OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol.7, Nº. 1 (Maio-Outubro 2016), pp. 102-111
Notas e Reflexões
ENCONTRO DE FRANCISCO I E KIRILL I: PEQUENO PASSO NUMA
APROXIMAÇÃO CHEIO DE INCERTEZAS
José Milhazes
zemilhazes@hotmail.com
Licenciado em História da Rússia pela Universidade de Moscovo (Lomonossov) em 1984 e
doutorado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 2007.
Entre 1989 e 2015 trabalhou como correspondente de vários órgãos de informação, nacionais e
internacionais, na Rússia. Autor de numerosos artigos e livros sobre relações entre Portugal e a
Rússia, política da URSS nas ex-colónias portuguesas de África e relações entre o Partido
Comunista Português e o Partido Comunista da União Soviética.
Leccionou em universidades russas e portuguesas. Actualmente é comentador de assuntos
internacionais da SIC e RDP e colunista do Observador.pt (Portugal).
O primeiro encontro entre um Papa de Roma e um Patriarca de Moscovo e de Toda a
Rússia, realizado em Havana a 12 de Fevereiro passado, foi realmente um
acontecimento histórico, facto reconhecido unanimemente por todos, mas não se pode
criar grandes ilusões, pois Francisco e Kirill apenas deram um pequeno passo de
aproximação entre as duas maiores igrejas cristãs num clima de desconfiança milenar.
Recorrendo a uma alegoria frequente na natureza russa, o cabeça da Igreja Católica e
o chefe da Igreja Ortodoxa começaram a pisar uma camada de gelo muito fina que
cobre um rio ou um lago, mas que pode partir a um movimento mais brusco.
Preparação do encontro
A preparação do encontro em Havana foi realizada no maior dos segredos, ao nível da
mais escondida diplomacia, e o anúncio do acontecimento foi feito a poucos dias da sua
realização.
Em Junho do ano passado, o metropolita Ilarion, que dirige a Secção de Relações do
Patriarcado de Moscovo, admitiu essa possibilidade “numa perspectiva próxima”, mas
sublinhando que o encontro deveria ser “cuidadosamente preparado” e realizar-se em
território neutro” (Ilarion, 2015).
Todavia, esse tipo de promessas tinha sido feito antes, mas sem qualquer resultado
positivo. Muito se esforçou o Papa João Paulo II na normalização das relações entre
ortodoxos russos e católicos, tendo até sido marcado um encontro do chefe da Igreja
Católica Romana com Alexis II, na altura Patriarca de Moscovo e de Toda a Rússia, na
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Encontro de Francisco I e Kirill I: pequeno passo numa aproximação cheio de incertezas
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Áustria, que acabou por não ocorrer (Lima, 2016). Foram precisos 20 aturados e
difíceis anos de conversações para que o encontro dos dignitários ximos da Igreja
Ortodoxa Russa e do Vaticano se encontrassem.
Moscovo acusava a Igreja Católica de desenvolver missionação (proselitismo) no seu
“território canónico”: Rússia, Bielorrússia e Ucrânia, bem como os greco-católicos ou
uniatas ucranianos, cristãos que seguem o rito oriental, mas que reconhecem a
primazia do Papa no mundo cristão, de ocuparem templos pertencentes à Igreja
Ortodoxa Russa.
O segundo desses problemas não encontrou ainda solução e no interior da Igreja
Ortodoxa Russa existiu sempre uma forte oposição à aproximação com os “hereges”.
Por isso, o encontro foi anunciado apenas a 5 de Fevereiro, para apanhar de surpresa
os seus opositores.
Nesse sentido, a cidade de Havana também não foi escolhida por mero acaso. Era difícil
encontrar um local mais neutro do que Cuba: por um lado, do ponto de vista
geopolítico russo, esse país ainda faz parte da sua zona de influência e, por outro lado
é parte do mundo católico.
O encontro não se poderia realizar em Moscovo, porque, actualmente, é difícil imaginar
uma visita de um Papa de Roma à Rússia. Tanto mais de uma figura popular, humilde
e carismática como é Francisco I. Tratar-se-ia de mais um pretexto para críticas da
parte do clero e leigos ortodoxos que continuam a ver no Bispo de Roma um “herege”.
A reunião também não poderia realizar-se no Vaticano, pois a ida de Kirill seria
certamente interpretada pelos mesmos círculos conservadores e nacionalistas russos
como um sinal de reconhecimento do Papa pelo Patriarca de Moscovo como chefe da
Igreja Universal.
A pedido do chefe da Igreja Ortodoxa Russa, o encontro também não se realizou no
continente europeu, pois este simboliza a divisão dos cristãos, por isso, foi decidido
organizar a reunião num dos países da América Latina, onde o Cristianismo continua a
ser uma força viva e interveniente.
“Desde o início que o Santo Patriarca Kirill não queria que o
encontro decorresse na Europa, porque precisamente à Europa
está ligada a pesada história das divisões e dos conflitos entre
cristãos”,
reconheceu o metropolita Ilarion, chefe da Secção de Relações Internacionais da Igreja
Ortodoxa Russa. (Ilarion, 2016)
Mais uma prova de que tudo foi preparado minuciosamente reside no facto de a
Declaração Conjunta aprovada em Havana ter a assinatura não do Papa, mas do Bispo
de Roma. Isto foi de extrema importância para mostrar que estiveram reunidas duas
partes iguais. (Declaração Conjunta, 2016).
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Motivos políticos
O encontro do Papa e do Patriarca russo era também de suma importância para este
último, pois tratava-se de uma forma de ele se afirmar no mundo ortodoxo antes do
Concílio das Igrejas Ortodoxas, marcado para Junho de 2016 na Grécia, de fazer frente
ao seu principal concorrente: Bartolomeu, Patriarca de Constantinopla. O Patriarcado
de Moscovo receia que este último recebe sob a sua jurisdição Igrejas Ortodoxas que
se querem ver independentes da Russa como são os casos da Ucraniana, Estónia e
Finlandesa.
Iegor Kholmogorov, um dos ideólogos do nacionalismo russo, escreveu a propósito:
“Quanto à influência desse encontro nas relações dentro da
Ortodoxia, o Patriarca Kirill volta de Cuba como o líder
incondicional do mundo ortodoxo, de facto, o seu chefe informal”
(Kholmogorov, 2016).
Da parte russa, é evidente que este encontro visou contribuir tamm para reduzir o
isolamento do Kremlin face aos países ocidentais e melhorar a imagem do Presidente
Putin, fortemente prejudicada pela sua agressiva política externa. O apoio de um Papa
tão popular no mundo cristão e o é de extrema importância num período de
relações internacionais tão conturbadas como o actual. Tendo em conta a forte
dependência da Igreja Ortodoxa Russa face ao poder laico, é dicil imaginar que esse
encontro se tenha realizado sem a “bênção” do Presidente Putin.
Aliás, a preparação do encontro de Havana foi acelerada depois do encontro de
Francisco com Vladimir Putin, realizado a 13 de Junho do ano passado. Três dias depois
da audiência do dirigente russo no Vaticano, o Papa veio propor que Católicos e
Ortodoxos passassem a celebrar a Páscoa no mesmo dia, o que até agora não
acontecia. Além disso, posteriormente, observou-se um aumento de contactos entre
representantes das duas Igrejas, que desaguaram em Havana.
Não se pode deixar de assinalar que a submissão quase total do poder religioso ao
poder político não é uma particularidade actual, mas tem profundas raízes históricas.
A Rus de Kiev foi baptizada em 980 pelo príncipe Vladimir, o Grande. A partir dessa
data, a Igreja Ortodoxa Russa era dirigida por metropolitas que se sujeitavam ao
Patriarca de Constantinopla. Quando do processo de centralização política, os czares
russos consideram ser necessário a criação do cargo de Patriarca da Igreja Ortodoxa
Russa, com uma dependência apenas formal de Constantinopla. Essa política tinha por
base a ideologia da “Moscovo Terceira Roma”, ou seja, a ideia de Moscovo como
sucessora de Bizâncio. Em 1472, Ivan III, o Grande (reinou entre 1462 e 1505), casou-
se com a sobrinha do último Imperador bizantino. O grão-príncipe de Moscovo Ivan IV,
o Terrível começou a chamar a si os tulos de “autocrata” e “czar” e a usar a águia
bicéfala de Bizâncio.
Ideologicamente, esta primeira pretensão universalista de Moscovo foi justificada pelo
monge Filoteu de Pskov em algumas cartas dirigidas ao czar Vassili III em 1510:
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“digamos algumas palavras sobre o actual reinado glorioso do
Nosso Senhor mais iluminado e mais poderoso, que, em toda a
Terra, é o único czar dos cristãos e o soberano de todos os tronos
Divinos, da santa igreja apostólica universal que nasceu no lugar
da de Roma e de Constantinopla e que existe na cidade por Deus
salva de Moscovo, a igreja da santa e gloriosa Assunção da Virgem
Mãe de Deus, que ela no universo reluz com maior beleza do
que o Sol. Fica a saber, abençoado por Deus e por Cristo, que
todos os reinos cristãos chegaram ao fim e juntaram-se num único
reino do Nosso Senhor, segundo os livros dos profetas, o reino
romano: porque duas Romas caíram, a terceira está de e a
quarta não virá”. (Milhazes, 2016).
A eleição do primeiro Patriarca da Igreja Ortodoxa Russa: Job, foi impulsionada pelo
czar Fiodor, filho de Ivan, o Terrível, em 1589. Na realidade, Fiodor era completamente
controlado pelo boiardo Boris Godunov, que lhe veio a suceder no trono russo.
(Ulojionnaia Gramota, 1589).
Porém, com o advento do absolutismo, o poder imperial russo passou a controlar
completamente a Igreja Ortodoxa Russa. Pedro, o Grande decidiu, em 1700, liquidar o
cargo de Patriarca e colocar os ortodoxos russos sobre a alçada do Santo Sínodo, uma
espécie de ministério dirigido por um leigo nomeado pelo próprio czar.
Esta situação continuou até 1917, mas, quando a Igreja Ortodoxa Russa elegeu o
Patriarca Tikhon, o país era dirigido por um regime comunista que tinha como
objectivo pôr fim à religião enquanto fenómeno social. (Gubonin, 1994). Por isso, até
ao fim da URSS, em 1991, essa Igreja, ou mais precisamente, o que restou dela depois
de numerosas campanhas anti-religiosas, também dependia totalmente do Comité de
Estado para os Assuntos Religiosos.
Depois da queda do comunismo na URSS, assistiu-se a uma “invasão” de religiões e
seitas que tentaram preencher o vácuo deixado pelo ateísmo. Vendo-se não preparada
para enfrentar a concorrência, a Igreja Ortodoxa Russa exigiu que fossem
reconhecidos, pelo poder político, os seus “territórios canónicos” o na Rússia, mas
também em países vizinhos como a Bielorrússia e a Ucrânia.
Pelo seu lado, o poder político, principalmente durante a presidência de Vladimir Putin,
iniciada em 2000, tem ido ao encontro das exigências da Igreja Ortodoxa Russa,
recebendo em troca o apoio para a sua política interna e externa. No campo da
diplomacia, o Patriarcado de Moscovo apoiou o envio de tropas russas para a Ossétia
do Sul e Abkhásia, regiões separatistas da Geórgia, em 2008; a invasão da Crimeia e
do Leste da Ucrânia em 2014-2015; bem como a participação da aviação russa na
guerra da Síria.
Plataformas de entendimento
A Declaração Conjunta aprovada na Cimeira de Havana contém os problemas e
preocupações que poderão cimentar o início de um trabalho conjunto das duas Igrejas
Cristãs a nível internacional.
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Nos parágrafos 8-13, o Papa Francisco e o Patriarca Kirill lançaram um apelo dramático
em defesa dos cristãos perseguidos e assassinados no Médio Oriente e no Norte de
África, regiões mergulhadas em cruéis guerras civis.
Não podemos passar ao lado do parágrafo 14, onde se saúda o aumento da
religiosidade em países outrora oprimidos por regimes comunistas, nomeadamente a
Rússia (Declaração Conjunta, 2016). Um estudo realizado pelo Levada Center em
Novembro de 2012 na Federação da ssia parece mostrar isso: 74% dos
respondentes afirmaram ser ortodoxos. Porém, é de sublinhar que apenas uma minoria
frequenta regularmente templos ou cumpre os deveres religiosos. Segundo a mesma
sondagem, 24% dos inquiridos “nunca frequentam um templo”, 29% só lá vão aquando
de “baptizados, casamentos e funerais” e apenas 7% para se confessar e comungar
(Levada Center, 2012). No fundo, a maioria considera-se ortodoxa tendo por base a
consciência nacional.
Na Declaração Conjunta, Francisco e Kirill chamam também a atenção para o perigo
que encerram em si processos que têm lugar no mundo moderno, como, por exemplo,
a secularização e o relativismo, a defesa do aborto e da eutanásia, os ataques contra o
conceito cristão de família. Nesta situação, apelam para que a Europa não se esqueça
das suas raízes cristãs (Declaração Conjunta, 2016).
Este é, sem dúvida, um dos campos onde a cooperação entre as duas Igrejas Cristãs
poderá desenvolver-se com maior intensidade, pois enfrentam os mesmos desafios,
mas, nalguns casos, sob diferente forma. Por exemplo, se, na questão do aborto, a
Igreja Católica luta contra a sua legalização, a Igreja Ortodoxa luta pela sua proibição.
Isto porque, na URSS e, mais tarde, na Rússia, o aborto foi quase sempre legal e,
devido à quase inexistência de anti-conceptivos, principalmente na União Soviética, o
seu número era muito alto. Nomeadamente, em 1980, foram registados 4 506 000
abortos legais (Rossiiskii Statistitcheskii ejegodnik, 2007). O número tem conhecido
uma redução muito significativa (1 186 100 em 2007, ou seja, 66,6 abortos para cada
100 nascimentos) (Federalnaia Slujba gossudarstvennoi statistiki, 2011), mas o
Patriarcado de Moscovo continua a considera-lo uma autêntica “matança de inocentes
e tem-se empenhado em campanhas que visem proibir o aborto no ps.
Guerra entre cristãos
Os dirigentes das duas Igrejas Cristãs não podiam deixar de abordam o conflito militar
na Ucrânia. Primeiro, porque vive a segunda maior comunidade ortodoxa depois da
Rússia e, segundo, porque na parte ocidental a maioria dos habitantes são greco-
católicos (uniatas), cristãos que seguem o rito litúrgico ortodoxo, mas que reconhece a
supremacia do Papa de Roma.
Quando a Ucrânia se tornou independente devido à desintegração da União Soviética,
em 1991, a elite política ucraniana necessitou também de criar uma «Igreja nacional» a
fim de se demarcar de Moscovo. Em 1992, parte do clero ortodoxo ucraniano separou-
se da Igreja Ortodoxa da Ucrânia do Patriarcado de Moscovo (IOUPM) e criou a Igreja
Ortodoxa da Ucrânia do Patriarcado de Kiev (IOUPK), dirigida, actualmente, por
Filarete, Patriarca de Kiev e de toda a Ucrânia, com cerca de 3000 paróquias no país. O
Patriarca de Moscovo cortou relações com a nova Igreja ucraniana, considerando-a
«cisionista».
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Não obstante todos os esforços dos dirigentes ucranianos para restabelecer o diálogo,
as duas comunidades ortodoxas continuam de «costas viradas» e as relações entre elas
azedaram depois de Moscovo ter anexado a Crimeia em 2014 e ocupado militarmente
parte do Leste da Ucrânia, que continua até hoje.
Existe também a Igreja Ortodoxa Autocéfala da Ucrânia (IOAU), que foi criada no
estrangeiro entre a numerosa diáspora ucraniana. Em 1989, esta Igreja instalou-se na
Ucrânia mas, no ano seguinte, parte do clero e fiéis passou para a IOUPM e parte
juntou-se à IOUPK. Actualmente, com cerca de 550 paróquias, a IOAU mantém
contactos irregulares com as outras duas Igrejas ortodoxas.
Por sua vez, o mundo católico está representado no país por duas Igrejas: a Igreja
Greco-Católica Ucraniana (IGCU) e a Igreja Católica Romana Ucraniana (ICRU). Se esta
tem um peso pouco significativo na sociedade ucraniana cerca de 800 paróquias , a
IGCU constitui a segunda mais numerosa comunidade eclesial no país, com mais de
3000 paróquias e 10 milhões de fiéis.
A IGCU foi criada em 1596 graças à União de Brest, tentativa do Vaticano de unir
ortodoxos e católicos (daí o nome de Uniata) numa Igreja sob a direcção do Papa de
Roma. Em conformidade com outra denominação sua (Greco-Católica), os uniatas
conservam os seus ritos e língua litúrgica tradicionais, mas reconhecem a autoridade
do Santo Padre e a dogmática católica.
O catolicismo de rito oriental foi alvo de várias tentativas de proibição. Em 1839, o czar
russo Nicolau I de cujo império fazia parte a Ucrânia dissolveu o nodo da Igreja
Greco-Católica, ordenando aos fiéis que optassem pela Igreja Ortodoxa Russa ou a
Igreja Católica. Porém, a maioria dos uniatas não obedeceu a essa ordem.
Em 1945, a pretexto de os hierarcas uniatas terem colaborado com o nazismo alemão,
o ditador soviético José Estaline dissolveu a IGCU. Em 1946, as autoridades comunistas
organizaram o «Concílio de Lvov da Igreja Greco-Católica Ucraniana», que votou pela
passagem dos seus fiéis para a Igreja Ortodoxa Russa.
Porém, os uniatas não acataram tal decisão e passaram à clandestinidade. No Concílio
de Lvov não participou nenhum bispo uniata, tendo os pastores greco-católicos
preferido os campos de concentração ou a emigração à colaboração com o regime
comunista.
Até ao fim da ditadura soviética, os milhões de uniatas ucranianos viram-se obrigados a
organizar cerimónias de culto clandestinas em casas particulares ou a frequentar os
poucos templos católicos e ortodoxos russos que continuavam abertos.
Em 1990, o Comité para Assuntos Religiosos junto do Conselho de Ministros da Ucrânia
legalizou os uniatas, que exigiram que a Igreja Ortodoxa Russa lhes devolvesse os
numerosos templos que lhe tinham sido confiscados e entregues aos ortodoxos russos
por José Estaline. Em 1945, a IGCU possuía mais de 4000 templos e capelas,
seminários e uma Academia de Teologia.
Foi criada uma comissão, constituída por representantes do Vaticano, da Igreja Uniata,
da Igreja Ortodoxa Russa e da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscovo, a
fim de controlar a devolução dos templos confiscados aos uniatas e evitar conflitos.
Porém, devido à morosidade do processo, os fiéis da Igreja Greco-Católica Ucraniana
começaram a ocupar os edifícios de culto que lhe tinham sido tirados em 1945.
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O Patriarcado de Moscovo reagiu bruscamente, acusando o Vaticano de estar por detrás
das acções dos fiéis uniatas, interpretadas como uma ofensiva contra a IOUPM. Este
constitui um dos principais atritos entre o Patriarcado de Moscovo e o Vaticano, mas
não é o único no que respeita à situação criada em torno da IGCU. (Milhazes, 2005).
Vozes contestatárias
Como era de esperar, este encontro provocou reacções negativas no seio da ala
fundamentalista e nacionalista da Igreja Ortodoxa Russa. O arcipreste Vladislav
Emilianov, pároco numa das regiões da Sibéria, considerou o encontro de Havana uma
“traição”:
“Os tristes e conhecidos acontecimentos levam-me a levantar a
voz em apoio do clero e leigo ortodoxos não indiferentes, que
lutam pela defesa dos dogmas e cânones da Igreja Ortodoxa… O
encontro do patriarca Kirill com o papa provocou a sensação de
traição” (Emilianov, 2016).
O padre Alexei Morozov, pároco da região de Novgorod, membro da União de Escritores
da ssia e presidente da Assembleia da Intelectualidade Ortodoxa, ameaça mesmo
com um cisma no interior da Igreja Ortodoxa Russa:
“Hoje, a nossa Igreja encontra-se no limiar de um cisma. Depois
dos conhecidos acontecimentos religiosos do início de Fevereiro de
2016, numerosos paroquianos receiam entrar nos seus templos,
confessar-se e comungar. Centenas de milhares de pessoas
dirigem-se aos seus guias espirituais e perguntam o que fazer se o
chefe da Igreja, a despeito dos nones e da tradição ortodoxa,
entrou em contacto aberto com os latinos e seu chefe: o Papa de
Roma, e prega a heresia do ecumenismo como parte integrante da
vida da Igreja” (Alexei, 2016).
Alguns greco-católicos também ficaram descontentes com a própria ocorrência do
encontro. O bispo Sviatoslav, chefe da Igreja Uniata (Greco-Católica) Ucraniana,
comentou:
“Baseando-me na nossa experiência multissecular, posso afirmar:
quando o Vaticano e Moscovo organizam encontros ou assinam
textos comuns, não vale a pena esperar nada de bom deles”.
Comentando concretamente o parágrafo 25 da Declaração Conjunta:
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“Esperamos que o nosso encontro possa contribuir também para a
reconciliação, onde existirem tensões entre greco-católicos e
ortodoxos. Hoje, é claro que o método do «uniatismo» do passado,
entendido como a união duma comunidade à outra separando-a da
sua Igreja, o é uma forma que permita restabelecer a unidade.
Contudo, as comunidades eclesiais surgidas nestas circunstâncias
históricas têm o direito de existir e de empreender tudo o que é
necessário para satisfazer as exigências espirituais dos seus fiéis,
procurando ao mesmo tempo viver em paz com os seus vizinhos.
Ortodoxos e greco-católicos precisam de reconciliar-se e encontrar
formas mutuamente aceitáveis de convivência”,
ele frisou:
“Sem dúvida que esse texto provocou uma total desilusão entre
muitos crentes da nossa Igreja, e entre muitos cidadãos
empenhados da Ucrânia. Hoje muitos dirigiram-se a mim a
propósito e disseram-me que se sentem traídos pelo Vaticano,
desiludidos com a meia-verdade desse documento” (Sviatoslav,
2016)
Os uniatas consideram que a Igreja Ortodoxa Russa apoiou incondicionalmente a
invasão da Crimeia por tropas russas em 2014 e as acções militares das tropas russas
no Leste da Ucrânia.
Por conseguinte, é muito difícil prever como se idesenvolver o diálogo entre Roma e
Moscovo, mas não dúvidas de que as duas Igrejas Cristãs terão de superar enormes
obstáculos para se começar a falar de uma união num futuro longínquo. Por exemplo,
o é previsível, nem a médio, nem a longo prazo, uma visita do Sumo Pontífice de
Roma à Rússia. O mesmo se pode dizer de uma visita do Patriarca de Moscovo ao
Vaticano. Muito irá depender também da evolução da política externa russa e dos seus
objectivos.
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e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 1 (Maio-Outubro 2016), pp. 102-111
Encontro de Francisco I e Kirill I: pequeno passo numa aproximação cheio de incertezas
José Milhazes
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Ulozhionnaia gramota (1589). Уложенная грамота об учреждении в России
Патриаршества, 1589 (Decreto de Criação do Patriarcado na Rússia, 1589).
Como citar esta Nota
Milhazes, José (2016). "O encontro de Francisco I e Kirill I: pequeno passo numa
aproximação cheio de incertezas". Notas e Reflexões, JANUS.NET e-journal of International
Relations, Vol. 7, Nº. 1, Maio-Outubro 2016. Consultado [online] em data da última
consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol7_n1_not1 (http://hdl.handle.net/11144/2624)