OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 1 (Maio-Outubro 2016), pp. 58-76
PENSAR A PAZ POSITIVA NA PRÁTICA
AVALIAR A EFICÁCIA DAS NAÇÕES UNIDAS
NA IMPLEMENTAÇÃO DE UMA PAZ AMPLA
Madalena Moita
moita.madalena@gmail.com
Doutorada em Conflito Político e Processos de Pacificação, pela Universidade Complutense de
Madrid (2015, Espanha). Tendo um percurso centrado na análise e apoio à formulação de
políticas em matéria de governação, consolidação da paz e desenvolvimento para diferentes
entidades (governos, Comissão Europeia, Nações Unidas, think tanks internacionais), é
actualmente consultora externa para a Comissão Europeia, prestando apoio tanto à Sede como
às Delegações em matérias relacionadas predominantemente com direitos humanos, participação
da sociedade civil e resolução de conflitos
Resumo
A insistência do retorno da violência em países onde a ONU interveio para promover a paz
tem alimentado um debate sobre a eficácia dos instrumentos internacionais de resolução de
conflitos. Este artigo reflecte sobre a evolução que estes instrumentos foram fazendo como
resposta à recorrência da violência, à luz do que terá sido uma aproximação ao conceito de
paz positiva de Johan Galtung. Partindo de dois estudos de caso (Guatemala e Haiti)
marcados pelas alterações no discurso e práticas das Nações Unidas que esta aproximação
inspirou, sustenta que os instrumentos da ONU para a paz serão tão mais eficazes quando
respeitarem a proposta do autor não apenas nos resultados que pretendem alcançar, mas
também na forma como operacionalizarem uma paz positiva no terreno. Analisa, assim,
como serão dificuldades na implementação de processos mais amplos, locais e inclusivos
que estarão a afectar a promoção de pazes mais sustentáveis, contaminando também os
mecanismos usados para avaliar a sua eficácia.
Palavras-chave
Construção da paz; Paz positiva; Avaliação da eficácia; Guatemala; Haiti
Como citar este artigo
Moita, Madalena (2016). "Pensar a paz positiva na prática. Avaliar a eficácia das Nações
Unidas na implementação de uma paz ampla". JANUS.NET e-journal of International
Relations, Vol. 7, N.º 1, Maio-Outubro 2016. Consultado [online] em data da última
consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol7_n1_art4 (http://hdl.handle.net/11144/2622)
Artigo recebido em 15 de Fevereiro de 2016 e aceite para publicação em 11 de Março
de 2016
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Pensar a paz positiva na prática. Avaliar a eficácia das Nações Unidas na implementação de uma paz ampla
Madalena Moita
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PENSAR A PAZ POSITIVA NA PRÁTICA
AVALIAR A EFICÁCIA DAS NAÇÕES UNIDAS
NA IMPLEMENTAÇÃO DE UMA PAZ AMPLA
Madalena Moita
Introdução
As práticas de resolução de conflitos conduzidas pelas Nações Unidas têm evoluído de
forma muito significativa nas últimas cadas, tratando de responder de forma mais
eficaz ao problema recorrente do retorno à violência em situações s-conflito pela
procura de instrumentos que apontem para soluções de uma paz mais sustentável. Em
grande medida, este esforço foi sendo feito, sobretudo a partir dos anos noventa, pela
conformidade destes instrumentos a um conceito de paz que ultrapassou a sua
dimensão mínima da não-guerra e portanto da resolução de conflitos pela contenção da
violência.
Esta ampliação conceptual de paz, muito evidente na evolução do discurso das Nações
Unidas nestas décadas recentes, fez-se pelo que pareceu ser uma apropriação do
conceito de paz positiva proposto por Johan Galtung, materializando-se na evolução da
manutenção da paz (peace keeping) para instrumentos de muito mais largo espectro
associados ao conceito de construção da paz (peace building). Esta materialização
tem vindo a pressupor mais recursos tanto humanos, como financeiros e uma
muito maior coordenação no terreno de actores de dimensões várias desde a segurança
à esfera humanitária, incluindo a articulação com toda a esfera de actores de
desenvolvimento e de reforço do Estado numa perspectiva de mais longo prazo de
resolução das causas estruturais da conflitualidade.
Esta nova configuração da arquitectura das Nações Unidas para a resolução de conflitos
não tem no entanto apresentado sempre resultados eficazes.
Neste artigo defendemos que se essa aproximação teórica traz consigo uma abordagem
propícia a soluções mais sustentáveis de paz, esta será tão mais eficaz quanto respeitar
a proposta de Galtung não apenas no que diz respeito aos resultados a que pretende
chegar, mas também aos meios e processos postos em marcha para os alcançar.
A avaliação da eficácia da ONU na promoção da paz continua sobretudo centrada em
resultados, mais do que em avaliar procedimentos. Considerando que mais do que um
problema de intenções e objectivos a ONU possa ter sobretudo uma dificuldade na sua
implementação, sugerimos aqui uma avaliação mais centrada nos processos que
poderá dar contribuições mais significativas ao debate sobre o seu impacto no terreno.
A transição da narrativa das Nações Unidas numa aproximação à paz positiva
consagrou-se também, no terreno, por uma muito maior atenção e envolvimento da
Organização nos processos políticos para a resolução de conflitos armados,
nomeadamente pela integração da ONU em equipas de mediação. A forma como este
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envolvimento se processou poderá ser factor condicionador de uma maior eficácia no
terreno, dinâmica que tentámos então verificar pela comparação de dois estudos de
caso.
A paz positiva no discurso da ONU
Em 1964, Johan Galtung, considerado como um dos pais fundadores dos Estudos para
a paz, no primeiro número do Journal of Peace Research, fazia alusão a um conceito
alternativo de paz que viria a marcar uma ruptura na forma de pensar e de fazer as
pazes. então a sua reflexão tinha sido gerada pela preocupação com o ciclo vicioso
da violência que retornava em cenários previamente intervencionados (Galtung, 1964).
Contrariando a tendência dominante de observar a paz desde o ponto de vista do
estudo da guerra, que condicionava profundamente as práticas no terreno no campo da
resolução de conflitos, Galtung propôs centralizar o debate na paz como fenómeno
autónomo.
Esta percepção de paz a que chamou positiva (frente a uma versão mínima, negativa
associada à ausência da guerra) sugeria então um itinerário mais amplo de construção
social que previa a transformação criativa dos conflitos políticos, económicos, culturais,
religiosos ou outros em formas de renovação social e de proximidade que saíam das
variantes violentas de oposição. Por paz positiva Galtung concebeu um processo de
construção colectiva que procurava o equilíbrio e a justiça social, renegando as
estruturas violentas que estavam na base de uma violência mais visível que assumia,
na sua forma limite, os contornos da guerra.
A validade mais significativa da sua proposta, mais além de oferecer uma categoria
analítica nova para compreender o fenómeno da paz, foi a de ter possibilitado um novo
entendimento sobre a violência, obrigando a observá-la não apenas na sua dimensão
mais visível e directa, mas também na estrutura que a origina.
O conceito de violência estrutural, que Galtung associa à exploração económica, à
repressão política, à injustiça social e desigualdade, sugeria então que para responder à
violência directa de carácter mais episódico , seria imprescindível resolver as causas
mais profundas da conflitualidade atendendo às violências que estão inscritas,
invisíveis, na estrutura do todo social de forma mais contínua (Galtung, 1969)
1
.
Mais do que sugerir una meta de uma sociedade mais justa e equilibrada, Galtung
propôs assim um guião para a alcançar, uma resposta aos conflitos que passasse por
uma transformação profunda das causas estruturais da violência através de um
conhecimento profundo do seu contexto, actores, dinâmicas e incompatibilidades. Este
seu guião sugeria assim que contrariando uma abordagem dissociativa de resolução do
conflito pela quebra da relação entre as partes, pela contenção da violência através da
separação das mesmas, se deveria optar antes por uma abordagem associativa, pela
aproximação das partes numa construção colectiva, integradora da paz.
A visão holística de paz positiva associada não ao fim da violência directa, mas
também à transformação das causas estruturais da violência, viria a ter uma
1
Galtung trabalha mais tarde sobre um terceiro conceito de violência, a violência cultural, inerente às
outras dimensões referidas, que corresponde aos aspectos simbólicos do quotidiano, manifestos no
sistema de normas, na religião, na ideologia, na linguagem e que legitimam as violências directa e
estrutural (Galtung, 1990).
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interferência muito considerável no discurso e práticas internacionais para a resolução
de conflitos no pós-Guerra Fria.
Nos anos noventa assistimos, neste contexto, à multiplicação exponencial de
intervenções para a paz lideradas pelas Nações Unidas em conflitos intra-estatais. Estas
novas intervenções vão traduzir-se na conjugação de novas abordagens para a paz,
articulando ao peace keeping que vinha sendo experimentado que passava pela
intervenção militar para conter a violência , uma actuação mais centrada no peace
making, relacionado com a reconciliação política, e o peace building, que integrava
medidas de reconstrução social e desenvolvimento (Woodhouse; Ramsbotham, 2000).
As Nações Unidas vão assim assumir por um lado, um papel preponderante como
mediador em vários conflitos internos, fazendo, por outro, coordenar esta função com a
mobilização de novas missões de paz com mandatos muito mais amplos do que as
suas antecessoras.
A implementação de um discurso na prática da construção da paz
Esta transição no discurso dominante das Nações Unidas, evidenciada nomeadamente
pela inclusão de uma versão ampla de paz em documentos-chave como a Agenda para
a Paz
2
de 1992 e a sua adenda de 1995, veio então transformar as prática no terreno.
No entanto, esta sua operacionalidade não tem vindo a demonstrar necessariamente
uma maior eficácia na resolução de conflitos violentos, verificando-se ainda com
frequência o retorno à violência em cenários que tinha já sido palco de intervenções.
Esta ineficácia é patente no historial de operações de manutenção de paz, o mecanismo
por excelência das Nações Unidas neste campo.
Em curso, existem 17 missões de manutenção de paz da ONU
3
. Uma observação mais
atenta permite-nos dividi-las em dois grandes subgrupos. Um primeiro corresponderia
a missões de longuíssima duração, estando no terreno algumas desde o final dos anos
40 (caso da UNTSO
4
, a primeira operação de paz da ONU, no Médio Oriente), sendo
quase todas operações de primeira geração, anteriores à transição que aqui tratamos
dos anos noventa. O segundo subgrupo corresponderia a missões réplica: mais de
metade das actuais operações de paz estão mobilizadas em países onde existiram
missões prévias.
Esta caracterização de cada subgrupo faz em si mesma questionar a eficácia destes
instrumentos no alcance de pazes sustentáveis: seja por obrigarem a uma presença
internacional arrastada no tempo, seja por obrigaram ao retorno de forças militares em
situações previamente intervencionadas.
Das 54 missões de paz concldas
5
, uma imensa maioria correspondeu a missões
anteriores às actuais ou estão centradas em zonas limítrofes às mesmas coincidindo
ainda com grandes regiões de instabilidade (como seria o caso das missões nos
2
Texto completo disponível em http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/47/277, consultado
a 11 de Fevereiro de 2016.
3
Ver dados disponibilizados pelo Departamento de Manutenção da Paz da ONU em
http://www.un.org/en/peacekeeping/operations/, consultado a 11 de Fevereiro de 2016.
4
Do inglês United Nations Truce Supervision Organization,
http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/untso
5
Ver dados disponibilizados pelo Departamento de Manutenção da Paz da ONU em
http://www.un.org/en/peacekeeping/operations/, consultado a 11 de Fevereiro de 2016.
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Grandes Lagos ou no Médio Oriente que viram a violência deslocar-se para áreas
adjacentes). Dessas missões terminadas, podemos destacar um pequeno conjunto que
é tratado na literatura como casos de relativo sucesso da ONU na resolução de conflitos
com os exemplos da América Central, El Salvador, Guatemala, Moçambique, Timor-
Leste e o Cambodja que têm em comum um envolvimento muito mais acentuado da
ONU na resolução política do conflito.
A aparente sustentabilidade dos processos de paz nestes casos e portanto a noção de
maior eficácia das Nações Unidas na resolução destes confrontos armados sugere a
necessidade de um quadro de avaliação que permita entender que procedimentos
foram aqui tidos em conta para que a implementação do modelo de paz que vem sendo
experimentado tenha sido mais bem sucedido.
A reflexão sobre a eficácia dos mecanismos internacionais de resolução de conflitos tem
preocupado não apenas centros de estudo, mas também as próprias esferas decisórias
das Nações Unidas que têm desenvolvido um debate com uma nova preocupação com
indicadores e resultados de sucesso.
A avaliação de um processo multidimensional e complexo como é um processo de paz
não está isenta de dificuldades e a própria ONU tem experimentado por diferentes vias
melhorar essa capacidade. Internamente a Organização foi formando estruturas
capazes de fomentar esta reflexão, através da criação de grupos de trabalho que
definissem objectivos mais claros, assim como um quadro institucional capaz de
recuperar lições aprendidas nos vários palcos de actuação.
Exemplo disso foi a criação em 2005 da Comissão para a Consolidação da Paz (Peace
Building Commission), um organismo de assessoria inter-governamental de articulação
entre a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança que tenta coordenar desde então
os instrumentos de peace keeping e de peace building. A Comissão tem um grupo de
trabalho específico para compilar lições aprendidas e conduz processos de avaliação
dos projectos que o seu Peace Building Fund financia. A avaliação da actuação da ONU
neste quadro centra-se sobretudo na análise dos resultados, numa avaliação mais de
micro-projecto do que do impacto do conjunto de instrumentos da Organização no
terreno.
Ainda que a PBC procure fundamentalmente ultrapassar a separação entre os esforços
para a promoção da paz de carácter mais político da responsabilidade do Departamento
de Assuntos Políticos (DPA) e o Departamento de Operações de Manutenção de Paz
(DPKO), a eficiência das intervenções da Organização nos dois departamentos tem
também mecanismos de avaliação separados.
No âmbito do DPA, foi criado o UN Peacemaker, em 2006, de onde saiu uma Unidade
de Apoio à Mediação (Mediation Support Unit). Com o objectivo de facilitar o trabalho
da Organização no apoio a transições políticas e no alcance de acordos de paz, esta
ferramenta compila informação sobre processos anteriores, assim como integra
documentos com lições aprendidas e textos orientadores para o trabalho no terreno.
No quadro das operações de paz do DPKO e dada a sua evolução nas últimas décadas,
a sua avaliação tem se tornado crescentemente mais complexa, como aliás assumia
a Doutrina Capstone
6
de 2008, o documento doutrinário fundamental das operações de
6
Disponível em inglês em http://www.un.org/en/peacekeeping/documents/capstone_eng.pdf, consultado
em 11 de Fevereiro de 2016.
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paz, que enumerava princípios e orientações para a implementação no terreno, assim
como um quadro de indicadores de sucesso bem mais amplo (ver quadro).
Em 2010, as Nações Unidas publicaram também um Guia de Monitorização da
Consolidação da Paz (Nações Unidas, 2010). Demonstrando uma cada vez maior
preocupação com as necessidades reclamadas por actores nacionais na definição de
critérios e indicadores de monitorização, este continua a ser por natureza um guia geral
oferecendo uma grelha algo estandardizada para o seguimento de processos em curso.
De alguma forma, serve ainda fundamentalmente para fornecer informação aos seus
funcionários de forma a melhor ir actualizando a sua estratégia, mais do que para
analisar efectiva e criticamente o impacto da ONU no terreno (Stave, 2011).
Se este quadro evidencia como as próprias Nações Unidas têm optado por alargar os
indicadores de sucesso a factores mais extensos, numa aproximação clara à
materialização de um conceito de paz amplo, este esforço tem, no entanto, replicado a
dispersão de instrumentos de resolução de conflitos no quadro das Nações Unidas, sem
que se verifique uma centralização da análise destes no terreno. Não permite, portanto,
avaliar, num determinado contexto de actuação, como o conjunto dos instrumentos ao
dispor da Organização no seu espectro completo tem sido eficaz na consolidação da
paz como um todo.
Mas mais significativo ainda é o facto destes mecanismos favorecerem sobretudo uma
análise da eficácia da actuação da ONU à luz de indicadores estabelecidos pela própria
Organização, sem privilegiar indicadores de paz conformes a um modelo de paz
ambicionado localmente, e descurando uma prestação de contas liderada pelos países
receptores.
Cada um destes mecanismos permite ainda, assim, sobretudo uma leitura mais
completa sobre o palco de actuação, do que propriamente sobre a intervenção como
tal. Mecanismos que ampliem o conhecimento da ONU e particularmente dos seus
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funcionários sobre os contextos em que actuam são necessários e muito relevantes, no
entanto, continuam a ser parcos numa avaliação crítica sobre o que a ONU pode estar a
fazer bem e mal no terreno. De alguma forma se aceita que a actuação uniforme da
Organização na promoção da paz, porque assente num quadro de valores universais e
num projecto externo e técnico de construção do Estado, pode superar versões locais e
políticas do modelo de paz que se quer erguer.
Neste quadro, raras vezes os actores locais desfrutam de mecanismos de fiscalização
da acção internacional em função das suas próprias necessidades e com frequência se
ultrapassam etapas essenciais de diálogos políticos nacionais porque se aceita como
procedimento único para alcançar uma paz estável o modelo prescritivo conduzido pela
ONU.
Avaliar a paz mais além dos resultados
Neste contexto e considerando que vários dos casos de relativo sucesso da intervenção
da ONU na promoção de uma paz estável poderá ter coincidido com uma maior atenção
à reconciliação política, quisemos indagar sobre o potencial deste factor como gerador
de uma maior eficácia para evitar o retorno à violência política armada.
Assumindo que a narrativa legitimadora das intervenções das Nações Unidas no quadro
da promoção da paz se tem aproximado de um conceito de paz amplo, quisemos
considerar mecanismos de avaliação que permitam então ponderar a eficácia da
actuação da ONU no que respeita à sua conformidade com a proposta da paz positiva,
tanto na meta como no guião que esta comporta.
Atribuímos assim relevo às missões que estiveram articuladas com processos de
reconciliação política através da condução de processos de mediação. A mediação é um
instrumento de gestão de conflitos particularmente relevante que permite facilitar e
influenciar, no apoio às partes, o desenho dos procedimentos que dão forma ao
diálogo, por um lado, e à agenda das negociações, por outro, elementos que podem vir
a condicionar os resultados das mesmas. Sem se sobrepor aos protagonistas centrais
de um processo de paz, o mediador tem o poder de moldar uma série de variáveis que,
no seu conjunto, perfilam o modelo de paz que sai de um processo negocial, com um
impacto muito significativo no pós-conflito.
Baseamo-nos numa investigação recente
7
onde foi tentado o desenho de um quadro de
avaliação que se aproximasse o mais possível do conceito de Galtung de paz positiva.
Este, como mencionámos inicialmente, oferece por um lado uma meta a alcançar, mas
sugere igualmente um guião, um processo para chegar a esse objectivo.
Optou-se por testar esta moldura de avaliação a dois estudos de caso que
correspondessem de uma forma evidente ao novo quadro de actuação pós anos
noventa. Ambos os casos escolhidos coincidem, por um lado, na inspiração num novo
quadro de valores e princípios que o discurso de então das Nações Unidas absorvera,
por outro, na conciliação decorrente de uma intervenção de carácter mais político, com
uma de natureza militar, com uma operação de paz mobilizada para apoiar a
implementação dos respectivos acordos de paz.
7
Moita, Madalena (2015) La ONU y la Construcción de la Paz en Haití y Guatemala, Tesis doctoral,
Universidad Complutense de Madrid.
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A comparação serviu para contrastar uma intervenção das Nações Unidas que foi dada
como concluída, e que no quadro das missões passadas integra o subgrupo que se
associa a um relativo êxito pela observância do não retorno da violência política
armada no pós-conflito, com uma outra intervenção menos bem sucedida onde a
reincidência da violência fez regressar uma presença militar de larga monta que ainda
hoje se mantém no terreno.
De alguma forma, os dois casos escolhidos Guatemala e Haiti configuram dois tipos
de intervenção que tendo uma nese similar divergem drasticamente na sua
implementação, traduzindo-se assim em resultados profundamente diferentes.
Tentou-se por isso, nesta comparação, associar uma avaliação dos resultados de cada
intervenção a uma consideração sobre o próprio processo de alcance de uma paz
positiva, processo esse que deveria ser amplo, transformador, integrador e
primordialmente local.
Primeiramente tentou-se traçar um quadro de indicadores, dentro da informação e
dados disponíveis nos dois países, que correspondessem fielmente à ideia da paz
positiva, assim como às perspectivas nacionais recolhidas por entrevistas e de acordo
com as expectativas geradas nacionalmente pelos Acordos de Paz
8
. Isto pressupôs
alargar os indicadores de sucesso mais além do quadro mínimo de eleições, cessar-fogo
e um mínima estabilidade conseguida.
Âmbito
Indicador / critério
Quadro político:
democracia e
inclusão política
Estabilidade governativa
Índice de democracia (incluindo processo eleitoral, funcionamento do
Governo, participação política e cultura política)
Deterioração dos serviços públicos
Desenvolvimento
económico-social:
inclusão e
igualdade
PIB
Pobreza e deterioração económica
Desenvolvimento económico desigual
Indicadores sociais, incluindo gastos em educação, anos de escolaridade,
taxa de alfabetização, esperança de vida, mortalidade infantil
Índice de Desenvolvimento Humano
Sustentabilidade
do processo de
paz: ausência de
violência
directa/indirecta
Mortes violentas
Escala de terror político
Respeito pelas liberdades cívicas
Número de anos passados até ao retorno ao conflito armado
Grau de autonomia do Estado: Ajuda Oficial ao Desenvolvimento
Índice de fragilidade do Estado
Nesse sentido, tratou-se de privilegiar uma perspectiva local que enriquecesse a visão
internacional sobre o processo de paz e assim complementar indicadores de carácter
mais transversal com critérios que respondessem às expectativas nacionais do mesmo.
Na combinação entre resultados e processo, quis-se igualmente abrir uma análise sobre
a coerência entre os vários instrumentos de resolução de conflitos usados pela ONU,
8
Ao quadro comparativo seguinte, adicionaram-se ainda alguns indicadores específicos para cada país
relacionados com questões particulares ao processo de paz respectivo, como seriam exemplo dados que
permitissem indagar a maior presença de indígenas e mulheres no quadro político Guatemalteco dado
serem estes temas muito relevantes no âmbito do processo de mediação.
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nomeadamente a articulação entre instrumentos políticos como a mediação com
instrumentos adicionais, incluindo militares como as operações de paz estabelecidas
num e noutro país.
Aproveitou-se para este efeito uma matriz de avaliação elaborada para a OCDE que se
centra na mediação, que considerámos particularmente útil por ter sido, por um lado, o
ponto primordial da intervenção da ONU em cada um dos palcos de estudo, por outro,
por ter marcado definitivamente a evolução que cada processo de paz fez em cada um
dos países. Lanz, Wählisch, Kirchhoff e Siegfried (2008) trataram de adaptar a matriz
de avaliação da OCDE associada a projectos de desenvolvimento a processos de
resolução de conflitos, matriz que se aproveitou para este exercício e se apresenta no
quadro seguinte.
Relevância
Como se relacionou o processo de mediação com o contexto do conflito
mais amplo?
Eficácia e impacto
Quais foram os efeitos directos e indirectos, intencionais e não
intencionais, positivos e negativos do processo de mediação?
Sustentabilidade
Em que medida os benefícios do processo de mediação continuaram depois
do seu termo?
Eficiência
Como se relacionam os custos do processo de mediação com os seus
benefícios?
Coerência,
coordenação e
vínculos
Quais foram os vínculos entre o processo de mediação e outras actividades
de gestão do conflito?
Cobertura
Como incluiu (ou excluiu) o processo de mediação os actores, problemas e
regiões mais relevantes?
Consistência com os
valores
Foi o processo de mediação consistente com os valores dos mediadores e
da comunidade internacional, por exemplo, no que respeita à
confidencialidade, aos direitos humanos ou à imparcialidade dos
mediadores?
Da combinação destes dois quadros complementares de avaliação de carácter mais
quantitativo com o uso de indicadores e de carácter mais qualitativo com o uso da
matriz sobre a mediação chegou-se a conclusões pertinentes para a reflexão sobre a
eficácia dos instrumentos da ONU no campo da promoção de uma paz duradoura e
sustentável.
Da comparação quantitativa, todos os indicadores evidenciaram que o Haiti se
encontrava numa situação mais fragilizada que a Guatemala no que tocava ao sucesso
da implementação de um modelo de paz mais ampla, como quis ser intenção da ONU
em cada um dos países.
No campo político, a instabilidade governativa no Haiti ficou manifesta em crises
políticas várias que pontuaram o panorama político, desde um golpe de Estado em
2004 a vários longos períodos sem Executivo, contrastando com a rotatividade
partidária no governo na Guatemala, com as várias Presincias a cumprir os mandatos
completos.
Foram analisados dados dos componentes do Índice de Democracia do Economic
Intelligence Unit
9
(incluindo por exemplo o grau funcionamento do governo ou do
9
Disponíveis em www.eiu.com/democracyindex, consultado a 11 de Fevereiro de 2016.
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processo eleitoral) assim como dados detalhados do Índice de Fragilidade do Estado
10
que inclui, entre outros, números sobre a deterioração dos serviços públicos. Todos
estes dados atestaram não apenas uma diferença significativa entre a performance da
Guatemala face à do Haiti, como esta foi particularmente significativa em anos de
incremento exponencial de apoio financeiro e técnico internacional à construção do
Estado e reforço institucional haitiano.
Também em termos de desenvolvimento económico, os dois países apresentaram
disparidades nos anos pós intervenção, disparidades essas muito evidentes nos gráficos
que se seguem.
Figura 1 Produto Interno Bruto (PIB) per capita (US$ correntes) 1985-2010
Fonte: dados do Banco Mundial
11
.
10
Disponível em http://global.fundforpeace.org, consultado a 11 de Fevereiro de 2016.
11
Dados disponíveis em disponíveis em http://data.worldbank.org/, consultado a 11 de Fevereiro de 2016.
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Figura 2 Pobreza e deterioração económica (2005-2014)
Fonte: dados dos componentes do Índice de Fragilidade dos Estados
12
(escala de 0 a 10).
Figura 3 Evolução do desenvolvimento económico desigual (2005-2014)
Fonte: dados dos componentes do Índice de Fragilidade dos Estados
13
(escala de 0 a 10).
Igualmente a comparação de indicadores sociais como a taxa de alfabetização, a
esperança média de vida ou a mortalidade infantil, que coincidiam com algumas das
principais preocupações manifestadas pelas populações, beneficiaram
permanentemente a Guatemala face ao Haiti.
Finalmente, o terceiro campo analisado pelos indicadores a sustentabilidade do
processo de paz no que respeita também à ausência de violência directa distancia
igualmente a Guatemala em detrimento do Haiti. Neste âmbito, é preciso destacar que
12
Dados disponíveis em http://global.fundforpeace.org, consultado a 11 de Fevereiro de 2016.
13
Dados disponíveis em http://global.fundforpeace.org, consultado a 11 de Fevereiro de 2016.
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um país e outro, provavelmente com maior incidência na Guatemala, assistimos ao
incremento da violência directa de cariz criminal, com vínculos claros ao narcotráfico.
Este fenómeno pode encontrar origens nas debilidades do processo de paz num e
noutro país, pela fragilidade das instituições de segurança e da justiça, porém, importa
ressalvar que estas se distanciam com maior evincia da esfera política no caso
guatemalteco que no caso haitiano. Por um lado, no Haiti a violência criminal tem
também estado vinculada a interesses políticos, por outro, a violência política ainda
que de menor escala continua a ser instrumento frequente de contestação.
Mesmo recentemente, em Fevereiro de 2016, assistimos ao adiamento das eleições no
Haiti por episódios de violência porem em causa a segurança dos cidadãos, levando à
nomeação de um Presidente provisório. Pelo contrário, em 2015, vimos a sociedade
guatemalteca erigir-se contra um Presidente corrupto e derrubá-lo através de protestos
nas ruas. Num quadro e noutro o uso da violência é de natureza muito distinta.
Efectivamente, a participação das Nações Unidas na Guatemala fechou um conflito
armado que encontrava as suas raízes num regime político e económico marcado pela
exclusão. Abriu definitivamente espaços de poder à maioria e os guatemaltecos
dispõem hoje de mecanismos de reclamação dos mesmos e de prestação de contas por
canais não violentos, não parecendo provável o retorno à violência com um perfil
semelhante ao que existiu durante o conflito armado.
Em contraste, no Haiti, a intervenção da ONU não permitiu superar plenamente a
realidade antes existente, perpetuando estruturas de poder que continuam a
marginalizar uma grande maioria da populão e que continuam a fazer emergir
episódios de violência política. O indicador mais claro da falta de sustentabilidade do
processo de paz tentado no Haiti será logicamente o golpe de Estado de 2004 que urgiu
o estabelecimento de mais uma missão de paz, a MINUSTAH, que ainda hoje se
mantém no país, obviando uma solução mais transformadora da estrutura violenta.
Figura 4 Evolução da Guatemala e do Haiti nas suas posições na classificação mundial
da fragilidade do Estado (2005-2011)
Fonte: adaptado de dados sobre o Índice de Fragilidade dos Estados.
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Dados disponibles em http://www.foreignpolicy.com/failedstates, consultado a 11 de Fevereiro de 2016.
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Mas também nos restantes indicadores deste campo, o Haiti se destaca pela negativa
da evolução na Guatemala.
Concretamente, o Estado haitiano é mais dependente da ajuda internacional, mais
pobre e mais desigual, menos capaz de providenciar serviços aos seus cidadãos,
vivendo ainda com a sombra da instabilidade governativa, da falta de protecção de
direitos humanos de rios níveis (sociais, políticos, económicos) e da possibilidade da
violência como forma de resolver as fricções geradas por este panorama.
Frente a esta disparidade de resultados, tratou-se então de analisar o processo
através da matriz mencionada da OCDE para ver se no campo da reconciliação
política a intervenção tinha respeitado o guião desejável.
O caso da mediação das Nações Unidas na Guatemala foi bastante insólito, sendo
possivelmente o caso em que este guião de paz positiva foi mais fielmente respeitado,
pela estreita adaptação do processo e do conteúdo da mediação às causas da
conflitualidade e à dinâmica relacional que o conflito mantinha entre as partes.
As Nações Unidas lideraram um grupo de mediadores de características
complementares nacionais e internacionais que facilitaram a integração das raízes
da violência na agenda da paz, permitindo um amplo diálogo sobre temas estruturais
da sociedade guatemalteca. As negociações permitiram a assinatura de acordos de paz
sobre temas muito mais complexos que as questões operativas vinculadas ao termo do
conflito (como o cessar-fogo ou a desmobilização de combatentes) que versaram
sobre as chamadas questões substantivas, como os direitos dos indígenas, a reforma
agrária ou os direitos das mulheres.
Não apenas em termos de conteúdo, mas também de procedimentos, este processo de
mediação foi inédito. A uma agenda ampla conjugou-se uma integração da sociedade
civil no discussão, através da criação de uma mesa paralela, consultiva, na chamada
Assembleia da Sociedade Civil. Este esquema de negociações permitiu alargar a
reflexão sobre o quadro político e social que sairia da guerra civil a franjas muito mais
abrangentes da sociedade guatemalteca, transformando o processo de paz num
projecto de refundação nacional.
O diálogo centrou-se nas especificidades estruturais políticas, económicas, até culturais
que compunham o tecido social da Guatemala e que estavam na origem do conflito
armado. Permitiu abrir assim espaços que estavam antes vedados a uma grande
maioria de guatemaltecos. Se as várias raízes de violência estrutural não foram
plenamente sanadas, este quadro de diálogo nacional amplo e profundo permitiu que
se criassem os mecanismos necessários para que estas pudessem vir a ser tratadas por
meios institucionais não violentos, passo essencial para encetar a construção de uma
paz mais duradoura.
Correspondeu assim, em grande medida, ao guião proposto pela paz positiva pelo seu
carácter integrador, pela sua abordagem associativa, por incentivar um consenso
nacional em torno do modelo de paz erguido das negociações que lhe conferia muito
maior legitimidade e potencial de durabilidade.
A actuação da ONU foi também pautada por uma boa coordenação dos seus diferentes
instrumentos, usando mecanismos complementares em conformidade com os
objectivos dos seus esforços como líder da equipa mediadora. Foi o que aconteceu com
a implementação, num momento adequado, da missão de paz, a MINUGUA, com um
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mandato extensível à medida que iam sendo assinados os respectivos acordos e que
serviu em momentos mais tensos como factor dissuasor da violência. O mesmo se
verificou na articulação de instrumentos diplomáticos que permitiram influenciar
positivamente as partes em momentos críticos. No seu todo, a intervenção da ONU
respondeu de forma muito positiva aos critérios sugeridos pela matriz de avaliação:
Foi relevante para o contexto em que actuava pela integração na agenda das causas
da conflitualidade;
Foi eficaz na resolução mais imediata do conflito e teve um impacto elevado na
transformação do quadro político guatemalteco permitindo a sua abertura a esferas
mais amplas da população;
Foi sustentável não apenas porque evitou o regresso à violência política armada
como instrumento de contestação, mas também porque permitiu assinar acordos
com algum nível de especificidade que ainda hoje servem como pautas de políticas
públicas;
Foi eficiente porque os custos da intervenção, incluindo a missão de paz, teve uma
correlação equilibrada com os benefícios trazidos;
Foi coerente e pautada por uma boa coordenação entre instrumentos
complementares de resolução de conflitos (da diplomacia, ao peace making, ao
peace keeping e posteriormente o peace building);
Teve um importante nível de cobertura ao integrar facções mais amplas da
sociedade guatemalteca, incluindo sectores tradicionalmente excluídos como os
indígenas e as mulheres;
E teve uma significativa consistência com os valores e as propostas de paz positiva
por que as Nações Unidas pugnavam.
Por oposição, o processo iniciado pela mediação das Nações Unidas então em
articulação com a Organização de Estados Americanos no Haiti, apresentou enormes
debilidades na correspondência a estes critérios.
Inicialmente a ONU integrou uma equipa de mediação que, não conseguindo chegar a
um consenso satisfatório entre as partes, conduziu a uma estratégia diferente de
ameaça do uso da força como persuasor das partes a chegar a acordo. Essa mediação
foi centrada exclusivamente nas elites que disputavam o poder pela força e com o
objectivo simplificado de repor o quadro político prévio ao golpe de Estado de 1991 que
tinha derrubado Jean Bertrand Aristide.
A ONU autorizou assim uma intervenção militar liderada pelos Estados Unidos para o
efeito, depois da imposição de sanções económicas como instrumento coactivo que
ao contrário de ter debilitado as elites afectou mais drasticamente as condições de vida
dos haitianos.
Essa intervenção permitiu retornar a uma ordem democrática muito fragilizada que
anos mais tarde voltou a encontrar na violência armada a ferramenta privilegiada pelas
partes para a tomada do poder. Dez anos depois da mobilização de uma missão militar
internacional no Haiti, novo golpe de Estado romperia então essa estabilidade fictícia.
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A resposta da ONU a esse segundo golpe de Estado foi a mobilização de uma nova
missão de paz, a MINUSTAH, com contornos já profundamente distintos das anteriores,
consubstanciando aquilo a que hoje se denomina de missão integrada. A MINUSTAH
ainda hoje além de assegurar a segurança no país, contando para o efeito com uma
força predominantemente militar, lidera junto das instituições nacionais uma série de
reformas de fortalecimento do Estado, nomeadamente no quadro da Reforma da
Justiça e do Sector da Segurança.
Um quadro de instabilidade permanente continua a justificar uma presença militar
muito considerável, sem que haja uma estratégia de saída clara, tendo esta sido
ponderada, porém descartada várias vezes nos últimos anos. No entanto, pouco se
avançou num diálogo político mais profundo sobre as causas subjacentes da
conflitualidade.
Se observarmos um a um os critérios propostos na matriz de avaliação, concluímos que
em termos de processo a aproximação da proposta de paz positiva foi, em grande
medida, estéril:
Em termos de relevância, a mediação centrou-se exclusivamente em questões
operativas relacionadas com o cessar-fogo e com o retorno ao quadro democrático
anterior, evitando uma leitura mais compreensiva do conflito político que estava na
génese da violência. Aliás em entrevistas realizadas, muitos protagonistas das
Nações Unidas no país teimam em considerar que não há um conflito político
pendente, mesmo que seja a violência por este despoletada que continua a legitimar
uma força militar robusta.
Foi incapaz de alcançar um consenso satisfatório para ambas as partes, tendo a ONU
optado por autorizar o uso da força como instrumento persuasor num primeiro
instante e posteriormente decidido instaurar uma primeira missão de manutenção da
paz (a UNMIH) sem haver propriamente uma paz a manter.
A falta de sustentabilidade destas opções foi mais tarde revelada pelo retorno ao uso
da força com novo golpe de Estado em 2004.
Quanto à relação custo-benefício, a intervenção no Haiti acabou por ser muito mais
longa do que a da Guatemala, partindo de um processo de mediação frágil e com o
uso de outros instrumentos com elevados custos tanto para a população como
sanções económicas ineficazes como para a ONU com a multiplicação de missões,
incluindo a MINUSTAH de grande envergadura e com um pesado orçamento anual
(em torno aos 500 milhões de dólares americanos).
Os diferentes instrumentos para a resolução do conflito usados no Haiti não
beneficiaram de vínculos de coordenação adequados, sendo muitas vezes
contraproducentes para a obtenção de uma situação pacífica duradoura: desde o uso
de sanções económicas à ameaça do uso da força.
A cobertura foi também limitada já que não foram incluídos sectores mais amplos da
população além das duas partes em conflito, excluindo-se assim do processo a
grande maioria da sociedade civil e cidadania haitianas. A ONU limitou-se a facilitar
um diálogo entre as elites que disputavam o poder, sem favorecer uma inclusão e
um maior apoio nacional ao processo de paz.
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Finalmente, em termos de consistência com os valores, se foi um discurso assente
no respeito pelos direitos humanos e pela democracia que catalisou a intervenção no
Haiti, estes foram integrados no debate e na implementação da paz
superficialmente, sem que a origem do seu desrespeito fosse considerada de forma
efectiva. A equipa de mediação foi também muito afectada por uma interferência dos
Estados Unidos que em momentos críticos dirimiu a confiança entre as partes.
O contexto acima traçado lança ainda sérias dúvidas sobre a eficácia do papel hoje
desempenhado pela MINUSTAH. Na ausência de um Exército nacional (foi dissolvido por
Aristide nos anos noventa) e num quadro de enorme debilidade das forças de
segurança, a MINUSTAH assume hoje a responsabilidade pela manutenção da ordem e
da segurança no país. Com este objectivo central, descura uma transformação das
estruturas existentes geradoras de violência. Usando instrumentos cada vez mais
amplos, muito mais além dos recursos militares, mas incluindo instrumentos de
governabilidade e de grande incidência no aparelho estatal, concentra-se ainda
sobretudo na contenção do conflito por oposição à sua resolução de forma mais efectiva
e duradoura.
Permite assim manter o Haiti numa situação brida, de pós-guerra/pré-guerra, sem
que se recupere uma estratégia nacional de resolução das causas da conflitualidade. O
processo político ficou estancado, vivendo-se antes uma situação de instabilidade
permanente, como ocorre em vários outros palcos de actuação (Duffield, 2007),
perpetuando a necessidade da presença internacional armada pela não resolução
do problema que a mobilizou.
A preocupação com a primazia das questões políticas que aqui salientamos foi
recentemente mencionada no Relatório de Peritos liderado pelo Dr. José Ramos Horta,
encarregue pelo Secretário-geral de nova apreciação da eficácia das operações de
paz
15
.
Diz o relatório:
“A number of peace operations today are deployed in an
environment where there is little or no peace to keep.”
Neste quadro, o mesmo documento recomenda:
“Lasting peace is achieved not through military and technical
engagements, but through political solutions. Political solutions
should always guide the design and deployment of United Nations
peace operations. When the momentum behind peace falters, the
United Nations, and particularly Member States, must help to
mobilize renewed political efforts to keep peace processes on
track.”
15
Texto completo disponível em http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/70/95,
consultado a 11 de Fevereiro de 2016.
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Esta recomendação parece ter pertinência para casos de arrastamento de situações de
instabilidade como o caso haitiano, onde uma intenção concordante com a que
conduziu a intervenção na Guatemala viu a sua implementação desviar-se do guião
sugerido pelo conceito de paz positiva, contornando a imprescindibilidade de uma
solução política.
A comparação que aqui se trouxe permitiu não apenas verificar resultados díspares,
mas sobretudo identificar que fases e procedimentos da intervenção da ONU poderão
estar na raiz de um processo de paz menos sustentável. Alerta assim para a
possibilidade da própria intervenção externa ter influenciado negativamente uma
reconciliação mais duradoura.
Os mecanismos de avaliação da actuação das Nações Unidas ao centrarem-se
sobretudo em resultados, estabelecidos normalmente em mandatos desenhados pela
própria ONU, têm obstruído uma observação mais crítica sobre os procedimentos
empregados para os alcançar. Pelo contrário, avaliações que contemplem também o
processo em si, que apreciem a forma como se materializou na prática o projecto de
paz ampla, como foi testado na comparação que aqui se expôs, pode oferecer
respostas mais concretas sobre que mecanismos podem ser mais eficazes para a
sustentabilidade da paz.
Conclusões
Se a evolução do discurso das Nações Unidas nomeadamente nos seus documentos
orientadores, da mencionada Agenda para a Paz ao Relatório Brahimi de 2000, à
Doutrina Capstone de 2008, se fez por uma ampliação do conceito de paz muito
próxima à perspectiva de Galtung de paz positiva, a sua implementação no terreno
continua a verificar sérias debilidades no cumprimento do guião que esta mesma
conceptualização sugeria.
Em termos de avaliação da eficácia destes mecanismos, num quadro de patente
dificuldade no terreno de promover pazes mais sustentáveis, a ONU continua a centrar-
se sobretudo numa verificação de resultados estabelecidos internamente, mais do que
numa avaliação crítica dos procedimentos que põe em prática para os alcançar. Sem
alterar drasticamente esta implementação dificilmente conseguirá ultrapassar os
obstáculos que repetidamente tem encontrado.
Efectivamente, o recente Relatório Ramos-Horta menciona mesmo em termos de
procedimentos algumas preocupações muito relevantes, como a necessidade de alargar
o espectro de parceiros da ONU ultrapassando a exclusividade corrente atribuída às
elites, a premência do foco essencial nas questões políticas e em processos de
reconciliação assentes em quadros de mediação alargados, e a obrigatoriedade de
intervir de forma mais flexível, em conformidade com o contexto e com prioridades
estabelecidas localmente.
Favorecer mecanismos de avaliação que abordem igualmente se este tipo de
procedimentos estão a ser cumpridos, mais do que uma observação restrita a
resultados poderá facilitar uma visão mais crítica sobre a actuação no terreno que
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propicie uma análise sobre que aspectos da intervenção internacional poderão estar
eles próprios a afectar a implementação de um projecto de paz que se quer duradouro.
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