático, teorías de las Relaciones Internacionales.
Resumen
Este trabajo se concentra en el análisis del régimen climático multilateral del cambio climático
desde la perspectiva del complejo regimental. Se estudia el rol del grupo BASIC en el contexto
de la suscripción del nuevo acuerdo climático en París y su relación con potencias tradicionales
como Estados Unidos y la Unión Europea. El rol del BASIC ha sido fundamental para cerrar un
nuevo acuerdo, y a cambio de ese poder, el grupo ha aceptado dos condiciones: un acuerdo
“bottom-up” y las contribuciones nacionalmente determinadas como vehículo de la acción
climática. De igual modo, la difusión del poder en el Sistema Internacional conlleva que a
pesar de que el triángulo formado por el BASIC-UE-EEUU haya sido determinante para lograr
un nuevo acuerdo climático, otros actores también ocuparon un rol relevante en el proceso
de negociación de la COP 21.
Palabras claves
Cambio climático; complejo regimental; BASIC; negociaciones; Acuerdo de Paris
Como citar este artículo
Bueno, Maria del Pilar; Pascual. Gonzalo (2016). "La arquitectura climática internacional en
ciernes: el rol del BASICen las negociaciones hacia el Acuerdo de Paris". JANUS.NET e-journal
of International Relations, Vol. 7, N.º 2, Novembro 2016-Abril 2017. Consultado [online] em
data da última consulta, observare.autonoma.pt/janus.net/pt_vol7_n2_art8
(http://hdl.handle.net/11144/2787)
Articulo recibido en el 1 de Febrero de 2016 y aceptado para publicación en el 9 de
Setiembre de 2016
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La arquitectura climática internacional en ciernes:
el rol del BASIC em las negociaciones hacía el Acuerdo de París
María del Pilar Bueno y Gonzalo Pascual
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LA ARQUITECTURA CLIMÁTICA INTERNACIONAL EN CIERNES:
EL ROL DEL BASIC EN LAS NEGOCIACIONES HACIA EL ACUERDO DE PARÍS
María del Pilar Bueno
Gonzalo Pascual
Introducción
Desde hace más de cuatro décadas, los Estados miembros de las Naciones Unidas
construyen regímenes ambientales como modo de dar una respuesta institucionalista
tanto a los desafíos crecientes en la materia como a los pronósticos científicos, que
denotan la exacerbación de la degradación en las condiciones ambientales identificadas
e incorporadas como tópico de la agenda internacional a partir de la década del sesenta.
De este modo, se han creado diversos regímenes internacionales enfocados en la
protección del ambiente. En lo que respecta estrictamente al Cambio Climático, la
arquitectura internacional está compuesta por la Convención Marco de las Naciones
Unidas sobre el Cambio Climático (CMNUCC), firmada en 1992, el Protocolo de Kyoto
(PK), adoptado en 1997 en la tercera Conferencia de las Partes (COP3) de la CMNUCC,
su enmienda del año 2012 (COP18, Doha), una serie de decisiones tomadas por las
Conferencias de las Partes (COP) como xima autoridad de la CMNUCC y el Acuerdo de
París adoptado en diciembre de 2015 (COP21).
La Convención Marco forma parte de los documentos signados en el contexto de la
Cumbre de la Tierra celebrada en Río de Janeiro en 1992, junto con la Convención de
Lucha contra la Desertificación, la Convención Marco sobre Biodiversidad (CBD), la
Declaración de Bosques y la Declaración sobre Medio Ambiente y Desarrollo. Se trata de
un documento que consagra una visión binaria del mundo consolidada en su sistema de
anexos, donde los países desarrollados deben reducir sus emisiones de gases de efecto
invernadero (GEIs) y proveer medios de implementación para que los países en
desarrollo realicen sus propias acciones climáticas de mitigación y de adaptación a los
efectos adversos del cambio climático. Esta división surge de una mayor responsabilidad
de los primeros en la generación del cambio climático que se ha consolidado en el
principio de responsabilidades comunes pero diferenciadas (CBDR, por sus siglas en
inglés) y, por ende, en el liderazgo que deben adoptar en la acción climática (artículo
3.1. de la CMNUCC).
A pesar de las críticas contundentes al PK, su efectividad y a los mecanismos de mercado
que instauró, como mecanismos de flexibilización; el mismo significó un paso concreto
en lo que respecta a la implementación de la Convención y en la conformación de un
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régimen internacional de reducción de emisiones de GEIs frente al cambio climático. El
mismo se basa en los principios y propósitos de la Convención
1
, comprometiendo a los
países que conforman el Anexo I con metas de reducción y limitación de emisiones
durante un plazo, denominado desde Doha, primer período de compromisos (2008-2012,
I PCPK)
2
.
Ahora bien, la eficacia relativa del PK en el contraste entre lo comprometido -que ya era
poco ambicioso para la época- y lo obtenido -que fue aún menos ambicioso-, desemboca
en un segundo período de compromisos (2013-2020, II PCPK) acordado en la COP 18
celebrada en Doha en 2012, luego de tres episodios significativos en la vida de las COP:
el fracaso de la Conferencia de Copenhague de 2009; la legitimación de los acuerdos de
Copenhague en la Conferencia de Cancún en 2010 y el establecimiento del mandato de
Durban para alcanzar un nuevo acuerdo en 2015 y mientras tanto, y bajo la consigna de
eliminar la brecha de implementación, constituir un segundo período de compromisos.
La enmienda de Doha es el fiel reflejo de las carencias del régimen. Ilegítima desde su
origen por la falta de quórum en términos de sus participantes, manifiesto en el escaso
porcentaje de emisiones globales cubiertas, con un número de ratificaciones aún más
limitado en 2015, que reduce el concepto de brecha de implementación a la mitigación
del cambio climático y que a pesar del compromiso de reducción del 20 al 40% a niveles
de 1990, escasamente tendrá consecuencias efectivas en la limitación y reducción de las
emisiones globales. Con lo cual, ni el primer ni el segundo período fueron convincentes
para alcanzar su propósito. En la práctica, estimularon un conjunto de medidas de
mercado como escape a los compromisos que satisficieron a dos grupos de países: a
quienes se beneficiaron de los mercados de carbono a través de las relaciones con sus
propios mercados regionales y nacionales, como la Unión Europea (UE), y a quienes se
beneficiaron como receptores y captaron los MDL (Mecanismos de Desarrollo Limpio)
como China, India, Brasil y México, que concentraron el 75% de los proyectos
3
.
En lo que respecta a los actores de la arquitectura climática global se puede decir que,
dadas las condiciones estructurales del Sistema Internacional tras la caída del muro de
Berlín, Europa y Estados Unidos (EEUU) fueron los principales actores del régimen
climático durante los noventa y principios del nuevo milenio. No obstante, debido a los
condicionantes domésticos y al advenimiento de la administración de George W. Bush,
EEUU se retiró del PK sin aprobar su firma, quedando la UE como el nuevo e indiscutido
líder en lo referente al cambio climático en el plano multilateral
4
. Esto le permitió moldear
y dar al régimen un carácter afín con sus necesidades e intereses, a costo de oficiar como
su locomotora y promotora. Es por eso que a principios del nuevo milenio, cuando la
entrada en vigor del PK ya estaba comprometida al fracaso, la UE pactó con Rusia su
ratificación a cambio del reconocimiento como economía de mercado que le permitiría
ingresar a la Organización Mundial del Comercio (OMC).
1
Entre las provisiones de la CMNUCC se pueden nombrar la equidad inter e intra-generacional, el principio
precautorio y preventivo, el derecho al desarrollo sustentable, la cooperación internacional, y el principio
de responsabilidades comunes pero diferenciadas (CBDR por sus siglas en inglés) (Arístegui, 2012: 589-
590).
2
Estas metas se establecen con respecto a 6 tipos de GEIs: Dióxido de Carbono (CO2), Metano (CH4), Óxido
Nitroso (N2O), Hidrofluorocarbonos (HFC), Perfluorocarbonos (PFC), Hexafluorocabono de azufre (SF6).
3
Ampliar en http://www.cdmpipeline.org
4
Existe una amplia bibliografía respecto al liderazgo climático europeo, sólo a manera de ejemplificación
mencionamos los siguientes aportes: Paterson (2009); García Lupiola (2009); García Lupiola (2011); Lopez
Lopez (2002); Perez de las Heras (2013); Fernández Egea y Sindico (2007); Barriera López (2010).
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Sin embargo, pese a la relevancia de la UE, es posible afirmar que en 2009 no pudo
articular, a través de su liderazgo, la firma de un nuevo acuerdo tras la finalización del I
PCPK. En la COP15 que tuvo lugar en Copenhague en 2009, la UE pagó el precio de un
fracaso rotundo en su squeda de alcanzar un nuevo acuerdo ambicioso en términos de
reducción de emisiones y bajo lógicas que Estados Unidos calificó como “top-down”
5
.
Oficiaron como principales sicarios, los mandatarios de EEUU y del grupo BASIC (Brasil,
Sudáfrica, India y China) quienes alcanzaron un texto de acuerdo diferente al propuesto
por la UE como anfitriona. Sin embargo, la falta de transparencia del proceso y del
resultado derivaron en la objeción impuesta por los países del grupo ALBA quienes
manifestaron su negativa a avalar un texto surgido en las márgenes del proceso
negociador.
De haberse aprobado en 2009 el acuerdo de Copenhague, habría legitimado un modo del
quehacer climático multilateral propio de un directorio de grandes emisores que toman
las decisiones por el conjunto. Si bien es cierto que la UE, EEUU y China son responsables
por casi el 60% de las emisiones globales, una dinámica de esta índole podría haber
derrumbado los pilares, al menos formales, del régimen internacional.
El grupo BASIC, como subgrupo de negociación opera al interior del Grupo de los 77 más
China
6
y desde su origen, en noviembre de 2009, ha declarado de continuo que se
encuentra bajo la órbita del G77
7
. Su participación en los procesos de negociación ha
adquirido una importancia más que relevante luego de la Conferencia de Copenhague,
especialmente como resultado del debilitamiento del liderazgo de la UE, a como al
rechazo del PK por parte de los EEUU y a un orden internacional cada vez más
convulsionado y con múltiples actores con poder relativo. De igual modo, el régimen
climático no opera con una lógica de suma cero, sino que el desplazamiento de la UE
encontró explicaciones tanto en los dilemas del sistema internacional como en las
compulsas internas de la Unión (Bueno, 2014), lo que no significa que la UE no haya
logrado ajustarse y aceptar que el éxito relativo del nuevo acuerdo radica en un consenso
entre un número mayor de voces en la que todos deberán ceder cosas valiosas.
Con lo cual, y como quedó de manifiesto en la COP15, el rol del BASIC fue fundamental
para cerrar el nuevo acuerdo de París, y a cambio de ese poder, el grupo ha aceptado
dos condiciones propias del imaginario climático norteamericano: las bondades de un
acuerdo “bottom-up” que les permita limitar al plano interno su acción climática con el
único compromiso de reducir sus emisiones de GEIs voluntariamente -tal como
5
Dos de los principales argumentos interpuestos por los Estados Unidos para autoexcluirse del Protocolo de
Kyoto, fueron la ilegitimidad de un acuerdo en el cual no participase China como el segundo emisor global
al momento que se negoció el PK; y posteriormente, que Kyoto era ineficaz en cuanto proponía un
compromiso desde el régimen hacia los Estados que en algunos casos no era pasible de alcanzarse (mirada
top-down). En consecuencia, cada Estado debía establecer cuál era su compromiso climático posible
(bottom-up). EEUU argumentó que el régimen ha sido top-down” hasta el momento y que este ha sido
uno de los principales motivos de su fracaso, junto con la interpretación del principio de responsabilidades
y la visión binaria del mundo que desde su mirada, ya no representa la realidad. Es por eso que ha
sustentado la noción de contribuciones nacionalmente determinadas (NDCs) y su inscripción a través de
instancias flexibles como “agendas nacionales” o registros como modo de representar lo que cada Estado
está en condiciones de hacer.
6
El G77+China es un grupo de negociación formal que aglutina a 133 países. Ampliar en www.g77.org
7
La referencia al G77 está presente en todas las declaraciones y comunicados conjuntos que han realizado
los países del BASIC desde la primera reunión de noviembre de 2009 en Beijing, China. Hay un esfuerzo
particular por destacar que se constituye en un espacio de cooperación y negociación dentro del G77+China
y no por fuera de éste (Bueno, 2013: 215).
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anunciaron en 2009
8
- y formar parte del grupo de países que han presentado sus
contribuciones nacionalmente determinadas previstas o que las Partes prevén realizar
(INDCs, por sus siglas en inglés).
Como consecuencia de lo afirmado, nos preguntamos ¿Cuál es el rol del grupo BASIC en
la arquitectura climática internacional y cuál fue su posición, desde la COP15, con miras
a la adopción del Paquete París en la COP21? ¿Cómo se relacionan estos aspectos con la
UE y EEUU como principales actores? ¿En qué medida el acuerdo de París es un acuerdo
entre los grandes emisores?
Para dar respuesta a estos interrogantes nos situamos desde las Relaciones
Internacionales y sus teorías, como modo de percibir y explicar un mundo convulsionado
y diverso. En tal sentido, se emprende una respuesta de tipo institucionalista a los
interrogantes formulados, que nos permita reflexionar acerca de los márgenes y límites
de esta teoría para dar cuenta del fenómeno analizado.
Marco teórico-conceptual
El concepto de Régimen Internacional dentro de la Teoría de los Regímenes
Internacionales tiene dos definiciones canónicas, expresadas por sus autores más
representativos: Stephen Krasner por un lado, y Robert Keohane y Joseph Nye por el
otro. Krasner (1989: 14) define a los regímenes internacionales como “principios,
normas, reglas y procedimientos de toma de decisiones en torno de las cuales convergen
las expectativas de los actores”. Keohane y Nye (1988: 18), bosquejando una definición
similar de este concepto, esbozan que los Regímenes Internacionales son
“procedimientos, normas o instituciones para ciertas clases de actividades” que crean o
aceptan los gobiernos para regular y controlar las relaciones transnacionales e
interestatales. Según estos últimos autores, el surgimiento de los regímenes
internacionales apunta a resolver las deficiencias del Sistema Internacional proveyendo
ganancias para los Estados. Por su parte, la primera definición amplía el espectro a otro
conjunto de actores que no son solo los Estados y sus intereses en la conformación y
mantenimiento de regímenes.
El debate relativo a las normas permite pensar, primero, en la Convención en términos
de sus principios, propósitos y estructura, así como la distinción que provee entre Partes
Anexo I, Partes Anexo II y Partes no Anexo I
9
, tanto como en el PK y su enmienda, puesto
que establecen algunas obligaciones que deben cumplir las Partes Anexo I en términos
de reducción y limitación cuantificada de emisiones. Esta respuesta institucionalista
considera que tanto la CMNUCC como el PK y el reciente Acuerdo de París representan
los principales pilares del Régimen Internacional del Cambio Climático.
En tal sentido, Keohane junto a Ovodenko aducen que “las instituciones reducen los
costos de transacción e incertezas para los gobiernos en sus futuras interacciones dentro
de un área conflictiva específica” (Ovodenko y Keohane, 2012: 523). Sin embargo, a
8
El Acuerdo de Copenhague no posee un carácter jurídicamente vinculante, primero por ser un acuerdo
alcanzado en una instancia de COP (y por ende no haberse plasmado en un tratado internacional), pero
fundamentalmente por haber tenido el visto negativo de tres países (Sudán, Bolivia y Venezuela).
9
Las Partes Anexo I son un conjunto de países desarrollados, las Partes del Anexo II son los países de la
OCDE que deben proveer los medios de implementación a los países en desarrollo para que éstos realicen
sus acciones de mitigación y adaptación al cambio climático, y las Partes no Anexo I son todos los no
comprendidos en el primero.
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pesar de que las instituciones ayudan a resolver problemas de información (lo que hace
reducir los costos de transacción e incertezas), su creación es a veces difícil, debido
justamente a datos incompletos e imperfectos. A causa de esto, es más fácil y menos
costoso mantener los regímenes internacionales que crearlos (Sodupe, 2003: 123). Esto
último se puede ver reflejado en lo problemática que fue la creación del PK y la dificultad
por la que están pasando los Estados para lograr un nuevo acuerdo que remplace al
mismo. Asimismo, si bien fue más factible lograr una prórroga del Protocolo a través de
la firma de la enmienda de Doha que lograr un nuevo tratado sobre el cambio climático,
sólo se han logrado 65 ratificaciones de las 144 necesarias para la entrada en vigor de
la enmienda
10
.
Keohane también busca demostrar que, bajo sus propios términos, el neorrealismo se
equivoca al teorizar sobre la inevitabilidad de la existencia de la hegemonía o el conflicto
para el surgimiento de un Régimen Internacional (Sodupe, 2003: 120). Esto se puede
ver en el papel que desempeñó la UE entre 2001 y 2005, cuando EEUU anunció que no
ratificaría el Protocolo. La UE se encargó de llenar los vacíos y evitar que el Protocolo
fracasara antes de comenzar, buscando tardía pero exitosamente que el resto de los
países lo ratificara para su entrada en vigor
11
. La UE no ejerció las veces el rol de actor
hegemónico, quizás por su propio estilo de liderazgo, sino s bien, convencida de la
relevancia de las reglas para el cumplimiento de sus propios objetivos como Unión de
Estados y en el marco de un modelo de asociación guiada por los principios de Jean
Monnet (Velo, 2014) promovió la continuidad del régimen que movería sus propios
engranajes domésticos y le permitiría una proyección internacional de liderazgo.
Por lo tanto, un régimen internacional puede conformarse exitosamente para reducir los
costos de transacción e incertezas entre los Estados; con o sin Estado hegemónico o
conflicto que lo promueva. De esta forma buscará resolver determinadas deficiencias del
Sistema Internacional y proveer ganancias para los Estados. Sin embargo, la resolución
de los problemas que busca comprender, acomo sus frutos, dependerán del grado de
su integración. En este sentido, Keohane y Victor (2011: 8-9) analizan el régimen
climático internacional a la luz del concepto de complejo regimental que se diferencia de
las definiciones tradicionales de regímenes en la medida que éstos son analizados como
instituciones regulatorias comprensivas de índole internacional usualmente focalizadas
en un instrumento legal único. Sin embargo, existen otros regímenes altamente
fragmentados compuestos por un conjunto de instrumentos. Para los autores, el cambio
climático es un ejemplo de complejo regimental dado que se encuentra en algún punto
en el medio de esos dos extremos. Los autores identifican tres fuerzas que marcan el
nivel de integración o fragmentación de los regímenes: la diversidad de intereses, el nivel
de incertezas y el nivel de vinculación. La mayor integración o fragmentación de los
resultados otorga incentivos a los actores a invertir en una institución o a buscar
multiplicarlas.
Con respecto a la primera fuerza, los autores explican que se espera la existencia de
regímenes integrados cuando los intereses de los principales y más poderosos actores
10
Valor al mes de mayo de 2016, información disponible en www.unfccc.int
11
La entrada en vigor del PK fue posible a principios de 2005, debido a lo establecido en su artículo 25. Éste
establece que su entrada en vigor se encontraba supeditada al depósito de instrumentos de ratificación,
aceptación, aprobación o adhesión de al menos 55 partes de la CMNUCC, entre las que se encontrasen
Partes del anexo I cuyas emisiones totales representen por lo menos el 55% del total de las emisiones de
dióxido de carbono de las Partes del Anexo I correspondiente a 1990. Esta condición se cumplió a partir de
la ratificación del Protocolo por parte de Rusia a fines del año 2004.
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(sean Estados o no) son lo suficientemente similares, dentro de un área conflictiva, que
demandan la creación de una sola institución como la mejor manera de alcanzar los
beneficios de la cooperación. Una demanda fuerte de los actores clave en torno a un
objetivo común produce una institución integrada sin potenciales rivales.
El nivel de incertezas se puede ver cuando los Estados buscan cooperar en cuestiones
muy complicadas con un gran mero de actores involucrados, donde puede haber un
alto grado de incertezas sobre los beneficios potenciales que van a recibir y los riesgos a
los que van a ser expuestos por la regulación que resulte.
Por último, el nivel de vinculación dentro de los regímenes se refiere a que muchas
instituciones favorecen las vinculaciones entre áreas conflictivas como una forma de
incrementar el ámbito o alcance de éstas, alentando la integración. La vinculación entre
áreas conflictivas ayudaría a definir las obligaciones en torno a las mismas para los
actores en un espacio incierto.
Cabe destacar que antes de la COP15, y desde la conformación del Régimen Climático
global (CMNUCC en 1992), la arquitectura climática evidenció una alternancia de
liderazgos de la UE y EEUU como principales potencias del Sistema Internacional de Post
Guerra Fría. No obstante, a partir de Copenhague se comenzó a conjugar un nuevo
régimen climático que desembocó en el acuerdo de París de 2015, en el que las potencias
del grupo BASIC tuvieron un rol preponderante junto con EEUU y la UE.
Ahora bien, la dispersión de poder del Sistema Internacional actual, también mostró en
Copenhague a través de actores s pequeños como los países del ALBA, que el régimen
climático no es un directorio de emisores. En consecuencia, desde Copenhague se
conformaron otros subgrupos o estructuras de cooperación que promueven certezas. La
conformación del grupo LMDC (Like Minded Developing Countries) que nuclea a actores
como China e India, pero también al ALBA, constituye un intento por parte de los
primeros de contener hacia París los daños ocurridos en la COP15, y por otra parte,
incrementar las vinculaciones con otros actores que comparten la búsqueda de sostener
la mirada binaria del mundo que promueve la CMNUCC en términos de diferenciación.
Con lo cual, el LMDC ha operado como herramienta para control de daños, y a su vez,
como modo de incrementar el margen negociador y nivel de certezas por parte de dos
de los actores del BASIC, China e India.
Por lo tanto, en el intento de aproximarse a las respuestas de las preguntas planteadas,
este enfoque institucionalista parte del supuesto de que el rol del grupo BASIC en la
arquitectura del régimen climático fue condicionante entre 2009 y 2015, teniendo en
cuenta el protagonismo adquirido por éste a partir de la Conferencia de Copenhague
(2009). Consecuentemente, el grupo fue un actor clave con miras a la adopción del
“Paquete París” en la COP21, constituyéndose un triángulo integrado por EEUU-UE-BASIC
sin cuyo consenso previo, no se habría logrado un acuerdo.
“Common ground” en el triángulo
Para lograr respuestas a las preguntas formuladas, se realiun análisis de la relación
que hubo entre las posiciones del BASIC, la UE y los EEUU durante el período
seleccionado. Este análisis se llevó a cabo contrastando los resultados de las COPs y del
Acuerdo de París con las posiciones tomadas por los BASICs en las reuniones ministeriales
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que tuvieron, estableciendo qué demandas de éstos actores se vieron reflejadas en las
decisiones finales de cada COP (Pascual, 2015) y del Acuerdo.
Dado que hemos dicho que el liderazgo del régimen ha estado alternado entre Estados
Unidos y la UE, partimos del supuesto de que las decisiones COP que llevaron al Acuerdo
se construyeron a partir de un consenso nimo entre dichos actores o “common
ground”. Por ende, las demandas del BASIC incluidas en las decisiones COP a partir de
Copenhague, formarían parte del “common ground”.
Sin embargo, no se puede tomar los intereses de la UE y de EEUU como un bloque, sino
más bien, existen aspectos en los cuales el BASIC podría converger con uno o con otro
actor dadas las circunstancias. Tampoco desconocemos que el propio BASIC no
constituye una entidad monolítica, sino que concurren importantes diferencias entre sus
participantes en cuanto al devenir del régimen y respecto a algunos de sus principales
debates, como por ejemplo, la diferenciación y cómo esto incide en la mitigación,
adoptando o no nuevos compromisos internacionales de reducción de emisiones. Una
prueba fehaciente de estas diferencias lo constituye el hecho de que China e India
integren el LMDC con visiones más statuquistas de la arquitectura climática internacional
y el respaldo irrestricto de la división binaria del mundo.
Con respecto a la primera fuerza identificada por Keohane y Victor, se podría afirmar que
la similitud de intereses entre los EEUU, la UE y el BASIC en cuanto a la marcha del
régimen climático es álgida. Existen temas en los cuales hay mayor acercamiento entre
BASIC y EEUU, o entre UE y BASIC, o entre UE y EEUU, pero es difícil identificar tópicos
en los que se llegue a la convergencia de todos.
El mayor acercamiento o “common ground fue quizás el concepto de contribuciones
nacionalmente determinadas y contribuciones nacionalmente determinadas previstas o
que las Partes prevén realizar (NDCs y INDCs), alcanzado en Varsovia en la COP19 luego
deos de debate relativo a los compromisos diferenciados bajo la Convención y cómo
esto se plasmaría en el nuevo acuerdo. Cabe destacar que comprendemos por “common
ground” al mínimo común denominador al que pudieron arribar los actores en
determinadas circunstancias en función de sus intereses y posiciones rivales, lo cual
implica que dependiendo del caso haya uno u otro más conforme o afín con dicho
resultado.
Las contribuciones nacionales responden a la convergencia entre Estados Unidos y el
BASIC en la visión “bottom-up” del proceso, y en qué sentido cada Parte debe poder
determinar por misma cuál es el esfuerzo que está dispuesta a realizar, siempre que
esto no signifique un constreñimiento desde el régimen que sea internacionalmente
exigible como lo eran los compromisos de Kyoto. Si bien la UE prefiere compromisos o
contribuciones “top-down” que le permitan distribuir esfuerzos al interior de su propia
estructura de 28 miembros, ha aceptado este común denominador en la medida que
permite generalizar la acción climática más allá de los límites de los países Anexo I.
La inscripción de las contribuciones en anexos, agendas nacionales, registros electrónicos
y otras opciones similares constituían uno de los debates entre los actores centrales y
condicionan la flexibilidad de la contribución de las Partes. Ese sería otro punto de cierta
convergencia entre el BASIC y EEUU, donde la UE prefirió un sistema de anexos similar
al de la Convención, y los primeros adujeron que debería avanzarse hacia un esquema
de flexibilidad que permita progresar en la contribución (pensando que el avance sea
hacia adelante y sin “backsliding”). En el Acuerdo de París el “common ground” ha sido
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un registro blico sostenido por la Secretaría de la CMNUCC que permite una mirada
flexible y de progresión en vez de un modo estático como el de anexos.
Ahora bien, además de la inscripción, otro aspecto central de las INDCs/NDCs es qué
elementos cubren y en qué sentido constituyen o no un compromiso internacional,
especialmente de mitigación. La UE aducía que con la inscripción, ya sea en anexos o en
un registro de las INDCs las mismas debían volverse NDCs y por ende, compromisos
internacionales de reducción de emisiones, centradas en la mitigación. Este último
aspecto era compartido por EEUU, aunque no la cuestión del compromiso, dado que dicho
país ha defendido el carácter nacionalmente determinado y voluntario de las
contribuciones.
Con lo cual, lo que estaba en juego con estos debates no era otra cosa que la
diferenciación, en el sentido de que si las NDCs se volvían un compromiso internacional
la diferenciación perdería su significado más tradicional
12
. Si además, las NDCs se
concentraban exclusivamente en la mitigación, la diferenciación llegaría a su fin y, más
bien, la autodiferenciación (“self-differentiation”) triunfaría. El resultado de París denota,
por un lado, que las contribuciones seguirán siendo voluntarias. Además, que en materia
de mitigación la diferenciación persiste en el sentido de que los países desarrollados
deben incluir metas de reducción cuantificada y absoluta de emisiones y los países en
desarrollo sus esfuerzos de mitigación tendientes a presentar metas de reducción y
limitación de emisiones. Asimismo, el artículo 3 reconoce a las NDCs como el vehículo de
la acción climática que incluye todos los elementos y no sólo a la mitigación.
Otro aspecto vital de las negociaciones se vincula con la transparencia, especialmente de
la acción. La UE ha empujado hacia adelante como vestigio de la lógica “top-down” por
un marco unificado de transparencia sin diferenciación. Surgieron otras propuestas como
la de México para que se establezca un sistema de transición. EEUU, por su parte,
consintió en que la transparencia debía ser unificada como modo de disolver la
diferenciación binaria. En el Acuerdo de París, la transparencia no aboga por un sistema
unificado explícito pero tampoco queda claro en qué sentido puede apoyarse en las
dinámicas preexistentes. Además, la flexibilidad a la cual se hace referencia en el artículo
13 alude a las diferentes capacidades y no a las responsabilidades, lo cual cambia la
perspectiva desde la cual se analiza la comunicación y se realiza el monitoreo, revisión y
verificación (MRV).
Hasta la Conferencia de París, las contribuciones constituyeron zonas grises a pesar de
que la mayoría de las Partes las presentaron antes de diciembre e ingresaron en el
informe de efecto agregado realizado por la Secretaría. En primer lugar, no se sabía el
rol que tendrían los medios de implementación en una estructura centrada en
contribuciones, dado que ningún país desarrollado había incluido este aspecto en su
INDCs. Además, tampoco había claridad respecto a cuál sería el rol del componente de
adaptación de las INDCs de los países en desarrollo y cómo se podría materializar el
hecho de que algunos países como la UE y los Estados Unidos quieran hacerlos
internacionalmente exigibles, convirtiéndolos en compromisos. Tras la COP21 se puede
afirmar que las NDCs se volvieron el vehículo de la acción climática pudiendo incluir todos
los elementos. No obstante, el hecho de que sea voluntario -tal como proponía EEUU- es
un precio que pagan los países en desarrollo a cambio de no tener compromisos
12
Por significado tradicional referimos a la división binaria del mundo, donde los países desarrollados tienen
compromisos de mitigación obligatorios y los países en desarrollo no los tienen.
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obligatorios de reducción, cediendo los medios de implementación. Esto se hace evidente
en países como China y Brasil, que no manifestaron la necesidad de contar con medios
externos de implementación de sus INDCs.
La cuestión de fondo y, por ende, el mayor obstáculo para lograr una mayor similitud de
intereses entre los principales actores ha sido la defensa del BASIC del principio de CBDR
contra las demandas de mayor compromiso, fundamentalmente en mitigación, por parte
de los países desarrollados. En consecuencia, es la diferenciación el baluarte que genera
la doble pertenencia de países como China e India al BASIC y al LMDC. Si bien el BASIC
aceptó asumir compromisos voluntarios como precio de entrada a su liderazgo en
Copenhague, se han mantenido unidos en no ceder la diferenciación. Más bien, existe
entre sus integrantes distintas visiones acerca del concepto de diferenciación, donde
China e India presentaron una estrategia más proclive a sostener el status quo de la
Convención, mientras Brasil y Sudáfrica propusieron otras alternativas. La diferenciación
concéntrica de Brasil constituye una de dichas opciones. Finalmente, si bien el BASIC se
mantiene unido en no ceder con respecto a la diferenciación en conjunto, en el Acuerdo
de París terminó accediendo a una modificación parcial de este principio en pos de una
mayor similitud de intereses que permita un acuerdo climático. Esto se ve reflejado al
observar que en el artículo 2, inc. 2 del Acuerdo al CBDR se le agrega la frase “a la luz
de las diferentes circunstancias nacionales” lo que conlleva a que la división binaria del
mundo ya no sea tal y haya lugar para determinados matices. De hecho, en lo que se
refiere estrictamente a la mitigación, el CBDR con la inclusión de las circunstancias
nacionales, se aplica en el artículo 4 inciso 3 cuando establece que las NDCs reflejarán
“la mayor ambición posible” teniendo en cuenta este principio.
La diversidad de intereses en torno al concepto de diferenciación no sólo se manifiesta
en los compromisos de mitigación, sino también en lo relativo a los medios de
implementación. Tal es así que un ámbito donde no se logra una satisfactoria comunión
de intereses es el financiamiento climático. Ahora bien, esto no atiende exclusivamente
al interés de los actores que conforman el triángulo. Existe una comunión de intereses
entre la UE y EEUU en no ceder en este sentido. Sin embargo, a pesar de que desde el
plano discursivo y su pertenencia al G77, el BASIC haya pujado por medios de
implementación, no es una prioridad real del grupo, con lo cual, el financiamiento
climático es una bandera del mundo en desarrollo y el BASIC la to como propia,
especialmente como herramienta discursiva.
De igual modo, poco antes de la Conferencia de París, se había hecho manifiesto que sin
subsanar -al menos en parte- la grieta del financiamiento climático, el acuerdo no sería
posible desde la perspectiva del G77. Es por eso que la UE cumplió con sus promesas
(“pledges”) en el Fondo Verde para el Clima (GCF, por sus siglas en inglés) para alcanzar
el piso de los 10 mil millones de dólares, dado que comprendió que la marcha del Fondo
en octubre era vital como signo político antes de la COP. No así EEUU, que es el único
país que no hizo efectiva su promesa alegando el desacuerdo en el seno del Congreso
Norteamericano. La capitalización de los 10 mil millones de dólares del Fondo se alcanzó
a duras penas en junio de 2015. Sin embargo, n queda una larga batalla en torno al
valor restante para completar los 100 mil millones comprometidos en Cancún en 2010.
París y Lima, como anfitriones anunciaron en la reunión ministerial informal realizada en
París tras la reunión del ADP 2.10 (septiembre de 2015) que habían encargado a la OCDE
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un informe sobre financiamiento climático. Dicho informe tiende a mostrar que los países
desarrollados han provisto a razón de 60 mil millones anuales en 2013 y en 2014
13
.
En consecuencia, hubo dos informes claves previos a la COP que procuraron movilizar el
contenido del acuerdo: el informe de efecto agregado de las contribuciones realizado por
la Secretaría de la Convención y el informe sobre financiamiento climático realizado por
OCDE-CPI. Mitigación y financiamiento fueron las llaves políticas de París.
Ahora bien, en rminos de mitigación ya hemos dicho que la diferenciación se sostuvo
y ha sido la clave de que los países del BASIC cedieran en otros reclamos. En materia de
financiamiento, el artículo 9 reconoce que son los países desarrollados quienes deben
proveer a los países en desarrollo tanto para la mitigación como para la adaptación. Cabe
destacar que esto es representativo en el sentido de que en otros apartados del Acuerdo
no se establece quien proveerá los medios de implementación. Asimismo, se reconoce el
rol del capital público aunque no en forma privativa ni principal. Otra cuestión significativa
es el reconocimiento de la importancia de las donaciones para la adaptación y la
necesidad de que los países desarrollados comuniquen en forma bienal el apoyo provisto
y movilizado a través de intervenciones públicas.
Por otra parte, la tecnología constituye un importante patrón de discordia entre actores
como India y Estados Unidos, especialmente lo referido a la Propiedad Intelectual. Una
prueba de la diversidad de intereses y de la dificultad de lograr un “common ground”, es
que los diversos borradores de documentos preparados por los Co-Presidentes del ADP
a penas incluyan algún párrafo en esta materia, incluso con el mandato de que los
elementos de Durban deben figurar de un modo balanceado.
Además de la CMNUCC, como foro primario de tratamiento del cambio climático en el
plano multilateral, la cuestión se ha llevado a otros foros y espacios de negociación
internacionales, operando en algunos casos como rivales al Régimen Climático
Internacional y en otros casos, como acompañamiento. Decimos esto debido a dos
razones importantes. En primer lugar, esta situación demuestra fácticamente, según la
teoría tomada, la debilidad de la integración del régimen como única institución donde
se discutan aquellos temas relacionados con el Cambio Climático. En segundo lugar, y
como consecuencia de lo primero, los principales actores han buscado refrendar y
fortalecer sus posiciones especialmente en foros económicos y comerciales que no sólo
tienen como objetivo discutir temas diferentes al cambio climático, sino que además son
foros donde no rigen principios como el CBDR. Como ejemplos de estas instituciones que
llegan a esbozar una rivalidad con el Régimen Climático Internacional (que se da dentro
del ámbito de la ONU) podemos citar el G20, el Diálogo Climático G8+5 y el Mayor
Economies Forum (MEF). Tampoco debe desconocerse el firme intento de las Naciones
Unidas, apoyado por la UE, de convertir los diálogos ambientales en un foro expandido,
como la búsqueda de fusionar las tres Convenciones de Río: CMNUCC, Convención de
Lucha contra la Desertificación y la Convención sobre Biodiversidad.
En cuanto a la incertidumbre o el nivel de incertezas, se hicieron presentes desde un
primer momento en el régimen. Algunos ejemplos son: la gran cantidad de actores que
participan de las negociaciones climáticas internacionales, los compromisos de reducción
voluntarios acordados en Copenhague y nuevamente las INDCs.
13
Ampliar en http://www.oecd.org/env/cc/Climate-Finance-in-2013-14-and-the-USD-billion-goal.pdf,
consultado en octubre de 2015.
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Por un lado, es cierto que el BASIC logró, a partir de su adhesión a compromisos
voluntarios, una reducción del nivel de incertidumbre con respecto a las acciones de
mitigación para lograr la meta global de Cancún de evitar un aumento de la temperatura
que sobrepase los 2°C. Sin embargo, al mismo tiempo causó un aumento en el nivel de
incertidumbre puesto que abrió la puerta a que los países en desarrollo tengan que
asumir compromisos de limitación o reducción, cambiando las reglas de juego del
principio de CBDR y la visión binaria del mundo. Además, a pesar de que el BASIC no ha
dejado de declarar que el acuerdo de 2015 debía estar en consonancia con los principios,
disposiciones y estructura de la CMNUCC, recalcando especialmente el CBDR, con el
Acuerdo surge el problema de cómo se interpreta la nueva frase “a la luz de las diferentes
circunstancias nacionales”, no sólo para el BASIC sino para otros países emergentes.
Otros países habían asumido compromisos voluntarios en forma previa, como por
ejemplo la Argentina en 1998 en la COP 4 celebrada en Buenos Aires. En dicho momento,
países como China no sólo se opusieron firmemente sino que cuestionaron a la
Presidencia argentina de la COP y su legitimidad en el rol al asumir un compromiso de
dicha naturaleza, en contra de la posición del G77 s China. Traspasada unacada de
aquel episodio, las potencias medias del BASIC se encontraron ante el desafío de pagar
un precio a su liderazgo y a su pertenencia al grupo de los mayores emisores. Al momento
de elegir, los compromisos voluntarios constituyeron un precio módico aceptable que les
permitió un rol protagónico en Copenhague.
Por otra parte, las INDCs son el siguiente escalón a la hora de reducir la incertidumbre
bajo reglas “bottom up”. Las contribuciones reducirían la incertidumbre en el mismo
camino que lo hacen los compromisos voluntarios en la medida que aportan certeza a la
meta global que en París se estipuló “por debajo de los 2ºC y realizar esfuerzos tendientes
a reducir el incremento de la temperatura a 1,5ºC”.
Se suponía que el informe de “efecto agregado de la Secretaría de la CMNUCC arrojaría
luz respecto a la posibilidad colectiva de alcanzar dicha meta, al menos la de no traspasar
los 2ºC. Sin embargo, ha demostrado que las contribuciones son insuficientes y nos
colocan en un mundo más cercano a los C. Para que el sistema de contribuciones no
fracase antes de comenzar, jugaría un rol preponderante el diálogo facilitador pautado
para 2018 en la Decisión 1/CP.21 párrafo 20. Dicho diálogo será el espacio de revisión
de las INDCs que el LMDC procuró evitar de cualquier modo (revisión ex ante). De igual
modo, en el contexto de las ganancias en París en otros aspectos, especialmente China
renunció a este punto.
Con lo cual, el nivel de incertezas es muy alto, al punto que el sistema del PK no funcionó,
pero tampoco pareciera hacerlo el de las contribuciones, hasta el momento. Quizás tanto
la UE como EEUU esperan que los mecanismos de mercado del artículo 6 operen como
incentivos para el incremento de la ambición.
El hecho de que casi todas las Partes y todos los principales emisores hayan presentado
su contribución ayuda a reducir la incertidumbre. De hecho, al plazo del 1 de octubre
establecido por la Decisión 1/CP.20, 144 Partes habían presentado sus contribuciones
donde algunos países del ALBA contaban entre los ausentes
14
. A enero de 2016, 160
Partes han presentado su INDC y cabe destacar que Venezuela es una de ellas.
14
Las INDCs pueden consultarse en
http://www4.unfccc.int/submissions/indc/Submission%20Pages/submissions.aspx
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La búsqueda de países del BASIC como Brasil y Sudáfrica de alcanzar caminos
intermedios entre las posiciones de la UE, de EEUU y del LMDC tiende a reducir la
incertidumbre en la medida que promueven mayores posibilidades de acuerdo en París.
Sin embargo, algunas de esas medidas no son bien recibidas por los países en desarrollo
que, a diferencia de estos países, se verían envueltos en compromisos similares de
mitigación de GEIs sin conformar la lista de los mayores emisores. Por ejemplo, la
diferenciación concéntrica de Brasil, coloca en el segundo rculo a todo el mundo en
desarrollo, entre ellos los BASIC, dejando por fuera sólo a los pequeños Estados insulares
y a los Países Menos Adelantados. De hecho, finalmente esto se asemeja bastante al
resultado de París, aunque las obligaciones del segundo círculo se hayan visto reducidas
significativamente como producto de la acción de China e India.
Ahora bien, haciendo referencia a la brecha, no sólo de mitigación a la cual refiere la
ciencia constantemente, sino también a la brecha en rminos de medios de
implementación, cabe mencionar que la incertidumbre se localiza antes y después del
régimen post-2020. La brecha constituye una deuda climática hacia los más vulnerables
que precede al nuevo acuerdo. Es por eso que la denominada ambición pre-2020 o
Workstream 2, es tan importante como el período post-2020. En la medida que se dilate
el compromiso climático, la deuda diferenciada se incrementará. Para reducir esa brecha,
el tratamiento del período pre-2020 debe salirse del margen facilitador que le otorgan
algunas Partes. La reducción de emisiones y el cumplimiento de hojas de ruta claras, en
todos los elementos y especialmente en materia de apoyo son indispensables.
En cuanto a la ambición pre-2020 la Decisión 1/CP.21 incluye: una invitación sin
diferenciación a todas las Partes a adherir al sistema de MRV ligados a la mitigación; la
cancelación voluntaria de certificados de reducción de emisiones por cualquier actor; la
importancia de la transparencia en cuanto al uso de mecanismos de flexibilización del
PK; el fortalecimiento del proceso de examen técnico de acciones con alto potencial de
mitigación (TEPs) con participación de actores diversos; la mayor participación del
mecanismo financiero y tecnológico de la Convención en el sistema de TEPs; la
importancia de lograr una hoja de ruta relativa al compromiso de los 100 mil millones
asumida en Copenhague por los países desarrollados; la Agenda de Acción Lima-Paris
que incluye la participación de una variedad de actores y el involucramiento de alto nivel
y la inclusión de los TEP-A que son procesos de examen técnico ligados a adaptación
promovidos por el Grupo Africano, entre otros.
En el análisis de los debates de la ambición pre-2020 durante 2014 y 2015 se evidencia
que el fortalecimiento de TEPs, el involucramiento de actores no estatales y privados y
los eventos de alto nivel constituían lo que tanto la UE como EEUU llamaron “common
ground”. Sin embargo, estos aspectos no eran suficientes para otros subgrupos. Para ello
se negoció la inclusión de los TEP-A por el Grupo Africano, la mención medios de
implementación que planteó el LMDC que había presentado el “Proceso de
Implementación Acelerada” (AIP, por sus siglas en inglés) como propuesta en
financiamiento y tecnología y de la cual casi no puede percibirse nada en la decisión.
A pesar de que la ambición pre-2020 se haya incrementado en términos de alcance, en
tanto hoy incluye casi todos los elementos, la incertidumbre sigue presente en la medida
que los medios de implementación no son claros y los TEP-A no están muy claros cuando
se los compara con los resultados que el mismo proceso tuvo en materia de mitigación.
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Otro punto donde se puede medir el grado de incertidumbre del Régimen Climático
Internacional es aquél referido al financiamiento. Tal como se dijo previamente, la
cuestión del financiamiento climático pre y post 2020 ha sido y es un punto conflictivo
que genera incertidumbre para donantes, dadas las condiciones macroeconómicas del
Sistema Internacional, pero también genera incertidumbre para aquellos países
vulnerables cuya acción climática -especialmente en adaptación- depende de dichos
fondos. En este sentido, y particularmente hablando del GCF, desde Copenhague el
BASIC está demandando alguna garantía y una hoja de ruta relativa a los 100 mil
millones de dólares comprometidos -formalmente en Cancún- para los países en
desarrollo.
Por último, en relación a la meta global de mitigación, podemos nombrar el bajo grado
de ambición demostrado por los países desarrollados en relación al liderazgo que deben
asumir según la Convención, pero también, respecto a lo acordado en el PK en su primer
y segundo período de compromisos, y mucho más en París, donde ni siquiera se asumen
compromisos cuantificados. Si bien los niveles de mitigación sugeridos por el IPCC se
ubican entre un 25-40% para el año 2020, y entre 40 y 70% para 2050, esto se ha
asociado a la lógica “top-down” y, por ende, no tuvo espacio en el Paquete de París.
Además, la coacción de los Estados Unidos en la ceremonia de clausura de la COP21
exigiendo a la Secretaría de la Convención cambiar la palabra “shall por “should” en
cuanto al liderazgo de los países desarrollados en la acción climática en el artículo 4.4 ha
demostrado el costado más conservador y más reticente a asumir los costos de dicho
liderazgo.
La emergencia del BASIC en las negociaciones climáticas internacionales incrementó los
vínculos dentro del Régimen, favoreciendo la tercera fuerza identificada por Keohane y
Victor. Desde la perspectiva de los autores, la existencia de vínculos en determinadas
áreas conflictivas favorece la integración de un régimen internacional.
El incremento en la vinculación entre los principales actores del proceso de negociación
se pudo ver al contrastar las demandas del BASIC en sus reuniones ministeriales con los
resultados de las COP y del Acuerdo de París, manifiestos en la adopción de decisiones.
A partir de esta contraposición fue posible observar que se dio un fuerte grado de
vinculación en lo referido a la Plataforma de Durban. Durante sus reuniones de 2010 los
ministros del BASIC expresaron que la Hoja de Ruta de Bali debía continuar siendo la
base para las negociaciones (respetando asimismo el proceso de negociación en dos
tramos: AWG-LCA por un lado, y el AWG-KP, por el otro). Sin embargo, en las reuniones
ministeriales número 10 y 11 que tuvieron lugar en 2011, luego de la COP 17, dieron su
apoyo a la Plataforma de Durban expresando que la reconocían como una oportunidad
para alcanzar un Régimen Climático fortalecido, equitativo, inclusivo y efectivo. Así, la
Plataforma estableció un alto grado de vinculación entre los EEUU, la UE y los BASIC,
puesto que promovió un nuevo objetivo para el acuerdo que remplazaría al PK, con un
proceso de negociación en una sola vía (el AWG-DPA o ADP) que también remplazaría al
proceso anterior de dos vías, propuesto en la Hoja de Ruta de Bali.
Asimismo, el BASIC logró concretar importantes vínculos productivos (especialmente con
la UE), al participar del delineamiento del II PCPK y al dar un mayor impulso político al
GCF. En el primer caso, el BASIC ya se había posicionado en favor de una extensión del
PK en su primera reunión de 2009. Asimismo, durante las reuniones del 2011 había
declarado que su establecimiento era vital para un resultado positivo de la COP 17. En
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este sentido, se enfoca el entendimiento entre la UE y los BASICs dado que, tal como
hemos dicho con anterioridad, fue la UE la principal interesada en la extensión del PK por
un conjunto de motivos entre los que se encuentran su propio proceso “top-down” de
compromisos de mitigación, tanto como lo relativo al mercado de emisiones regional ETS
y su relación con los mecanismos del PK.
Del mismo modo, el rol del BASIC también favoreció la creación del Mecanismo
Internacional de Varsovia sobre Pérdidas y Daños asociados al Cambio Climático, a través
de la demanda que hicieran en su reunión número 14, que tuvo lugar en 2013, para
clarificar un mecanismo institucional que pueda resolver los problemas derivados de las
pérdidas y daños, cuestión muy importante para los países en desarrollo. Una vez
establecido el Mecanismo de Varsovia en la COP 19, el BASIC apoyó su creación dándole
una bienvenida en la declaración conjunta de su reunión número 18, en el año 2014. A
este respecto cabe destacar que no se trata de un tema especialmente relevante para
ninguno de los países del grupo, pero constituye una moneda de cambio importante en
las negociaciones con los pequeños Estados insulares y los países menos desarrollados
(LDCs y SIDS).
Por otro lado, respecto del GCF, el grupo BASIC había demandado durante sus reuniones
que se debía comenzar con la puesta en marcha del Fondo, urgiendo a los países
desarrollados a capitalizar el mismo con recursos públicos. Dicha capitalización se acordó
políticamente en la COP de Lima, en 2014, favoreciendo a la integración del Régimen. A
su vez, también fue posible la jerarquización de la adaptación al igualarla con la
mitigación en el ámbito financiero, dado que por estatuto, el GCF debe distribuir sus
fondos 50/50 entre mitigación y adaptación. Estas cuestiones largamente reclamadas por
los países en desarrollo, fueron alcanzadas en cierta medida como producto de un
proceso de concesiones mutuas donde la UE y EEUU comprendieron que sin algún modo
de financiamiento climático, la COP 21 no vería resultados posibles.
Otro aspecto relevante para el proceso de negociación fue la concreción del mecanismo
REDD plus y en particular para Brasil. REDD plus es un programa de Naciones Unidas
focalizado en la reducción de emisiones derivadas de la deforestación y la degradación
de los bosques, así como la búsqueda de incrementar la captura y conservación de
carbono. El programa busca generar incentivos para que los países en desarrollo protejan
sus recursos forestales, contribuyan a la reducción global de gases de efecto invernadero
y sean recompensados por ello, mediante un mecanismo de pago por resultados. Durante
las reuniones ministeriales de los países del BASIC que tuvieron lugar en 2013 este tema
fue relevante, valorándolo como cuestión fundamental para el éxito de la COP 19. Para
ello, se centraron en el apoyo financiero que debían otorgar los países desarrollados al
mecanismo. Los países que asumieron un mayor liderazgo en este sentido fueron Estados
Unidos, Noruega y el Reino Unido, quienes se comprometieron durante la COP 19 en
aportar 280 mil millones de dólares para sostener el programa. La concesión del BASIC
fue la aceptación de que los fondos pudieran provenir tanto de fuentes públicas como
privadas, como así también que el GCF pueda aportar desde sus recursos.
El rol del BASIC en el régimen climático internacional: fragmentación o
integración
De este modo, como balance general del rol que ocupó el BASIC en lo relativo a las tres
fuerzas descritas por Keohane y Victor, podemos decir, en primer lugar, que éste refleja
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los cambios acaecidos en el Sistema Internacional en términos del rol de las potencias
medias (Bueno, 2013), el desplazamiento de otros actores previamente hegemónicos y
la difusión del poder. En tal sentido se asienta el debate relativo al concepto de
multipolarismo.
Afirmamos con Elodie Brun (2015) que el momento actual de las Relaciones
Internacionales es calificado como multipolar en tanto el concepto remite a la difusión
del poder aunque no puede explicarla. Esta incapacidad, aduce la autora, deviene de tres
cuestiones: que la multipolaridad es asociada con la estabilidad en el sistema
internacional y esto no es necesariamente así; que más que una situación real esconde
las apetencias o aspiraciones de los poderes emergentes dado que el sistema sigue
siendo asimétrico; y que no existen polos en el sentido apuntado durante la Guerra Fría
dado que la política de los actores no atrae a nadie, es decir, no existen polos de
atracción.
Elgimen climático constituye un escenario de gran visibilidad internacional para
mostrar, por un lado, los cambios acaecidos en el sistema que se reflejan en la estructura
del triángulo que hemos descrito; pero por otro, evidencian que es Estados Unidos el que
sigue volcando la balanza a favor de una u otra opción. En ausencia de la potencia
hegemónica, Europa ofició como líder y pagó los precios necesarios cosechando como
beneficios, las estructuras del régimen moldeadas -en gran parte- bajo sus designios.
Sin embargo, esta construcción de poder en ausencia de” encontró el mite de la
voluntad política del mismo partido que había hecho del cambio climático su bandera de
volver al juego internacional ostentando viejas victorias. En tal sentido, el único refreno
al liderazgo climático de los Estados Unidos no fue la UE ni el BASIC sino la propia política
doméstica norteamericana. Incluso con estos límites, a partir de Copenhague, Estados
Unidos imprimió cambios en las condiciones del régimen. Que el Paquete de París refleje
la principal preocupación de la potencia de que China ingrese en condiciones de similitud
con contribuciones climáticas que aportan paridad a los esfuerzos climáticos
internacionales de China y Estados Unidos, manifiesta el poder de la potencia para
delinear reglas de juego. No obstante, también refleja una realidad, el incremento en el
poder de China.
Estados Unidos, a diferencia de Europa, no requiere reglas estrictas ni cumplimientos
exégetas en el plano internacional para que estas permeen su andamiaje doméstico. Esa
condición propia del modelo europeo ha visto la última luz en Dinamarca. Sin embargo,
la UE, como parte del triángulo y fundador del régimen, tiene instrumentos de poder que
utiliza y marcan los resultados de París. Las secciones del acuerdo en los documentos
elaborados desde Ginebra reflejan con cierta claridad estos debates. La sección de
cumplimiento ha perdido relevancia debido a lo previamente expuesto. Esto es, el
desinterés de Estados Unidos y del propio BASIC de que el régimen adquiera condiciones
rígidas y punitivas. No obstante, las secciones de ciclos y de transparencia, principal
interés de la UE para garantizar el no retroceso de los compromisos o contribuciones de
EEUU y del BASIC; acomo mover sus propios engranajes domésticos donde colinden
28 unidades, se han visto fortalecidas, incluso en relación con los seis elementos de
Durban.
El reconocimiento del poder de Estados Unidos para mover la balanza a su favor no
significa menoscabar el rol del BASIC ni de la UE. El problema manifiesto en este caso es
que los intereses del BASIC, especialmente de China y de India, han sido más
coincidentes con la mirada de EEUU que la de UE. La posición de ésta última buscaba
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obligar al BASIC y a los EEUU a asumir compromisos de mitigación así como de
financiamiento a otros pses en desarrollo, que ninguno estuvo dispuesto a tomar para
sí.
Ahora bien, nos preguntamos en qué sentido el régimen ha aportado
estabilidad/contención al sistema internacional. Asimismo, nos interesa definir cómo han
jugado la diversidad de intereses, la incertidumbre y la vinculación como fuerzas de
integración o fragmentación del régimen, especialmente en relación con la emergencia
del BASIC desde Copenhague.
Al respecto de la primera fuerza analizada, el año 2009 muestra el incremento en la
diversidad de intereses en el régimen climático, tanto como producto de la aparición del
BASIC como del rol de Obama en la Presidencia de los EEUU y su participación en la COP
15. Esta diversidad de intereses ha aportado en un primer momento fragmentación al
régimen como se vio en la propia COP15, dado que obligó al triángulo a tener en cuenta
que más allá de su poder conjunto, el sistema internacional s democratizado cuenta
con otros actores, en este caso el ALBA, que estaban dispuestos a pagar el costo del no
acuerdo. Sin embargo, traspasado ese momento, el ALBA pasó a estar contenido por el
LMDC, donde China e India ostentan un rol protagónico. Tras seis años de aquel episodio,
el BASIC puede haber aportado integración al régimen en la medida en que los intereses
contrapuestos de EEUU y la UE llevaban a un régimen de grandes jugadores donde los
pequeños y medianos no tenían ninguna incidencia en las reglas de juego. Si bien no
puede afirmarse que Brasil, China, India y Sudáfrica defiendan los intereses del mundo
en desarrollo, sino los propios, existen ciertos aspectos comunes al interior del G77 más
China que en París, sólo el BASIC pudo defender con eficacia, especialmente en materia
de diferenciación, el corazón de la negociación climática.
En consecuencia, el BASIC ha reducido la incertidumbre del régimen en la medida que
aceptó el nuevo esquema de INDCs/NDCs, precedidos por compromisos voluntarios, y se
ha mostrado permeable a operar como un nexo entre la mesa de jugadores mayores y
el mundo en desarrollo. Esto no significa que las incertezas no persistan en todos los
elementos. Las diferencias políticas, económicas, sociales y geográficas, entre otras, al
interior del mundo en desarrollo determinan que muchas veces los intereses de China
puedan estar s cercanos a los de EEUU que a los de Somalia, Vietnam, o Uruguay. Allí
es donde se configura un nuevo concepto de responsabilidades que puede asentarse
sobre las responsabilidades históricas plasmadas por Brasil al momento de la firma del
PK y que hoy son receptadas por distintos subgrupos de negociación al interior del
régimen. Los emergentes no pueden tener sólo beneficios asociados con su poder, el
poder incluye responsabilidades y esa es una verdad que las Relaciones Internacionales
han sabido contar con cierta vehemencia. La horizontalidad y relativa libertad del sistema
de contribuciones -al menos hasta que exista un marco de transparencia y ciclos- pueden
no evidenciar los costos de dicho liderazgo. En ese sentido, la UE será el guardián de que
todo el triángulo adquiera algún nivel de responsabilidad dentro del Régimen con el fin
de alcanzar la meta global de temperatura.
Respecto a la última fuerza, el grado de vinculación que el BASIC favoreció mediante su
interacción tanto con EEUU y la UE como con el G77, promovió la creación de lazos entre
actores con intereses y posiciones extremas. Un ejemplo en tal sentido es REDD plus o
el Mecanismo de Varsovia sobre Perdidas y Daños. En el primer caso, es un tema de
principal interés para Brasil, por lo que el grupo lo tomó como parte de sus consignas.
De esta manera, pujó por obtener financiamiento tanto de Europa como de EEUU para
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este proyecto, bajo la consigna de que constituye un parámetro de cooperación
internacional en la reducción de emisiones y captación y fijación de carbono sin que
medien compromisos al respecto en términos de las emisiones históricas. Más bien, lo
identifican como un modo “costo-efectivo” de mejorar el balance carbónico global
mediante la lógica de servicios ambientales.
En el caso de las Pérdidas y Daños, si bien no es interés directo de ninguno de los países
del BASIC, el grupo lo motorizó y operó como nexo entre las posiciones de SIDS y LDCs
y la negativa tanto de EEUU como de la UE. Si bien no prosperó el mecanismo de
compensación perseguido por las islas y los LDCs, se incluyó el Mecanismo de Varsovia
que puede significar una instancia más de financiamiento y cooperación para estos
grupos con algunos agregados en el Acuerdo, lo cual era impensado tiempo antes. Para
el BASIC fue una moneda de cambio al momento de cerrar el acuerdo, pero se perdió
CBDR en el camino como costo alto de la inclusión de las perdidas y daños.
El concepto de complejo regimental de Keohane y Victor, especialmente aplicado al
régimen climático permite ver algún punto medio en un continuum entre un conjunto de
instituciones bien integradas y marcos regulatorio precisos y una serie de instituciones
fragmentadas. Los autores manifiestan que la distribución de intereses explica por qué
no pudo ver la luz una única institución, especialmente entre EEUU y la UE en su puja en
ese continuum. En este sentido, el BASIC puede operar como balanceador o al menos
puede ayudar a inclinar la balanza de un modo u otro, no dejando el tablero de juego
librado a estos dos actores, que ya hemos dicho que tienen a su vez distinto peso. Por
otra parte, el alto nivel de incertezas del régimen se manifiesta en que las Partes no
quieran asumir compromisos, dado que ha prevalecido la lógica del free rider hasta el
momento. También en este caso, la presencia del BASIC puede ayudar a que las
incertezas sean menores en tanto ha legitimado con su accionar el nuevo capítulo de las
contribuciones. Esto no significa que los actores que componen el triángulo puedan
confiarse en estas certezas relativas incluso luego de París.
París dejó atrás los temores de Copenhague y el ALBA fue neutralizado, especialmente
Nicaragua que a última hora intentó frenar el Acuerdo y Venezuela que mostró un costado
extrañamente cooperativo sobre el final de la Conferencia con la Embajadora Salerno
oficiando como moderadora del debate sobre preámbulo y presentando públicamente la
INDCs de su país.
Debe reconocerse el amplio apoyo dado por las Partes al documento, tal como se ha visto
en la Ceremonia de firma realizada por el Secretario General de las Naciones Unidas el
22 de abril en New York, en la cual 175 de las 197 Partes de la CMNUCC firmaron el
documento. No obstante, y al igual que sucediera con el PK, el estado de ratificación
presenta ciertas desconfianzas. Si bien Estados Unidos y China han acordado una pronta
ratificación, especialmente en virtud del escenario electoral norteamericano, el cual
cuenta con un alto potencial de dañar la legitimidad del Acuerdo en caso de que resulte
ganador el candidato Donald Trump, hasta el momento, la entrada en vigor se encuentra
lejana -en términos de los números necesarios-.
A su vez, si bien el Acuerdo ha sido bien recibido por muchos actores de la Comunidad
Internacional que ven en el Paquete de París una esperanza, otros mostraron su
reticencia y disconformidad con el resultado. En el segundo caso, se mencionan algunas
organizaciones no gubernamentales que reclamaron la falta de ambición del Acuerdo y
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la flexibilidad del esquema de contribuciones en un contexto en el que se esperaba y se
necesitaba- un mayor compromiso
15
.
No cabe dudas de que la COP21 fue un modelo de juego de fuerzas donde todos los
actores midieron sus pesos relativos en relación a los intereses de actores grandes,
medianos y pequeños que moldearon y condicionaron el resultado en la medida que la
difusión del poder no sólo alcanza a las potencias medias o emergentes sino a un Sistema
Internacional en movimiento.
Referencias
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diferenciadas” en el régimen internacional del cambio climático». Anuario de Derecho
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http://revistafal.com/un-mundo-sin-definicion/
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desarrollo sostenible y la lucha contra el cambio climático en la estrategia Europa 2020».
Unión Europea Aranzadi, 6, pp. 45-54.
15
Tal es el caso de la organización Amigos de la Tierra, que afirmó que el Acuerdo carece de medidas precisas
para luchar contra el calentamiento global y que la flexibilidad del artículo 4 es una carta blanca para
continuar emitiendo. Ver en http://www.tierra.org/los-paises-parecen-rendirse-en-la-lucha-contra-el-
cambio-climatico/ y en http://www.tierra.org/el-acuerdo-de-paris-una-farsa-en-la-lucha-contra-el-cambio-
climatico/. En este mismo tenor se encuentran algunas declaraciones de miembros de Greenpeace, quienes
adujeron que si bien se valora positivamente el compromiso de casi 200 países para limitar a 1,5ºC el
aumento de la temperatura a nivel global, se alerta sobre el hecho de que el texto no fije los medios para
lograrlo. Ver en http://www.greenpeace.org/argentina/es/noticias/ACUERDO-COP21-Punto-de-partida-
para-el-abandono-de-los-combustibles-fosiles-pero-con-compromisos-insuficientes-para-lograrlo/
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Anexo 1: Índice de Acrónimos
ADP: Grupo de Trabajo Especial sobre la Plataforma de Durban para la Acción Reforzada.
AIP: Proceso de Implementación Acelerada.
ALBA: Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América.
AWG-DPA: Ver ADP.
AWG-KP: Grupo de Trabajo Especial sobre el Protocolo de Kioto.
AWG-LCA: Grupo de Trabajo Especial sobre la Cooperación a Largo Plazo.
BASIC: Grupo formado por Brasil, Sudáfrica, India y China.
CBDR: Principio de responsabilidades comunes pero diferenciadas.
CH4: Metano.
CMB: Convención Marco sobre Biodiversidad.
CMNUCC: Convención Marco de las Naciones Unidas sobre el Cambio Climático.
CO2: Dióxido de carbono.
COP: Conferencia de las Partes de la CMNUCC.
ETS: Régimen de Comercio de Derechos de Emisión de la Unión Europea.
EEUU: Estados Unidos.
G77+China: Grupo de los 77 y China.
GCF: Fondo Verde para el Clima.
GEI: Gas de efecto invernadero.
HFC: Hidrofluorocarbonos.
I PCPK: Primer período de compromisos del PK.
II PCPK: Segundo período de compromisos del PK.
INDC: Contribuciones nacionalmente determinadas previstas o que las Partes prevén
realizar.
LDC: Países Menos Desarrollados.
LMDC: Like Minded Developing Countries.
MDL: Mecanismos de Desarrollo Limpio.
MEF: Foro sobre Energía y Clima de las Mayores Economías del Mundo.
MRV: Monitoreo, Revisión y Verificación.
N2O: Óxido Nitroso.
NDC: Contribuciones nacionalmente determinadas.
OCDE: Organización para la Cooperación y el Desarrollo Económicos.
OCDE-CPI: Índice de precios al consumidor de la OCDE.
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150
OMC: Organización Mundial del Comercio.
ONU: Organización de las Naciones Unidas.
PD: Países desarrollados.
PED: Países en desarrollo.
PFC: Perfluorocarbonos.
PK: Protocolo de Kioto.
REDD plus: Mecanismo de Reducción de las Emisiones por Deforestación y Degradación
de los bosques.
SF6: Hexafluorocabono de azufre.
SIDS: Small Island Developing Countries (Pequeños Estados Insulares en Desarrollo).
TEP: Proceso de examen técnico de acciones con alto potencial de mitigación.
UE: Unión Europea.
OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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Recensão Crítica
Wight, Martin (2002). A Política do Poder. Brasília: Editora
Universidade de Brasília: 329 pp. ISBN: ISBN: 85-230-0040-
2.
Matheus Gonzaga Teles
gonzagamatheusax@gmail.com
Negociador Internacional (Universidade Estadual de Santa Cruz, Brasil) e Especialista em Gestão
Estratégica Empresarial (União Metropolitana de Educação e Cultura).
Analista Universitário e Secretário Executivo na Assessoria de Relações Internacionais da
Universidade Estadual de Santa Cruz (UESC).
Martin Wight é considerado um dos mais influentes teóricos das Relações Internacionais
da geração anterior e um dos fundadores da Escola Inglesa de Relações Internacionais.
Através dele foram desenvolvidos o conceito e a análise de diferentes sistemas de
estados que mostram a importância da história mundial para o estudo das relações
internacionais e uma das principais influências de Hedley Bull. Wight era de tradição
realista, porém denominava-se racionalista. Como assunto central considerava o
comportamento internacional dos estados e o relacionamento por eles conduzido. Wight
defende que, mesmo que os estados sejam os membros principais e imediatos da
sociedade internacional, os membros desta última são os indivíduos.
As bases do pensamento de Martin Wight decorrem de suas inquietações, em primeiro
lugar, da constatação da ausência de um corpus teórico que explicasse as relações entre
os Estados e, em segundo, essa inquietação não era exclusividade sua, mas de diversos
pensadores. Assim, Wight buscava compreender os fenômenos internacionais em termos
de cooperação e conflito, os quais iam além das políticas nacionais.
Para o autor, a Teoria das Relações Internacionais ou como ele mesmo atribuía, a
Teoria Internacional era considerada um estudo de filosofia política ou de especulação
política voltado ao exame das principais tradições do pensamento sobre Relações
Internacionais no passado. Na visão de Wight era necessário uma aproximação com a
filosofia, o que o levou a pesquisar, organizar e categorizar tudo o que havia sido dito e
pensado sobre a temática ao longo dos tempos.
Ao passo que os behavioristas excluíam as questões morais do rigor científico, Wight
punha essas questões como o cerne de sua pesquisa. Para ele, a emergência de seus
estudos era resultado de um inventário do debate entre tradições e teorias que se
conflitavam e das quais nenhuma resolução era esperada.
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Recensão Crítica
Matheus Gonzaga Teles
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Sua visão sistemática e até mesmo seu desprezo aos behavioristas refletiam a confiança
e a segurança em sua própria convicção. Jamais aceitou o fato que uma abordagem
teórica desprovida de história e filosofia pudesse gerar um ambiente lido para a
compreensão do mundo político.
De acordo com Wight, a teoria internacional clássica é principalmente uma teoria da
sobrevivência; em outras palavras, um darwinismo social. Uma vez soberanos, os
Estados existem em uma condição anárquica; em último caso, dependem de si mesmos
para sua sobrevivência. Assim, o que para a teoria política é considerado um caso
extremo (tal como uma revolução ou guerra civil) a teoria internacional considera um
caso normal.
Em virtude de suas análises, Martin Wight identificou três paradigmas clássicos existentes
em diferentes versões praticamente simultâneas aos Estados soberanos: realismo,
racionalismo e revolucionismo, versões também chamadas de maquiavélica, grociana e
kantiana. Vale observar que essas tríades também são consideradas as três tradições de
Wight. Para esse pensador, a verdade não deve ser buscada em qualquer uma das
interpretações, e sim na argumentação e na contenda entre elas.
O realismo concebe as relações de forma predominante, se não exclusiva, pela raison
d´état, na qual o direito político é o bem do Estado e a soberania é palavra final nessas
discussões. O sistema internacional é o lugar no qual os homens de Estado perseguem
seus interesses ou propósitos e, com uma certa frequência, provocam conflitos que
podem causar ameaça à sobrevivência de alguns. Para Wight, o problema fundamental
das relações internacionais é a prevenção desses conflitos por meio de soluções
negociadas, seja através de diplomacia, da defesa nacional, de alianças militares ou outra
solução mais adequada. Em síntese, o realismo enfatiza os conflitos realizados entre os
Estados.
O racionalismo, por sua vez, concebe as relações internacionais como uma sociedade por
meio do diálogo mediado entre os Estados e a regra da lei. A sociedade internacional é
uma sociedade civil cujos membros estatais legitimam interesses, os quais podem
ocasionar conflitos; todavia, estes reportam-se a uma esfera comum de direito
internacional, a qual visa a regulação desses conflitos.
O revolucionismo, o terceiro paradigma da teoria internacional identificado por Wight,
reflete-se na Reforma Protestante, na Revolução Francesa e na Revolução Comunista.
Nesse paradigma os seres humanos precedem as instituições e, por consequência, o
Estado soberano tem de estar subordinado, de alguma maneira, a uma autoridade
superior ou à civitas maxima. Em síntese, enfatiza a unidade ou solidariedade da
espécie humana.
A importância da Escola Inglesa de Wight deve-se ao fato de tanto ela servir para a
introdução das principais questões da teoria das relações internacionais, quanto pelas
suas objetivas virtudes que ajudam a compreender o momento histórico no qual nos
inserimos. Dessa forma, essa escola constitui-se em um bom ponto de partida aos
interessados por questões diplomáticas na atualidade.
De maneira geral, a Escola Inglesa apresenta dois pressupostos básicos: o primeiro trata
do pluralismo teórico, um esforço para abranger a totalidade das relações internacionais,
considerado o ponto central que sustenta a Escola Inglesa (as três tradições de Wight).
E o segundo, compreende a Escola Inglesa como uma tradição de diálogos, cujo foco se
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Recensão Crítica
Matheus Gonzaga Teles
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concentra nas três tradições. A partir dessa perspectiva, as pessoas podem participar
sem estarem comprometidas a determinadas linhas. Os pensadores ligados à Escola,
dentre eles Wight, têm contribuído de maneira rica face às ideias relacionadas ao estudo
das relações internacionais.
A partir de uma análise holística da obra de Wight, empreende-se que ele não pretendia
abordar um teoricismo sistemático; na verdade, via todas essas teorias no campo da
política internacional com descrença e desilusão. Existe, portanto, a necessidade de
basear a interpretação não naquilo que foi dito recentemente, mas sim nos
pronunciamentos clássicos sobre o assunto, no sentido de que eles são a expressão-
padrão ou primorosa de determinado ponto de vista. Logo, a obra de Wight busca
fornecer uma interpretação não da situação do sistema político internacional no presente
momento, mas sim daqueles seus traços fundamentais e duradouros de fato.
A ideia de Wight em se trabalhar o contínuo ou o permanente, é para reconhecer as
mudanças quando estas ocorrerem ou fazer avaliações das pretensões que de fato sejam
fundamentais.
De acordo com Wight (2002: 3),
“a política do poder no sentido de política internacional surgiu, pois,
quando a Cristandade medieval se dissolveu e nasceu o estado
moderno e soberano”.
-se, pois, neste fato, o fator gerador da política de poder. Para Martin, a política do
poder remete a uma verdade central relacionada às relações internacionais; ela sugere
as relações entre potências independentes. Como unidades independentes têm-se os
Estados, nações, países ou potências (Wight, 2002: 1).
Wight acrescenta que, em geral,
“o homem moderno tem demonstrado maior lealdade ao estado do
que à Igreja, à classe social, ou a qualquer outro laço internacional”
(Wight, 2002: 4).
Ainda de acordo com ele, Estado moderno demonstra um poder de atração e de fidelidade
sem igual, se comparado às forças anteriores supracitadas.
Quanto à definição da política de poder, Wight acrescenta que esta é uma tradução da
palavra alemã Machpolitik, cujo significado é
"a política da força, ou seja, a condução de relações internacionais
por intermédio da força ou da ameaça do uso da força, sem
consideração pelo direito ou pela justiça" (Wight, 2002:8).
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Contudo, quando se refere a este termo durante a Primeira Guerra Mundial, o autor traz
à tona que o mesmo assumia o significado de uma "razão de estado" do original em
francês raison d’état. Nesse sentido, justificava ações sem escrúpulos para a defesa do
interesse público (Wight, 2002: 8).
O livro contém vinte e quatro capítulos, mais o prefácio, dois apêndices e o índice
onomástico, além de contar com o sumário.
Do capítulo I ao V, a obra trata das potências e das suas classificações. Do capítulo VI
ao XXIV aborda temas mais específicos, como as revoluções internacionais, a anarquia
internacional, a diplomacia, as alianças, a guerra, a intervenção.
Somente no capítulo XIV, “A Expansão das Potências”, e no apêndice 1 (A Classificação
das Potências) Wight retoma a temática das potências. O capítulo VI descreve de modo
envolvente as táticas e os tipos de artilharia usados para afirmar a preponderância do
sistema de estados europeu do período das Navegações do século XV até meados de
1945.
No capítulo VII, o das “Revoluções Internacionais”, o autor entende que a Revolução é
uma mudança violenta de regime em um único estado. Para ele, a Revolução Francesa
encabeça o clássico exemplo europeu do termo (Wight, 2002: 69).
No Capítulo VIII, intitulado Interesses Vitais e Prestígio, o autor trata dos interesses vitais
coisas que uma potência julga como essenciais para a manutenção de sua independência
e que, por causa deles, sai em defesa a ponto de ir para a guerra. Já o prestígio gira em
torno do poder, pois traz consigo, de maneira misteriosa, benefícios materiais.
"Em geral, é adquirido lentamente e perdido rapidamente. Ocorre
aquilo que não era esperado" (Wight, 2002: 87).
No capítulo IX, “No cenário internacional”, o autor classifica a anarquia como uma
multiplicidade de potências sem governo. Martin descreve a anarquia como uma
característica que "distingue a política internacional da política ordinária. Para ele, o
estudo da política internacional pressupõe a ausência de um sistema de governo, assim
como o estudo da política doméstica pressupõe a existência de tal sistema" (Wight, 2002:
93).
No capítulo X, intitulado “A Sociedade Internacional”, o autor a descreve como uma
sociedade diferente de qualquer outra. Devido à sua forma, ela é considerada a mais
inclusiva na face da Terra. O legado dela é para a posteridade. Suas instituições variam
de acordo com sua natureza, a saber, são: a diplomacia, as alianças, as garantias, a
guerra e a neutralidade (Wight, 2002: 104).
No capítulo XI, “A Diplomacia: é a instituição para negociar”, Martin também a define
como o sistema e a arte da comunicação entre os estados. Ele considera o sistema
diplomático como "a instituição mestra das relações internacionais" (Wight, 2002:1007)
e divide-a em duas categorias: embaixadas residentes e conferências.
no capítulo XII, ao se apropriar da definição de Aristóteles, Wight enfatiza que as
alianças não são as amizades da política internacional; elas têm por função aumentar a
segurança dos aliados ou promover seus interesses face ao resto do mundo.
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No capítulo XIII, cujo tulo é “Guerra”, Wight a define como uma instituição das relações
internacionais. As suas origens estariam nas decisões de governo e, algumas vezes, nas
paixões dos povos, impelidas pelos relacionamentos de poder.
Em “A Expansão das Potências”, capítulo XIV, Wight ressalta que as grandes potências
demonstram ter uma tendência expansionista com maior sucesso. (Wight, 2002:141).
Todavia, a tendência para a expansão também pode ser encontrada na história das
pequenas potências. A expansão das potências seria fruto de duas causas: pressão
interna e fraqueza das potências adjacentes.
No capítulo XV, chamado de “A Configuração do Poder”, o autor se refere aos
alinhamentos de força, a exemplo da OTAN, os quais compõem a configuração de poder.
Para ele, esses organismos são formados sob pressão externa, jamais por força popular.
a sua coesão varia conforme a pressão (Wight, 2002:155). De acordo como autor,
nenhum Estado está imune à configuração do poder; porém, uma grande potência tem
ampla liberdade para modificar tal configuração, até mesmo porque exerce influência
sobre o destino de seus vizinhos mais fracos.
No capítulo XVI “O Equilíbrio de Poder”, Martin afirma que, em seu significado original, a
expressão assume a ideia de uma igual distribuição do poder, em um contexto onde
nenhuma potência é tão preponderante a ponto de expor as demais em risco (Wight,
2002: 172). O equilíbrio de poder seria obtido em plena operação toda vez que uma
potência dominante se esforça para obter o domínio da sociedade internacional e de
modo momentâneo, rompe esse equilíbrio (Wight, 2002: 168).
Em “A Compensação”, descrita no capítulo XVII, Wight a define como "um princípio que
rege as relações gerais entre Estados de forças comparáveis" (Wight, 2002: 187). Por
outro lado, afirma que "significa um método de regular o equilíbrio do poder por
intermédio da troca combinada de territórios" (Wight, 2002: 187). Para ele, quando há
duas partes para a transação a compensação é bilateral, e, quando envolve mais de
duas, é multilateral (Wight, 2002: 187).
No capítulo XVIII, “A Intervenção”, o termo é definido como uma interferência pela força,
o que pode não se configurar como uma declaração iminente de guerra, realizada por
uma ou mais potências, nos negócios de outra potência. A intervenção pode se processar
tanto no nível da política externa de um país, quanto na esfera doméstica.
Para o autor os capítulos XIX (Liga das Nações) e XX (Organização das Nações Unidas)
abordam temáticas não muito significativas. Porém, devido a exacerbada importância
dada a esses temas por alguns estudiosos, ele as aborda de maneira sucinta e clara.
Todavia, não deixa de evidenciar as fraquezas e/ou debilidades de tais organizações.
No capítulo XXI, “A Corrida Armamentista” é definida como o "acúmulo competitivo de
tropas e de armamentos, por meio do qual cada lado tenta conseguir obter uma
vantagem sobre seu vizinho, ou pelo menos tenta não permanecer em desvantagem"
(Wight, 2002:247), que pode acontecer por intermédio de duas ou por muitas potências
rivais; pode ser local ou generalizada.
No capítulo XXII, O Desarmamento” é tratado do ponto de vista tradicional, e, desta
forma, é visto como a solução contra a corrida armamentista. Em sua definição envolve-
se: a abolição das armas ou a redução da sua quantidade, ou limites sobre seu
crescimento, ou ainda a restrição a determinados tipos ou usos. Wight afirma que, com
certa frequência, "o desarmamento tem sido aceito por uma potência por imposição ou
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por perder uma guerra. A demolição obrigatória de fortalezas talvez seja a forma mais
antiga de desarmamento" (Wight, 2002:269).
No capítulo XXIII, “O Controle de Armamentos”, o autor trata de questões básicas sobre
este assunto e algumas discussões avançadas no campo da energia atômica.
No capítulo XXIV Wight aborda questões como o estabelecimento da tradição de uma
comunidade internacional com um padrão comum de obrigação e justiça. Nessa
perspectiva, o autor considera que a comunidade internacional é a principal influência no
funcionamento da política do poder. Além disso, envolve também a moral em política
internacional como o resultado da segurança.
Deve-se salientar que o livro constitui-se em uma sólida introdução histórica dos
princípios cardinais atuantes na política internacional, o que o torna uma referência
chave. A maneira como o autor expõe os temas, os conceitos-chave da área abordados
num continuum histórico encantam e fascinam os aficionados da área de Relações
Internacionais. O autor exibe a referida área partindo dos primórdios até as temáticas
atuais, além de envolver discussões jamais pensadas à época. Por exemplo, Wight cita a
decisão do Brasil em adotar a energia atômica para fins pacíficos. Rememora, de modo
histórico, como são desenvolvidas as classificações entre as potências a partir do sistema
de estados europeu e o permanente e tensionado equilíbrio de poder desenvolvido para
elas alcançarem a hegemonia global.
Por todos os motivos ora apresentados, nota-se que o estudante ou interessado da área
de Relações Internacionais depara-se com um clássico indispensável aos aspirantes à
carreira diplomática ou até mesmo os iniciantes da área. A visão de diplomacia de Wight
e dos assuntos diplomáticos é digna de uma sabedoria transcendente ao seu tempo.
Como citar esta Recensão Crítica
Teles, Matheus Gonzaga (2016). Wight, Martin (2002). A Política do Poder. Brasília: Editora
Universidade de Brasília: 329 pp. ISBN: ISBN: 85-230-0040-2. Recensão Crítica, JANUS.NET
e-journal of International Relations, Vol. 7, Nº. 2, Novembro 2016 - Abril 2017. Consultado
[online] em data da última consulta, observare.autonoma.pt/janus.net/pt_vol7_n2_rec1
(http://hdl.handle.net/11144/2788)