OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 1 (Maio-Outubro 2016)
Nota Introdutória
Carlos Branco e Ricardo de Sousa - pp. 1-2
Artigos
Gilberto Oliveira - Abordagens pacifistas à resolução de conflitos: um panorama sobre o
pacifismo pragmático - pp. 3-18
Alexandre Sousa Carvalho - Partilhas de poder: conceitos, debates e lacunas - pp. 19-33
António Oliveira - A utilização da força militar na gestão e resolução de conflitos - pp. 34-
57
Madalena Moita - "Pensar a paz positiva na prática. Avaliar a eficácia das Nações Unidas
na implementação de uma paz ampla - pp. 58-76
Ricardo Real P. Sousa - Ganância, ressentimento, liderança e intervenções externas no
início e na intensificação da Guerra Civil em Angola - pp. 77-101
Notas e Reflexões
José Milhazes - O encontro de Francisco I e Kirill I: pequeno passo numa aproximação
cheio de incertezas - pp. 102-111
OBSERVARE
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e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 1 (Maio-Outubro 2016)
NOTA INTRODUTÓRIA
Este número temático da Janus.net é dedicado à Gestão e Resolução de Conflitos e
insere-se no âmbito mais geral de um projeto sobre esta temática, em curso no
Observare. Pretendemos com esta iniciativa contribuir para o estudo da Gestão e
Resolução de Conflitos de uma forma sistemática e articulada, plenamente convictos da
sua importância e da necessidade da Academia em Portugal lhe dedicar uma maior
atenção. O Observare está de parabéns pela coragem em promover esta iniciativa.
Os conflitos do século XX/XXI revelaram uma capacidade muito especial para ameaçar
a estabilidade e a paz à escala global. A sua complexidade não se pode compadecer
com abordagens simplistas. Este número especial procura dar um contributo para a
reflexão sobre estes temas, tanto no domínio teórico como prático, cientes de que os
esforços para inibir o potencial de agressão organizada dos/nos Estados ou, pelo
menos, reduzi-lo significativamente requer uma análise aturada.
Este exercício será efetuado adotando uma abordagem construtiva dos conflitos,
através da qual se procura minimizar a violência, ultrapassar o antagonismo entre
adversários, persuadi-los a aceitar as soluções políticas propostas, e fazer com que
aquelas produzem resultados estáveis e duradouros.
Ao ser a Gestão e Resolução de Conflitos um domínio deveras complexo, com muitas
interdependências procurámos neste trabalho explorar a convergência e
complementaridade de saberes entre a Resolução de Conflitos e as Relações
Internacionais, as quais têm levado académicos e praticantes de estas disciplinas a
construir elos de comunicação entre ambas as comunidades.
Especificamente este número temático apresenta um conjunto de abordagens à Gestão
e Resolução de Conflitos intra-estado com base em métodos não-violentos e violentos
utilizados em períodos de guerra, paz negativa e transição para uma paz positiva.
O artigo do Gilberto Oliveira apresenta o pacifismo pragmático conceptualizando-o no
seu aspecto estratégico-pragmático da ação não violenta distinto de outras abordagens
não-violentas pela sua agência não institucional e pela sua “ação direta” como
mecanismo de pressão e resistência. O pragmatismo é baseado no facto de que o
poder político e as hierarquias dependem, em última análise, do consentimento e
cooperação. Através da ação não violenta é possível negar ou bloquear essa fonte de
poder e assim fortalecer o poder dos grupos que resistem. A estratégia é um requisito
das ações não violentas de protesto, persuasão, não-cooperação ou intervenção não-
violenta de forma a poderem ser bem-sucedidas. Apesar de ser umtodo mais
frequente em períodos de paz negativa, como, por exemplo, na recente “Primavera
Árabe”, também é utilizado em períodos de guerra como foi o caso na década de 90
nas guerras na região dos Balcãs ou da ação de massas das mulheres da Libéria pela
paz (Women of Liberia Mass Action for Peace) em 2003.
O artigo do Alexandre de Sousa Carvalho problematiza as soluções institucionais de
partilha de poder como forma de evitar a violência, frequentemente aplicadas em
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Vol. 7, Nº. 1 (Maio-Outubro 2016), pp. 1-2
Nota introdutória
Carlos Branco e Ricardo de Sousa
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sociedades multi-étnicas. Estando intimamente relacionado com a teoria da paz
democrática como forma de evitar jogos de soma nula, é também encontrada como
solução governativa em estados autocráticos. No entanto, a frequente utilização de
modelos de partilha de poder como mecanismos de resolução de conflitos, em período
pós-eleitoral ou de escalada no conflito, coloca questões específicas de poder que
podem minar o modelo democrático.
O artigo de António Oliveira debruça-se sobre a transformação dos objetivos de
resolução de conflito com recurso ao uso da força, de uma intervenção exclusivamente
militar na guerra para uma interveão que também compreenda a segurança social,
civil e policial. No contexto de intervenções cada vez mais complexas e
multidimensionais, o artigo problematiza os princípios para o uso da força, seus
desafios e efetividade.
O artigo da Madalena Moita foca-se na evolução do conceito de paz nas Nações Unidas
onde juntamente com o conceito de manutenção de paz é adoptado o conceito de
construção de paz, no espírito do conceito de paz positiva de Galtung. Através de uma
análise das intervenções das Nações Unidas na Guatemala e Haiti constata que o
conceito de paz positiva não foi conseguido e como os processos de avaliação utilizados
nas Nações Unidas devem-se focar não em resultados, mas também nos processos
através dos quais os mandatos são implementados.
O artigo do Ricardo Sousa procura identificar os mecanismos na génese da transição da
paz negativa para a guerra civil como forma de melhor identificar formas de resolução
de conflito. O artigo testa o modelo de “ganância” e “reivindicações” juntamente com o
papel da liderança e intervenções externas, em quatro períodos de iniciação ou
intensificação do conflito em Angola entre 1961 e 2002. Os resultados sugerem como
factores mais salientes as intervenções externas durante a Guerra Fria e a “ganância”
económica (associada ao petróleo, diamantes, pobreza e capital de guerra) e liderança
no s-Guerra Fria. O estudo de caso identifica também como “ganância” e
“reclamações” podem estar interligadas e não serem mecanismos independentes.
O número inclui também notas e reflexões de José Milhazes sobre o encontro de
Francisco I e Kirill I a 12 de Fevereiro de 2016, chefe da Igreja Católica e da Igreja
Ortodoxa respectivamente. O encontro é enquadrado nos seus aspectos políticos, mas
também de reflexão sobre o papel das duas Igrejas na “guerra entre cristãos” na
Ucrânia.
Carlos Branco e Ricardo de Sousa
Como citar esta Nota
Branco, Carlos; Sousa, Ricardo (2016). "Nota introdutória", JANUS.NET e-journal of International
Relations, Vol. 7, Nº. 1, Maio-Outubro 2016. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol7_n1_notint (http://hdl.handle.net/11144/2618)
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Vol. 7, Nº. 1 (Maio-Outubro 2016), pp. 3-18
ABORDAGENS PACIFISTAS À RESOLUÇÃO DE CONFLITOS: UM
PANORAMA SOBRE O PACIFISMO PRAGMÁTICO
Gilberto Carvalho de Oliveira
gilbertooliv@gmail.com
Professor-Adjunto de Relações Internacionais e Política Externa da Universidade Federal do Rio
de Janeiro (Brasil). Doutor em Relações Internacionais - Política internacional e Resolução de
Conflitos, Universidade de Coimbra. Seus interesses de investigação concentram-se na área dos
Estudos da Paz e dos Conflitos e Estudos Críticos de Segurança, com ênfase nos seguintes temas
particulares: operações de paz, crítica à paz liberal, transformação de conflitos, economia política
das “novas guerras”, ação estratégica não violenta, teoria da securitização, teoria crítica das
relações internacionais, conflito civil na Somália, articulação entre política externa, segurança e
defesa no Brasil.
Resumo
O artigo explora as abordagens pacifistas à resolução de conflitos, dentro da sua vertente
pragmática, isto é, dentro da vertente que justifica a norma pacifista com base na sua
eficácia estratégica e não no sistema de crenças dos atores. O artigo propõe, inicialmente,
uma conceptualização do pacifismo e da não-violência, procurando destacar de que forma
esses conceitos se interrelacionam e de que modo eles se integram ao campo da resolução
de conflitos. Partindo dessa base conceptual, o artigo concentra-se no exame das
abordagens pacifistas pragmáticas, destacando as suas bases teóricas, as suas técnicas e
métodos de ação e os principais desafios futuros dessa agenda de investigação.
Palavras-chave
Não-violência, Pacifismo pragmático, Poder das pessoas, Resolução pacífica de conflitos
Como citar este artigo
Oliveira, Gilberto Carvalho de (2016). "Abordagens pacifistas à resolução de conflitos: um
panorama sobre o pacifismo pragmático". JANUS.NET e-journal of International Relations,
Vol. 7, N 1, Maio-Outubro 2016. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol7_n1_art1 (http://hdl.handle.net/11144/2619)
Artigo recebido em 26 de Janeiro de 2016 e aceite para publicação em 15 de Fevereiro
de 2016
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Abordagens pacifistas à resolução de conflitos: um panorama sobre o pacifismo pragmático
Gilberto Carvalho de Oliveira
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ABORDAGENS PACIFISTAS À RESOLUÇÃO DE CONFLITOS: UM
PANORAMA SOBRE O PACIFISMO PRAGMÁTICO
Gilberto Carvalho de Oliveira
Introdução
Pode-se dizer que o pacifismo se define por uma norma essencial: perante os
antagonismos interpessoais, intercomunitários ou interestaduais, adote um
comportamento social não violento.
1
Se durante um longo período, o interesse
académico pela norma pacifista permaneceu praticamente restrito a um pequeno nicho
da agenda de investigação dos Estudos da Paz, a recente onda de campanhas não
violentas como as revoluções pacíficas da chamada “Primavera Árabe” − tem
renovado o interesse pelas bases normativas e teóricas e pelas práticas envolvidas
nessas manifestações de “poder das pessoas”.
2
Isto tem colocado o pacifismo e a não-
violência no centro das atenções de académicos dos mais diversos domínios
disciplinares, como a Ciência Política, as Relações Internacionais, os Estudos de
Políticas Públicas e outras áreas de saber (Hallward e Norman, 2015: 3-4). Enquanto
esse interesse renovado traz como consequência positiva a ampliação dos horizontes
de reflexão e o envolvimento mais produtivo de estudantes, académicos, ativistas e
formuladores de políticas com esse tipo particular de mobilização pacífica, diversas
questões continuam a desafiar aqueles que buscam uma compreensão compatível com
a complexidade e as nuanças que envolvem o tema, tais como: como conceptualizar o
pacifismo e a não-violência? De que forma esses dois conceitos se interrelacionam? De
que modo esses conceitos se integram ao campo da resolução de conflitos? Quais são
as suas bases teóricas, as suas lógicas de funcionamento, as suas técnicas e os seus
métodos de aplicação? Quais são as suas possibilidades e limitações?
O propósito deste artigo é explorar essas questões dentro da vertente pacifista que
procura justificar a ação não violenta com base na sua eficácia estratégica e não nos
princípios espirituais e morais que moldam as crenças e convicções dos atores. Com
esse propósito em mente, a primeira seção examina o pacifismo dentro de um amplo
espectro de posições, que varia de um polo baseado em princípios até um polo mais
pragmático, procurando, em seguida, situar as abordagens pacifistas dentro do campo
da resolução de conflitos. A partir daí, o artigo concentra-se no polo pragmático do
espectro, examinando as bases teóricas que sustentam o pacifismo pragmático
(segunda seção), tipificando a técnica da ação não violenta e os principais métodos
1
Para uma discussão mais elaborada dessa norma pacifista, de um ponto de vista sociológico, ver Galtung
(1959).
2
“People power”, conforme a expressão originalmente usada para descrever a mobilização maciça da
população civil no processo que levou à queda do ditador Ferdinando Marcos nas Filipinas em 1986.
Desde então, essa expressão passou a ser genericamente empregada para rotular o ativismo da
população civil em ações políticas não violentas (Ackerman e Kruegler, 1994: i).
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Abordagens pacifistas à resolução de conflitos: um panorama sobre o pacifismo pragmático
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através dos quais ela pode ser aplicada (terceira seção) e, finalmente, examinando os
desenvolvimentos mais recentes e os principais desafios futuros dessa agenda de
investigação (quarta seção).
O Espectro Pacifista e a Resolução de Conflitos: Uma Delimitação
Conceptual
O pacifismo, conforme anteriormente mencionado com base nas indicações de Galtung
(1959), define-se por uma norma essencial: perante os antagonismos interpessoais,
intercomunitários ou interestaduais, adote um comportamento social não violento.
Dessa perspetiva, o comportamento social não violento ou a não-violência constitui
o próprio núcleo conceptual do pacifismo. Mas o que se quer dizer com não-violência?
Embora o debate em torno da não-violência produza uma multiplicidade de pontos de
vista, algumas definições podem ser aqui destacadas, a fim de se chegar a uma
delimitação conceptual que sirva aos propósitos analíticos deste artigo. Gene Sharp,
por exemplo, desaconselha o uso do termo “não-violência” por considerá-lo vago,
ambíguo e portador de uma carga de passividade que não se coaduna com a natureza
ativa do que ele prefere chamar de “açãoou luta” não violenta. Desse modo, Sharp
oferece a seguinte definição:
A ação não violenta é um termo genérico que cobre uma variedade de
métodos de protesto, não cooperação e intervenção. Em todos esses
métodos, os que se colocam na posição de resistência conduzem o
conflito executando – ou deixando de executar determinados atos,
recorrendo a diversos meios, exceto à violência física. (…) De nenhum
modo, a técnica da ação não violenta é passiva. A ação é que é não
violenta. (Sharp, 2005: 39, 41)
Kurt Schock provê uma definição com elementos semelhantes, mas enfatiza o caráter
não institucional da ação não violenta, argumentando que ela opera fora dos canais
políticos oficiais e institucionalizados (2003: 6). Outros autores, como Randle (1994),
Stephan e Chenoweth (2008) e Roberts (2009), seguem o mesmo caminho, articulando
o conceito de ação não violenta com o conceito de resistência civil, a fim de destacar a
sua natureza civil e não institucional. Dessa perspetiva, a ação não violenta caracteriza-
se por ocorrer fora das estruturas e organizações políticas convencionais do estado
(Randle, 1994: 9-10), pelo seu caráter não militar ou não violento e pela centralidade
da sociedade civil na articulação e condução das ações (Stephan e Chenoweth, 2008:
7, 9; Roberts, 2009: 2). Dentro da mesma linha, Atack (2012: 7-8) observa que a ação
não violenta funciona como uma ação política coletiva, conduzida por cidadãos comuns
e organizada diretamente através de grupos da sociedade civil ou de movimentos
sociais.
O que se pode notar, com base no trabalho desses autores, é um claro esforço de dar
uma autonomia conceptual à não-violência. Nesse sentido, eles procuram não só
enfatizar o caráter estratégico-pragmático da ação não violenta, mas também
desvincular as suas perspetivas particulares das bases espirituais e morais do chamado
pacifismo de princípios que caracteriza os movimentos de não-resistência cristãos e
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encontra no ativismo de Mahatma Gandhi e Martin Luther King as suas ilustrações mais
icónicas. Há autores, porém, que questionam essas tentativas de estabelecer fronteiras
rígidas entre a ação não violenta e o pacifismo, alegando que ambos os termos
pertencem a um mesmo espectro contínuo de posições que varia de um polo baseado
em princípios até um polo mais pragmático. Dessa perspetiva, o pacifismo e a ação não
violenta não se distinguem substancialmente e devem ser vistos dentro da mesma
tradição de pensamento. Cady (2010: 79-92), por exemplo, considera que as
preocupações pragticas da ação não violenta constituem um dos polos do espectro
pacifista e oferecem uma orientação valiosa para guiar o ativismo pacifista na direção
do que mais lhe falta: uma clara visão positiva da paz. Do seu ponto de vista, em vez
de ficar preso ao polo negativo desse espectro, onde as considerações ideológicas
mantêm o ativismo pacifista preso à mera negação da guerra, o pacifismo deve
aproximar-se do seu polo mais pragmático, onde podem ser encontradas opções e
alternativas mais positivas aos meios militares e ao uso da força. Uma visão positiva do
pacifismo, segundo Cady, “tem que oferecer um ideal geral para orientar os objetivos
das ações e, ao mesmo tempo, os todos particulares através dos quais esse ideal é
implementado(2010: 83). Desse modo, prossegue Cady, o amplo leque de métodos
identificado por Gene Sharp todos não violentos, passíveis de serem adotados pela
sociedade civil e capazes de confrontar as instâncias locais, nacionais e internacionais
de poder podem contribuir para que se tornem realísticos os objetivos de abolição da
guerra, da opressão e das injustiças sociais que alimentam a tradição do pacifismo de
princípios.
Uma importante consequência dessa visão espectral do pacifismo, segundo Cady, é que
ela admite uma pluralidade de posições; assim, se é possível defender a vida como um
valor supremo e rejeitar a violência com base em princípios sobre o que é certo ou
errado, o espectro pacifista mostra que é também possível fazer escolhas em bases
pragmáticas, levando em conta não o que é absolutamente certo ou errado, mas o que
é melhor ou pior em determinadas circunstâncias (2010: 83-84). Howes apresenta um
argumento semelhante ao considerar que o atual sucesso do debate sobre a não-
violência, em vez de romper com o pacifismo, oferece um importante caminho para
realimentar e reformular o pacifismo dentro de uma vertente pragmática que leve em
conta uma compreensão realística do registo histórico dos casos de ação não violenta
enquanto alternativa ao uso da força militar e à guerra (2013: 434-435).
Os próprios autores que preferem o termo não-violência, em vez de pacifismo,
reconhecem alguns aspetos que convergem para as interpretações acima. Em seu
estudo sobre a não-violência, Hallward e Norman (2015: 5) reconhecem que aqueles
que se envolvem na ação não violenta não fazem suas opções movidos por razões
exclusivamente estratégicas, mas sim por uma mescla de princípios e pragmatismo, o
que torna preferível evitar reducionismos e adotar uma abordagem mais abrangente e
diversificada que considere a não-violência dentro de seus rios contornos e
contextos. Atack (2012: 8-10), ao explorar a não-violência na teoria política, destaca
que os principais ícones do pacifismo no Século XX, como Mahatma Gandhi e Martin
Luther King, embora fortemente influenciados por suas tradições espirituais e éticas,
conduziram suas campanhas não violentas movidos também por escolhas pragmáticas.
Se essa sobreposição é verificada no ativismo pacifista, ela também ocorre entre
aqueles que tentam defender a autonomia conceptual da ação não violenta. Segundo
Atack (2012: 159), ainda que Sharp enfatize o caráter pragmático da ação não
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violenta, procurando afastá-lo da carga idealista contida no rótulo pacifista, algum
“pacifismo residual” permanece presente em suas obras, sustentando uma “preferência
moral” pelas formas não-violentas de ação política. Segundo Atack, é difícil
compreender o compromisso com a não-violência e a centralidade dessa preocupação
na agenda de investigação dos teóricos pragmáticos da ação não violenta
exclusivamente em termos das relações de poder, sem também levar em conta, ainda
que de forma subjacente, o ímpeto moral pela não-violência provido pelo idealismo
pacifista. Essa observação de Atack é importante porque indica que a agenda de
investigação sobre a não-violência não deixa de estar ancorada, em última análise,
numa preferência normativa derivada da tradição pacifista.
Podem-se tirar, dessa discussão, duas indicações importantes para a delimitação
conceptual buscada nesta seção. A primeira é que, embora se verifique um crescente
movimento de autonomização do conceito de não-violência, desvinculando-o da
tradição do pacifismo, também argumentos que permitem manter a ação não
violenta sob o rótulo geral do pacifismo, acomodando as perspetivas mais idealistas e
as mais pragmáticas dentro de um continuum de posições que ora se aproximam, ora
se afastam e ora se sobrepõem dentro de um mesmo espectro conceptual. Isto implica
em reconhecer que, embora a perspetiva pragmática ofereça importantes insights
sobre as relações de poder envolvidas na ação não violenta, ela não deixa de fazer
parte de um contexto mais abrangente onde a não-violência pode ser interpretada e
praticada também por razões religiosas ou éticas e, mais importante ainda, por razões
que mesclam todas essas motivações. Esta linha de argumentação permite uma visão
mais abrangente, integrada e nuançada entre pacifismo e ação não violenta que
justifica a adoção da expressão “abordagens pacifistas” como um rótulo geral que
integra todo o espectro conceptual aqui examinado.
O segundo ponto importante nesta discussão diz respeito à particularização das
abordagens pacifistas dentro do campo da resolução de conflitos. Nesse sentido, a
questão central é compreender de que forma as abordagens pacifistas se diferenciam
das abordagens tradicionalmente associadas ao campo da resolução de conflitos. Sobre
este aspeto particular, não é apenas o caráter não violento das abordagens pacifistas
que importa. Ainda que esse elemento definidor seja fundamental para diferenciar as
abordagens pacifistas das abordagens que admitem o uso da força, é importante notar
que outras abordagens à resolução de conflitos também se definem como não
violentas. Por exemplo, as ferramentas de prevenção e peacemaking apresentam-se
como alternativas diplomáticas e, portanto, não violentas − voltadas para resolver as
disputas antes que elas resultem em violência (diplomacia preventiva) ou para facilitar
o diálogo, através da mediação ou da intervenção de terceiras partes, na condução de
negociações que levem a um acordo de paz. Desse modo, embora a não-violência seja
um elemento definidor necessário das abordagens pacifistas, ela não é suficiente para a
sua particularização dentro do campo da resolução de conflitos como um todo, pois
outras abordagens também podem ser definidas como não violentas. É preciso,
portanto, buscar na discussão conceptual acima outros elementos que permitam refinar
essa particularização.
Dois aspetos parecem cruciais nesse sentido. O primeiro é o caráter não institucional
das abordagens pacifistas. As táticas das abordagens pacifistas, conforme mostram as
definições anteriormente examinadas, nascem na sociedade civil e são conduzidas sob
a forma de movimentos sociais fora do domínio da política convencional e dos canais
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institucionalizados do Estado, distinguindo-se, portanto, dos procedimentos oficiais e
diplomáticos de gestão de conflitos. O segundo aspeto tem a ver com as tensões e
confrontações que caracterizam a “ação direta das abordagens pacifistas. Conforme
argumentam McCarthy e Sharp (2010: 640), as técnicas mais tradicionais e
institucionalizadas de resolução de conflitos, como a negociação, a mediação, a
intervenção de terceiras-partes, bem como os métodos que contribuem para o
funcionamento efetivo dessas técnicas, geralmente evitam a confrontação, as sanções,
as pressões e a ação direta que caracterizam o ativismo da ação não violenta. Ainda
que algumas pressões pontuais possam ser aplicadas durante os processos oficiais de
negociação, os métodos tradicionais de resolução de conflitos, como regra geral, são
orientados para a convergência e a produção de um acordo de paz e não para a criação
de tensões, confrontações, protestos, bloqueios, não-cooperação e resistência que
fazem parte dos mecanismos de resolução de conflitos defendidos pelo ativismo não
violento.
Pode-se dizer, enfim, que é o conjunto dos elementos examinados nesta seção o
compromisso ativista com a não-violência e a abdicação do uso da força militar, a
mobilização da sociedade civil, o caráter não institucional, o uso dos canais não
convencionais de atuação política e a lógica de ação direta como mecanismo de pressão
e resistência que delimita as abordagens pacifistas do ponto de vista conceptual,
dando a elas um caráter diferenciado que permite o seu tratamento dentro de um bloco
destacado das demais abordagens de resolução de conflitos. Quando se fala em
abordagens pacifistas à resolução de conflitos, portanto, não se quer referir a um
debate abrangente sobre a paz, aos modelos institucionais e às organizações para a
manutenção da paz ou aos mecanismos estruturais de construção da paz e prevenção
de conflitos, mas sim ao tipo particular de abordagem derivada do ativismo e das
tradições de pensamento sobre o pacifismo e a não-violência.
Base Conceptual do Pacifismo Pragtico: A Teoria do Consentimento
Conforme defendido na seção anterior, as abordagens pacifistas formam um espectro
contínuo de posições que admite não apenas pontos de vistas absolutos, mas também
posições mais nuançadas, flexíveis e mescladas. Desse modo, embora este artigo seja
estruturado em torno das referências e das questões centrais da tradição pragmática,
isto não significa que os meios defendidos em cada abordagem devam ser vistos de
forma isolada e independente. Na verdade, existe uma porosidade entre o pacifismo de
princípios e o pacifismo pragmático, o que faz com que as suas técnicas e os seus
métodos de resolução de conflitos sejam muitas vezes coincidentes, parcialmente
coincidentes ou complementares. Portanto, quando se fala de abordagens pragmáticas,
o que se altera, fundamentalmente, são as razões evocadas para justificar a norma
pacifista e as estratégias defendidas para a sua aplicação. Para caracterizar essa
diferenciação, as abordagens pragmáticas recorrem a argumentos políticos e à teoria
das fontes de poder para compreender a lógica e a eficácia da não-violência.
Nesse sentido, Sharp (1973; 2005: 23-35) e outros autores, como Boulding (1999) por
exemplo, partem da constatação de que o consentimento das pessoas condiciona a
forma como o poder opera nas sociedades. Isto desafia, segundo Atack (2012: 109), as
perspetivas mais tradicionais que enxergam o poder coercivo mais pesado, sob a forma
da força militar ou de outras formas de violência institucionalizada, ou o poder
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material, sob a forma de riqueza económica ou acumulação de recursos, como as
expressões máximas ou únicas de poder que realmente importam. Ainda que se adote
uma perspetiva pluralista, reconhecendo que diversas formas de poder operam na
sociedade, os proponentes da não-violência pragmática consideram que a relação de
consentimento constitui uma base significativa de poder popular que é capaz de
desafiar todas as demais fontes de poder, sejam elas originadas, conforme enumera
Sharp (2005: 29-30), na autoridade ou legitimidade dos governantes, nos recursos
humanos à disposição dos governos, nas habilidades e nos conhecimentos, em fatores
intangíveis como crenças e normas, nos recursos materiais ou no aparato coercivo
institucional do Estado.
Num sentido semelhante, Boulding argumenta que o poder é complexo e
multidimensional, podendo assumir pelo menos “três faces”. A face mais convencional
é o “poder da ameaça” (threat power), expresso pela capacidade de aplicar a coerção
através de mecanismos internos de imposição da lei e da ordem ou do aparato militar
contra agressões externas. A segunda face assume a forma do “poder económico”
(economic power); desse ângulo, o poder é função da distribuição da riqueza entre
ricos e pobres e se define em termos de “produção e troca”. A terceira “face”, que
Boulding chama de “poder integrador” (integrative power), é o “poder da legitimidade,
da persuasão, da lealdade, da comunidade, etc.” (1999: 10-11). O que parece
particularmente relevante para Boulding, convergindo de certo modo para o ponto de
vista de Sharp, é que o poder não pode ser equacionado exclusivamente com base na
violência e na coerção, ou nas capacidades económicas, mas deve ser visto,
principalmente, em função da habilidade que as pessoas e os grupos sociais têm de se
associar e estabelecer laços mútuos de lealdade. Dessa perspetiva, afirma o autor, “o
poder da ameaça e o poder económico são difíceis de serem exercidos se não forem
sustentados pelo poder integrador, isto é, se não forem vistos como legítimos” (1999:
11). O que é importante compreender, portanto, é que essas três faces coexistem e se
inserem, embora em diferentes proporções, dentro de um quadro de forças que
interagem e impactam o funcionamento dos sistemas de poder nas sociedades. Dentro
desse quadro, o poder da ameaça não depende apenas da força do autor da ameaça,
mas depende também da resposta do sujeito ameaçado, que pode ser expresso de
diversas formas: submissão, desafio, contra-ameaça ou através do que Boulding chama
de “comportamento desarmante” (disarming behavior), isto é, da incorporação do autor
da ameaça dentro da comunidade dos sujeitos ameaçados, desfazendo a relação de
inimizade. Esse último tipo de resposta é, segundo o autor, um dos elementos-chave
da teoria da não-violência, pois abre uma importante via para a resolução pafica dos
conflitos. O poder económico também depende da interação entre as partes, sendo
função não do comportamento do “vendedor”, que pode concordar ou se recusar a
vender, mas também da resposta do “comprador”, que igualmente pode avaliar os
benefícios de comprar ou de rejeitar o consumo. Por fim, o poder integrador pode
sustentar as outras formas de poder ou, no sentido contrário (e reside outro aspeto
crucial para a teoria da não-violência), fazer com que o sistema de poder venha abaixo,
negando-lhe a lealdade, questionando a sua legitimidade e retirando-lhe o apoio e a
colaboração (1999: 10-12).
O que é crucial para esses autores constituindo a assunção política básica das suas
perspetivas sobre a resolução pacífica dos conflitos é a noção de que o fluxo das
fontes de poder pode ser restringido ou bloqueado pela população, sem a necessidade
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de recorrer à violência, bastando negar aos oponentes o seu consentimento ou a sua
colaboração. Se os grupos oprimidos repudiam a autoridade do oponente, retirando o
seu apoio, recusando-lhe a colaboração e persistindo na desobediência, isto representa
um grande desafio e um grande golpe a qualquer grupo social autoritário e opressor ou
a qualquer sistema hierárquico que depende do apoio, da aceitação ou da sujeição dos
grupos subordinados para sobreviver (Sharp, 2005: 29, 40; Boulding, 1999: 11). Para
além disto, é importante notar que esse tipo de ação não violenta tende a desencorajar
reações violentas, levando o oponente a “pensar duas vezes” sobre as consequências
negativas de uma eventual repressão através do uso desproporcional da coerção,
especialmente o uso da força física. Stephan e Chenoweth (2008: 11-12) observam
que algumas dinâmicas favorecem o funcionamento dessa lógica estratégica de ação.
Em primeiro lugar, a repressão a movimentos não violentos através do uso da força
geralmente resulta “num tiro pela culatra”, pois leva a uma perda de apoio popular e à
condenação interna e externa daqueles que recorrem à violência. Essa repressão leva a
mudanças nas relações de poder, pois aumenta a solidariedade e o apoio doméstico às
causas dos atores não violentos, cria dissidências na base interna de apoio ao oponente
violento, aumenta o apoio externo aos atores não violentos, enquanto diminui esse
apoio aos grupos violentos. A repressão violenta a grupos não violentos mostra,
portanto, que a força física nem sempre é a arma mais eficiente à disposição dos
grupos poderosos, o que leva Stephan e Chenoweth (2008: 12) a observarem uma
segunda dinâmica resultante da ação não violenta: a abertura dos canais de
negociação. Embora as pressões impostas pelo ativismo não violento desafiem os seus
oponentes e coloquem em questão as suas fontes de poder, as possíveis repercussões
negativas de uma reação violenta contra civis, que publicamente assumem um
comportamento não violento, podem desencorajar o uso da força e mostrar ao
oponente que a negociação oferece a melhor alternativa para se buscar uma solução
para o conflito.
aí, em suma, uma lógica pragmática de resolução pacífica de conflitos que depende
mais das interações estratégicas entre os grupos sociais que coexistem dentro de um
determinado sistema de poder do que dos princípios que fundamentam as suas
convicções religiosas e morais. O ponto chave para a vertente pragmática das
abordagens pacifistas, portanto, é a ideia de que a prática da ação não violenta é
possível e pode ser bem-sucedida na resolução do conflito entre opressores e oprimidos
não porque suas fundações religiosas e éticas a legitimam, mas porque a
“operacionalização dessa técnica é compatível com a natureza do poder político e a
vulnerabilidade de todos os sistemas hierárquicos” que dependem, em última análise,
do consentimento e da colaboração “das populações, dos grupos e das instituições
subordinadas para o suprimento das suas fontes necessárias de poder” (Sharp, 2005:
23). Isto significa, por outras palavras, que a eficácia da ação não violenta resulta de
uma lógica estratégica relativamente simples: negar ou bloquear, sem o uso da
violência física, as fontes necessárias de poder do oponente, a fim de fortalecer a
posição de poder dos grupos de resistência pacífica.
Técnicas e Métodos das Abordagens Pragmáticas
Sharp classifica a ação não violenta como uma técnica que pode ser aplicada através de
um conjunto de métodos de protesto, não-cooperação e intervenção (2005: 49). Com
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base na análise de um amplo registo histórico, o autor observa que essa técnica não se
limita a conflitos internos e a contextos democráticos e que a sua eficácia não depende
da “gentileza” ou da “moderação” dos oponentes, tendo sido amplamente usada
contra governos poderosos, regimes despóticos, ocupações estrangeiras, impérios,
ditaduras e regimes totalitários. Entre os casos destacados por Sharp estão o boicote
chinês aos produtos japoneses em 1908, 1915 e 1919; a resistência não violenta alemã
contra a ocupação francesa e belga da região de Ruhr em 1923; a resistência não
violenta dos indianos, sob a liderança de Gandhi, contra o império britânico nas
décadas de 1920 e 1930; a resistência não violenta contra a ocupação nazista, entre
1940 e 1945, em países como a Noruega, a Dinamarca e os Países Baixos; a derrubada
dos regimes ditatoriais de El Salvador e da Guatemala em 1944 através de uma breve
campanha não violenta; as campanhas não violentas das décadas de 1950 e 1960 nos
Estados Unidos contra a segregação racial; a luta não violenta espontânea e a recusa
de colaborar com os soviéticos na Checoslováquia, durante oito meses entre 1968 e
1969, logo após a invasão do Pacto de Varsóvia; as lutas não violentas por liberdade
entre 1953 e 1991 conduzidas por dissidentes em países comunistas como Alemanha
Oriental, Polônia, Hungria, Estónia, Latvia e Lituânia; as greves iniciadas pelo sindicato
Solidariedade em 1980 na Polônia que resultaram em 1989 no fim do regime comunista
polonês; os protestos não violentos e os movimentos de resistência em massa entre
1950 e 1990 que contribuíram para debilitar o regime de apartheid na África do Sul; a
insurreição não violenta de 1986 que derrubou a ditadura de Ferdinando Marcos nas
Filipinas; as lutas não violentas que levaram ao fim das ditaduras comunistas na
Europa a partir de 1989; os protestos simbólicos de estudantes contra a corrupção e a
opressão do governo chinês em 1989 em centenas de cidades do país (incluindo a
Praça Tiananmen em Pequim); diversas campanhas não violentas e recusas de
cooperação no contexto das guerras na região dos Balcãs ao longo da década de 1990
(Sharp 2005, pp. 16-18). Esses casos obviamente não esgotam os exemplos de ação
não violenta do século passado e, conforme enfatiza Sharp, continuam a ocorrer na
atualidade. As mobilizações populares gigantescas, a disciplina não violenta, o
destemor e a velocidade dos eventos que colocaram fim às longas ditaduras na Tunísia
e no Egito em 2011, dentro do que ficou conhecido como Primavera Árabe”, dão uma
clara demonstração da atualidade do tema, contribuindo para impulsionar e renovar o
interesse académico pelo estudo da técnica da ação não violenta (Sharp, 2014).
Mas a técnica da ação não violenta, conforme alerta Sharp, não deve ser vista como
“mágica” (2005: 43). Ela depende de objetivos bem definidos e de uma estratégia bem
delineada para que seus resultados sejam efetivos. Sobre esse aspeto, Sharp
argumenta que, embora algumas mobilizações não violentas comecem de forma
espontânea e muitas vezes sejam conduzidas sem que um grande líder possa ser
identificado, isto não significa que as ações não precisem de disciplina e que os grupos,
mesmo sem lideranças individuais proeminentes, não precisem de alguma organização.
Nesse sentido, um bom planeamento estratégico pode ser decisivo para o sucesso da
ação não violenta. Reproduzindo o léxico militar, Sharp vislumbra quatro níveis no
planeamento das ações: a “grande estratégia”, que serve para coordenar e dirigir todos
os recursos no sentido de alcançar os objetivos mais abrangentes da ação não violenta;
a “estratégia”, que se aplica a fases mais limitadas e à definição de objetivos mais
específicos; a tática”, que se refere à condução das ações e envolve a escolha dos
métodos mais apropriados para a confrontação dos oponentes; e os “métodos” em si,
que se referem aos procedimentos e formas específicas de ação não violenta. Sharp
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enfatiza, também, a importância de um trabalho logístico voltado para apoiar a
condução da ação não violenta em termos de arranjos financeiros, transportes,
comunicações e suprimentos. Segundo o autor, esse conjunto de preocupações permite
concentrar e dirigir as ações no sentido dos objetivos desejados, explorar e agravar as
fragilidades do oponente, fortalecer as potencialidades dos praticantes da ação não
violenta, reduzir as vítimas e outros custos e fazer com que os sacrifícios envolvidos na
ação não violenta sirvam aos principais objetivos da ação (Sharp, 2005: 444-446). Por
outros termos, o planeamento estratégico deve ser capaz de fortalecer os grupos
sociais mais fracos, enfraquecer o opressor e, com isto, construir relações de poder que
levem a uma resolução mais equilibrada do conflito.
A fim de alcançar os melhores resultados na aplicação da técnica da ação não violenta,
Sharp considera que a escolha dos métodos não deve ser feita a priori, mas sim no
último estágio do planeamento. Para o autor, cada estratégia particular requer métodos
específicos que devem ser escolhidos e aplicados de uma forma habilidosa e contribuir
para atingir os objetivos definidos. Sem pretender esgotar todas as opções disponíveis,
Sharp identifica pelo menos 198 métodos específicos que se adequam à técnica da ação
não violenta (2005: 51-64). Esses métodos são agrupados pelo autor em três grandes
classes: protesto e persuasão não-violenta; não-cooperação; e intervenção não
violenta (ver alguns exemplos na tabela 1).
Tabela 1: Exemplos de todos empregados na técnica da ação não-violenta
Não
-
Cooperação
Intervenção Não Violenta
-
Discursos públicos
- Manifestos assinados
- Abaixo-assinados
- Slogans, caricaturas,
símbolos
- Bandeiras, cartazes,
pichagens
- Folhetos, panfletos, livros
- Discos, rádio, televisão
- Delegações
- Grupos de pressão
- Piquetes
- Ato de se despir em público
- Pinturas de protesto
- Músicas de protesto
- Gestos ofensivos
- Perseguir ou ridicularizar
pessoas importantes
- Vigília de protesto
- Representações teatrais
satíricas
- Marchas e passeatas
- Luto político
- Funerais simulados
- Retirar-se de eventos em
sinal de protesto
- Renúncia a títulos e
honrarias
-
Boicote social
- Greve estudantil
- Desobediência civil
- Busca de asilo
- Emigração coletiva
- Boicote ao consumo
- Não pagamento de aluguel
- Recusa em alugar
- Boicote internacional
- Greve de trabalhadores
- Greve geral
- Operação tartaruga
3
- Saque dos saldos bancários
- Recusa em pagar taxas e
impostos
- Recusa em pagar dívidas e
juros
- Bloqueio comercial
internacional
- Boicote a eleições
- Boicote a empregos do
governo
- Recusa a colaborar com
agentes de repressão
- Não cooperar com o
recrutamento militar
- Motins
- Não cooperar com o governo
-
Autoexposição a intempéries
- Jejum
- Greve de fome
- Ocupação de locais públicos
- Ocupação de meios de
transporte
- Interposição não violenta
- Obstrução não violenta
- Intervenção oral em eventos
- Teatro de guerrilha
- Criação de instituições sociais
alternativas
- Criação de sistema de
comunicação alternativo
- Greve invertida (produção em
excesso)
- Ocupação de terra
- Desafio a bloqueios
- Criação de mercados paralelos
- Criação de transportes
alternativos
- Congestionar sistemas
administrativos
- Revelação da identidade de
agentes secretos
- Procurar ser preso
- Dupla soberania e governo
paralelo
Fonte: Sharp (2005: 51-64)
3
Tipo de greve branca, onde os funcionários trabalham com lentidão.
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O que se observa, com base nessa ntese da perspetiva estratégico-pragmática de
Sharp, é que os métodos da ação não violenta por ele tipificados não diferem
substancialmente dos métodos empregados nos movimentos de resistência cristã e nas
campanhas pacifistas lideradas por Gandhi e King. Ainda que o esforço de
sistematização de Sharp deva ser considerado relevante, não são os todos em si que
particularizam a sua abordagem pragmática, mas sim a sua preocupação com as
questões estratégicas e a desvinculação da técnica da ação não violenta das bases
espirituais e morais que se encontram fortemente presentes no pacifismo de princípios.
Desse modo, se Gandhi e King continuam a ser as referências clássicas e inspiradoras
quando se pensa nas abordagens pacifistas à resolução de conflitos, é importante notar
que as preocupações pragmáticas de Sharp e os crescentes esforços de dar à ação não
violenta uma maior efetividade através do estudo dos seus princípios estratégicos são
os aspetos que têm influenciado de forma mais significativa a atual onda de interesse
pela não-violência e apresentado os maiores desafios para o desenvolvimento futuro
dessa agenda de investigação.
Estágio Atual, Desafios Teóricos e Vias para Desenvolvimentos Futuros
Dentro da tradição pragmática, é importante observar que o trabalho inaugurado por
Sharp tem sido desenvolvido por uma nova geração de académicos comprometidos
com a revitalização do estudo da ação não violenta de um ponto de vista mais empírico
e objetivo. Conforme Nepstad argumenta no prefácio de seu Nonviolent Struggle:
Theories, Strategies and Dynamics (2015), o estilo de análise estratégica legado por
Sharp e seguido por uma primeira geração de estudiosos da não-violência pragmática
limitou-se a documentar e descrever casos históricos bem-sucedidos de movimentos
não violentos e a tipificar a técnica e os métodos da ação não violenta. Esses trabalhos
assumem, segundo Nepstad, um certo viés proselitista que procura convencer os
leitores de que a não-violência funciona de forma estratégica em diversos casos
históricos sem, contudo, preocupar-se com a documentação de casos malsucedidos ou
com o teste das teorias da não-violência. O autor observa, porém, que um passo
importante começa a ser dado nas últimas três décadas no sentido de desenvolver
análises comparadas, abrangendo casos bem-sucedidos e malsucedidos, o que tem
permitido identificar os fatores críticos envolvidos nos resultados alcançados pela ação
não-violenta.
De facto, uma nova geração de investigadores tem proposto o uso de técnicas
quantitativas combinadas com os estudos de caso no estudo da não-violência, tentando
superar não as críticas geralmente dirigidas ao idealismo da tradição baseada em
princípios e à sua incapacidade de influenciar significativamente a ciência política, mas
também ao caráter proselitista identificado por Nepstad na primeira geração de estudos
da ação não violenta. Nesse contexto, o próprio Sharp tem-se dado conta das
limitações da agenda pragmática e chamado a atenção para o facto de que um dos
maiores desafios atuais é avançar os estudos empíricos, as análises, o planeamento e a
colocação em prática da técnica da ação não violenta em condições extremas, tais
como nos severos conflitos interétnicos onde seja difícil encontrar soluções de
compromisso entre os grupos oponentes, nos regimes de exceção instaurados por
golpes de estado, na resistência a agressões externas e na prevenção ou resistência às
tentativas de genocídio (Sharp, 2014). Embora Sharp encontre na história diversos
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exemplos de ação não violenta em situações como essas, ele considera que os sucessos
foram parciais e que, muitas vezes, não atingiram seus objetivos mais abrangentes
pela falta de planeamento estratégico e por uma falta de compreensão das relações de
poder envolvidas na situação. Desse modo, o autor considera crucial a necessidade de
aprofundar o estudo empírico sobre como tornar a ação não violenta mais efetiva
nessas situações. Por envolver a resistência perante atos de extrema repressão, Sharp
considera inclusive a hipótese de que a aplicação da técnica da ação não violenta talvez
não seja adequada a esses casos. Para o autor, essa técnica não deve ser
axiomaticamente assumida como superior em todas as situações e a viabilidade da sua
aplicação deve ser estrategicamente avaliada, caso a caso, comparativamente com a
adequabilidade do uso da força e os possíveis problemas gerados pela resistência
através de meios violentos. Daí o desafio final apresentado por Sharp (2014): expandir
a investigação académica e a análise estratégica da ação não violenta, a fim de
examinar e refinar a aplicabilidade dessa técnica nos conflitos gerados por golpes de
estado, na defesa civil em substituição aos meios militares (dentro do que tem sido
chamado de civilian-based defense) e em outras questões de segurança nacional.
Com essas preocupações em mente, a tradição pragmática tem impulsionado o estudo
das abordagens pacifistas não na direção de uma reavaliação empírica mais
consistente sobre as teorias da não-violência de Gandhi e Martin Luther King, mas
também de uma nova compreensão sobre como o potencial de poder e de mobilização
da sociedade civil pode ser convertido em ferramenta de mudança social e política.
Esse esforço, conforme destaca Howes, provê novas bases e um robusto conjunto de
razões para o pacifismo que complementa e vai além das suas bases normativas
tradicionais (2013: 438). Ao explorar a dimensão explanatória da não-violência, a
tradição pragmática traz as expectativas da moralidade pacifista, algumas vezes
exageradas, para um patamar mais realístico e compatível com as suas possibilidades e
limitações concretas. Para além disto, essa nova geração contribui para a construção e
o teste das teorias da ação não violenta a partir de uma base empírica mais consistente
(Nepstad, 2015: prefácio). Essas preocupações têm-se tornado cada vez mais visível
na obra de diversos autores que têm contribuído para dinamizar a atual agenda de
investigação sobre a não-violência.
Entre esses autores, Ackerman e Kruegler (1994) destacam-se por dialogar
diretamente com a obra de Sharp e por tentar refinar e testar a hipótese de que a
adesão a alguns princípios estratégicos-chave (por exemplo, a definição de objetivos
claros, a expansão do repertório de sanções não violentas, a consolidação do controlo
estratégico das ações, a manutenção da disciplina não violenta e a exploração das
vulnerabilidades de poder do oponente) fortalece a performance dos grupos de
resistência e impacta de forma relevante os resultados da ação não violenta, qualquer
que seja o contexto social e político da ação (1994: 318). Esse tipo de trabalho
comparativo da ação não violenta em diferentes contextos pode também ser observado
no trabalho de outros autores. Nepstad (2011, 2013), por exemplo, compara diversos
casos bem-sucedidos e malsucedidos de ação não violenta com o objetivo de
demonstrar não só o impacto das variáveis estratégicas nos resultados alcançados, mas
também a influência de variáveis estruturais que fogem ao controlo direto dos grupos
envolvidos na ação não violenta, como a autonomia ou a dependência económica do
regime oponente, o grau de institucionalização partidária e coesão das elites
governantes, as alianças e conexões internacionais do regime, o grau de benefícios
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recebidos pelos militares e forças de segurança ou a perceção que os soldados têm
sobre a força ou a fragilidade do regime. Em suas investigações, a autora mostra que
embora as escolhas estratégicas da ação não violenta tenham um impacto importante
nos resultados, as condições estruturais também importam, pois influenciam, por
exemplo, na maior ou menor vulnerabilidade dos oponentes aos bloqueios, embargos e
sanções internacionais, às divisões internas do regime ou à fidelidade ou amotinação da
classe militar (2011: 6-9; 2013). Seguindo a mesma linha de análise comparada,
Schock (2005) examina casos bem-sucedidos e casos fracassados de ação não violenta
na produção de transformações políticas em países não democráticos. Com esse
trabalho, o autor procura sustentar empiricamente o argumento de que as
características dos movimentos pacíficos não podem ser isoladas das características
políticas contextuais, pois as escolhas estratégicas e as condições contextuais
interagem para moldar os resultados alcançados.
O trabalho conjunto de Stephan e Chenoweth (2008, 2011) também se enquadra nessa
vaga de análises comparativas das mobilizações não violentas, procurando identificar
os seus fatores de sucesso e de fracasso, mas propõem e talvez aí resida a maior
originalidade do trabalho uma comparação entre a eficácia estratégica do uso da
violência e da ação não violenta em conflitos entre atores estatais e não-estatais.
Através da análise sistemática de uma base de dados de mais de 300 conflitos onde se
observam resistências violentas e não violentas, ocorridos entre 1900 e 2006, as
autoras procuram não identificar os mecanismos causais que levam aos resultados
alcançados, mas também comparar as suas conclusões estatísticas com casos
históricos que experimentaram períodos de resistência violenta e não violenta. Com
base nesse conjunto abrangente de análises, as autoras concluem que a ação não
violenta é uma alternativa viável à resistência violenta, tanto contra oponentes
democráticos quanto não-democráticos, mostrando-se capaz de desafiar os oponentes
e influenciar a resolução do conflito num sentido que favoreça os grupos de resistência
em 53% dos casos (contra apenas 26% observados nos casos de resistência violenta).
Para Stephan e Chenoweth, essa conclusão desafia o senso comum que vê a resistência
violenta como a forma mais efetiva de desafiar adversários convencionais superiores e
atingir os objetivos políticos dos grupos oprimidos (2008: 8-9, 42-43).
Véronique Dudouet (2008; 2015) tem desenvolvido um esforço de pensar a resistência
não violenta como um componente necessário da transformação de conflitos em
situações onde se observam relações de poder assimétricas, principalmente nos
estágios iniciais de conflitos latentes enraizados em violência estrutural. Segundo a
autora, devido ao seu potencial de “empoderamento popular, de pressão sobre o
oponente e de obtenção da simpatia de terceiras-partes, a ação não violenta pode ser
um instrumento útil nas mãos de comunidades marginalizadas e desprivilegiadas na
busca de uma posição mais fortalecida a partir da qual o caminho para a negociação de
concessões pode se tornar propício (2008: 19). Considerando a capacidade da ação não
violenta para transformar as relações de poder e transformar as identidades através da
persuasão, continua Dudouet, uma combinação de princípios e de preocupações
pragmáticas pode fazer das abordagens pacifistas uma ferramenta importante de ação
política capaz de atuar através de um duplo processo de diálogo e resistência: diálogo
com o oponente mais poderoso com o objetivo de persuadi-lo sobre a justiça e a
legitimidade das causas defendidas pelas partes mais fracas (conversão através de
princípios) e a resistência às estruturas injustas de poder com o objetivo de pressionar
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por mudanças sociais e políticas (foco mais estratégico). Ao investigar o conflito
israelo-palestiniano (2008: 14, 16-19), Dudouet observa, porém, que as condições
para a operação desse processo dialético tendem a ser dificultadas nos estágios mais
avançados do conflito ou em situações que mostram um alto grau de polarização entre
grupos oponentes quanto a aspetos não negociáveis. Nesses casos mais extremos, a
autora considera que a ação não violenta, isoladamente, pode não ser efetiva na
prevenção de mal-entendidos e na superação do ódio entre as partes, o que sugere por
hipótese a necessidade de integrar a ação não-violenta dentro de uma estratégia
transformativa de longo prazo que inclua múltiplas formas de intervenção, tais como a
negociação, a mediação, a intervenção de terceiras-parte e outras técnicas tradicionais
de peacemaking e peacebuilding. Para testar essa hipótese, a autora considera que
investigações empíricas adicionais são necessárias para identificar pontos de contato e
condições favoráveis à combinação da ação não violenta com outras formas tradicionais
de intervenção em conflitos assimétricos
4
e prolongados, não só pelas partes em
conflito, mas também por partes externas interessadas em apoiar ou facilitar a
complementaridade entre essas diferentes abordagens de resolução de conflitos (2008:
21).
O que é crucial observar a partir dessas indicações é que um novo horizonte de
investigação se abre, tirando as abordagens pacifistas de um certo insulamento e
inserindo-as dentro de um quadro mais abrangente, juntamente com as abordagens
que, tradicionalmente, têm maior visibilidade no campo da resolução de conflitos. Esse
caminho, porém, está apenas no início e requer investigações empíricas adicionais que
permitam examinar um vasto leque de questões. Para além do aspeto anteriormente
destacado quanto à necessidade de investigar as oportunidades e as condições
favoráveis à combinação da ação não violenta com outras formas tradicionais de
intervenção em conflitos assimétricos e prolongados, Dudouet (2008: 21) sugere novas
questões: até que ponto a técnica e os métodos da ação não violenta podem
desempenhar algum papel relevante nas situações de pós-conflito, no contexto das
ações de peacebuilding e de consolidação democrática? Até que ponto a integração das
técnicas de negociação e dos mecanismos tradicionais de resolução de conflitos nos
programas de treinamento preparatórios para a ação não violenta pode contribuir para
prevenir a polarização entre as partes e evitar que as conquistas da ação não violenta
levem à emergência de novas versões das estruturas do antigo sistema? De que forma
atores externos podem inspirar e encorajar a sociedade civil local a adotar a ação não
violenta, sem que isto seja percebido como uma imposição de modelos externos ou
como tentativas de “pacificar” os ativistas locais? Enfim, como se pode ver através dos
desafios e do leque de questões sugeridos nesta seção, as abordagens pacifistas estão
longe de ter chegado a um ponto de exaustão.
4
Embora a conceptualização de conflitos assimétricos seja complexa e alimente uma crescente agenda de
investigação sobre o tema, pode-se dizer, de uma forma simplificada, que o elemento definidor central
desse tipo de conflito é a diferença significativa de poder entre as partes. Conforme os editores do jornal
científico Dynamics of Asymmetric Conflict afirmam em seu número inaugural, a tradicional guerra
equilibrada entre forças militares organizadas e profissionais dos Estados tem-se tornado rara, dando
lugar à violência assimétrica entre grupos estatais e não-estatais, tornando-se a forma predominante de
conflitos no mundo atual. Ver: Editorial (2008) “Editors’ welcome to the inaugural issue of Dynamics of
Asymmetric Conflict”, Dynamics of Asymmetric Conflict, 1(1): 1-5.
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Conclusão
O propósito deste artigo foi apresentar um panorama geral das abordagens pacifistas,
dentro da sua vertente pragmática. Nesse sentido, foram destacados os esforços de
conceptualização e tipificação da ação não violenta empreendidos pela primeira geração
de debate sobre o tema centrada na figura de Gene Sharp e alguns
desenvolvimentos e desafios enfrentados por uma segunda geração de autores que se
tem dedicado a refinar e testar hipóteses sobre a não-violência a partir de uma base
empírica mais consistente. Ao olhar para esse amplo panorama, observa-se não um
claro deslocamento de foco das abordagens baseadas em princípios para as abordagens
pragmáticas, mas também um esforço de ir além da assunção de que a ação não
violenta é superior em qualquer situação e sob qualquer condição. Assim, mesmo
quando os investigadores atualmente envolvidos com o estudo da não-violência
recorrem às referências clássicas do pacifismo de princípios, como Gandhi e King, suas
preocupações concentram-se mais na questão da efetividade do ativismo desses
autores do que nos princípios religiosos e morais que fundamentam as suas
abordagens. Interessa à atual geração de autores envolvidos com o pacifismo
pragmático derivar das técnicas de Gandhi e King e da teoria do poder/consentimento
da primeira geração do pacifismo pragmático hipóteses que possam ser testadas
empiricamente. Esses recentes desenvolvimentos revelam uma atualidade, uma
vitalidade e uma complexidade da agenda de investigação da não-violência que podem
dar ao campo da resolução de conflitos uma contribuição prática e teórica renovada
que vai além das caricaturas e dos estereótipos através dos quais as abordagens
pacifistas têm sido tradicionalmente enxergadas.
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Vol. 7, Nº. 1 (Maio-Outubro 2016), pp. 19-33
PARTILHAS DE PODER: CONCEITOS, DEBATES E LACUNAS
Alexandre de Sousa Carvalho
ascarvalho@autonoma.pt
Doutorando em Ciência Política no ISCTE-IUL (Portugal), Mestre em African Peace and Conflict
Studies pela Universidade de Bradford, Inglaterra e Licenciado em Relões Internacionais pela
Universidade de Coimbra. Investigador Associado no Centro de Estudos Internacionais (CEI),
ISCTE-IUL e Consultor no OBSERVARE-UAL
Resumo
A literatura académica tende a reflectir os dois principais objectivos das partilhas de poder :
por um lado, promover a construção de uma paz sustentável e, por outro lado, servir de
estrutura e alicerce para a fundação, crescimento e desenvolvimento democrático em
sociedades dividas. Como reflexo disso, duas dimensões e discursos de análise e avaliação
sobressaem: uma dimensão (clássica) centrada na temática do power sharing enquanto
teoria e proposta normativa de democracia para sociedades divididas, e uma outra focada
sobretudo no power sharing enquanto mecanismo de gestão de conflitos. Este artigo
pretende introduzir o leitor nos debates sobre partilhas de poder, fazendo uma revisão e
análise crítica da literatura de power sharing evidenciando as suas lacunas e tensões e
sugerindo alguns pontos para onde continuar o debate.
Palavras-chave
Partilhas de Poder; “consociacionalismo"; Estruturalismo; Paz; Democracia; Conflitos
Como citar este artigo
Carvalho, Alexandre de Sousa (2016). "Partilhas de poder: conceitos, debates e lacunas".
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 7, Nº. 1, Maio-Outubro 2016.
Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol7_n1_art2 (http://hdl.handle.net/11144/2620)
Artigo recebido em 16 de Fevereiro de 2016 e aceite para publicação em 8 de Março de
2016
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Partilhas de poder: conceitos, debates e lacunas
Alexandre de Sousa Carvalho
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PARTILHAS DE PODER: CONCEITOS, DEBATES E LACUNAS
Alexandre de Sousa Carvalho
Partilhas de Poder: Introdução
A literatura científica dedicada às partilhas de poder emergiu no final dos anos 1960
como uma proposta normativa que assume como objectivo fornecer estabilidade
democrática a sociedades divididas
1
através da acomodação e inclusão de elites
políticas juntamente com incentivos para a promoção de moderação e comedimento.
Impulsionada sobretudo pelo trabalho de Arend Lijphart (1969; 1977a; 1977b) que
definiu a partilha de poder como “governo de cartel de elites políticas”
2
, as partilhas de
poder são na sua essência
um conjunto de princípios que, quando realizados através de
práticas e instituições, proporcionam a cada grupo ou segmento
identitário significativo numa sociedade representação e
capacidade de tomada de decisões em assuntos gerais e um grau
de autonomia sobre assuntos de particular importância a esse
grupo (Lijphart 1977a:25).
A literatura científica de power sharing corresponde, assim, e de acordo com Horowitz
(2005), ao estudo das condições políticas nas quais a violência em sociedades multi-
étnicas ocorre e, por conseguinte, à identificação dos requisitos para gerir e prevenir
tais conflitos. São, portanto, estudos de 'engenharia' política tendo em vista o desenho
de um quadro institucional inclusivo e pacífico em sociedades divididas.
Os estudos de power sharing focam-se no leque de opções estruturantes de sistemas
políticos que possam gerir e combater o potencial destrutivo de divisões inter-
comunitárias (ou a sua manipulação mobilizada para propósitos políticos). Timothy Sisk
(1996: 5) definiu a teoria de partilha de poder como
um conjunto de princípios que, através da sua aplicação em
normas de conduta e instituições, proporcionam a cada grupo ou
segmento significativo da sociedade a representação e capacidade
1
Por sociedade dividida deve-se entender uma sociedade simultaneamente multi-étnica e onde a
etnicidade enquanto questão identitária configura uma divisão politicamente saliente. Reilly (2001:4)
2
Originalmente, Lijphart (1969:216) escreveu […] consociational democracy means government by elite
cartel designed to turn a democracy with a fragmented political culture into a stable democracy.O termo
consociational foi, como Liphart (2008:6) explica posteriormente, substituído simplesmente por power
sharing.
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de decisão em questões comuns e um grau de autonomia em
questões de particular importância.”
3
Em termos teóricos, a partilha de poder permite a pacificação de grupos em confronto
relativamente a antagonismos e discriminações históricas de forma a possibilitar a
construção de sociedades mais justas e estáveis através de uma representatividade
política mais inclusiva. Como essa partilha de poder é alcançada institucionalmente, é
variável e diversificada (O’Flynn e Russell, 2005).
Assim, por teorias de partilha de poder deve-se entender o estudo das condições
estruturais em que a violência em sociedades divididas e multi-étnicas emerge e a
subsequente proposta de requisitos institucionais para prevenir tais conflitos, de uma
forma que seja democraticamente sustentável e inclusiva. Frequentemente apelidadas
de “estudos de engenharia constitucional”, as teorias de partilha de poder têm assim
por objectivo a elaboração de um quadro institucional que combata eficazmente as
políticas de exclusão étnica de modelos majoritários em sociedades plurais e
polarizadas.
Os perigos da tirania da maioria
As diferentes abordagens nas teorias de partilha de poder - tanto na sua dimensão de
teoria democrática como de gestão de conflitos - partilham um reconhecimento mútuo
das limitações e dos perigos de democracias majoritárias (simples) em sociedades
divididas e advogam os benefícios de uma engenharia política de modo a definir
modelos de governação mais inclusivos que consigam mitigar conflitos latentes. Ambas
aludem para os problemas de exclusão em sistemas majoritários tais como a distorção
na representação política e / ou o potencial vício de uma “ditadura da maioria”, em que
grupos minoritários poderão ser permanentemente incapazes de obter representação
política e subsequentemente de aceder ao poder político:
“[…] Os partidos políticos étnicos desenvolveram-se, as maiorias
tomaram o poder e as minorias se abrigaram. Era uma situação
temível, em que a perspectiva de exclusão de minorias do governo
sustentadas pelo voto étnico era potencialmente permanente.
4
Horowitz (1985: 629-630)
No contexto internacional do pós-Segunda Guerra Mundial, os países recém-
independentes tendencialmente assumiram as mesmas regras constitucionais
previamente estabelecidas pelas antigas ordens coloniais (Lijphart 2004). As teorias de
partilha de poder têm origem, desta forma, enquanto produto e resposta dos processos
3
Tradução livre do original: ... A set of principles that, when carried out through practices and institutions,
provide every significant group or segment in a society representation and decision-making abilities on
common issues and a degree of autonomy over issues of importance to the group.” Timothy D. Sisk
(1996:5).
4
Tradução livre do original: […] ethnic parties developed, majorities took power, minorities took shelter. It
was a fearful situation, in which the prospect of minority exclusion from government underpinned by
ethnic voting was potentially permanent.”
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de indepenncia e das dificuldades na implementação e consolidação de processos
democráticos em sociedades plurais durante a regressão da segunda vaga de
democratização (Huntington, 1991).
A principal premissa enunciada pelos proponentes de power sharing refere-se às
desvantagens da aplicabilidade de democracias majoritárias ‘simples’ em sociedades
divididas e plurais. Esta assunção é baseada na asserção empírica de que, em
sociedades plurais com sistemas políticos majoritários, alguns segmentos da sociedade
enfrentam uma exclusão política (potencialmente) permanente do jogo eleitoral. Larry
Diamond (1999:104) sintetiza a desvantagem de modelos majoritários em sociedades
divididas quando afirma que
“se alguma generalização sobre desenho institucional for
sustentável (...) é a de que os sistemas majoritários são
imprudentes para países com divisões ou emocionais, étnicas,
regionais, religiosas ou outras polarizações profundas. Onde
clivagens são bem definidas e identidades de grupo (e
inseguranças e suspeitas intergrupais) profundamente sentidas, o
imperativo prioritário é para evitar a exclusão ampla e indefinida
do poder de qualquer grupo significativo.
5
Numa democracia majoritária, sociedades divididas poderão tender a percepcionar a
competição eleitoral como uma competição pela posse e domínio do Estado e dos seus
recursos, exacerbando paralelamente a dimensão adversarial da (sua conduta) política.
Esta percepção tende a escalar durante períodos eleitorais, uma vez que o acesso ao
poder político pode representar o garante da protecção de direitos e da sobrevivência
política, económica e mesmo física.
Robert Dahl (1973) recorre ao conceito de 'segurança mútua' e enfatiza a sua
importância durante peodos eleitorais em contextos de sociedades etnicamente
divididas, argumentando que, sendo o acto eleitoral o fórum primário de competição
intergrupal, existe a necessidade de um grau de protecção de direitos mínimo para que
uma derrota na competição eleitoral não possa representar uma ameaça à
sobrevivência. Esta noção de segurança mútua é, de acordo com Dahl, um p-
requisito para a competição eleitoral em sociedades com divisões profundas, e a sua
ausência reforça a natureza 'winner-takes-all' de jogo de soma-zero, num jogo político
de natureza adversarial.
6
Atuobi (2008), na análise que faz de violência eleitoral no
continente africano refere que os processos eleitorais são momentos onde a
5
Tradução livre do original: If any generalization about institutional design is sustainable (…) it is that
majoritarian systems are ill-advised for countries with deep ethnic, regional, religious or other emotional
and polarizing divisions. Where cleavage groups are sharply defined and group identities (and intergroup
insecurities and suspicions) deeply felt, the overriding imperative is to avoid broad and indefinite
exclusion from power of any significant group.” (Diamond, 1999:104).
6
Para a distinção entre a natureza adversarial de democracias maioritárias e a natureza 'coalescente' de
sistemas de partilha de poder, por favor ver Lijphart (1977). Um exemplo de tal natureza adversarial de
um sistema majoritário pode ser observado nas principais raízes do conflito subsequente às eleições
gerais quenianas de 2007 (CIPEV, 2008) prende-se precisamente com histórico de várias lideranças e
elites políticas de exercerem uma forte manipulação de identidades étnicas por parte de como estratégia
mobilizadora dos seus respectivos segmentos do eleitorado (Mbugua, 2008). A natureza adversarial de
alto risco da competição eleitoral e conduta política no Quénia foi sintetizada no título do livro de Michela
Wrong (2009): “It's our turn to eat.”
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estabilidade e a segurança dos Estados africanos é posta em causa devido à ameaça de
violência eleitoral, cuja incidência é tal que mesmo eleições consideradas justas e livres
não estão imunes a violência, antes, durante e após as mesmas.
Segundo os proponentes de power sharing’ (Lijphart 1969, 1977a, 1977b e 2008;
Horowitz 1985 e 1993), os modelos majoritários simples em sociedades multi-étnicas
trazem consigo o risco de promover a exclusão permanente de minorias do acesso ao
poder (ou o acesso ao processo de tomada de decisões), potenciando um cenário de
“tirania da maioria” (onde grupos se vêm permanentemente impedidos de aceder ao
processo de tomada de decisão política por via da seu peso demográfico). Porém, isto
não significa que o modelo de partilhas de poder seja anti-majoritário, como explica
Arend Lijphart (2008:12):
“A democracia nas partilhas de poder (tanto nas suas tipologias
consociacionais e de consenso) é frequentemente descrita como
não-majoritária, e mesmo anti-majoritária ou contra-majoritária -
e eu próprio usei também esses termos. Mas, no entanto, o
modelo de partilhas de poder não se desvia muito do princípio
basilar da governação da maioria. Ele é concordante com a
premissa fundamental que o governo da maioria é superior ao da
minoria, mas o governo da maioria como um requisito mínimo:
ao ins de ficar satisfeito com processos de decisão assumidos
por maiorias mínimas, ele procura maximizar a dimensão dessas
maiorias. O contraste não é tanto entre modelos de democracia
majoritários e não-majoritários mas entre maiorias simples e
maiorias amplas”
7
.
O conceito de partilha de poder está assim intrinsecamente ligado ao conceito de
democracia: tal como o modelo democrático, as partilhas de poder procuram a inclusão
de segmentos da sociedade que são excluídos do processo político de tomada de
decisão. O modelo democrático é inerentemente considerado o mais justo e estável
sistema de gestão de conflitos em contextos de s-guerra e/ou sociedades divididas
(Lijphart, 1977a e 2008)
8
pela sua capacidade de transformação de violência étnica (ou
segmental) em participação e competição política pacífica.
Não obstante, tal pretensão democrática não implica que as partilhas de poder apenas
sejam bem sucedidas ou exclusivas de um quadro institucional democrático: como
exemplo, Milton Esman (1986) relembra que o Império Otomano - cuja população era
predominantemente muçulmana - acomodou comunidades não-muçulmanas durante
cinco culos, garantindo-lhes graus de autonomia, auto-determinação e auto-gestão.
7
Tradução livre do original: ‘Power-sharing democracy (of both the consociational and consensus subtype)
is often described as non-majoritarian, and even anti-majoritarian or counter-majoritarian and I have
used those terms myself, too. In fact, however, power-sharing does not deviate much from the basic
principle of majority rule. It agrees with that fundamental premise that majority rule is superior to
minority rule, but it accepts majority rule as a minimum requirement: instead of being satisfied with
narrow decision-making majorities, it seeks to maximise the size of these majorities. The real contrast is
not so much between majoritarian and non-majoritarian as between bare-majority and broad majority
models of democracy’. (Lijphart, 2008:12).
8
Lijphart afirma Not only have non-democratic regimes failed to be good nation-builders, they have not
even established good records of maintaining order and peace in plural societies” (Lijphart 1977a).
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Da mesma forma, alguns regimes autocráticos pós-coloniais africanos geriram
informalmente o equilíbrio do seu executivo por entre vários grupos, de forma a que o
poder (bem como o seu acesso) e os seus recursos estivessem proporcionalmente
distribuídos. Rothchild (1986) denomina estes executivos como 'regimes de intercâmbio
hegemónico' (“hegemonic exchange regimes”, no original), onde uma porção do poder
estatal e os seus recursos são proporcionalmente partilhados entre grupos cruciais para
assegurar um grau de equilíbrio e acomodação, simultaneamente controlando as
liberdades democráticas (Rothchild, 1995).
9
Duas perspectivas sobre as partilhas de poder:
a terra de ninguém entre a teoria democrática e a gestão de conflitos
A literatura académica tende a reflectir os dois grandes objectivos das partilhas de
poder - i) promover a construção de uma paz sustentável e ii) servir de estrutura para
a fundação, crescimento e desenvolvimento democrático em sociedades dividas e,
como reflexo disso, duas dimensões e discursos de análise e avaliação tendem a
sobressair: uma dimensão (clássica) centrada na temática do power sharing enquanto
teoria de democracia para sociedades divididas, e uma outra focada sobretudo no
power sharing enquanto mecanismo de gestão de conflitos.
Partilhas de poder enquanto teoria democrática
O debate sobre engenharia constitucional na dimensão da teoria democrática gira à
volta de duas grandes filosofias: por um lado, a teoria de power sharing, dividida entre
a "consociacional" - creditada ao trabalho pioneiro de Arend Lijphart (1969; 1977a;
1977b; 1985; 1990; 1996; 1999; 2004; 2008) - e a teoria “integrativa" ou
“estruturalista”, mais associada a Donald Horowitz (1985; 1990; 1991; 1993) e a
Timothy Sisk (1996); e, por outro lado, a uma alternativa desenvolvida por Roeder e
Rothchild (2005) da divisão de poder (power dividing
10
) em linha com o quadro político-
institucional democrático norte-americano. Hoddie e Hartzell (2005) advertem, no
entanto, para a questão do efeito sequencial da transição de uma situação de conflito
para uma de paz democrática através do mecanismo/dinâmica power dividing
11
.
A teoria "consociacional" tal como defendida por Lijphart define quatro princípios
básicos
12
, dois de importância central, e outros dois de relevância secundária (Lijphart
1996: 258-268; 2008: 3-32):
9
O Quénia durante o regime de 24 anos sob a tutela de Danial arap Moi é um bom exemplo desta
atribuição proporcional de posições governativas ou executivas a diferentes grupos étnicos, mesmo
quando era um Estado de partido único. O Governo queniano em diversas administrações incluía
frequentemente representantes de diversos grupos étnicos em diferentes administrações, muito embora a
vasta maioria do poder tenha sido sempre confiada ao grupo étnico afiliado ao Presidente (o cargo mais
poderoso na estrutura política do país) (Ng’weno 2009).
10
Para efeitos de brevidade, este artigo não se detém na divisão de poder enquanto tópico na evolução do
debate sobre engenharia constitucional em sociedades divididas.
11
Numa fase inicial medidas de aumento de confiança (i.e., instituições de power-sharing) são necessárias,
enquanto que a fase de consolidação é dominada por questões de estabilidade, sendo para isso
necessárias instituições de power dividing. Para ver mais, por favor consultar Roeder e Rothchild (2005)
12
A primeira versão da definição de power sharing por Lijphart, em 1969, apenas incluía a primeira
característica. A definição aqui presente é a do seu estudo de caso indiano, de 1996, por conter a sua
formulação final.
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1. Uma grande coligação (i.e., um executivo que inclua representantes dos
principais grupos linguísticos e religiosos);
2. Autonomia cultural para estes grupos (p.e.: federalismo; capacidade de tomada
de decisão a assuntos relativos especificamente a um grupo, etc.)
3. Proporcionalidade na representação política;
4. Possibilidade de veto minoritário relativamente a direitos vitais de grupos
minoritários.
Lijphart enfatiza que as instituições e as condutas que incorporarão estes princípios
deverão ser adoptados consoante a sociedade em que se inserem. Dado que cada
princípio da teoria "consociacional" poderá ser aplicado por diferentes modelos e
formatos, Lijphart recomenda que este sistema inclua os quatro princípios básicos.
Lijphart defende também a superioridade de modelos parlamentares perante modelos
presidencialistas
13
e a preferência por sistemas eleitorais proporcionais em detrimento
de sistemas majoritários (como por exemplo o modelo first-past-the-post [FPTP] de
Westminster). Apesar da democracia "consociacional" não ser incompatível com
sistemas presidenciais, sistemas eleitorais majoritários e estruturas governativas
centralizadas, Lijphart considera que a estrutura constitucional mais adequada é
proporcionada por regimes parlamentares, representação proporcional e, no caso de
sociedades onde concentração geográfica de grupos étnicos ou religiosos, o
federalismo. Lijphart (2008) enuncia assim algumas condições facilitadoras e favoráveis
ao “consociacionalismo":
Ausência de uma maioria sólida que possa preferir um sistema majoritário;
Desigualdades socio-económicas (em menor grau, as questões linguísticas e
religiosas);
Número de grupos existentes (complexidade da negociação);
Dimensão desses grupos (importância da balança de poder e do não-predomínio);
Existência de ameaças externas (promovem a coesão interna);
Lealdades e alianças pré-existentes;
No caso de existir concentração geográfica de grupos, o federalismo facilita
autonomia segmental; e por fim,
Tradições de compromisso e acomodação.
Por seu turno, Horowitz (1985), através de uma abordagem “integrativa" ou
“estruturalista”
14
, defendia a adopção de cinco mecanismos distintos do modelo
apresentado por Lijphart para a redução de conflitos em sociedades multi-étnicas, a
saber:
13
Sobre as limitações de sistemas presidenciais, ver também Linz (1994).
14
A classificação de “integrativa” ou “estruturalista” advém da crítica que Horowitz estabelece de que a
teoria “consociacionalista" se cinge a punir o radicalismo político, ao passo que a sua proposta tende a
reflectir uma promoção da moderação e cooperação política inter-grupal. Outros proponentes da opção
“integrativa": Reilly (2001); Sisk (1996).
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1. Dispersão de poder, frequentemente territorialmente (descentralização), de modo
a evitar a concentração de poder num único ponto focal;
2. Devolução de poder com a ressalva de lugares destinados tendo uma base étnica
de forma a promover a competição inter-étnica a nível local;
3. Incentivos à cooperação inter-étnica, como leis eleitorais que promovam coligações
pré-eleitorais;
4. Políticas reguladoras que encorajem alinhamentos sociais alternativos, tais como
classe ou território, pondo assim a ênfase em clivagens transversais;
5. Redução das desigualdades entre grupos através da gestão da distribuição de
recursos;
É de salientar que algumas recomendações de Horowitz coincidem com as de Lijphart
em certos tópicos: e.g., ambos advogam o modelo federal e relevam a importância da
proporcionalidade e do equilíbrio étnico. É importante, no entanto ter em conta que são
todos eles (dos modelos de power sharing a power dividing) quadros conceptuais ideais
em que é possível que estejam presentes combinações empíricas das três teorias.
Partilhas de poder enquanto mecanismo de resolução de conflitos
“E fácil para nós e muitos outros nos sentarmos, deliberarmos e
criticarmos as partilhas de poder, mas há um grande elefante na
sala: se não tivesse existido partilhas de poder no Zimbabué e no
Quénia, por imperfeitas que sejam, que outra opção teríamos?”
15
-
Blessing Miles Tendi
Se a maioria da literatura científica (nomeadamente as teorias clássicas) sobre power
sharing foi sendo desenvolvida ao longo da segunda metade do século XX (sobretudo
nos anos 1970 e 1980), o debate sobre power sharing foi retomado no virar do culo.
No entanto, esta literatura mais recente está sobretudo focada na sustentabilidade do
power sharing aplicado enquanto mecanismo de resolução ou gestão de conflitos. Tal
ressurgimento tem revelado, no entanto, novas análises relativamente às partilhas de
poder recentes que têm, por sua vez, apontado em sentido contrário ao que as teorias
clássicas têm defendido. Com efeito, diversos autores (Noel, 2005; O’Flynn and Russel,
2005; Spears, 2005; Hartzell and Hoddie, 2007; Jarstad, 2008; Mehler, 2009a e
2009b; LeVan, 2011) argumentam que as partilhas de poder têm, ao contrário do que
a literatura clássica defendia e pretendia:
Impulsionado comportamentos anti-democráticos e radicalizados;
Inibido a transição da gestão de conflitos para a resolução de conflitos ao encorajar
extremismo;
15
Tradução livre do original: It's easy for you and me and many others to sit there, deliberate and criticise
power sharing but there's a big elephant in the room: had there been no power sharing in Zimbabwe and
Kenya, flawed as it is, what other option did we have?" (Smith, 2010).
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Sufocado a diversidade interna e o seu reconhecimento em prol de identidades
comunitárias e preocupações colectivas;
Mostrado dificuldade em reconhecer e lidar com identidades transversais;
Deixado espaço insuficiente para a autonomia individual.
Danificado as relações de transparência e responsabilização (accountability);
Aumentado a ineficiência económica do governo;
Fomentado as condições para impasses e bloqueios governativos;
A. Carl LeVan (2011) foca a sua atenção para uma análise tri-dimensional das partilhas
de poder:
1) a sua origem pactos extra-constitucionais ou coligações produzidas por
instituições;
2) a sua função cenários de pós-guerra ou cenários onde o estado corre menos
riscos;
3) horizonte temporal dilemas entre os custos no longo prazo e os benefícios de
curto prazo.
Com base nesse quadro conceptual, LeVan (2011) sugere que a tendência de acordos
de partilha de poder alcançados como instrumento de resolução de conflitos pós-
eleitorais ou no sentido de evitar uma ainda maior escalada do conflito poderá estar a
pôr em causa os esforços de promoção de democracia no continente africano nas
últimas décadas (“peace before process”). Este tipo de acordos de origem extra-
constitucional, pese a sua recente popularidade, têm, no entanto, sido fomentados nos
meios académicos e de policy-making não apenas nas dimensões da promoção de paz
e resolução de conflitos como também na dimensão da teoria democrática e na
promoção de modelos democráticos alternativos. Com efeito, Anna Jarstad (2008)
afirma que ambas as correntes (teoria democrática, por um lado; e resolução ou gestão
de conflitos, por outro) poderão advogar a partilha de poder por razões distintamente
antagónicas, uma vez que uma das dimensões tem como principal objectivo a cessação
de violência, e outra a construção (ou aprofundamento) de uma democracia mais
inclusiva e proporcional, sendo que ambas não são necessariamente compatíveis,
particularmente quando um acordo de power sharing é alcançado enquanto alternativa
a eleições, reflectindo assim a falta de coesão e análise holística que o debate sobre a
viabilidade e sustentabilidade de partilhas de poder ainda denota:
“No discurso de gestão de conflitos, as partilhas de poder são
vistas como um mecanismo que dilui a incerteza num processo de
paz - se necessário, como um substituto de eleições - enquanto
que a investigação assente na teoria democrática utiliza as
partilhas de poder como um mecanismo de promoção de
comedimento e de melhoria da qualidade da democracia. Isto
significa que investigadores de ambas as áreas são proponentes
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das partilhas de poder para sociedades afectadas pela guerra por
razões diferentes. No entanto, a ausência de integração entre os
dois discursos limita o conhecimento das consequências a longo
prazo das partilhas de poder em sociedades que transitam de um
cenário de guerra.”
16
(Jarstad 2008:111)
Tal como Jarstad, Ian S. Spears (2005) afirma que power sharing e democracia podem
ser compatíveis, desde que um não substitua o outro. Adicionalmente, Spears também
pistas para as resistências por parte de elites políticas em implementar acordos de
partilha de poder em cenários de pós-conflito tendo em conta os problemas estruturais
de muitos países no continente africano - aludindo assim à importância dos debates
que a literatura de relações internacionais tem prestado às questões de Estados
falhados ou fracos, conflitos violentos contemporâneos (frequentemente de carácter
intra-estatal e informal), o predicamento de segurança do Terceiro Mundo mas que a
literatura sobre power sharing tem negligenciado:
“As partilhas de poder têm sido repetidamente advogadas
enquanto método de governação pós-conflito em África. No
entanto, em praticamente todos os casos os resultados têm sido
semelhantes: acordos inclusivos de partilhas de poder encontram
resistência por parte de líderes locais ou, se aceites, raramente
foram plenamente implementados e cumpridos no longo prazo.
Dado este registo inexpressivo, é notável como as partilha do
poder, no entanto, continuam a ser peças centrais de tantas
iniciativas de paz africanas. Esperar que partilhas de poder
funcionem em África é esperar que elas resultem nas condições
mais difíceis, e isto é, em parte, parte do problema. As condições
de anarquia que acompanham a guerra civil e colapso do estado
muitas vezes exigem soluções que são prévias ou complementares
às partilhas do poder - ou mesmo que excluam as partilhas de
poder completamente
17
.
16
Tradução livre do original: “[...] in the conflict-management discourse, power-sharing is seen as a
mechanism to manage the uncertainty in a peace process if need be, as a substitute for elections
while research based on democratic theory treats power-sharing as a mechanism to foster moderation
and to improve the quality of democracy. This means that researchers of both schools advocate power
sharing for war-shattered societies, albeit for different reasons. However, the lack of integration between
the two discourses means that there is limited knowledge of the long-term consequences of power sharing
in societies emerging from war.” (Jarstad, 2008:111).
17
Tradução livre do original: Power sharing has been repeatedly advocated as a method of post-conflict
governance in Africa. In virtually all cases, however, the results have been the same: inclusive power-
sharing agreements have been resisted by local leaders or, if accepted, have rarely been fully
implemented or adhered to over the long term. Given this unimpressive record, it is remarkable that
power sharing nevertheless continues to be the centrepiece of so many African peace initiatives. To
expect power sharing to work in Africa is to expect it to work under the most difficult conditions, and this,
in fact, is part of the problem. For the conditions of anarchy that accompany civil war and state collapse
often require solutions that are prior to, or in addition to, power sharing or ones that exclude power
sharing altogether.” Spears, Ian S. “Anarchy and the Problems of Power Sharing in Africa” in Sid Noel
(ed.) From Power Sharing to Democracy, Québec: McGill-Queen’s University Press, 2005. Pp. 184-197.
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Partilhas de poder: conceitos, debates e lacunas
Alexandre de Sousa Carvalho
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Mehler (2009a) sublinha, como LeVan (2011), a necessidade de analisar o power
sharing para além da dimensão de análise de mitigação do conflito, argumentando que
o power sharing deve ser visto como um processo e não como um evento, citando o
actual exemplo de sucesso do Burundi
18
, que durante 20 anos de tentativas era
considerado um exemplo de fracasso.
Que caminho para o debate sobre partilhas de poder?
As teorias clássicas de partilha de poder focaram-se primordialmente no desenho
permanente (embora não necessariamente estático) de uma engenharia institucional
para acomodação política de diferentes grupos numa sociedade dividida. A literatura
recente da partilha de poder tem-se focado sobretudo na partilha de poder enquanto
mecanismo temporário em acordos de paz em prol de um imperativo securitário,
mesmo que antagónico aos prévios esforços de democratização de décadas passadas.
No entanto, pouca atenção tem sido dada ao power sharing enquanto processo
dinâmico, com avanços, recuos e transições.
Os estudos de ‘engenharia constitucional’ que propõem a adopção de políticas
inclusivas para sociedades pluralistas, divididas e/ou em transição têm sido
desenvolvidos desde finais da década de 1960. No entanto, esta corrente de ciência
política recentemente começou a ser estudada numa lógica de conflitos de terceiro
tipo (Holsti, 1996), frequentes no continente africano, apesar da temática dos conflitos
intra-estatais contemporâneos estar intimamente ligado às questões de governação e
formação dos Estados e respectivos (des)equilíbrios estruturais. O estudo de acordos
de partilha de poder, particularmente num contexto africano, ganha assim cada vez
maior proeminência enquanto instrumento de análise do percurso da consolidação
democrática no continente.
Os acordos de partilha de poder têm-se sucedido no continente africano nos últimos
anos (Mehler, 2009; LeVan, 2011). Mehler (2009) aponta 17 países do continente
africano como tendo tido acordos de partilha de poder “significativas” apenas entre
1999 e 2009, enquanto que Hartzell e Hoddie (2007) relembram que, de 38 processos
de paz entre 1945 e 1999 resultantes da negociação para o fim de guerras civis,
apenas um - o Acordo de Gbadolite em 1989 - não continha qualquer elemento ou
norma de partilha de poder. Muito embora diversos países africanos tenham ao longo
dos anos um histórico de experiências no campo da engenharia constitucional para a
concepção e desenvolvimento de um quadro institucional democrático tendencialmente
mais inclusivo (e.g., Nigéria, Burundi), a recente popularidade deve-se sobretudo à
inclusão da partilha de poder como mecanismo de gestão e prevenção de conflitos
violentos através da negociação de acordos de paz (Hartzell & Hoddie, 2007; Mehler,
2009). O continente africano, seja pela quantidade de países compostos por sociedades
multi-étnicas para os quais as teorias de power sharing foram inicialmente concebidas e
desenvolvidas, seja pela frequência de conflitos violentos e processos de paz
decorrentes, é assim um terreno fértil para a emergência desses acordos.
No entanto, na vasta literatura sobre partilhas de poder, agendas de investigação e
abordagens analíticas têm-se focado quase exclusivamente numa perspectiva
institucional e de elites, tanto na sua dimensão mais recente de mitigação e gestão de
18
Ver também Vandengiste (2009).
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Partilhas de poder: conceitos, debates e lacunas
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conflitos como na abordagem clássica da teoria de partilha de poder e a sua proposta
normativa de engenharia política para uma estrutura institucional permanente assente
na acomodação de elites políticas. Tal tem impedido uma análise holística e
interdisciplinar nos estudos sobre partilhas de poder e as suas consequências,
especialmente em África onde tem sido uma tenncia dominante no ocaso da Guerra
Fria.
É especialmente surpreendente que, com o renovado interesse académico nesta
temática, a influência da natureza dos partidos políticos e de sistemas partidários nas
partilhas de poder e suas respectivas dinâmicas e consequências seja tão
comparativamente negligenciada em detrimento das análises dominantes top-down
19
.
Mesmo sendo os partidos políticos um dos principais actores em qualquer sistema
político pela sua capacidade de canalizar, agregar e expressar vontades políticas - e
detendo assim um poder ímpar não para apenas a gestão e resolução de conflitos nas
sociedades em que se inserem, mas também para actuar como agente privilegiado na
consolidação da democracia - os estudos de partilhas de poder tendem a manter o seu
foco ou em pequenos grupos de elites ou em instituições nacionais, sem grandes
considerações sobre processos bottom-up ou sobre as tensões entre instituições, elites,
partidos políticos e segmentos da sociedade. A literatura académica tem sido profusa a
avaliar o sucesso ou insucesso de partilhas de poder com muito pouca atenção
dispensada ao processo de partilha de poder e às suas dinâmicas e variações ao longo
da sua existência. Por exemplo, a transição de uma dinâmica centrífuga nos dois
primeiros anos de partilha de poder no Quénia (2008-2013) para uma dinâmica
centrípeta de 2010 em diante está ruidosamente ausente da literatura académica que,
com todas as suas conclusões antagónicas, não oferece grandes pistas para explicar
mutações como as que foram experienciadas pelo Governo de Unidade no Quénia. Se
algo que as propostas das teorias de partilha de poder evidenciam, é que o seu
discurso - com toda a sua capacidade de empoderar e visibilizar, de selecção e
legitimação - não é suficiente para entender todas as variáveis, dinâmicas e actores
relevantes
20
para a determinação do seu sucesso ou insucesso.
Finalmente, se a ausência de análises mais interdisciplinares - mesmo em sub-áreas da
Ciência Política e das Relações Internacionais, de onde ela provém - relativamente às
partilhas de poder tem tornado o debate inconclusivo no que concerne os méritos e
desvantagens das partilhas de poder para a promoção e consolidação da democracia e
da paz, uma outra questão talvez mais pertinente tem estado ausente por inteiro do
debate: que tipo de paz e democracia têm as partilhas de poder promovido?
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19
Algumas excepções devem ser mencionadas: Reilly e Nordlund, 2008; Sousa, 2009; Cheeseman e Tendi,
2010; Carvalho 2013.
20
Uma das poucas referências sobre a importância que a sociedade civil queniana desempenhou no acordo
de partilhas de poder e na implementação do seu mandato pode ser lida em Ghai e Ghai (2010).
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 7, Nº. 1 (Maio-Outubro 2016), pp. 34-57
A UTILIZAÇÃO DA FORÇA MILITAR NA GESTÃO
E RESOLUÇÃO DE CONFLITOS
António Oliveira
oliveiravpa@gmail.com
Licenciado em Ciências Militares (Infantaria) pela Academia Militar, desempenha atualmente as
funções de assessor militar, Gabinete do Ministro da Defesa Nacional, no XXI Governo
Constitucional (Portugal). Prestou serviço em diversas unidades das Forças Armadas onde
desempenhou funções nas componentes operacional operação de apoio à paz no Kosovo, 1999-
2000 e 2005; evacuação de cidadãos nacionais na Guiné e no Congo, 1998), de ensino e
formação. Foi professor no Instituto de Estudos Superiores Militares, na área de Ensino das
Operações, desempenhando funções de assessoria e formação em Angola (2008-9) e
Moçambique (2009). Desempenhou o cargo de Oficial de Operações e Treino da Brigada de
Intervenção (após 2010, Coimbra), sendo nomeado Comandante do 1º Batalhão de Infantaria da
Brigada de Intervenção (2012). Foi assessor no Gabinete do Ministro da Defesa Nacional no XIX e
XX Governos Constitucionais. Mestre em Estudos da Paz e da Guerra nas Novas Relações
Internacionais, pela Universidade Autónoma de Lisboa (UAL) e está habilitado com o curso de
Especialização em Informações e Segurança (Instituto Superior de Ciências Sociais e Politicas) e
com o Curso de Operações de Paz eão Humanitária, tendo participado no International Visitor
Leadership Program, nos Estados Unidos, no âmbito da resolução de conflitos. É autor do livro
“Resolução de conflitos – o papel do emprego do instrumento militar” e co-autor do livro “A luta
armada timorense na resistência à ocupação: 1975-1999”. É doutorando em Relações
Internacionais na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas, da Universidade Nova de Lisboa.
Resumo
O fim da guerra fria alterou o paradigma no que respeita ao papel e âmbito de aplicação da
força militar na gestão e na resolução de conflitos. Com um intervencionismo crescente da
comunidade internacional, a nova geração de operações de paz adotou uma abordagem
multidimensional com a força militar a ser empregue de forma articulada com os restantes
instrumentos do Poder, garantindo-se o devido enquadramento estratégico face ao estado
final desejado.
Esta nova abordagem e a crescente complexidade conflitos, predominantemente de
natureza intraestatal, têm levado, por um lado, a que o entendimento dos tradicionais
princípios das operações de paz esteja a ser equacionado, e por outro, a que as forças
militares enfrentem diversos desafios. O mais complexo prende-se com o emprego efetivo
das suas capacidades de combate, pois parece faltar vontade política para, depois de se
efetuar o deployment das forças, garantir o seu emprego efetivo. No entanto, sendo o
emprego efetivo da força o elemento mais crítico, mas simultaneamente mais diferenciador
e caraterizador do emprego do instrumento militar, na gestão e na resolução de conflitos,
assumiram relevo um elevado leque de capacidades das forças militares que, ultrapassando
as tradicionais capacidades de combate, se mostram de grande utilidade, nomeadamente
em apoio, complemento ou mesmo substituição de capacidades não militares.
Palavras-chave
Força militar; instrumentos do Poder; resolução de conflitos; operações de paz
Como citar este artigo
Oliveira, António (2016). "A utilização da força militar na gestão e resolução de conflitos".
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 7, N.º 1, Maio-Outubro 2016.
Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol7_n1_art3 (http://hdl.handle.net/11144/2621)
Artigo recebido em 8 de Fevereiro de 2016 e aceite para publicação em 13 de Março de
2016
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A utilização da força militar na gestão e resolução de conflitos
António Oliveira
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A UTILIZAÇÃO DA FORÇA MILITAR NA GESTÃO
E RESOLUÇÃO DE CONFLITOS
António Oliveira
Introdução
A comunidade internacional, nomeadamente as Nações Unidas, com o apoio de
algumas organizações regionais, como a OTAN e a União Europeia, tem vindo a intervir
de forma crescente na gestão e resolução de conflitos. Constituindo-se numa terceira
parte”, envida os seus esforços pela aplicação de todos coercivos e não coercivos,
com vista a desarmar o antagonismo entre adversários e a favorecer entre eles uma
cessação durável da violência.
Segundo Ramos-Horta (2015: ix), a prevenção dos conflitos armados é talvez a maior
responsabilidade da comunidade internacional. Mas quando esta prevenção não é
possível, as chamadas “forças de paz” são muitas vezes obrigadas a intervir para
ajudar a impor e manter um ambiente seguro, para impedir o reinício da violência e
para proporcionar um espaço seguro para o avanço do processo político.
As caraterísticas do atual ambiente operacional, com múltiplos atores e em que a
população se tem constituído no mais importante, têm exponenciado a complexidade
dos conflitos. Desta forma, as operações inerentes à sua gestão e resolução requerem
a execução de um espetro cada vez mais largo de tarefas por parte das forças
militares. No entanto, a resolução de conflitos é também efetuada com base em
medidas não coercivas, o que implica que o emprego dos meios militares seja
balanceado, numa aproximação integrada com outros instrumentos de Poder. O
emprego tradicional de forças militares no contexto da resolução de conflitos parece
estar assim a sofrer uma rápida evolução em que a sua ação é desenvolvida num
enquadramento muito mais complexo. Assim, como refere Smith (2008: 429), “deve
saber-se o resultado pretendido antes de se decidir se a força militar tem algum papel
a desempenhar na prossecução deste resultado”.
Neste enquadramento colocam-se um conjunto de questões, que são a base da tomada
de decisão para o emprego da força militar neste âmbito. Quais as suas funções? Qual
o contexto para a sua utilização e como fazer a sua conjugação com outros
instrumentos de Poder? Que condições são necessárias e que princípios devem ser
respeitados? Em que situações as capacidades de combate da força militar podem ser
efetivamente empregues?
Para responder a estas questões, num primeiro tópico iremos debruçar-nos sobre o
contexto de utilização da força armada na resolução de conflitos. Um segundo ponto
aborda a conceptualização das operações com base na aproximação militar a esta
temática. Por último, debruçamo-nos sobre o emprego dos meios militares neste
contexto, incluindo a utilização efetiva das suas capacidades de combate.
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A utilização da força militar na gestão e resolução de conflitos
António Oliveira
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1. A força militar no contexto da resolução de conflitos
1.1. As funções da força militar
A força militar desde sempre representou um papel importante nas relações
internacionais. No entanto, a sua utilização prioritária foi mudando, adaptando-se à
evolução do contexto estratégico, sendo sucessivamente utilizada, primeiro como meio
de coação, depois como instrumento de dissuasão, e mais recentemente como
ferramenta para a prevenção e resolução de conflitos (Espírito-Santo, 2003: 235). Esta
forma de utilização deve ser vista, não como uma substituição sucessiva do contexto de
emprego, mas sim como um alargamento do espetro de utilização.
Neste espetro, de forma genérica, a força militar pode realizar cinco funções
estratégicas: destruir, coagir, dissuadir, conter ou melhorar (Smith, 2008: 370). Estas
funções serão executadas de forma isolada ou combinada de acordo com o conceito
estratégico que permite atingir o resultado político desejado, podendo ser
desenvolvidas aos diferentes níveis, de forma individualizada e complementar (Garcia,
2010: 70), independentemente da atividade a executar.
No contexto de segurança e defesa do século XXI, a força militar executa três tipos de
atividades principais: (i) as ações de combate tradicional; (ii) um conjunto variado de
atividades não tradicionais”, que vão desde a assistência humanitária às operações
especiais, passando pelas operações de paz; e (iii) atividades de apoio e interação com
os outros instrumentos de Poder (Alberts, 2002: 39). Este espetro de utilização reflete
alterações muito significativas a que se associa uma valorização crescente das ações
desenvolvidas por emprego de vetores não militares. Esta tenncia tem vindo a
acentuar-se e resulta, por um lado, da maior eficácia das estratégias diplomática,
económica e psicológica e, por outro lado, dos problemas inerentes à utilização da força
militar (Barrento, 2010: 306).
A condução de operações militares começou a ser a “arte do possível”, implicando que
cada vez mais as foas se adaptem a contextos não militares e aos condicionamentos
políticos, legais, socioculturais, económicos, tecnológicos e geográficos (Gray, 2006:
31). Desta forma, para além dos meios, o emprego da força militar passou a requerer
um outro pré-requisito fundamental: a oportunidade (Alberts e Hayes, 2003: 171).
As organizações internacionais
1
, apoiadas na perspetiva de que o emprego da força
armada para gerir as relações internacionais e manter a paz é legítimo, apropriado e
frequentemente necessário (Zartman at al, 2007: 422), têm vindo progressivamente a
intervir para salvaguardar a paz entre os Estados, mas também dentro dos mesmos
(David, 2001: 313). Criou-se assim a oportunidade para o emprego das forças militares
e, desta forma, estas são cada vez mais chamadas a intervir no âmbito da denominada
“resolução de conflitos”.
Mas esta nova perspetiva de atuação provocou também alterações qualitativas no
emprego da força militar. Os objetivos ao nível estratégico e operacional deixaram de
estar relacionados com a destruição ou imposição de condições a um inimigo e
passaram a ter como objetivo o moldar ou alterar a vontade da população (Smith,
2008: 42) e das partes em confronto. Por consequência, as funções estratégicas,
1
Especialmente as Nações Unidas, suportadas e complementadas por outras organizações regionais.
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37
embora mantendo o seu fim, viram significativamente alterado o contexto em que são
implementadas, especialmente por via da eliminação do conceito de inimigo, um
conceito não aplivel no contexto da resolução de conflitos.
Assim, em vez da execução das suas funções estratégicas num tradicional cenário de
guerra, a projeção de militares neste contexto pode ser vista como um passo da
comunidade internacional no sentido de resolver os seus diferendos ou confrontos sem
recurso à guerra, contribuindo simultaneamente para a segurança em termos coletivos
(Segal e Waldman, 1998: 185).
1.2. O contexto para a utilização - a aproximação integrada
Em termos genéricos, os objetivos estratégicos definidos para uma operação que visa a
resolução de um conflito estão normalmente relacionados com a segurança, a
governança e o desenvolvimento económico (AJP-01(D), 2010: 2-12).
Em termos estritamente militares, o estado final poderá ser considerado atingido
quando o estado de direito está estabelecido, os mecanismos de segurança interna
readquirem o controlo e os níveis de violência estão dentro dos padrões normais para a
sociedade da região em questão. No entanto, atingir os objetivos militares, criando um
ambiente estável e seguro, não é garantia de se atingir uma situação de paz auto-
sustentada (AJP-1 (C), 2007: 1-8). A implementação de uma operação pode ajudar a
conter a violência no curto prazo, mas é improvável que resulte numa paz sustentável
e duradoura se não for acompanhada de programas destinados a prevenir a recorrência
do conflito (Capstone, 2008: 25). Desta forma, o sucesso militar e os objetivos
militares atingidos devem ser vistos antes como os pontos decisivos para se atingir o
estado final desejado em termos globais, sendo fundamental estabelecer um
balanceamento dinâmico com os objetivos não militares (Alberts, 2002: 48),
empregando o instrumento militar de forma articulada com os restantes instrumentos
de Poder
2
.
A relação entre estes instrumentos, como refere Gray (2006: 15), é sempre contextual,
condicionando o seu emprego. No contexto da prevenção, gestão e resolução de
conflitos, o grau de utilização de cada um dos instrumentos é influenciado pelo nível de
coação pretendido sobre os atores em confronto e é a utilização do elemento militar
que influencia diretamente este nível de coação
3
(Oliveira, 2011: 65).
2
De acordo com os domínios considerados, existem diversas formas de efetuar a sistematização dos
instrumentos de Poder: (i) DIME (Instrumento Diplomático, Informacional, Militar e Económico) na atual
doutrina da Aliança Atlântica (AJP-01(C), 2007): 2-18); (ii) DIMLIFE (Diplomático, Informacional, Militar,
Económico, Lei e Ordem, Intelligence e Financeiro) na estratégia americana de combate ao terrorismo,
em que passou a ser considerado um leque mais abrangente de instrumentos; alguns Estados não
consideram o instrumento Informacional, considerando-o, simultaneamente, como um componente e um
requisito necessários aos restantes instrumentos (AJP1-(D), 2010: 1-3).
3
O resultado do emprego balanceado dos diferentes instrumentos do Poder poderá ser comparado ao som
obtido através de um equalizador, sendo modelado pela intervenção na intensidade de cada um deles e
pela seleção do som de base - o nível de coação desejado (Oliveira, 2011: 65).
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Fig. 1 Balanceamento dos instrumentos do Poder (Adaptado de Smart Power
Equalizer)
Fonte:
http://mountainrunner.us/images/SmartPowerEqualizerfindingthemix_FA88/smartpower_20thC2.
gif
Esta utilização holística e sinérgica é comummente designada por comprehensive
approach
4
e tem por base uma ação coordenada entre os diversos atores
organizações políticas, diplomáticas, económicas, militares, não-governamentais,
sociedade civil e empresarial (MCDC, 2014: 115). Devendo ser articulada aos níveis
estratégico, operacional e tático, é suportada pelo planeamento, direção e
desconflituação da execução (AJP-1 (D), 2010): 2-11), em que o emprego dos diversos
sistemas converge metodologicamente para uma combinação de soluções
multinacionais e multidisciplinares (Oliveira, 2011: 65).
1.3. O enquadramento específico ao emprego do instrumento
militar
O emprego da força militar na gestão e resolução de conflitos está condicionado pelo
adequado enquadramento conceptual que permita interpretar corretamente o ambiente
operacional por parte da força e dos seus comandantes (AJP-1 (D), 2010): 1-10). A
confusão da delimitação conceptual e doutrinária das operações é normalmente
prenunciadora do insucesso, pois o grau de empenhamento das forças militares, os
elementos a empenhar e em que termos o mandato lhes permite atuar (Jones, 2009:
7) são pré condições para o sucesso.
O emprego da componente militar, neste enquadramento, requer uma compreensão
profunda de três vetores que se interrelacionam: (i) os atores em presença - apoiantes,
neutrais e oponentes à presença da força; (ii) o ambiente operacional, nas diversas
perspetivas, e (iii) as tarefas a executar (AJP-01(D), 2010: 2-14).
Abordando a relação entre os diversos vetores, Binnendijk e Johnson (2004)
publicaram algumas conclusões de um estudo
5
que analisou um conjunto de
intervenções em situações de conflito, sugerindo que o sucesso dependeu
4
Traduziremos de forma livre para “aproximação integrada”.
5
Estudo original elaborado por Larry K. Wentz.
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essencialmente de três fatores controláveis: (i) os recursos atribuídos para resolver o
conflito; (ii) o volume de forças militares utilizadas; e (iii) o tempo atribuído para o
processo de resolução do conflito. Dependeu ainda de dois fatores não controláveis: (i)
as caraterísticas internas e (ii) os interesses geopolíticos de terceiros.
Estes estudos foram elaborados tendo o instrumento militar como a principal variável
6
dos casos estudados e uma das lições retiradas é que existe uma forte correlação entre
o volume de recursos utilizados e o grau de sucesso
7
. Com a crescente
multidisciplinaridade e complexidade das operações esta correlação não é tão clara e
tornou-se num dos dilemas da sua materialização. Se, por um lado, um elevado volume
de forças favorece a segurança, por outro lado, introduz o risco de estimular alguma
resistência local à presença estrangeira por ser demasiado intrusiva junto da
comunidade local. Numa outra abordagem, um reduzido volume de forças minimiza o
estímulo de impulsos nacionalistas contra a sua presença, mas pode ser pouco eficaz
na manutenção de um ambiente estável e seguro no território (Paris e Sisk, 2009: 81).
Relativamente a este dilema
8
, alguns comandantes de forças da ONU defendem que o
volume dos efetivos não é fundamental, sendo menos importante para a eficácia da
força do que a unidade de comando e a remoção dos caveats introduzidos nos diversos
contingentes militares (Mood, 2015: 2).
O tempo destinado à operação cria um outro dilema: manter a presença para evitar o
reinício das hostilidades e/ou o oportunismo face à fraqueza das instituições locais ou
retirar as forças para evitar o perigo de resistência da população local à sua presença
prolongada (Paris e Sisk, 2009: 85). Binnendijk e Johnson (2004: 4 e 5), relativamente
a este dilema, afirmam que a manutenção de meios por um longo período pode não
garantir o sucesso, mas a sua retirada rápida precipita o insucesso. Sendo variável caso
a caso, os casos históricos apontam para um período temporal de cinco anos como o
tempo mínimo necessário para cultivar uma transição duradoura para a paz.
“As operações de paz são sobre pessoas e percepções” e estas operações “serão
desenvolvidas cada vez mais neste domínio, em vez do terreno”
9
(Mood, 2015: 1).
Assim, na abordagem a este dilema deveremos ter em conta a percepção que a
população local tem da presença da força internacional. Normalmente o “convívio”
entre a população local e a força militar divide-se em três períodos: (i) um primeiro, na
sequência da fase violenta do conflito, em que a população considera a sua presença
fundamental, sobretudo para a criação de condições de segurança. Nesta fase garante-
lhe um apoio incondicional e incentiva a sua ão; (ii) um segundo período, quando a
situação atinge algum grau de estabilidade, em que a população começa a pôr em
causa a necessidade da presença internacional e passa a tolerá-la em vez de a apoiar
incondicionalmente e (iii) a terceira fase, quando a percepção de segurança e de não
retorno ao conflito começa a instalar-se, em que a população começa a olhar para a
força como um elemento intrusivo para os seus interesses (Paris e Sisk, 2009: 85).
As características internas e intrínsecas do território onde se desenrola ou desenrolou o
conflito, fruto da cultura e das agendas dos diversos atores e os interesses geopolíticos
6
Pela análise específica desta variável, o êxito das operações é mais simples de aquilatar, pois o sucesso
na perspetiva militar é facilmente mensurável por estar relacionado com o atingir de objetivos militares,
que integrados dão corpo ao chamado estado final militar (AJP-01(C), 2007: 1-4).
7
Esta conclusão foi sendo posta em causa por outros estudos.
8
Relativamente a este dilema ver também (Newman, Paris, Richmond, 2009: 32).
9
Force Commanders’ Advice to the High-Level Independent Panel on UN Peace Operations. Washington:
ONU. 2015. Robert Mood.
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e geoestratégicos de atores externos, normalmente Estados, são os fatores não
controláveis por quem executa a operação.
Estudos realizados por Segal e Waldman (1998: 198) concluíram que intervenções da
comunidade internacional tiveram mais sucesso no controlo do conflito quando os
atores em disputa tinham a ganhar com o sucesso da própria força de paz. Por outro
lado, a prática parece mostrar que os países contribuidores de tropas devem estar
envolvidos com base nos seus interesses, para assegurar a eficácia da missão (Mood,
2015: 3). Parece aplicar-se uma relação win-win entre os atores locais e a força
multinacional, que representa os seus Estados de origem.
Face à intangibilidade de alguns fatores, a avaliação do sucesso de uma intervenção
nunca atingiu uma base que satisfizesse os diversos intervenientes. Segundo Diehl
(1993: 36), os dois critérios gerais têm a ver com (i) a sua capacidade para dissuadir
ou impedir o uso de violência na área de operações e (ii) com a forma como esta
intervenção facilita a resolução do conflito. São critérios essencialmente intangíveis. No
entanto, o grau de sucesso pode ir sendo medido através da verificação de métricas
tangíveis relacionadas com os efeitos a atingir em determinados pontos no espaço e no
tempo. Os níveis de desarmamento, a desmobilização de antigos combatentes e a sua
reintegração na sociedade, bem como a forma como as autoridades locais garantem
segurança, são exemplos de aspetos que é possível ir mensurando ao longo do
decorrer da operação
10
(Newman, Paris, Richmond, 2009: 29).
2. A aproximação militar à gestão e resolução de conflitos
2.1. A aproximação clássica às operações de paz
Na sua origem, as operações de paz envolviam quase exclusivamente a utilização de
forças militares. Estas eram interpostas entre as partes para monitorizar cessar fogos,
facilitar a retirada de tropas e atuar como tampão entre países, em situações muito
voláteis (Newman, Paris, Richmond, 2009: 5). Assim, as operações de paz tradicionais
eram estabelecidas quando um qualquer acordo era celebrado e garantiam o necessário
apoio físico e politico que permitisse o seu cumprimento pelas partes (Zartman et al,
2007: 433).
Entre 1988 e 1993 começou uma tripla transformação, envolvendo mudanças
qualitativas, quantitativas e normativas no que concerne ao papel e âmbito de
aplicação das operações da paz (Bellamy, Williams, Griffin, 2004: 92). O seu campo de
ação alargou-se e passou a envolver a combinação de uma grande panóplia de tarefas
(Newman, Paris, Richmond, 2009: 7). Neste contexto, a ONU
11
e a OTAN
12
, que em
conjunto representam a esmagadora maioria do pessoal militar projetado em
“operações de paz” (Jones, 2009: 3), desenvolveram bases doutrinárias específicas
para estas operações, que permitissem uma operacionalização dos conceitos e uma
abordagem mais eficaz e flexível às mesmas. Fizeram-no adotando uma “aproximação
clássica”.
10
Outros efeitos, menos tangíveis, também podem ser analisados, tais como a reconciliação entre as partes
e a evolução da resolução do conflito (Newman, Paris, Richmond, 2009: 29).
11
Através da Agenda para a Paz (A/47/277 - S/24111, de 17 de Junho de 1992).
12
Através da Doutrina das Operações de Apoio à Paz.
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Esta aproximação conceptual e normativa às operações paz está associada ao ciclo de
vida de um conflito, com a sua fase de escalada, normalmente não violenta, a sua fase
violenta e, posteriormente, a fase de retorno a paz, também não violenta. A
estruturação da resposta teve por base uma conceção sequencial e assim, enquanto
atividades não concorrentes, o emprego dos mecanismos individualizados previstos,
quer pela ONU
13
, quer pela OTAN
14
, foi bem tipificado, permitindo enquadrar
conceptualmente a utilização da força militar, com base num processo genérico que
tem sido seguido como modelo
15
. Isto é, de acordo com a situação assume-se uma
tipologia de operação e os meios e as medidas a serem usados bem com o
enquadramento para a sua utilização. Ao mesmo tempo, sempre que se assume
transitar de um tipo de operação para outro, altera-se este enquadramento, podendo
mesmo ser alterado o mandato e os termos de referência da missão.
Genericamente, a organização baseia-se na seguinte tipologia de operações: prevenção
de conflitos, imposição de paz, restabelecimento da paz, manutenção da paz e
consolidação da paz.
Fig 2 O Processo da Resolução de Conflitos
Fonte: Adaptado de BRANCO, Carlos
et al
16
A prevenção de conflitos significa a eliminação das causas de um conflito previsível
antes de este ocorrer de forma aberta (Zartman at al, 2007: 13). Envolve a aplicação
de medidas externas de pressão diplomática, económica e militar, sendo mesmo
possível a intervenção militar para sustentar um esforço de prevenir a eclosão violenta
do conflito ou parar a sua escalada (MCDC, 2014: 70) ou reacendimento
17
. Os meios
13
A referência é ainda a Agenda para a Paz (A/47/277 - S/24111, de 17 de Junho de 1992) e
posteriormente o Suplemento da Agenda para a Paz (A/50/60 - S/1995/1, de 03 de janeiro de 1995).
14
A doutrina em vigor para as Operações de Apoio à Paz encontra-se vertida no AJP - 4.3.1 de Julho de
2001 e no AJP - 4.3, de Março de 2005, embora, como já foi referido, se encontrem ambos em revisão.
15
Para uma abordagem conceptual mais abrangente consultar as referências da ONU e OTAN referenciadas
anteriormente.
16
Adaptado de BRANCO, Carlos, GARCIA, Proença, PEREIRA, Santos (Org), op. cit.: 139.
17
Estas medidas são normalmente aplicadas de acordo com o Cap. VI da Carta da ONU. No entanto, e no
caso de intervenção armada, as forças militares podem ser empregues para dissuadir e coagir as partes,
o que requer um mandato mais robusto com base no Cap. VII.
IP
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militares focalizam-se normalmente no apoio aos esforços políticos e de
desenvolvimento para mitigar as causas do conflito. Deve basear-se na recolha de
informações e garantir um sistema de alerta pido que vigie o desenvolvimento das
situações de crise em tempo real e avalie as possíveis respostas, a fim de aplicar as
mais rápidas e adequadas a cada situação
18
(Castells, 2003: 31).
Se as medidas de prevenção forem bem-sucedidas, a situação de crise reduz a sua
intensidade, retornando-se a um determinado grau de estabilidade. Se elas falharem e
a linha da eclosão da violência for quebrada, haverá um conflito violento (MCDC, 2014:
70). Quando isto acontece, o conflito terá que ser gerido através da eliminação da
violência e dos meios com ela relacionados (Zartman et al, 2007: 13).
Se o contexto estabelece como objetivo compelir, coagir e persuadir uma ou várias
fações a cumprirem com uma determinada modalidade de ação, estamos perante uma
operação de “imposição da paz”. Esta situação ocorre quando não existe o
consentimento estratégico por parte dos atores principais (Dobbie, 1994: 122). Neste
caso, a atuação envolve a aplicação de uma gama de medidas coercivas, incluindo o
uso da força militar (Capstone, 2008: 18) ao nível operacional. Assim, apoiados num
mandato, os meios militares serão empregues, se necessário tomando o partido de um
dos beligerantes e mantendo-se no terreno mesmo contra a vontade das partes
(Baptista, 2003: 742).
No entanto, apesar do recurso à força, é fundamental reiterar que o objectivo nunca
será o derrotar ou destruir os beligerantes (Pugh, 1997: 13), obtendo desta forma uma
vitória militar, mas sim obrigar, coagir e persuadir as partes a cumprir determinadas
condições, de acordo com um objetivo político (AJP-3.4.1, 2007: 1-11). O objetivo
destas operações é uma questão decisiva, pois estabelece a separação entre a guerra e
a imposição de paz (Branco, Garcia e Pereira, 2010: 142).
Estas ações são autorizadas para restaurar a paz em situações onde o CSNU considera
a existência de uma ameaça à paz, rutura da paz ou ato de agressão (Capstone, 2008,
p.18). No caso das operações lideradas pela ONU, dado que esta não tem capacidades
próprias, são autorizadas outras entidades a usar a força em seu nome (Bellamy,
Williams, Griffin, 2004: 148), nomeadamente a OTAN, a UE ou coligações de boa
vontade organizadas especificamente para o efeito. Face à complexidade desta
tipologia de operações, a Força deve estar organizada, equipada e treinada, dispondo
de uma capacidade de combate coercitiva para impor o cumprimento dos aspetos para
a qual foi mandatada e na condução da operação, a ligação entre os objetivos políticos
e militares deve ser extremamente próxima (AJP-3.4.1, 2007: 1-11).
A “manutenção da paz” é projetada para preservar uma paz frágil, na sequência do fim
da fase violenta de um conflito, para auxiliar na implementação dos acordos
estabelecidos entre as partes
19
(Capstone, 2008: 18). “Segue-se normalmente a
cessar-fogos, os quais, por natureza, são voláteis e precários” (Branco, Garcia e
18
Embora as atividades militares devam estar vocacionadas para alcançar as exigências políticas e de
desenvolvimento, normalmente recaem nas seguintes categorias: (i) aviso prévio; (ii) vigilância; (iii)
treino e reforma do sector de segurança; (iv) projeção preventiva e (v) na imposição de sanções e
embargos” (AJP-3.4.1, 2007: 1-9).
19
Os especialistas na resolução de conflitos defendem que a presença de forças militares após a assinatura
de um acordo é fundamental e que se a sua presença não se materializar de forma efetiva num prazo
entre seis a doze semanas após esta assinatura, o acordo poderá perder a sua eficácia (Durch, 2006:
589).
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Pereira, 2010: 139) e ocorre, por norma, com o consentimento estratégico das partes
(Dobbie, 1994: 122).
Ao longo dos anos, a manutenção da paz tem evoluído a partir de um modelo
essencialmente militar após guerras interestatais, para incorporar um modelo complexo
de muitos elementos militar, policial e civil trabalhando juntos para estabelecer as
bases para uma paz sustentável (Capstone, 2008: 18). As novas circunstâncias
obrigaram ao estabelecimento de operações mais robustas, recorrendo ao Capítulo VII
da Carta das NU e garantindo “todos os meios necesrios” para abordar a situação
(Zartman et al, 2007: 433). No entanto, este uso da força é restringido ao nível tático
das operações, para resolver incidentes ou perante situações pontuais de não
cumprimento tático dos termos dos acordos. Visa fundamentalmente facilitar a ação
diplomática, a mediação do conflito e assegurar condições de segurança básicas para
se obter uma solução política (Branco, Garcia e Pereira, 2010: 141). A manutenção da
paz apoia-se, assim, no pressuposto de que a ausência de combates entre as partes irá
permitir que estas distendam a tensão existente e seja permitida a condução de
negociações (Diehl, 1994: 37).
O “restabelecimento da paz” inclui medidas para abordar o conflito e envolve
geralmente a ação diplomática para levar as partes antagonistas a negociar um acordo
(Capstone, 2008: 17) e por definição não contempla o emprego de forças militares. No
entanto, o uso ou ameaça de uso da força tem sido uma prática em reforço destes
esforços
20
(Zartman et al, 2007: 435).
Quando a gestão do conflito é executada com sucesso, o nível de coação da força
externa vai decaindo à medida que a situação se estabiliza, permitindo a eventual
retirada da força militar e o início do processo de consolidação da paz (MCDC, 2014:
71). A “consolidação da paz”
21
, quando o conflito já ultrapassou a fase violenta,
envolve uma gama de medidas orientadas para reduzir o risco de reacendimento,
reforçando as capacidades nacionais em todos os níveis. Neste cenário, as forças
militares desempenham as suas tarefas depois de ter sido obtida uma solução política e
em colaboração com as entidades locais, garantem as condições de segurança para o
trabalho da componente civil e fornecem o apoio necessário para que as agências civis
possam dirimir as causas profundas e estruturais do conflito (Zartman et al, 2007:
436).
As atividades militares devem ter grande visibilidade e impacto, demonstrando
benefícios imediatos da sua ação. O seu emprego exaustivo deve, no entanto, ser
ponderado de modo a assegurar que os ganhos de curto prazo não sejam contra
produtivos às estratégias de desenvolvimento de longo prazo e face ao perigo de se vir
a criar dependência deste apoio. Como vimos anteriormente, uma presença mais forte
ou mais fraca junto das autoridades locais é um dos dilema a ter em consideração na
condução desta tipologia de operação (Newman, Paris, Richmond, 2009: 32).
20
O conceito proposto pela OTAN é muito semelhante ao da ONU, mas mais robusto (Branco, Garcia e
Pereira, 2010: 135), pois não exclui o apoio militar à ação diplomática através do emprego direto ou
indireto de meios militares (AJP-3.4, 2005: 3-4), e do apoio de planeamento e de estado-maior. São
exemplos o emprego no Afeganistão, Camboja, Chipre e Moçambique, entre outros.
21
É também utilizada a expressão “construção da paz”.
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A utilização da força militar na gestão e resolução de conflitos
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2.2. O novo milénio e o aumento da complexidade nas intervenções
Na sequência do fim da guerra fria e após um declínio geral na incidência de conflitos
armados, os conflitos intra Estados constituem a grande maioria das guerras de hoje
(Capstone, 2008: 21). Estes conflitos podem assumir diversas formas, destacando-se
os conflitos interétnicos, os conflitos secessionistas e autonómicos e a guerra pelo
poder, que normalmente assume a forma de guerra civil (Wallensteen, 2004: 74).
Esta situação provocou uma alteração profunda na abordagem ao processo de gestão e
resolução dos conflitos e o CSNU começou a trabalhar mais activamente para promover
a contenção e a resolução pacífica de conflitos regionais. Desde o início do novo
milénio, o número de militares, policias e pessoal civil envolvido em operações de paz
das Nações Unidas atingiu níveis sem precedentes e as operações, e, para além de
crescerem em dimensão, tornaram-se cada vez mais complexas (Capstone, 2008: 6).
Elas enfrentam desafios significativos, pois o implementadas frequentemente em
ambientes inseguros, muitas vezes não tendo os recursos necessários para
implementar o seu mandato (Ramos-Horta, 2015: 1). Esta realidade começou por ser
identificada no Relatório Brahimi
22
(2000, §12), que referia que as operações de paz se
modificaram rapidamente das tradicionais “operações de matriz militar de observação
de cessar-fogo e separação de fações, após um conflito interestatal
23
, para
incorporarem um complexo modelo com muitos elementos, civis e militares,
trabalhando em conjunto para construírem a paz, no perigoso rescaldo de guerras
civis”.
A transformação do ambiente internacional deu assim origem a uma nova geração de
operações de cariz "multidimensional", empregando uma mistura de capacidades
militares, policiais e civis (Capstone, 2008: 22). Estas passaram a interagir e trabalhar
no mesmo teatro de operações, quase sempre sem limitações espaciais entre si. Desta
forma, o leque de atores envolvido passou a ser muito amplo, com diferentes
objectivos, entendimentos, capacidades e motivações. Estes atores podem dividir-se,
coligar-se, aliar-se ou mudar os seus padrões e objectivos com grande frequência
(Durch, 2006: 576). Cada um deles, de acordo com a sua agenda própria, pode apoiar,
ser neutro ou opor-se à própria operação de paz, podendo ainda estas posições variar
com o tempo ou dentro das organizações onde se encontram inseridos (AJP-01(C),
2007: 1-4).
A complexidade aumentou ainda mais quando passámos a presenciar um número
crescente de operações a ser conduzidas onde não existe nenhum acordo político ou
onde os esforços para os estabelecer ou restabelecer têm vacilado. As forças operam
frequentemente em ambientes remotos e austeros, enfrentando hostilidades
permanentes por parte dos atores que não estão dispostos a negociar, estando
inclusivamente interessados em prejudicar a presença da Força internacional,
introduzindo restrições na sua capacidade de operar (Ramos-Horta, 2015: 5). Esta
realidade apresentou-se como um grande desafio e, como se referia no Relatório
Capstone (2008: 20), “a aplicação da prevenção de conflitos, da imposição paz, do
restabelecimento e da manutenção da paz raramente ocorrem de forma linear ou
sequencial. Com efeito, a experiência demonstra que estas devem ser vistas de forma a
22
Report of the Panel on United Nations Peace Operations, UN Doc. A/55/305-s/2000/809, de 21 de Agosto
de 2000.
23
A primeira missão de manutenção de paz foi a operação implementada pela UNTSO, autorizada em 1948
para supervisar os acordos de cessar-fogo entre Israel e os vizinhos árabes (Zartman et al, 2007: 436).
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complementarem-se e a refoar-se mutuamente. O uso fragmentado ou isolado de
cada uma impede a abordagem integrada necessária para abordar as causas do conflito
para, desse modo, reduzir o risco de reacendimento do conflito”.
Esta situação passou a ter fortes reflexos na abordagem à gestão e resolução de
conflitos, pois, ao contrário do passado, em que o Capitulo VI
24
servia de base à
maioria das operações (Capstone, 2008: 13), com o novo milénio a grande maioria das
forças militares e policiais projetadas em operações passaram a atuar ao abrigo do
Capitulo VII da Carta
25
(Durch e England, 2009: 12). Segundo Howard (2008: 325), a
execução suportada no Capítulo VII reflete a prontidão do CSNU para garantir que os
acordos são implementados, se necessário, com recurso à força. Desta forma, e como
mostra a evolução doutrinária da OTAN e de alguns Estados
26
, parece que os velhos
muros que anteriormente segregavam as operações de paz das operações de combate
começaram a desmoronar-se e isto alterou o paradigma das “operações de paz”
tradicionais (Durch e England, 2009: 15). A actuação da Força começou a apontar para
a execução concorrente de um conjunto de actividades de prevenção do conflito,
intervenção no conflito e regeneração e sustentação após o conflito, para se atingir o
estado final militar pretendido (AJP-3.4.1 (A), 2007: 1-5). Esta concorrencialidade das
acções depende da situação, sobretudo dos avanços e recuos do processo e poderá ser
representada com o gráfico que se apresenta.
Fig. 3 A concorrência das actividades nas operações de paz
.
Fonte: Adaptado de AJP-3.4.1(A) (2007), op. cit.: 1-7)
A prevenção requer ações para monitorizar e identificar as causas do conflito e atuação
para prevenir a ocorrência, escalada e reinicio das hostilidades onde o instrumento
militar deverá ser utilizado em projeção dissuasiva, estabelecendo uma presença
24
No entanto, segundo o Relatório Capstone (2008: 13), o CSNU não precisa de se referir a um capítulo
específico ao aprovar uma resolução que autoriza a implantação de uma operação de manutenção da paz,
nunca tendo, inclusivamente, invocado o capítulo VI.
25
Em 2008 já representavam cerca de 80% do tal das forças projetadas.
26
Casos dos EUA, Reino Unido, França ou Índia, por exemplo.
Conflict Prevention
ends, Mandated
becomes self-sustaining
‘Peace’
SustainRegenerateIntervene
Prevent
Conflict
Conflito
Prevenção
Intervenção
Regeneração
Sustentação
Tempo
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avançada para dissuadir spoilers (AJP-3.4.1 (A), 2007: 1-5). Seguindo a sequência de
"formatar, intimidar, coagir e intervir
27
", a força militar torna-se mais explícita, à
medida que a situação se agrava (MCDC, 2014: 71).
A intervenção implica adotar uma ação militar explicita e deve envolver a atuação
coordenada com actividades políticas, economias e humanitárias (AJP-3.4.1 (A), 2007:
1-5). Esta pode ser implementada antes de a linha de crise ser transgredida, como uma
ação preventiva, ou depois de o ser, a fim de impedir as partes de continuar os
combates (MCDC, 2014: 71).
A regeneração deve iniciar-se o mais cedo possível, começando pelo setor de
segurança e as necessidades que necessitam de uma intervenção imediata. A tarefa
primária das forças militares será a organização, o treino e o equipamento das “novas”
forças de segurança locais até que estas sejam autossuficientes na execução da sua
missão (AJP-3.4.1 (A), 2007: 1-5).
A sustentação é o conjunto de atividades de apoio às organizações locais para manter
ou melhorar o estado final definido no mandato. Ocorre quando as estruturas, forças e
instituições locais começam assumir de forma sustentada as responsabilidades sobre o
território e a população (AJP-3.4.1 (A), 2007: 1-5).
A paz duradoura não é alcançada nem sustentada por compromissos militares e
técnicos, mas através de soluções políticas (Ramos-Horta, 2015: 11). Assim, apesar do
aumento da complexidade das intervenções, a força militar continua a ser utilizada
para estabelecer um ambiente de estabilidade e segurança que permita a atuação dos
restantes atores. Estes estão normalmente em melhores condições de explorar o
sucesso das ações táticas da força militar, as quais para terem um valor mais que
passageiro têm que ser integradas num plano mais abrangente (Smith, 2008: 428).
3. O emprego da força militar
3.1. Os princípios para a utilização da Força
O emprego de forças militares nas operações que visam a gestão e resolução de
conflitos distingue-se dos restantes tipos de operações pela aplicação de um conjunto
de princípios, nos quais se destacam três que estão interligados e se reforçam
mutuamente (Capstone, 2008: 31): o consentimento, a imparcialidade e as restrições
impostas ao uso da força.
O consentimento das principais partes em conflito fornece a necessária liberdade de
ação estratégica, política e física, para que os meios projetados possam desempenhar
as suas funções. No entanto, o consentimento dos atores principais não implica ou
garante necessariamente que haverá também consentimento a nível local,
particularmente se estes estão divididos internamente ou têm sistemas de comando e
controle frágeis. Por norma, o nível de aceitação por parte dos atores envolvidos no
conflito será diferente e deverá ir variando no tempo e no espaço
28
. Uma situação de
27
'Formatar’ significa influenciar o ambiente em que operam os atores. 'Dissuadir' significa oferecer uma
ameaça implícita de ação se o conflito escalar. 'Coagir' significa tornar explícita essa ameaça. 'Intervir'
significa tomar acção militar (MCDC, 2014: 71).
28
No tempo, na perspectiva da permanência ou fragilidade do consentimento, e no espaço,
“horizontalmente ao longo de todos os elementos da população e verticalmente dentro das hierarquias
das partes em relação ao conflito” (AJP-1 (D), 2010): 1-9).
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consentimento generalizado torna-se ainda menos provável em configurações voláteis,
caracterizadas pela presença de grupos armados não controlados por qualquer das
partes ou pela presença de outros spoilers (Capstone, 2008: 32). Quando esta situação
acontece e não havendo uma linha de ação comum entre as lideranças e os grupos
locais, esta não coerência de posições poderá ter como resultado a não concordância de
alguns desses grupos, podendo estes tentar restringir a liberdade de ação da Força, ou,
no limite, atuar mesmo contra a sua presença (Oliveira, 2011: 98). Perante a ausência
de consentimento, o principal risco reside na possibilidade da Força de paz se tornar
parte do conflito (Dobbie, 1994: 130).
O consentimento pode assim constitui-se numa relação muito complexa entre a Força
de paz e os diversos atores, podendo existir ao nível estratégico e ser mais frágil ao
nível tático ou vice-versa (Oliveira, 2011: 98). Este nível de consentimento poderá
estabelecer o enquadramento que separa uma operação de manutenção de paz de uma
operação de imposição de paz (Dobbie, 1994: 145). Por outro lado, a falta de
consentimento ou o consentimento passivo poderão ser transformados em apoio ativo
por via da credibilidade e legitimidade da atuação da Força (AJP-1 (D), 2010): 1-9).
Segundo Durch e England (2009: 15), o melhor gerador do consentimento local será
uma atuação operacional baseada numa implementação firme mas justa das medidas
destinadas a restabelecer as condições de vida das populações e um ambiente seguro.
Os conflitos contemporâneos tendem a ser internos e a legitimidade das intervenções
internacionais é, por vezes, questionável (Zartman et al, 2007: 8), influenciando a
obtenção do consentimento. Assim, “por norma as operações de paz funcionam melhor
quando, para além de autorizadas internacionalmente, as forças a projetar são também
convidadas a participar na operação nos termos dos acordos entre as partes,
oferecendo-lhe assim uma legitimidade quer internacional, quer local” (Durch e
England, 2009: 13). Nas situações em que não existe um acordo entre as partes, pode
ser exigida, como um último recurso, o emprego efetivo da força (Capstone, 2008: 33).
A força militar terá assim que se apoiar nos termos do mandato e ser estruturada de
forma suficientemente robusta e adequada, podendo ter que adotar uma postura de
combate temporária, de forma a derrotar a oposição de um ator (Durch e England,
2009: 13).
Sendo que o consentimento nunca é absoluto, a força pode assim ser usada para
dissuadir ou compelir. No entanto, este uso terá que ser feito com imparcialidade
(Pugh, 1997: 14). Esta será balizada pelos prinpios da Carta da ONU e do mandato,
que deverá ser ele próprio baseado nos mesmos princípios, apesar de permitir alguma
iniciativa às “forças de paz” em ambientes de maior perigosidade (Durch e England,
2009: 12). Esta iniciativa é a grande diferença entre a imparcialidade e a neutralidade.
Ao contrário desta última, a imparcialidade requer julgamento em relação a um
conjunto de princípios e aos termos do mandato (AJP-3.4.1 (A), 2007: 3-6). Esta
conduta da força de paz é muito complexa, pois qualquer ato seu será visto de forma
diferente pelas partes, que tenderão a valorá-lo de acordo com a sua própria agenda.
Isto implica que o uso efetivo, ou ameaça de uso da força, contra uma das partes
deverá ser apenas materializado quando esta não está a cumprir os termos acordados,
por ação ou inação (Capstone, 2008: 33).
Pela própria natureza destas operações, a restrição no uso da força esta sempre
presente e o nível de coação a empregar deverá ser proporcional e apropriado face ao
objectivo especifico a atingir. Os meios, a forma e as circunstâncias como podem ser
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usados estão normalmente definidos e detalhados nas Regras de Empenhamento (ROE)
para a operação (AJP-3.4.1(A), 2007: 3-8). Estas são consideradas fundamentais e são
desenhadas para garantir, dentro da extensão possível, a utilização efetiva da força
pela componente militar, de acordo com o enquadramento legal e a política definida.
Perante o novo contexto estratégico e operacional, no Relatório dos comandantes de
operações da ONU (Mood, 2015: 2), estes são do entendimento que “os princípios do
consentimento, da imparcialidade e a não utilização da força devem permanecer como
base orientadora para as operações de paz, mas a complexidade do contexto tem
levado a que o tradicional entendimento desses princípios deve ser equacionado”.
Assim, o consentimento não deve ser exigido quando o mandato, a missão ou civis
estão ameaçados. Ao contrário da implementação do mandato e da proteção de civis, a
imparcialidade não é um fim em si mesmo. O princípio da não utilização de força é
tradicionalmente aplicado com duas excepções: o uso da força em legítima defesa e o
uso da força em defesa do mandato. Mas estas exceções estão a tornar-se cada vez
mais relevantes nas operações de paz contemporâneas. O uso da força em legítima
defesa será empregue independentemente do tipo de operação e não é controverso. No
entanto, a disponibilidade e os recursos para tal emprego tornaram-se uma grande
preocupação. O uso da força para defender a implementação do mandato e civis
envolve muito mais polémica. Howard (2008: 13) defende inclusivamente que as
operações de imposição de paz, mandatadas ao abrigo do Capítulo VII, em que as NU
podem usar a força em conflitos de natureza intraestatal, poderão criar situações de
incompatibilidade frequentemente com a imparcialidade e consentimento.
A crescente complexidade e “robustecimento” na execução tem levado a que as
operações de paz sejam abordadas como “operações militares” em sentido mais lato,
admitindo-se que possam ser conduzidas e enformadas por princípios antes reservados
para as operações de combate convencionais. Com este novo paradigma, a
aproximação tática a todas as operações militares passou a ser efetuada com base na
aplicação de um conjunto de princípios comuns
29
(AJP-01(C), 2007: 2-23). A situação
particular ditará a ênfase dada a cada um deles (AJP-1 (D), 2010: 1-6).
3.2. Os desafios para o emprego da força militar
As operações de paz atuais são implementadas para executar uma elevada panóplia de
atividades. Pretende-se que tenham um papel ativo na gestão de conflitos em situações
de conflito violento (Ramos-Horta, 2015: 29) e muitas vezes, simultaneamente,
facilitar o processo político através da promoção do diálogo nacional e reconciliação,
proteger os civis, ajudar o desarmamento, desmobilização e reinserção dos
combatentes, apoiar a organização de eleições, proteger e promover os direitos
humanos e ajudar a restaurar o estado de direito (Capstone, 2008: 6). Este
enquadramento introduz um conjunto de fatores que influenciam o emprego da força
militar, por via do desequilíbrio e tensões existentes entre os diversos atores internos e
externos, assumindo-se como um grande desafio para a disponibilização, projeção e
utilização de meios militares.
29
Um outro conjunto de princípios como a segurança, a credibilidade, a transparência, o respeito mutuo e a
integração cultural, a legitimidade, a acção proactiva e a liberdade de acção deverão também estar
presentes no emprego das forças militares nas operações de paz (AJP-3.4.1(A), (2007), op. cit.: 3-9).
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O primeiro fator, de ordem externa, resulta do processo de lançamento da operação e
geração da própria Força. Embora a decisão de lançar ou apoiar operações de paz
resida nas organizações internacionais
30
ou coligações de boa vontade, dado que estas
não têm forças militares próprias, a missão secumprida com os recursos oferecidos
pelos Estados-Membros ou participantes (MCDC, 2014: 72). Assim, são estes que, em
última análise, impõem um conjunto de condições e restrições políticas para a sua
execução.
Estando em causa questões humanitárias ou de segurança internacional, ao contrário
das guerras em que os soldados defendem os seus compatriotas ou o seu país, é mais
difícil para os deres aceitarem e justificarem à sua opinião pública a utilização de
forças militares que admitem baixas (Walzer, 2004: 34). Desta forma, os cálculos de
cada Estado relativamente ao risco para as suas tropas, os custos de sustentação e o
apoio interno para a participação na operação têm um grande impacto na
disponibilização de forças e na coerência da missão (Durch e England, 2009: 16). Esta
situação tem reflexos decisivos no processo de organização e geração da Força, com os
decorrentes problemas para o lançamento
31
e a sustentação
32
da missão (MCDC, 2014:
85).
Cada Estado tem a sua agenda ou interesses próprios que pretende salvaguardar
quando assume intervir no processo de resolução de um conflito. Esta envolvente torna
as operações de paz relativamente frágeis em termos de unidade de comando e
sobretudo de unidade de ação (Durch e England, 2009: 13). Este é o segundo fator de
ordem externa que influencia o emprego de forças militares. Apesar da aproximação
integrada pretendida, raramente os atores aceitam estabelecer relações de comando
que lhe possam retirar sua liberdade de ação, optando por uma solução de cooperação,
trocando a relação de comando pela coordenação de ações. É uma solução que
apresenta dificuldades, pois, como defende Mood (2015: 1),
“as missões integradas em ambientes complexos exigem uma
única cadeia de comando. Unidade de comando (…) é fundamental
para a implementação do mandato. Um conceito um mandato
uma missão!”.
Em termos de fatores internos, as atuais operações multidimensionais implantadas na
sequência de um conflito interno apresentam um vasto conjunto de desafios. A
capacidade das autoridades locais para proporcionar segurança à sua população e
manter a ordem pública é muitas vezes débil e a violência pode ainda estar presente
30
ONU, UE ou OTAN.
31
Neste aspeto destacam-se: (i) os atrasos na geração e projeção da força, levando a dificuldades de
implementação da missão; (ii) a fraca qualidade das tropas, por estarem inadequadamente treinadas e
equipadas; (iii) as incompatibilidades entre tropas e equipamentos (MCDC, 2014: 85).
32
Verificam-se, em resumo, os seguinte problemas com a sustentação da operação: (i) potencial de
combate da Força insuficiente simplesmente porque não há tropas suficientes para a missão, de acordo
com o planeado, pobre interoperabilidade entre diferentes contingentes as tropas vêm muitas vezes de
um número de diferentes países, pelo que mesmo que falem a mesma língua, geralmente operam dentro
de diferentes culturas militares; pode também haver tensões entre diferentes contingentes; (iii)
coordenação com atores civis, por exemplo, organizações não-governamentais ou funcionários do
governo; (iv) tropas e comandantes da ONU com falta de formação específica; (v) dificuldade geral de
alcançar unidade de esforço, tanto dentro da missão e, mais amplamente, com outros atores no teatro e
internacionalmente (MCDC, 2014: 85).
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em várias partes do território. A sociedade pode estar dividida ao longo de linhas
étnicas, religiosas e regionais e podem ter sido cometidas violações graves dos direitos
humanos durante o conflito (Capstone, 2008: 22). As dificuldades aumentam
exponencialmente quando há pouca ou nenhuma paz para manter, por ausência de um
processo de paz viável ou por o processo de paz ter sido efetivamente quebrado
(Ramos-Horta, 2015: 29).
Todas estas vertentes enformam um ambiente operacional que cria o desafio aos
militares para desenvolver as capacidades adequadas para poderem dar um contributo
credível. Para serem eficazes, os comandantes da componente militar devem estar
envolvidos no processo político para poderem traduzir os objetivos políticos na ação
militar, o que permite aumentar a compreensão dos objetivos complementares e a
responsabilidade coletiva a nível de toda a operação. Compreendido o ambiente
operacional específico, a componente militar deve ser estruturada “à medida” para a
operação espefica, de acordo com as condições estabelecidas no mandato, a situação
e o terreno (Mood, 2015: 5). Esta aplicação “à medida” cria ela própria o desafio à
componente militar para estar preparada para desenvolver e executar a vasta panóplia
de tarefas que complementam ou são complementadas pela ação de outros atores.
Segundo a MCDC
33
(2014: 116), estas tarefas podem ser conceptualmente organizadas
nas seguintes quatro áreas: (i) as tarefas focais aquelas que se enquadram nas
áreas onde a componente militar está envolvida em atividades relevantes; (ii) as
tarefas padrão aquelas que podem cair no campo de atuação dos militares, mas
podem ser executadas por outros, se não fossem consideradas as circunstâncias
prevalecentes; (iii) as tarefas em aperfeiçoamento tarefas em áreas onde, neste
contexto, é necessário desenvolver capacidades para contribuir de forma efetiva para o
esforço coletivo; e (iv) as tarefas novas aquelas que vão surgindo para as forças
militares enquadradas neste âmbito.
Apesar de todos estes desafios de contexto, o mais sério resulta da falta de vontade e
capacidade para exercer a autoridade, implícita e fornecida, para empregar
efetivamente a força quando necessário (Mood, 2015: 2). Como refere Smith (2008:
288), “a falta de vontade política para empregar a força em vez de simplesmente
efectuar o deployment das forças” é um dos problemas que vem caracterizando as
recentes intervenções, especialmente em situações de maior risco. Esta utilização
parece ter sempre em consideração a isenção de riscos e as operações parecem apoiar-
se essencialmente na sua presença dissuasiva e no uso de armamento não letal
(Marten, 2004: 125). Uma das formas que os países utilizam para materializar esta
falta de vontade política é pela introdução de caveats
34
. Estes têm sido muito criticados
pelos comandantes no terreno pois referem que os caveats reduzem a eficácia e
aumentam os riscos, devendo inclusivamente haver tolerância zero para os caveats
ocultos (Mood, 2015: 4).
3.3. A utilização efetiva da força
Na prevenção, gestão e resolução de conflitos, o emprego de forças militares pode ser
justificado: (i) pelo risco onde a situação de segurança apresenta um desafio para
33
Multinational Capability Development Campaign.
34
São restrições explícitas ao emprego operacional da força. A expressão faz parte do léxico normal de
quem trata destas questões.
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aqueles que não têm a capacidade de se protegerem e o emprego de militares pode ser
necessário para fornecer proteção a pessoas ou propriedade; (ii) pela prontidão
quando os meios militares são os únicos capazes de responder a uma necessidade no
tempo exigido; (iii) pelo alcance quando apenas os militares têm a capacidade de
implantar uma operação a uma determinada distância com a sustentação logística
adequada; (iv) pela disponibilidade de efetivos em situações em que são os únicos
que têm imediatamente o efetivo disponível que lhe permita intervir; (v) por questões
de “nicho” — quando têm especialistas e capacidades que podem ser necessárias e que
não estejam disponíveis noutras organizações (MCDC, 2014: 117). Assume assim
relevância um elevado leque de capacidades, que ultrapassaram as tradicionais
capacidades de combate. No entanto, o emprego efetivo da Força, em que esta utiliza
as suas capacidades de combate, requer um enquadramento mais restritivo e a
utilização efetiva da força armada ao abrigo da lei internacional, isto é, nos termos
previstos no Capítulo VII da Carta das NU, é uma das raras situações em que este
emprego é considerado legítimo (Zartman et al, 2007: 423).
Este enquadramento tem apresentado algumas dificuldades na implementação das
missões. Como se refere no relatório Capstone (2008: 14), relacionar uma operação de
paz com um capítulo específico da Carta pode ser enganador para efeitos de
planeamento operacional, treino e implementão de mandato e o CSNU, ciente desta
situação, tem garantido mandatos "robustos", autorizando a Força de paz a "usar todos
os meios necessários". No entanto, embora no terreno possam por vezes parecer
semelhantes, uma operação de manutenção da paz robusta não deve ser confundida
com a imposição de paz, nos termos estritos do Capítulo VII da Carta. A manutenção
da paz robusta envolve o emprego da força a nível táctico, com a autorização do CSNU
e o consentimento da nação anfitriã e/ou as principais partes envolvidas no conflito. Por
outro lado, a imposição da paz pode envolver a utilização de força militar a nível
operacional, não exigindo o consentimento das partes (Capstone, 2008: 34).
Na execução, como defendia David (2001: 305), os obstáculos passaram a ser
aparentemente mais sérios e complicados. Especialmente ao nível tático, as
dificuldades de circunscrever o emprego efetivo da força têm aumentado
exponencialmente (Capstone, 2008: 19). Assim, segundo Ramos-Horta
35
(2015: 9), os
novos ambientes operacionais exigem muito maior clareza sobre quando e como os
diversos contingentes podem usar a força, em que condições e com que princípios. A
clareza e a especificidade são assim os aspetos chave de um mandato (Diehl, 1994:
72) e a questão é, desta forma, colocada na necessidade de clarificar o emprego
efetivo da força, especialmente na aplicação do princípio da legítima defesa e em
defesa do mandato.
Em termos gerais, o uso efetivo da força é aceitável dentro do princípio da legítima
defesa, nomeadamente através de uma postura preventiva e preentiva, quer em
autodefesa, quer para proteger civis (Ramos-Horta, 2015: 31). A questão da defesa do
mandato é mais complexa. Para além das situações nele previstas, Zartman (2007:
423) defende que o emprego efetivo da força armada é reconhecido e aceite quando
visto em três perspetivas: (i) é o último recurso para manter a lei e a ordem; (ii) é uma
forma decisiva para estabelecer limites claros contra um comportamento inaceitável; e,
35
Referindo-se a missões conduzidas pela ONU.
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(iii) para destruir ou eliminar um “diabo” pernicioso
36
. A postura e o emprego efetivo da
força militar dependerão de cada situação e ameaça específica e o debate está no facto
de existir ou não uma relação direta entre o uso de mais ou menos força e o efeito
correspondente nos objectivos da missão (Mood, 2015: 2). O objectivo é criar
condições que contribuam para a resolução do conflito e o emprego efetivo da força
deve ser “o último e não o primeiro recurso a utilizar” (Durch e England, 2009: 14).
Segundo Ramos-Horta (2015: 33), as diferentes ameaças devem ser abordadas com o
uso apropriado da força, variando da dissuasão à contenção, através de intimidação e
coerção, até ao confronto direto. A força militar deve ser usada de forma precisa,
proporcional e adequada, dentro do princípio da força mínima necessária para atingir o
efeito desejado, ao mesmo tempo sustentando o consentimento para a missão e o seu
mandato. No entanto, o uso efetivo da força numa operação de paz tem sempre
implicações políticas e muitas vezes pode dar origem a circunstâncias imprevistas
(Capstone, 2008: 35), sendo a percepção das populações locais um elemento
fundamental. Defende Mood (2015: 7) que as ações e realizações reais da Força devem
ser a base do núcleo de criação de percepções entre os públicos-alvo onde as ações
falam mais alto do que as palavras. As experiências dos últimos 15 anos têm
demonstrado que, para ter sucesso, uma operação deve ser percebida como legítima e
credível, particularmente nos olhos da população local (Capstone, 2008: 36). Os
soldados e unidades capazes, percebidos nestes termos por todos os grupos locais, são
um dissuasor da violência. No entanto, a dissuasão deve ser produzida pela ação e não
apenas pela simples presença, pois, segundo Mood (2015: 3), nenhuma dose de boa
intenção pode substituir a capacidade fundamental de, quando necessário, empregar de
forma proactiva as forças militares e assim atingir uma dissuasão credível e a
prevenção da violência.
Quando se trata de um ambiente operacional muito fluido, a Força militar necessita de
se mover de uma postura reativa para uma postura proativa de utilização efetiva da
força, para reduzir os riscos para a execução do mandato e minimizar as baixas (Mood,
2015: 4). Isto implica que a capacidade de responder eficazmente às ameaças deve ser
obtida e mantida durante toda da operação e que a Força mantenha a iniciativa
necessária para se adaptar e reagir mais rápido do que as eventuais ameaças ou adotar
as medidas necessárias para manter a coerência na atuação, garantindo uma grande
flexibilidade operacional (Marten, 2004: 152). Mas para ser proativa e deter a
iniciativa, a força militar deve ter os meios necessários. Tropas bem equipadas e
treinadas serão um elemento importante para dissuadir potenciais agressores e reduzir
o nível de violência, pois componentes militares fracas e passivas convidam à agressão
e manipulação, levando a riscos acrescidos para todos e a perda desnecessária de
vidas. As capacidades a projetar devem, assim, refletir os requisitos necessários para
as tarefas mais difíceis, considerando a duração de toda a missão, o que inclui recursos
para superar os desafios causados por atores locais, o terreno e o clima (Mood, 2015:
4).
36
Apesar desta última perspetiva, o objectivo final do uso efetivo da força nunca será a procura da derrota
militar de um ator, mas sim influenciar e dissuadir os atores que atuam contra o processo e os termos do
mandato.
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A utilização da força militar na gestão e resolução de conflitos
António Oliveira
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Considerações Finais
O fim da guerra fria provocou uma mudança profunda na abordagem à resolução de
conflitos. Um conjunto de transformações qualitativas, quantitativas e normativas
alterou o paradigma no que respeita ao papel e âmbito de aplicação do instrumento
militar. Este contexto assumiu-se como uma oportunidade para o seu emprego no
quadro das relações internacionais, sendo a sua utilização considerada legítima,
apropriada e necessária. Esta utilização materializa-se pela execução simultânea ou
individualizada das suas cinco funções estratégicas, podendo estas ser aplicadas de
forma integrada aos diversos níveis de intervenção. O seu campo de ação alargou-se e
foram estabelecidas as suas bases doutrinárias, possibilitando posteriormente uma
operacionalização dos conceitos e uma abordagem mais eficaz e flexível na sua
execução.
A crescente complexidade dos atuais conflitos deixou de permitir uma abordagem linear
para a sua gestão e resolução, exigindo uma aproximação mais diferenciada e
específica. Esta nova geração de operações de paz adotou uma abordagem
multidimensional, ultrapassando a tradicional intervenção para garantir segurança
militar. Apesar desta alteração qualitativa, esta garantia mostra-se, no entanto,
fundamental. Sem segurança as tarefas essenciais dos planos político, social e
económico não podem ser realizadas. A força militar deve, assim, ser empregue de
forma articulada com os restantes instrumentos do Poder, garantindo-se o devido
enquadramento estratégico, que permita definir corretamente o seu papel, face ao
estado final desejado.
Apesar das alterações verificadas e dos desafios criados pelos atuais contextos
estratégico e operacional, a base orientadora para as operações de paz deve continuar
escorada na aplicação de um conjunto de princípios, com especial relevo para os
princípios do consentimento, da imparcialidade e da não utilização da força. No
entanto, a crescente complexidade do contexto tem levado a que o tradicional
entendimento desses princípios seja equacionado. Perante a ameaça a civis, aos termos
do mandato ou à normal condução da missão, o consentimento não deve ser exigido e
a imparcialidade não deve ser um fim em si mesmo. O uso da força em legítima defesa
não levanta controvérsia. No entanto, o seu emprego para a implementação do
mandato e para a defesa de civis é bastante mais polémico. Inclusivamente, este
emprego da força em conflitos de natureza intraestatal pode criar situações de
incompatibilidade com a imparcialidade e consentimento.
A experiência operacional recente e o enquadramento prático das operações têm
provocado um robustecimento na sua abordagem e execução, admitindo-se que
possam ser planeadas e executadas com base em princípios antes reservados à
condução de operações de combate tradicionais. Assim, a força deve ser organizada “à
medida” para a operação específica, de acordo com as condições estabelecidas no
mandato, a situação e o terreno e a aplicação e intensidade dos diversos princípios, são
dependentes da situação em concreto.
Esta nova abordagem às situações em que forças militares são empregues na resolução
de conflitos continua a enfrentar diversos desafios. O mais complexo prende-se com o
emprego efetivo da força, no que concerne às suas capacidades de combate.
Especialmente em situações de maior risco, parece faltar vontade política para, depois
de efetuar o deployment das forças, garantir o seu emprego efetivo, quando
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necessário. A introdução de caveats é uma das formas que os Estados utilizam para
concretizar esta falta de vontade política e que tem criado diversos constrangimentos
ao normal desenvolvimento das operações.
Quando a operação se carateriza por um ambiente operacional muito fluido, para
minimizar as baixas e reduzir os riscos para a implementação do mandato, é
fundamental que a componente militar possa adoptar uma postura proativa de
utilização efetiva da força. Esta componente deve, assim, ver garantidas as condições,
externas e internas, que permitam o emprego efetivo das suas capacidades de
combate, para se qualificar como um instrumento verdadeiramente útil neste âmbito.
Externamente, estas condições têm com principal base o Capítulo VII da Carta,
garantindo-lhe a legitimidade formal e a vontade dos Estados contribuidores com forças
militares em projetar os meios adequados e com o enquadramento e arranjos de
comando que permitam o seu emprego operacional efetivo. Mas para que a
componente militar seja proactiva e detenha a iniciativa, ela deve garantir também um
conjunto de condições internas, que passam essencialmente pela sua coerência
organizacional interna, a disponibilidade e interoperabilidade dos meios e equipamentos
necessários, bem como de disporem dos níveis de treino adequados. Estas condições
permitem garantir e manter, durante toda da operação, a capacidade para se adaptar e
reagir mais rápido, permitindo-lhe responder eficazmente às ameaças e conservar a
iniciativa necessária para adotar as medidas necessárias para manter a coerência na
atuação, garantindo uma grande flexibilidade operacional.
A decisão para o emprego efetivo da força militar depende essencialmente do
enquadramento da operação específica. No entanto, quando a força é usada de forma
efetiva, deve-o ser apenas na duração e intensidade necessários, devendo os níveis de
emprego de violência baixar o mais rápido possível e privilegiar o emprego de meios
não violentos de persuasão. Desta forma, o instrumento militar será um elemento
relevante para reduzir o nível de violência e dissuadir ou controlar os potenciais
agressores.
Sendo o emprego efetivo da força o elemento mais crítico, mas simultaneamente mais
diferenciador e caraterizador do emprego do instrumento militar, a experiência mostra
que a importância da força militar neste contexto ultrapassou o seu tradicional papel de
controlar os níveis de violência. Assumiu relevo um elevado leque de capacidades que,
ultrapassando as tradicionais capacidades de combate, se mostram de grande utilidade
para todo o espetro da resolução de conflitos, nomeadamente em apoio, complemento
ou mesmo substituição de capacidades não militares.
Assim, no contexto da resolução de conflitos, a utilização de forças militares é útil e
justificada em situações diretamente relacionadas com a criação e manutenção de um
ambiente de segurança, executando tarefas neste âmbito e permitindo uma
aproximação integrada à sua prevenção, gestão e resolução efetiva. Mas, cada vez
mais, executando outras tarefas em situações em que o risco da operação e/ou a
prontidão, o alcance, a disponibilidade de efetivos ou a existência de especialistas e
capacidades não disponíveis noutras organizações o exija ou mostre ser mais adequado
e efetivo.
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PENSAR A PAZ POSITIVA NA PRÁTICA
AVALIAR A EFICÁCIA DAS NAÇÕES UNIDAS
NA IMPLEMENTAÇÃO DE UMA PAZ AMPLA
Madalena Moita
moita.madalena@gmail.com
Doutorada em Conflito Político e Processos de Pacificação, pela Universidade Complutense de
Madrid (2015, Espanha). Tendo um percurso centrado na análise e apoio à formulação de
políticas em matéria de governação, consolidação da paz e desenvolvimento para diferentes
entidades (governos, Comissão Europeia, Nações Unidas, think tanks internacionais), é
actualmente consultora externa para a Comissão Europeia, prestando apoio tanto à Sede como
às Delegações em matérias relacionadas predominantemente com direitos humanos, participação
da sociedade civil e resolução de conflitos
Resumo
A insistência do retorno da violência em países onde a ONU interveio para promover a paz
tem alimentado um debate sobre a eficácia dos instrumentos internacionais de resolução de
conflitos. Este artigo reflecte sobre a evolução que estes instrumentos foram fazendo como
resposta à recorrência da violência, à luz do que terá sido uma aproximação ao conceito de
paz positiva de Johan Galtung. Partindo de dois estudos de caso (Guatemala e Haiti)
marcados pelas alterações no discurso e práticas das Nações Unidas que esta aproximação
inspirou, sustenta que os instrumentos da ONU para a paz serão tão mais eficazes quando
respeitarem a proposta do autor não apenas nos resultados que pretendem alcançar, mas
também na forma como operacionalizarem uma paz positiva no terreno. Analisa, assim,
como serão dificuldades na implementação de processos mais amplos, locais e inclusivos
que estarão a afectar a promoção de pazes mais sustentáveis, contaminando também os
mecanismos usados para avaliar a sua eficácia.
Palavras-chave
Construção da paz; Paz positiva; Avaliação da eficácia; Guatemala; Haiti
Como citar este artigo
Moita, Madalena (2016). "Pensar a paz positiva na prática. Avaliar a eficácia das Nões
Unidas na implementação de uma paz ampla". JANUS.NET e-journal of International
Relations, Vol. 7, N.º 1, Maio-Outubro 2016. Consultado [online] em data da última
consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol7_n1_art4 (http://hdl.handle.net/11144/2622)
Artigo recebido em 15 de Fevereiro de 2016 e aceite para publicação em 11 de Março
de 2016
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PENSAR A PAZ POSITIVA NA PRÁTICA
AVALIAR A EFICÁCIA DAS NAÇÕES UNIDAS
NA IMPLEMENTAÇÃO DE UMA PAZ AMPLA
Madalena Moita
Introdução
As práticas de resolução de conflitos conduzidas pelas Nações Unidas têm evoluído de
forma muito significativa nas últimas décadas, tratando de responder de forma mais
eficaz ao problema recorrente do retorno à violência em situações pós-conflito pela
procura de instrumentos que apontem para soluções de uma paz mais sustentável. Em
grande medida, este esforço foi sendo feito, sobretudo a partir dos anos noventa, pela
conformidade destes instrumentos a um conceito de paz que ultrapassou a sua
dimensão mínima da não-guerra e portanto da resolução de conflitos pela contenção da
violência.
Esta ampliação conceptual de paz, muito evidente na evolução do discurso das Nações
Unidas nestas décadas recentes, fez-se pelo que pareceu ser uma apropriação do
conceito de paz positiva proposto por Johan Galtung, materializando-se na evolução da
manutenção da paz (peace keeping) para instrumentos de muito mais largo espectro
associados ao conceito de construção da paz (peace building). Esta materialização
tem vindo a pressupor mais recursos tanto humanos, como financeiros e uma
muito maior coordenação no terreno de actores de dimensões várias desde a segurança
à esfera humanitária, incluindo a articulação com toda a esfera de actores de
desenvolvimento e de reforço do Estado numa perspectiva de mais longo prazo de
resolução das causas estruturais da conflitualidade.
Esta nova configuração da arquitectura das Nações Unidas para a resolução de conflitos
não tem no entanto apresentado sempre resultados eficazes.
Neste artigo defendemos que se essa aproximação teórica traz consigo uma abordagem
propícia a soluções mais sustentáveis de paz, esta será tão mais eficaz quanto respeitar
a proposta de Galtung não apenas no que diz respeito aos resultados a que pretende
chegar, mas também aos meios e processos postos em marcha para os alcançar.
A avaliação da eficácia da ONU na promoção da paz continua sobretudo centrada em
resultados, mais do que em avaliar procedimentos. Considerando que mais do que um
problema de intenções e objectivos a ONU possa ter sobretudo uma dificuldade na sua
implementação, sugerimos aqui uma avaliação mais centrada nos processos que
poderá dar contribuições mais significativas ao debate sobre o seu impacto no terreno.
A transição da narrativa das Nações Unidas numa aproximação à paz positiva
consagrou-se também, no terreno, por uma muito maior atenção e envolvimento da
Organização nos processos políticos para a resolução de conflitos armados,
nomeadamente pela integração da ONU em equipas de mediação. A forma como este
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envolvimento se processou poderá ser factor condicionador de uma maior eficácia no
terreno, dinâmica que tentámos então verificar pela comparação de dois estudos de
caso.
A paz positiva no discurso da ONU
Em 1964, Johan Galtung, considerado como um dos pais fundadores dos Estudos para
a paz, no primeiro número do Journal of Peace Research, fazia alusão a um conceito
alternativo de paz que viria a marcar uma ruptura na forma de pensar e de fazer as
pazes. então a sua reflexão tinha sido gerada pela preocupação com o ciclo vicioso
da violência que retornava em cenários previamente intervencionados (Galtung, 1964).
Contrariando a tenncia dominante de observar a paz desde o ponto de vista do
estudo da guerra, que condicionava profundamente as práticas no terreno no campo da
resolução de conflitos, Galtung propôs centralizar o debate na paz como fenómeno
autónomo.
Esta percepção de paz a que chamou positiva (frente a uma versão nima, negativa
associada à ausência da guerra) sugeria então um itinerário mais amplo de construção
social que previa a transformação criativa dos conflitos políticos, económicos, culturais,
religiosos ou outros em formas de renovação social e de proximidade que saíam das
variantes violentas de oposição. Por paz positiva Galtung concebeu um processo de
construção colectiva que procurava o equilíbrio e a justiça social, renegando as
estruturas violentas que estavam na base de uma violência mais visível que assumia,
na sua forma limite, os contornos da guerra.
A validade mais significativa da sua proposta, mais além de oferecer uma categoria
analítica nova para compreender o fenómeno da paz, foi a de ter possibilitado um novo
entendimento sobre a violência, obrigando a observá-la não apenas na sua dimensão
mais visível e directa, mas também na estrutura que a origina.
O conceito de violência estrutural, que Galtung associa à exploração económica, à
repressão política, à injustiça social e desigualdade, sugeria então que para responder à
violência directa de carácter mais episódico , seria imprescindível resolver as causas
mais profundas da conflitualidade atendendo às violências que estão inscritas,
invisíveis, na estrutura do todo social de forma mais contínua (Galtung, 1969)
1
.
Mais do que sugerir una meta de uma sociedade mais justa e equilibrada, Galtung
propôs assim um guião para a alcançar, uma resposta aos conflitos que passasse por
uma transformação profunda das causas estruturais da violência através de um
conhecimento profundo do seu contexto, actores, dinâmicas e incompatibilidades. Este
seu guião sugeria assim que contrariando uma abordagem dissociativa de resolução do
conflito pela quebra da relação entre as partes, pela contenção da violência através da
separação das mesmas, se deveria optar antes por uma abordagem associativa, pela
aproximação das partes numa construção colectiva, integradora da paz.
A visão holística de paz positiva associada não ao fim da violência directa, mas
também à transformação das causas estruturais da violência, viria a ter uma
1
Galtung trabalha mais tarde sobre um terceiro conceito de violência, a violência cultural, inerente às
outras dimensões referidas, que corresponde aos aspectos simbólicos do quotidiano, manifestos no
sistema de normas, na religião, na ideologia, na linguagem e que legitimam as violências directa e
estrutural (Galtung, 1990).
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interferência muito considerável no discurso e práticas internacionais para a resolução
de conflitos no pós-Guerra Fria.
Nos anos noventa assistimos, neste contexto, à multiplicação exponencial de
intervenções para a paz lideradas pelas Nações Unidas em conflitos intra-estatais. Estas
novas intervenções vão traduzir-se na conjugação de novas abordagens para a paz,
articulando ao peace keeping que vinha sendo experimentado que passava pela
intervenção militar para conter a violência , uma actuação mais centrada no peace
making, relacionado com a reconciliação política, e o peace building, que integrava
medidas de reconstrução social e desenvolvimento (Woodhouse; Ramsbotham, 2000).
As Nações Unidas vão assim assumir por um lado, um papel preponderante como
mediador em vários conflitos internos, fazendo, por outro, coordenar esta função com a
mobilização de novas missões de paz com mandatos muito mais amplos do que as
suas antecessoras.
A implementação de um discurso na prática da construção da paz
Esta transição no discurso dominante das Nações Unidas, evidenciada nomeadamente
pela inclusão de uma versão ampla de paz em documentos-chave como a Agenda para
a Paz
2
de 1992 e a sua adenda de 1995, veio então transformar as prática no terreno.
No entanto, esta sua operacionalidade não tem vindo a demonstrar necessariamente
uma maior eficácia na resolução de conflitos violentos, verificando-se ainda com
frequência o retorno à violência em cenários que tinha já sido palco de intervenções.
Esta ineficácia é patente no historial de operações de manutenção de paz, o mecanismo
por excelência das Nações Unidas neste campo.
Em curso, existem 17 missões de manutenção de paz da ONU
3
. Uma observação mais
atenta permite-nos dividi-las em dois grandes subgrupos. Um primeiro corresponderia
a missões de longuíssima duração, estando no terreno algumas desde o final dos anos
40 (caso da UNTSO
4
, a primeira operação de paz da ONU, no Médio Oriente), sendo
quase todas operações de primeira geração, anteriores à transição que aqui tratamos
dos anos noventa. O segundo subgrupo corresponderia a missões réplica: mais de
metade das actuais operações de paz estão mobilizadas em países onde existiram
missões prévias.
Esta caracterização de cada subgrupo faz em si mesma questionar a eficácia destes
instrumentos no alcance de pazes sustentáveis: seja por obrigarem a uma presença
internacional arrastada no tempo, seja por obrigaram ao retorno de forças militares em
situações previamente intervencionadas.
Das 54 missões de paz concluídas
5
, uma imensa maioria correspondeu a missões
anteriores às actuais ou estão centradas em zonas limítrofes às mesmas coincidindo
ainda com grandes regiões de instabilidade (como seria o caso das missões nos
2
Texto completo disponível em http://www.un.org/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/47/277, consultado
a 11 de Fevereiro de 2016.
3
Ver dados disponibilizados pelo Departamento de Manutenção da Paz da ONU em
http://www.un.org/en/peacekeeping/operations/, consultado a 11 de Fevereiro de 2016.
4
Do inglês United Nations Truce Supervision Organization,
http://www.un.org/en/peacekeeping/missions/untso
5
Ver dados disponibilizados pelo Departamento de Manutenção da Paz da ONU em
http://www.un.org/en/peacekeeping/operations/, consultado a 11 de Fevereiro de 2016.
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Grandes Lagos ou no Médio Oriente que viram a violência deslocar-se para áreas
adjacentes). Dessas missões terminadas, podemos destacar um pequeno conjunto que
é tratado na literatura como casos de relativo sucesso da ONU na resolução de conflitos
com os exemplos da América Central, El Salvador, Guatemala, Moçambique, Timor-
Leste e o Cambodja que m em comum um envolvimento muito mais acentuado da
ONU na resolução potica do conflito.
A aparente sustentabilidade dos processos de paz nestes casos e portanto a noção de
maior eficácia das Nações Unidas na resolução destes confrontos armados sugere a
necessidade de um quadro de avaliação que permita entender que procedimentos
foram aqui tidos em conta para que a implementação do modelo de paz que vem sendo
experimentado tenha sido mais bem sucedido.
A reflexão sobre a eficácia dos mecanismos internacionais de resolução de conflitos tem
preocupado não apenas centros de estudo, mas também as próprias esferas decisórias
das Nações Unidas que têm desenvolvido um debate com uma nova preocupação com
indicadores e resultados de sucesso.
A avaliação de um processo multidimensional e complexo como é um processo de paz
não está isenta de dificuldades e a própria ONU tem experimentado por diferentes vias
melhorar essa capacidade. Internamente a Organização foi formando estruturas
capazes de fomentar esta reflexão, através da criação de grupos de trabalho que
definissem objectivos mais claros, assim como um quadro institucional capaz de
recuperar lições aprendidas nos vários palcos de actuação.
Exemplo disso foi a criação em 2005 da Comissão para a Consolidação da Paz (Peace
Building Commission), um organismo de assessoria inter-governamental de articulação
entre a Assembleia Geral e o Conselho de Segurança que tenta coordenar desde então
os instrumentos de peace keeping e de peace building. A Comissão tem um grupo de
trabalho específico para compilar lições aprendidas e conduz processos de avaliação
dos projectos que o seu Peace Building Fund financia. A avaliação da actuação da ONU
neste quadro centra-se sobretudo na análise dos resultados, numa avaliação mais de
micro-projecto do que do impacto do conjunto de instrumentos da Organização no
terreno.
Ainda que a PBC procure fundamentalmente ultrapassar a separação entre os esforços
para a promoção da paz de carácter mais político da responsabilidade do Departamento
de Assuntos Políticos (DPA) e o Departamento de Operações de Manutenção de Paz
(DPKO), a eficiência das intervenções da Organização nos dois departamentos tem
também mecanismos de avaliação separados.
No âmbito do DPA, foi criado o UN Peacemaker, em 2006, de onde saiu uma Unidade
de Apoio à Mediação (Mediation Support Unit). Com o objectivo de facilitar o trabalho
da Organização no apoio a transições políticas e no alcance de acordos de paz, esta
ferramenta compila informação sobre processos anteriores, assim como integra
documentos com lições aprendidas e textos orientadores para o trabalho no terreno.
No quadro das operações de paz do DPKO e dada a sua evolução nas últimas décadas,
a sua avaliação tem se tornado crescentemente mais complexa, como aliás assumia
a Doutrina Capstone
6
de 2008, o documento doutrinário fundamental das operações de
6
Disponível em inglês em http://www.un.org/en/peacekeeping/documents/capstone_eng.pdf, consultado
em 11 de Fevereiro de 2016.
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paz, que enumerava princípios e orientações para a implementação no terreno, assim
como um quadro de indicadores de sucesso bem mais amplo (ver quadro).
Alguns benchmarks sugeridos pela Doutrina Capstone para novos mandatos das
operações de paz incluem:
Ausência de conflito violento e abusos de direitos humanos em larga escala, e
respeito pelos direitos das mulheres e minorias
Cumprimento do DDR (Desmobilização, desarmamento e reintegração) de
antigos combatentes (homens e mulheres, adultos e crianças) e progresso no
restabelecimento de instituições estatais de segurança
Capacidade das forças armadas nacionais e da polícia nacional de assegurar a
segurança e manter a ordem pública sob observação civil e respeito pelos
direitos humanos
Progresso no estabelecimento de um sistema judiciário e penitenciário
independente e efectivo
Restaurão da autoridade estatal e retorno ao funcionamento dos serviços
básicos por todo o país
Retorno ou reinstalação de deslocados internos gerando a mínima perturbação
ou conflito nas áreas de reinstalação
Formação bem sucedida de instituições políticas legítimas depois de eleições
livres e Justas onde mulheres e homens tenham igualdade de direitos de voto e
de exercício de cargos políticos
Em 2010, as Nações Unidas publicaram também um Guia de Monitorização da
Consolidação da Paz (Nações Unidas, 2010). Demonstrando uma cada vez maior
preocupação com as necessidades reclamadas por actores nacionais na definição de
critérios e indicadores de monitorização, este continua a ser por natureza um guia geral
oferecendo uma grelha algo estandardizada para o seguimento de processos em curso.
De alguma forma, serve ainda fundamentalmente para fornecer informação aos seus
funcionários de forma a melhor ir actualizando a sua estratégia, mais do que para
analisar efectiva e criticamente o impacto da ONU no terreno (Stave, 2011).
Se este quadro evidencia como as próprias Nações Unidas têm optado por alargar os
indicadores de sucesso a factores mais extensos, numa aproximação clara à
materialização de um conceito de paz amplo, este esforço tem, no entanto, replicado a
dispersão de instrumentos de resolução de conflitos no quadro das Nações Unidas, sem
que se verifique uma centralização da análise destes no terreno. Não permite, portanto,
avaliar, num determinado contexto de actuação, como o conjunto dos instrumentos ao
dispor da Organização no seu espectro completo tem sido eficaz na consolidação da
paz como um todo.
Mas mais significativo ainda é o facto destes mecanismos favorecerem sobretudo uma
análise da eficácia da actuação da ONU à luz de indicadores estabelecidos pela própria
Organização, sem privilegiar indicadores de paz conformes a um modelo de paz
ambicionado localmente, e descurando uma prestação de contas liderada pelos países
receptores.
Cada um destes mecanismos permite ainda, assim, sobretudo uma leitura mais
completa sobre o palco de actuação, do que propriamente sobre a intervenção como
tal. Mecanismos que ampliem o conhecimento da ONU e particularmente dos seus
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funcionários sobre os contextos em que actuam são necessários e muito relevantes, no
entanto, continuam a ser parcos numa avaliação crítica sobre o que a ONU pode estar a
fazer bem e mal no terreno. De alguma forma se aceita que a actuação uniforme da
Organização na promoção da paz, porque assente num quadro de valores universais e
num projecto externo e técnico de construção do Estado, pode superar versões locais e
políticas do modelo de paz que se quer erguer.
Neste quadro, raras vezes os actores locais desfrutam de mecanismos de fiscalização
da acção internacional em função das suas próprias necessidades e com frequência se
ultrapassam etapas essenciais de diálogos políticos nacionais porque se aceita como
procedimento único para alcançar uma paz estável o modelo prescritivo conduzido pela
ONU.
Avaliar a paz mais além dos resultados
Neste contexto e considerando que vários dos casos de relativo sucesso da intervenção
da ONU na promoção de uma paz estável poderá ter coincidido com uma maior atenção
à reconciliação política, quisemos indagar sobre o potencial deste factor como gerador
de uma maior eficácia para evitar o retorno à violência política armada.
Assumindo que a narrativa legitimadora das intervenções das Nações Unidas no quadro
da promoção da paz se tem aproximado de um conceito de paz amplo, quisemos
considerar mecanismos de avaliação que permitam então ponderar a eficácia da
actuação da ONU no que respeita à sua conformidade com a proposta da paz positiva,
tanto na meta como no guião que esta comporta.
Atribuímos assim relevo às missões que estiveram articuladas com processos de
reconciliação política através da condução de processos de mediação. A mediação é um
instrumento de gestão de conflitos particularmente relevante que permite facilitar e
influenciar, no apoio às partes, o desenho dos procedimentos que dão forma ao
diálogo, por um lado, e à agenda das negociações, por outro, elementos que podem vir
a condicionar os resultados das mesmas. Sem se sobrepor aos protagonistas centrais
de um processo de paz, o mediador tem o poder de moldar uma série de variáveis que,
no seu conjunto, perfilam o modelo de paz que sai de um processo negocial, com um
impacto muito significativo no pós-conflito.
Baseamo-nos numa investigação recente
7
onde foi tentado o desenho de um quadro de
avaliação que se aproximasse o mais possível do conceito de Galtung de paz positiva.
Este, como mencionámos inicialmente, oferece por um lado uma meta a alcançar, mas
sugere igualmente um guião, um processo para chegar a esse objectivo.
Optou-se por testar esta moldura de avaliação a dois estudos de caso que
correspondessem de uma forma evidente ao novo quadro de actuação pós anos
noventa. Ambos os casos escolhidos coincidem, por um lado, na inspiração num novo
quadro de valores e princípios que o discurso de então das Nações Unidas absorvera,
por outro, na conciliação decorrente de uma intervenção de carácter mais político, com
uma de natureza militar, com uma operação de paz mobilizada para apoiar a
implementação dos respectivos acordos de paz.
7
Moita, Madalena (2015) La ONU y la Construcción de la Paz en Haití y Guatemala, Tesis doctoral,
Universidad Complutense de Madrid.
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A comparação serviu para contrastar uma intervenção das Nações Unidas que foi dada
como concluída, e que no quadro das missões passadas integra o subgrupo que se
associa a um relativo êxito pela observância do não retorno da violência política
armada no pós-conflito, com uma outra intervenção menos bem sucedida onde a
reincidência da violência fez regressar uma presença militar de larga monta que ainda
hoje se mantém no terreno.
De alguma forma, os dois casos escolhidos Guatemala e Haiti configuram dois tipos
de intervenção que tendo uma génese similar divergem drasticamente na sua
implementação, traduzindo-se assim em resultados profundamente diferentes.
Tentou-se por isso, nesta comparação, associar uma avaliação dos resultados de cada
intervenção a uma consideração sobre o próprio processo de alcance de uma paz
positiva, processo esse que deveria ser amplo, transformador, integrador e
primordialmente local.
Primeiramente tentou-se traçar um quadro de indicadores, dentro da informação e
dados disponíveis nos dois países, que correspondessem fielmente à ideia da paz
positiva, assim como às perspectivas nacionais recolhidas por entrevistas e de acordo
com as expectativas geradas nacionalmente pelos Acordos de Paz
8
. Isto pressupôs
alargar os indicadores de sucesso mais além do quadro mínimo de eleições, cessar-fogo
e um mínima estabilidade conseguida.
Âmbito
Indicador / critério
Quadro político:
democracia e
inclusão política
Estabilidade governativa
Índice de democracia (incluindo processo eleitoral, funcionamento do
Governo, participação política e cultura política)
Deterioração dos serviços públicos
Desenvolvimento
económico-social:
inclusão e
igualdade
PIB
Pobreza e deterioração económica
Desenvolvimento económico desigual
Indicadores sociais, incluindo gastos em educação, anos de escolaridade,
taxa de alfabetização, esperança de vida, mortalidade infantil
Índice de Desenvolvimento Humano
Sustentabilidade
do processo de
paz: ausência de
violência
directa/indirecta
Mortes violentas
Escala de terror político
Respeito pelas liberdades cívicas
Número de anos passados até ao retorno ao conflito armado
Grau de autonomia do Estado: Ajuda Oficial ao Desenvolvimento
Índice de fragilidade do Estado
Nesse sentido, tratou-se de privilegiar uma perspectiva local que enriquecesse a visão
internacional sobre o processo de paz e assim complementar indicadores de carácter
mais transversal com critérios que respondessem às expectativas nacionais do mesmo.
Na combinação entre resultados e processo, quis-se igualmente abrir uma análise sobre
a coerência entre os vários instrumentos de resolução de conflitos usados pela ONU,
8
Ao quadro comparativo seguinte, adicionaram-se ainda alguns indicadores específicos para cada país
relacionados com questões particulares ao processo de paz respectivo, como seriam exemplo dados que
permitissem indagar a maior presença de indígenas e mulheres no quadro político Guatemalteco dado
serem estes temas muito relevantes no âmbito do processo de mediação.
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nomeadamente a articulação entre instrumentos políticos como a mediação com
instrumentos adicionais, incluindo militares como as operações de paz estabelecidas
num e noutro país.
Aproveitou-se para este efeito uma matriz de avaliação elaborada para a OCDE que se
centra na mediação, que considerámos particularmente útil por ter sido, por um lado, o
ponto primordial da intervenção da ONU em cada um dos palcos de estudo, por outro,
por ter marcado definitivamente a evolução que cada processo de paz fez em cada um
dos países. Lanz, Wählisch, Kirchhoff e Siegfried (2008) trataram de adaptar a matriz
de avaliação da OCDE associada a projectos de desenvolvimento a processos de
resolução de conflitos, matriz que se aproveitou para este exercio e se apresenta no
quadro seguinte.
Relevância
Como se relacionou o processo de mediação com o contexto do conflito
mais amplo?
Eficácia e impacto
Quais foram os efeitos directos e indirectos, intencionais e não
intencionais, positivos e negativos do processo de mediação?
Sustentabilidade
Em que medida os benefícios do processo de mediação continuaram depois
do seu termo?
Eficiência
Como se relacionam os custos do processo de mediação com os seus
benefícios?
Coerência,
coordenação e
vínculos
Quais foram os vínculos entre o processo de mediação e outras actividades
de gestão do conflito?
Cobertura
Como incluiu (ou excluiu) o processo de mediação os actores, problemas e
regiões mais relevantes?
Consistência com os
valores
Foi o processo de mediação consistente com os valores dos mediadores e
da comunidade internacional, por exemplo, no que respeita à
confidencialidade, aos direitos humanos ou à imparcialidade dos
mediadores?
Da combinação destes dois quadros complementares de avaliação de carácter mais
quantitativo com o uso de indicadores e de carácter mais qualitativo com o uso da
matriz sobre a mediação chegou-se a conclusões pertinentes para a reflexão sobre a
eficácia dos instrumentos da ONU no campo da promoção de uma paz duradoura e
sustentável.
Da comparação quantitativa, todos os indicadores evidenciaram que o Haiti se
encontrava numa situação mais fragilizada que a Guatemala no que tocava ao sucesso
da implementação de um modelo de paz mais ampla, como quis ser intenção da ONU
em cada um dos países.
No campo político, a instabilidade governativa no Haiti ficou manifesta em crises
políticas várias que pontuaram o panorama político, desde um golpe de Estado em
2004 a vários longos períodos sem Executivo, contrastando com a rotatividade
partidária no governo na Guatemala, com as várias Presidências a cumprir os mandatos
completos.
Foram analisados dados dos componentes do Índice de Democracia do Economic
Intelligence Unit
9
(incluindo por exemplo o grau funcionamento do governo ou do
9
Disponíveis em www.eiu.com/democracyindex, consultado a 11 de Fevereiro de 2016.
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processo eleitoral) assim como dados detalhados do Índice de Fragilidade do Estado
10
que inclui, entre outros, números sobre a deterioração dos serviços blicos. Todos
estes dados atestaram não apenas uma diferença significativa entre a performance da
Guatemala face à do Haiti, como esta foi particularmente significativa em anos de
incremento exponencial de apoio financeiro e técnico internacional à construção do
Estado e reforço institucional haitiano.
Também em termos de desenvolvimento económico, os dois países apresentaram
disparidades nos anos pós intervenção, disparidades essas muito evidentes nos gráficos
que se seguem.
Figura 1 Produto Interno Bruto (PIB) per capita (US$ correntes) 1985-2010
Fonte: dados do Banco Mundial
11
.
10
Disponível em http://global.fundforpeace.org, consultado a 11 de Fevereiro de 2016.
11
Dados disponíveis em disponíveis em http://data.worldbank.org/, consultado a 11 de Fevereiro de 2016.
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Figura 2 Pobreza e deterioração económica (2005-2014)
Fonte: dados dos componentes do Índice de Fragilidade dos Estados
12
(escala de 0 a 10).
Figura 3 Evolução do desenvolvimento económico desigual (2005-2014)
Fonte: dados dos componentes do Índice de Fragilidade dos Estados
13
(escala de 0 a 10).
Igualmente a comparação de indicadores sociais como a taxa de alfabetização, a
esperança média de vida ou a mortalidade infantil, que coincidiam com algumas das
principais preocupações manifestadas pelas populações, beneficiaram
permanentemente a Guatemala face ao Haiti.
Finalmente, o terceiro campo analisado pelos indicadores a sustentabilidade do
processo de paz no que respeita também à ausência de violência directa distancia
igualmente a Guatemala em detrimento do Haiti. Neste âmbito, é preciso destacar que
12
Dados disponíveis em http://global.fundforpeace.org, consultado a 11 de Fevereiro de 2016.
13
Dados disponíveis em http://global.fundforpeace.org, consultado a 11 de Fevereiro de 2016.
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um país e outro, provavelmente com maior incidência na Guatemala, assistimos ao
incremento da violência directa de cariz criminal, com vínculos claros ao narcotráfico.
Este fenómeno pode encontrar origens nas debilidades do processo de paz num e
noutro país, pela fragilidade das instituições de segurança e da justiça, porém, importa
ressalvar que estas se distanciam com maior evidência da esfera política no caso
guatemalteco que no caso haitiano. Por um lado, no Haiti a violência criminal tem
também estado vinculada a interesses políticos, por outro, a violência política ainda
que de menor escala continua a ser instrumento frequente de contestação.
Mesmo recentemente, em Fevereiro de 2016, assistimos ao adiamento das eleições no
Haiti por episódios de violência porem em causa a segurança dos cidadãos, levando à
nomeação de um Presidente provisório. Pelo contrário, em 2015, vimos a sociedade
guatemalteca erigir-se contra um Presidente corrupto e derrubá-lo através de protestos
nas ruas. Num quadro e noutro o uso da violência é de natureza muito distinta.
Efectivamente, a participação das Nações Unidas na Guatemala fechou um conflito
armado que encontrava as suas raízes num regime político e económico marcado pela
exclusão. Abriu definitivamente espaços de poder à maioria e os guatemaltecos
dispõem hoje de mecanismos de reclamação dos mesmos e de prestação de contas por
canais não violentos, não parecendo provável o retorno à violência com um perfil
semelhante ao que existiu durante o conflito armado.
Em contraste, no Haiti, a intervenção da ONU não permitiu superar plenamente a
realidade antes existente, perpetuando estruturas de poder que continuam a
marginalizar uma grande maioria da população e que continuam a fazer emergir
episódios de violência política. O indicador mais claro da falta de sustentabilidade do
processo de paz tentado no Haiti será logicamente o golpe de Estado de 2004 que urgiu
o estabelecimento de mais uma missão de paz, a MINUSTAH, que ainda hoje se
mantém no país, obviando uma solução mais transformadora da estrutura violenta.
Figura 4 Evolução da Guatemala e do Haiti nas suas posições na classificação mundial
da fragilidade do Estado (2005-2011)
Fonte: adaptado de dados sobre o Índice de Fragilidade dos Estados.
14
14
Dados disponibles em http://www.foreignpolicy.com/failedstates, consultado a 11 de Fevereiro de 2016.
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Mas também nos restantes indicadores deste campo, o Haiti se destaca pela negativa
da evolução na Guatemala.
Concretamente, o Estado haitiano é mais dependente da ajuda internacional, mais
pobre e mais desigual, menos capaz de providenciar serviços aos seus cidadãos,
vivendo ainda com a sombra da instabilidade governativa, da falta de protecção de
direitos humanos de vários níveis (sociais, políticos, económicos) e da possibilidade da
violência como forma de resolver as fricções geradas por este panorama.
Frente a esta disparidade de resultados, tratou-se então de analisar o processo
através da matriz mencionada da OCDE para ver se no campo da reconciliação
política a intervenção tinha respeitado o guião desejável.
O caso da mediação das Nações Unidas na Guatemala foi bastante insólito, sendo
possivelmente o caso em que este guião de paz positiva foi mais fielmente respeitado,
pela estreita adaptação do processo e do conteúdo da mediação às causas da
conflitualidade e à dinâmica relacional que o conflito mantinha entre as partes.
As Nações Unidas lideraram um grupo de mediadores de características
complementares nacionais e internacionais que facilitaram a integração das raízes
da violência na agenda da paz, permitindo um amplo diálogo sobre temas estruturais
da sociedade guatemalteca. As negociações permitiram a assinatura de acordos de paz
sobre temas muito mais complexos que as questões operativas vinculadas ao termo do
conflito (como o cessar-fogo ou a desmobilização de combatentes) que versaram
sobre as chamadas questões substantivas, como os direitos dos indígenas, a reforma
agrária ou os direitos das mulheres.
Não apenas em termos de conteúdo, mas também de procedimentos, este processo de
mediação foi inédito. A uma agenda ampla conjugou-se uma integração da sociedade
civil no discussão, através da criação de uma mesa paralela, consultiva, na chamada
Assembleia da Sociedade Civil. Este esquema de negociações permitiu alargar a
reflexão sobre o quadro político e social que sairia da guerra civil a franjas muito mais
abrangentes da sociedade guatemalteca, transformando o processo de paz num
projecto de refundação nacional.
O diálogo centrou-se nas especificidades estruturais políticas, económicas, até culturais
que compunham o tecido social da Guatemala e que estavam na origem do conflito
armado. Permitiu abrir assim espaços que estavam antes vedados a uma grande
maioria de guatemaltecos. Se as várias raízes de violência estrutural não foram
plenamente sanadas, este quadro de diálogo nacional amplo e profundo permitiu que
se criassem os mecanismos necessários para que estas pudessem vir a ser tratadas por
meios institucionais não violentos, passo essencial para encetar a construção de uma
paz mais duradoura.
Correspondeu assim, em grande medida, ao guião proposto pela paz positiva pelo seu
carácter integrador, pela sua abordagem associativa, por incentivar um consenso
nacional em torno do modelo de paz erguido das negociações que lhe conferia muito
maior legitimidade e potencial de durabilidade.
A actuação da ONU foi também pautada por uma boa coordenação dos seus diferentes
instrumentos, usando mecanismos complementares em conformidade com os
objectivos dos seus esforços como líder da equipa mediadora. Foi o que aconteceu com
a implementação, num momento adequado, da missão de paz, a MINUGUA, com um
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mandato extensível à medida que iam sendo assinados os respectivos acordos e que
serviu em momentos mais tensos como factor dissuasor da violência. O mesmo se
verificou na articulação de instrumentos diplomáticos que permitiram influenciar
positivamente as partes em momentos críticos. No seu todo, a intervenção da ONU
respondeu de forma muito positiva aos critérios sugeridos pela matriz de avaliação:
Foi relevante para o contexto em que actuava pela integração na agenda das causas
da conflitualidade;
Foi eficaz na resolução mais imediata do conflito e teve um impacto elevado na
transformação do quadro político guatemalteco permitindo a sua abertura a esferas
mais amplas da população;
Foi sustentável não apenas porque evitou o regresso à violência política armada
como instrumento de contestação, mas também porque permitiu assinar acordos
com algum nível de especificidade que ainda hoje servem como pautas de políticas
públicas;
Foi eficiente porque os custos da intervenção, incluindo a missão de paz, teve uma
correlação equilibrada com os benefícios trazidos;
Foi coerente e pautada por uma boa coordenação entre instrumentos
complementares de resolução de conflitos (da diplomacia, ao peace making, ao
peace keeping e posteriormente o peace building);
Teve um importante nível de cobertura ao integrar facções mais amplas da
sociedade guatemalteca, incluindo sectores tradicionalmente excluídos como os
indígenas e as mulheres;
E teve uma significativa consistência com os valores e as propostas de paz positiva
por que as Nações Unidas pugnavam.
Por oposição, o processo iniciado pela mediação das Nações Unidas então em
articulação com a Organização de Estados Americanos no Haiti, apresentou enormes
debilidades na corresponncia a estes critérios.
Inicialmente a ONU integrou uma equipa de mediação que, não conseguindo chegar a
um consenso satisfatório entre as partes, conduziu a uma estratégia diferente de
ameaça do uso da força como persuasor das partes a chegar a acordo. Essa mediação
foi centrada exclusivamente nas elites que disputavam o poder pela força e com o
objectivo simplificado de repor o quadro político prévio ao golpe de Estado de 1991 que
tinha derrubado Jean Bertrand Aristide.
A ONU autorizou assim uma intervenção militar liderada pelos Estados Unidos para o
efeito, depois da imposição de sanções económicas como instrumento coactivo que
ao contrário de ter debilitado as elites afectou mais drasticamente as condições de vida
dos haitianos.
Essa intervenção permitiu retornar a uma ordem democrática muito fragilizada que
anos mais tarde voltou a encontrar na violência armada a ferramenta privilegiada pelas
partes para a tomada do poder. Dez anos depois da mobilização de uma missão militar
internacional no Haiti, novo golpe de Estado romperia então essa estabilidade fictícia.
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A resposta da ONU a esse segundo golpe de Estado foi a mobilização de uma nova
missão de paz, a MINUSTAH, com contornos já profundamente distintos das anteriores,
consubstanciando aquilo a que hoje se denomina de missão integrada. A MINUSTAH
ainda hoje além de assegurar a segurança no país, contando para o efeito com uma
força predominantemente militar, lidera junto das instituições nacionais uma série de
reformas de fortalecimento do Estado, nomeadamente no quadro da Reforma da
Justiça e do Sector da Segurança.
Um quadro de instabilidade permanente continua a justificar uma presença militar
muito considerável, sem que haja uma estratégia de saída clara, tendo esta sido
ponderada, porém descartada várias vezes nos últimos anos. No entanto, pouco se
avançou num diálogo político mais profundo sobre as causas subjacentes da
conflitualidade.
Se observarmos um a um os critérios propostos na matriz de avaliação, concluímos que
em termos de processo a aproximação da proposta de paz positiva foi, em grande
medida, estéril:
Em termos de relevância, a mediação centrou-se exclusivamente em questões
operativas relacionadas com o cessar-fogo e com o retorno ao quadro democrático
anterior, evitando uma leitura mais compreensiva do conflito político que estava na
génese da violência. Aliás em entrevistas realizadas, muitos protagonistas das
Nações Unidas no país teimam em considerar que não há um conflito político
pendente, mesmo que seja a violência por este despoletada que continua a legitimar
uma força militar robusta.
Foi incapaz de alcançar um consenso satisfatório para ambas as partes, tendo a ONU
optado por autorizar o uso da força como instrumento persuasor num primeiro
instante e posteriormente decidido instaurar uma primeira missão de manutenção da
paz (a UNMIH) sem haver propriamente uma paz a manter.
A falta de sustentabilidade destas opções foi mais tarde revelada pelo retorno ao uso
da força com novo golpe de Estado em 2004.
Quanto à relação custo-benefício, a intervenção no Haiti acabou por ser muito mais
longa do que a da Guatemala, partindo de um processo de mediação frágil e com o
uso de outros instrumentos com elevados custos tanto para a população como
sanções económicas ineficazes como para a ONU com a multiplicação de missões,
incluindo a MINUSTAH de grande envergadura e com um pesado orçamento anual
(em torno aos 500 milhões de dólares americanos).
Os diferentes instrumentos para a resolução do conflito usados no Haiti não
beneficiaram de vínculos de coordenação adequados, sendo muitas vezes
contraproducentes para a obtenção de uma situação pacífica duradoura: desde o uso
de sanções económicas à ameaça do uso da força.
A cobertura foi também limitada que não foram incluídos sectores mais amplos da
população além das duas partes em conflito, excluindo-se assim do processo a
grande maioria da sociedade civil e cidadania haitianas. A ONU limitou-se a facilitar
um diálogo entre as elites que disputavam o poder, sem favorecer uma inclusão e
um maior apoio nacional ao processo de paz.
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Finalmente, em termos de consistência com os valores, se foi um discurso assente
no respeito pelos direitos humanos e pela democracia que catalisou a intervenção no
Haiti, estes foram integrados no debate e na implementação da paz
superficialmente, sem que a origem do seu desrespeito fosse considerada de forma
efectiva. A equipa de mediação foi também muito afectada por uma interferência dos
Estados Unidos que em momentos críticos dirimiu a confiança entre as partes.
O contexto acima traçado lança ainda sérias dúvidas sobre a eficácia do papel hoje
desempenhado pela MINUSTAH. Na auncia de um Exército nacional (foi dissolvido por
Aristide nos anos noventa) e num quadro de enorme debilidade das forças de
segurança, a MINUSTAH assume hoje a responsabilidade pela manutenção da ordem e
da segurança no país. Com este objectivo central, descura uma transformação das
estruturas existentes geradoras de violência. Usando instrumentos cada vez mais
amplos, muito mais além dos recursos militares, mas incluindo instrumentos de
governabilidade e de grande incidência no aparelho estatal, concentra-se ainda
sobretudo na contenção do conflito por oposição à sua resolução de forma mais efectiva
e duradoura.
Permite assim manter o Haiti numa situação brida, de pós-guerra/pré-guerra, sem
que se recupere uma estratégia nacional de resolução das causas da conflitualidade. O
processo político ficou estancado, vivendo-se antes uma situação de instabilidade
permanente, como ocorre em vários outros palcos de actuação (Duffield, 2007),
perpetuando a necessidade da presença internacional armada pela não resolução
do problema que a mobilizou.
A preocupação com a primazia das questões políticas que aqui salientamos foi
recentemente mencionada no Relatório de Peritos liderado pelo Dr. JoRamos Horta,
encarregue pelo Secretário-geral de nova apreciação da eficácia das operações de
paz
15
.
Diz o relatório:
“A number of peace operations today are deployed in an
environment where there is little or no peace to keep.”
Neste quadro, o mesmo documento recomenda:
“Lasting peace is achieved not through military and technical
engagements, but through political solutions. Political solutions
should always guide the design and deployment of United Nations
peace operations. When the momentum behind peace falters, the
United Nations, and particularly Member States, must help to
mobilize renewed political efforts to keep peace processes on
track.”
15
Texto completo disponível em http://www.un.org/en/ga/search/view_doc.asp?symbol=A/70/95,
consultado a 11 de Fevereiro de 2016.
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Esta recomendação parece ter pertinência para casos de arrastamento de situações de
instabilidade como o caso haitiano, onde uma intenção concordante com a que
conduziu a intervenção na Guatemala viu a sua implementação desviar-se do guião
sugerido pelo conceito de paz positiva, contornando a imprescindibilidade de uma
solução política.
A comparação que aqui se trouxe permitiu não apenas verificar resultados díspares,
mas sobretudo identificar que fases e procedimentos da intervenção da ONU poderão
estar na raiz de um processo de paz menos sustentável. Alerta assim para a
possibilidade da própria intervenção externa ter influenciado negativamente uma
reconciliação mais duradoura.
Os mecanismos de avaliação da actuação das Nações Unidas ao centrarem-se
sobretudo em resultados, estabelecidos normalmente em mandatos desenhados pela
própria ONU, têm obstruído uma observação mais crítica sobre os procedimentos
empregados para os alcançar. Pelo contrário, avaliações que contemplem também o
processo em si, que apreciem a forma como se materializou na prática o projecto de
paz ampla, como foi testado na comparação que aqui se expôs, pode oferecer
respostas mais concretas sobre que mecanismos podem ser mais eficazes para a
sustentabilidade da paz.
Conclusões
Se a evolução do discurso das Nações Unidas nomeadamente nos seus documentos
orientadores, da mencionada Agenda para a Paz ao Relatório Brahimi de 2000, à
Doutrina Capstone de 2008, se fez por uma ampliação do conceito de paz muito
próxima à perspectiva de Galtung de paz positiva, a sua implementação no terreno
continua a verificar sérias debilidades no cumprimento do guião que esta mesma
conceptualização sugeria.
Em termos de avaliação da eficácia destes mecanismos, num quadro de patente
dificuldade no terreno de promover pazes mais sustentáveis, a ONU continua a centrar-
se sobretudo numa verificação de resultados estabelecidos internamente, mais do que
numa avaliação crítica dos procedimentos que põe em prática para os alcançar. Sem
alterar drasticamente esta implementação dificilmente consegui ultrapassar os
obstáculos que repetidamente tem encontrado.
Efectivamente, o recente Relatório Ramos-Horta menciona mesmo em termos de
procedimentos algumas preocupações muito relevantes, como a necessidade de alargar
o espectro de parceiros da ONU ultrapassando a exclusividade corrente atribuída às
elites, a premência do foco essencial nas questões políticas e em processos de
reconciliação assentes em quadros de mediação alargados, e a obrigatoriedade de
intervir de forma mais flexível, em conformidade com o contexto e com prioridades
estabelecidas localmente.
Favorecer mecanismos de avaliação que abordem igualmente se este tipo de
procedimentos estão a ser cumpridos, mais do que uma observação restrita a
resultados poderá facilitar uma visão mais crítica sobre a actuação no terreno que
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Pensar a paz positiva na prática. Avaliar a eficácia das Nações Unidas na implementação de uma paz ampla
Madalena Moita
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propicie uma análise sobre que aspectos da intervenção internacional poderão estar
eles próprios a afectar a implementação de um projecto de paz que se quer duradouro.
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GANÂNCIA, RESSENTIMENTO, LIDERANÇA E INTERVENÇÕES EXTERNAS NO
INÍCIO E NA INTENSIFICAÇÃO DA GUERRA CIVIL EM ANGOLA
Ricardo Sousa
ricardorps2000@yahoo.com
Professor Auxiliar na Universidade Autónoma de Lisboa (UAL, Portugal) e investigador integrado
no OBSERVARE. É doutorado pelo International Institute of Social Studies (ISS) da Erasmus
University of Rotterdam (EUR) na Holanda. Foi membro da Research School in Peace and Conflict
(PRIO/NTNU/UiO) na Noruega e é investigador de conflitos no Centro de Estudos Internacionais
(CEI) do Instituto Universitário de Lisboa, Portugal. Tem um mestrado em Estudos sobre o
Desenvolvimento pela School of Oriental and African Studies (SOAS) da University of London,
assim como um diploma de pós-graduação em estudos avançados sobre África e uma licenciatura
em Gestão, ambos pelo Instituto Universitário de Lisboa.
Resumo
Compreender a iniciação do conflito é fundamental para o sucesso dos esforços de
prevenção de conflitos. A validade dos mecanismos do modelo "Ganância e Ressentimento",
assim como a liderança e intervenções externas são testados em quatro períodos de início e
intensificação do conflito em Angola. Todos os mecanismos estão presentes, mas a sua
relevância relativa varia ao longo do conflito. Entre os mecanismos identificados em cada
período, os mais relevantes no período da Guerra Fria são as intervenções internacionais e
regionais em 1961 e 1975, e no período pós-Guerra Fria, são os factores "ganância" em
1992 (petróleo e diamantes, pobreza e capital de guerra) e a liderança da UNITA de Jonas
Savimbi em 1998. O estudo de caso demonstra que a "ganância" e o "ressentimento"
podem estar interligados (como em 1992) e confirma a relevância dos mecanismos de
liderança e de intervenções externas.
Palavras-chave
África, Angola, Conflito, Ganância, Ressentimento, Liderança, Intervenções Externas
Como citar este artigo
Sousa, Ricardo Real P. (2016). "Ganância, ressentimento, liderança e intervenções externas
no início e na intensificação da Guerra Civil em Angola. JANUS.NET e-journal of
International Relations, Vol. 7, 1, Maio-Outubro de 2016. Consultado [em linha] na data
da última consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol7_n1_art5
(http://hdl.handle.net/11144/2623)
Artigo recebido em 16 de Fevereiro de 2016 e aceite para publicação em 12 de Abril de
2016
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Ganância, ressentimento, liderança e intervenções externas no início e
intensificação da guerra civil em Angola
Ricardo Real P. Sousa
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GANÂNCIA, RESSENTIMENTO, LIDERANÇA E INTERVENÇÕES EXTERNAS NO
INÍCIO E NA INTENSIFICAÇÃO DA GUERRA CIVIL EM ANGOLA
1
Ricardo de Sousa
Introdução
Várias abordagens têm sido desenvolvidas para explicar o início da Guerra Civil. O
modelo "Ganância e Ressentimento", popularizado por Paul Collier, foi alvo de intenso
escrutínio por parte dos investigadores.
O modelo baseia-se numa abordagem de escolha racional e contrasta as oportunidades
económicas que permitem que as pessoas sejam capazes de organizar e financiar uma
rebelião ("ganância"), ou seja, a rebelião enquanto ato criminoso, com motivos
políticos e sociais através dos quais pessoas querem revoltar-se ("ressentimento"),
como as injustiças socioeconómicas sentidas por um grupo social. O modelo é
operacionalizado através de uma série de variáveis proxy. As oportunidades para os
potenciais rebeldes são: a1) possibilidades de financiamento disponíveis, que podem
ser receitas provenientes dos recursos naturais, remessas da diáspora ou o apoio de
governos hostis; a2) custos de recrutamento de rebeldes, determinados pelos níveis de
rendimentos alternativos; 3) o capital de guerra acumulado; A4) a capacidade do
governo de controlar o território, medido em termos do terreno ser adequado para os
rebeldes (floresta e montanhas), e o grau de dispersão das populações, e; a5) a coesão
social da sociedade e de que forma os factores étnicos e religiosos podem facilitar o
estabelecimento e manutenção de grupos de conflito. Os ressentimentos dos potenciais
rebeldes são: b1) ódio religioso e étnico entre grupos; b2) nível de repressão política;
b3) exclusão política dos grupos, e; b4) desigualdade de rendimentos no país (Collier e
Hoeffler, 2004).
A aplicação deste modelo às Guerras Civis entre 1960 e 1999 conclui que o principal
mecanismo no início da Guerra Civil é a "ganância", e o desejo de adquirir benefícios
económicos e, portanto, a capacidade percebida de organizar e manter uma rebelião.
Os principais factores de "ganância" o a existência de recursos naturais
(especialmente petróleo), as remessas da diáspora, os baixos custos de recrutamento
de combatentes, a vantagem militar em termos de populações dispersas, e o capital de
guerra existente no país (desde o último conflito) (Collier e Hoeffler, 2004). O único
factor de ressentimento significativo é a exclusão política com dominação étnica, ao
mesmo tempo que a diversidade étnica e religiosa diminui as hipóteses de conflito se a
dominação étnica for evitada. Por último, o tamanho da população espositivamente
1
A tradução deste artigo foi financiada por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e
a Tecnologia no âmbito do projeto do OBSERVARE com a referência UID/CPO/04155/2013, e tem como
objectivo a publicação na Janus.net. Texto traduzido por Carolina Peralta.
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Ganância, ressentimento, liderança e intervenções externas no início e
intensificação da guerra civil em Angola
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associado com o despoletar do conflito
2
(estes resultados encontram-se resumidos na
coluna "resultados" na Tabela 1). Fearon e Laitin (2003) chegaram a resultados
semelhantes relativamente à relevância dos factores "ganância” para explicar o início
de Guerras Civis. Mas consideram que a variável do rendimento baixo é um proxy da
menor capacidade do Estado de reprimir a rebelião e, consequentemente, custos mais
baixos para os rebeldes poderem manter uma rebelião, em vez de um proxy da
redução dos custos no recrutamento de combatentes, como consideram Collier e
Hoeffler (2004). Na opinião de Fearon (2005), se o petróleo for um factor preditor de
Guerras Civis, não o será tanto por ser um mecanismo empresarial (como um "prémio"
tentador para aqueles que controlam o estado), mas principalmente porque os
produtores de petróleo têm um Estado com baixa capacidade para reprimir a rebelião
relativamente aos seus veis de rendimento per capita. Os países ricos em petróleo
têm menos incentivos para desenvolver o aparelho de Estado necessário para a
cobrança de receitas.
Na sequência de abordagens racionalistas-positivistas semelhantes, a validade do
modelo foi testada com recurso a avaliação quantitativa e qualitativa. A análise
quantitativa de Hegre e Sambanis (2006) confirmou vários resultados do modelo,
incluindo o empresarial (Collier e Hoeffler, 2004) e capacidade de repressão do Estado
(Fearon e Laitin, 2003).
O modelo foi posteriormente revisto, considerando que é a viabilidade financeira e
militar do conflito que aumenta a probabilidade de iniciação de uma Guerra Civil. A
viabilidade é medida principalmente em termos de: o país ser uma ex-colónia francesa
e, portanto, sob a égide de segurança da França, o que faz com que a rebelião tenha
menor probabilidade de sucesso e seja menos provável; a proporção de jovens do sexo
masculino no país que são potenciais combatentes, e; a presença de terreno
montanhoso que viabilize a ação militar rebelde (Collier, Hoeffler e Rohner, 2009).
Portanto, a questão não é tanto se há um motivo associado a "ressentimento" ou se há
uma oportunidade relacionada com a "ganância", mas se a insurreição é viável.
Neste artigo testamos o modelo original de "ganância" e "ressentimento" por três
razões. Uma delas é porque os factores de viabilidade são difíceis de testar num único
estudo de caso, pois não variam significativamente ao longo do tempo. Uma segunda
razão é porque os resultados do modelo de viabilidade reconfirmam os resultados do
modelo original, no sentido que os factores de "ganância" são ainda significativos,
enquanto os de "ressentimento" o o são (Collier, Hoeffler e Rohner, 2009). Uma
terceira razão é que não há acordo no debate sobre a "ganância" e o "ressentimento" e
este debate ainda não foi substituído por um sobre a "viabilidade".
O atual debate sobre a "ganância" e o "ressentimento" centra-se em qual dos
mecanismos explica o início das Guerras Civis, nos fundamentos epistemológicos dos
estudos e nas implicações políticas dos resultados.
O argumento do "ressentimento" remonta à teoria da "privação relativa", que propunha
que os mecanismos psicológicos associados à frustração de não satisfazer as
expectativas materiais estão na raiz da iniciação dos conflitos (Davies, 1962; Gurr,
1970). Tilly (1978) contestou este argumento, considerando que os factores de
ressentimento se encontram disseminados na sociedade e o conflito não está presente
2
Isto é interpretado mais como um factor de ganância por aumentar a probabilidade de haver subgrupos
populacionais que querem uma secessão.
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Ganância, ressentimento, liderança e intervenções externas no início e
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em todas as sociedades. Em vez disso, é a capacidade de organizar uma rebelião,
determinada pelo acesso a recursos materiais e organizacionais, que diferencia as
sociedades onde a Guerra Civil tem início ou não. Com o trabalho de Gurr (1970, 2000)
sobre o conflito étnico, os ressentimentos ao nível do grupo adquirem outra capacidade
para explicar o início do conflito.
Na tradição do argumento do "ressentimento", tem sido sugerido que a rebelião ocorre
nos casos de desigualdades horizontais multidimensionais (Stewart, 2002). As
desigualdades horizontais acontecem quando a exclusão social e a pobreza ocorrem
simultaneamente com a identidade ou fronteiras regionais. Buhaug, Cederman e
Gleditsch (2014) usaram as desigualdades horizontais como uma variável proxy para a
desigualdade, em vez de recorrerem ao coeficiente de GINI utlizado por Collier e
Hoeffler (2004) e Fearon e Laitin (2003), que reflete as desigualdades verticais -
desigualdade entre os valores de uma distribuição de frequência do rendimento, a
desigualdade económica interpessoal. Concluíram que as desigualdades horizontais
constituem um factor importante nas rebeliões e são melhor preditor de insurreição do
que as desigualdades verticais
3
.
A análise qualitativa do modelo de “Ganância e Ressentimento” através de uma série
de estudos de caso (Collier e Sambanis, 2005) confirma os seus principais resultados.
No entanto, também identifica uma série de limitações e reflexões, algumas das quais o
presente estudo de caso sobre Angola se revela particularmente adequado para
investigar.
Uma limitação do modelo é a ausência de liderança enquanto factor. Isto deve-se
principalmente ao facto de a liderança ser difícil de quantificar. duas teorias sobre o
papel da liderança na mobilização de grupos étnicos. Uma delas, assente em
pressupostos racionalistas e construtivistas, sugere que uma construção social da
identidade por parte das elites políticas, a fim de mobilizar e manipular grupos étnicos
para o combate (Gurr, 2000). Esta teoria difere da perspetiva primordial, que considera
que há uma propensão inata ao conflito na identidade étnica (Brubaker, 1995).
Outra limitação é a ausência de uma descrição do papel desempenhado pelas
intervenções externas. Collier e Hoeffler (2004) recorrem à variável dicotómica da
Guerra Fria como substituto, não tendo encontrando nenhuma relação estatisticamente
significativa
4
. Contudo, esta variável não capta o efeito diferenciado das variáveis
exógenas sobre a Guerra Civil. A Guerra Fria teve diferentes períodos de intensidade,
entre o pós-Segunda Guerra Mundial e 1991, quando terminou e com diferentes níveis
de envolvimento dos atores externos. Também teve diferentes expressões a vel
internacional e regional. A nível regional, podem haver efeitos de difusão e de contágio.
A difusão ocorre através das demonstrações, onde os eventos políticos num país
servem de inspiração à ação política num outro. O contágio ocorre através de: grupos
étnicos comuns transfronteiriços; acumulação de capital guerra (por exemplo, armas de
pequeno porte) em regiões específicas; movimentos de refugiados, ou intervenções
externas (Sambanis, 2005). O efeito de intervenções externas na Guerra Civil é uma
das relações menos estudadas na literatura (Sambanis, 2002). As intervenções
externas apoiam as partes beligerantes, afetando a sua propensão para lutar. As
3
Cederman, Weidmann e Gleditsch (2011) e Østby (2008) obtiveram resultados semelhantes.
4
A outra variável exógena utilizada foi as remessas enviadas pela diáspora, mas, por motivos de dados,
limita-se às remessas enviadas a partir dos EUA.
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intervenções militares aumentam diretamente a capacidade militar de lutar e as
intervenções económicas diminuem os custos de coordenação e de manutenção de uma
rebelião ao aumentarem a probabilidade de sucesso (Elbadawi e Sambanis, 2000).
As intervenções diplomáticas são normalmente utilizadas para encontrar uma solução
não violenta para o conflito, e a partilha de informações pode aumentar as hipóteses de
se chegar a uma solução política. De uma forma geral, existe evidência de que as
intervenções militares têm um efeito de escalada do conflito, enquanto as intervenções
económicas e diplomáticas nas Guerras Civis têm um efeito oposto (Regan e Meachum
2014, Sousa, 2015).
As limitações do modelo podem ser contextualizadas recorrendo a considerações
epistemológicas mais amplas. Tem sido argumentado que a abordagem assente na
escolha racional e o individualismo metodológico destes estudos não contemplam os
aspetos sociais, relacionais e históricos (Cramer, 2002). Além disso, a inferência
estatística é distinta da causalidade, e o positivismo pode cair em explicações
tautológicas do fenómeno com base em conjuntos de dados desarticulados dos
significados que os eventos têm no terreno (Korf, 2006).
Uma das principais reflexões de Sambanis (2005) é que se deve considerar a
"ganância" e o "ressentimento" como matizes alternativos dos mesmos fenómenos, e
não como explicações concorrentes. Existem alguns mecanismos que ilustram esta
hipótese. Por exemplo, as instituições políticas funcionais podem fazer diminuir os
ressentimentos políticos, mas, ao mesmo tempo, um bom desempenho económico
pode encorajar a estabilidade das instituições e, desta forma, afetar os ressentimentos.
Também o fracasso do Estado ou a ilegitimidade do governo conduz à anarquia interna,
e nesse caso a "ganância" pode ser considerada a procura de sobrevivência pelos
grupos da sociedade.
Por último, a relevância deste debate pode ser compreendida relativamente às suas
implicações políticas sobre como prevenir a Guerra Civil. A explicação da "ganância"
conduz a medidas como o: crescimento e diversificação económica; controlo e gestão
dos recursos naturais, e; a força do Estado com intervenções externas orientadas a
melhorar a sua capacidade. As explicações que colocam a tónica no "ressentimento"
destacam: a indivisibilidade de algumas questões, tais como a identidade, etnia ou
religião; a necessidade de inclusão étnica e distribuição mais justa da riqueza no país;
soluções mediadas entre as partes, e intervenções externas a fim de garantir um
compromisso face aos acordos de paz.
Inspirado no trabalho qualitativo de Collier e Sambanis (2005), este artigo tem um
duplo objetivo: o primeiro é testar a hipótese da "ganância" e do "ressentimento" como
explicações alternativas, mas também complementares, da Guerra Civil, paralelamente
às variáveis, normalmente omitidas, da liderança e efeitos exógenos a vel
internacional e regional, na forma de intervenções externas (ou processos de difusão).
O segundo é aplicar o modelo a um estudo de caso histórico em Angola, algo que não
foi feito antes. A Guerra Civil em Angola decorreu entre a guerra da independência, e
prolongou-se pela Guerra Fria até ao pós-Guerra Fria. Causou mais de 500,000 mortes,
dezenas de milhares de pessoas mutiladas por minas antipessoais e o deslocamento de
aproximadamente 4,1 milhões de pessoas.
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Ganância, ressentimento, liderança e intervenções externas no início e
intensificação da guerra civil em Angola
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O presente estudo adota a definição de Guerra Civil proposta por Gleditsch et al
(2002), que consiste numa incompatibilidade beligerante relativamente a um governo
e/ou território com recurso ao uso da força pelas partes, em que pelo menos uma delas
é o estado ou o governo, resultando em pelo menos 25 mortes em combate
5
.
A conceptualização das variáveis, neste caso a variável dependente da Guerra Civil, é
um dos desafios que se colocam nos estudos quantitativos (Sambanis, 2004). De um
modo geral, no caso de Angola existiram dois tipos de guerra: a guerra da
independência colonial iniciada em 1961, também apelidada de guerra extra-sistémica
e uma Guerra Civil internacionalizada desde a independência, entre 1975 e 2002.
A guerra da independência colonial tem particularidades que a diferenciam da guerra
que se lhe sucedeu (no que respeita às questões e às partes envolvidas) que poderia
merecer uma análise separada. Mas devido ao facto de a análise original de Collier e
Hoeffler (2004) incluir estes tipos de guerra, será igualmente considerada. A Guerra
Civil iniciada após a independência internacionalizou-se porque teve o envolvimento
militar de atores externos. A questão a considerar aqui é se as recaídas no conflito após
períodos de paz na sequência de um acordo de paz devem ser consideradas uma nova
Guerra Civil ou não. Em Angola, as recaídas tinham por protagonistas as mesmas
partes beligerantes que lutavam sobre a mesma questão e, portanto, não se
encaixavam completamente na classificação de uma nova Guerra Civil. Além disso, o
modelo do "início" de guerras civis tem como objetivo identificar os principais
mecanismos associados a uma mudança qualitativa dos processos políticos num país,
onde os atores decidem passar de conflitos não-violentos a uma situação de conflito
violento. Os mecanismos nestes casos não são necessariamente os mesmos que
encontramos nas situações de recaída. Nas recaídas, o grupo de combatentes e o
capital de guerra já existem e este facto pode ter um efeito decisivo sobre os factores
que explicam o icio da Guerra Civil. Esta dependência histórica é difícil de analisar e
também está presente na transição da guerra de independência para a Guerra Civil
internacionalizada, onde podemos encontrar algumas das mesmas partes beligerantes,
ainda que lutem contra uma parte diferente (díades distintas).
Por este motivo, a análise irá considerar dois inícios, a guerra da independência e a
Guerra Civil internacionalizada, e nesta última, duas intensificações do conflito.
Identificam-se quatro períodos na Guerra Civil em Angola entre 1961 e 2002
6
. O
primeiro período começou em Fevereiro de 1961 com o início da guerra de
independência contra Portugal e estendeu-se até Julho de 1974, com a assinatura de
um cessar-fogo entre Portugal e os movimentos nacionalistas. O segundo período
iniciou-se em Novembro de 1975 com o começo da Guerra Civil internacionalizada e
terminou com os Acordos de Bicesse em Maio de 1991. O terceiro período começou
5
Todas as classificações utilizadas neste artigo e as datas de início/intensificação do conflito são retiradas
desta fonte, a menos que seja dito o contrário. Os períodos e subperíodos utilizados neste trabalho
correspondem significativamente aos propostos por Sambanis (2004) e Collier e Hoeffler (2004), com
pequenas diferenças de um ano devido ao nível de violência tido em consideração: Sambanis (2004) e
Collier e Hoeffler (2004) consideram que o segundo período termina em Maio de 1991, ano dos acordos
de paz em Bicesse, ainda que Gleditsch et al (2002) considerem que, tecnicamente, tanto 1991 como
1992 foram anos de conflito; Sambanis (2004) considera que o terceiro período termina em 1994 e que
1995 foi um ano com muito baixos níveis de violência, não atingindo os limiares para ser considerado de
conflito, enquanto para Collier e Hoeffler (2004), o conflito que se iniciou em 1992 só terminou em 2002;
Sambanis (2004) considera que o quarto período teve início em 1997, devido à escalada da violência
nesse ano.
6
Este artigo não analisa o conflito de Cabinda, que ocorre ao mesmo tempo e apresenta dinâmicas
semelhantes, mas em muitos casos específicas.
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Ganância, ressentimento, liderança e intervenções externas no início e
intensificação da guerra civil em Angola
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com a intensificação do conflito após as eleições de Setembro de 1992 e terminou em
1995, quando a intensidade do conflito diminuiu significativamente. O período final
decorreu entre Março de 1998, quando o conflito se reiniciou, e Abril de 2002, quando
terminou
7
.
A Tabela 1 utiliza os valores das variáveis proxy do modelo de Collier e Hoeffler (2004)
para os anos mais próximos do início do conflito no período entre 1960 e 1995,
comparando os valores para Angola com as médias para todos os países, para os
países onde a Guerra Civil não começou e países onde uma Guerra Civil se iniciou. No
caso de Angola, os principais indicadores de ganância são propícios à iniciação do
conflito: em termos de financiamento, os recursos naturais encontram-se acima da
média, e os custos de recrutamento estão abaixo da média
8
dos valores dos países
onde se iniciou uma Guerra Civil; simultaneamente, as possibilidades de controlo por
parte do Estado são reduzidas, pois tanto a dispersão geográfica como a população são
mais elevados do que a média dos países onde a Guerra Civil começou, e; os
indicadores de ressentimento são menos favoráveis à iniciação de conflito pois o
fracionamento social é elevado em todo o país mas sem que haja dominação étnica.
A análise histórica neste trabalho identifica tanto os factores de "ganância" como os de
"ressentimento" em momentos do início ou de intensificação da Guerra Civil em
Angola
9
, sugerindo que as variáveis exógenas para as dimensões internacionais e
regionais e a variável endógena de liderança melhoram o poder explicativo do modelo.
O artigo segue uma ordem cronológica dos quatro momentos de iniciação ou
intensificação da Guerra Civil, descrevendo e analisando a "ganância", o
"ressentimento" e as dinâmicas exógenas. Posteriormente, examina a dinâmica de
liderança, que é melhor compreendida transversalmente ao longo dos períodos.
7
Collier e Hoeffler (2004) consideram que a Guerra Civil em Angola começou em 1961, 1975 e 1992 e que
continuava em 1999, o último ano da base de dados. Devido ao facto de os anos de 1996 e 1997 não
terem sido classificados como sendo de conflito por Gleditsch et al (2002), aqui acrescenta-se o ano de
1998 como o de outra intensificação do conflito.
8
Exceto para um maior crescimento económico em 1965 (não apresentado na tabela) e 1998.
9
Devido ao facto de não haver dados sobre o GINI para Angola e os indicadores de desigualdades
horizontais não variarem no período em questão, as evidências do ressentimento baseiam-se em estudos
de caso.
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Tabela 1: Factores do modelo de Ganância e Ressentimento 1960, 1975, 1990 e 1995
Notas: os dados são de Collier e Hoeffler (2004) e seguem o intervalo de 5 anos da base de dados. Os anos relatados são os mais próximos do início ou intensificação
dos conflitos de 1961, 1975, 1991 e 1998. As células vazias correspondem a dados em falta na base de dados e a coluna "Resultados" indica se a proxy é
estatisticamente significativa (SIG) (ao nível de 1%, 5% ou 10%) e a direção do efeito: aumentando (+) ou diminuindo (-) a probabilidade de início de Guerra Civil.
SS significa Sem Significância estatistica e num dos casos o valor p é reportado. A definição das variáveis encontra-se no artigo original. O principal objetivo da tabela
é comparar Angola com outros países e o os valores individuais. Por exemplo, a população é reportada como um logaritmo natural, tal como no artigo original, e a
variável emigrante é aqui multiplicada por 1000, de modo a ter um valor mais legível. “SGC In” significa países onde o se iniciou qualquer Guerra Civil no período
(nos cinco anos seguintes ao ano identificado) e “GC In” significa países onde uma Guerra Civil se iniciou nesse período. *1 Resultados da maioria dos modelos
testados, mas não de todos; *2 Significativo num modelo combinado; e *3 As variáveis identificadas são as reportadas nos modelos independentes. Algumas das
variáveis do modelo não foram reportadas nas tabelas de Collier e Hoeffler (2004) devido à ausência de significância, e são: a4) proporção de florestas, densidade
populacional e população nas áreas urbanas; b2) abertura política, e; b4) rácio top-to-bottom dos quintis de rendimento.
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O início da guerra da independência em 1961
No início dos anos sessenta, a estrutura socioeconómica de Angola era tipicamente
colonial, com a produção industrial representando apenas uma pequena proporção do
seu Produto Interno Bruto (PIB). Havia uma pequena minoria branca que vivia
principalmente na capital e que controlava a esfera política local, mas que era
dependente da metrópole
10
. Uma outra minoria era constituída por crioulos e negros
assimilados com direitos de cidadania, que trabalhavam principalmente no setor público
e no comércio
11
. O resto da população de quatro milhões e setecentos mil era toda de
origem Bantu e pertencia principalmente a um dos três grupos etnolinguísticos
dominantes, os Mbundu, os Ovimbundu e os Bakongo.
Os Mbundu, predominantemente do centro e da região norte
12
, juntamente com os
crioulos das cidades, tornaram-se a principal base de apoio do MPLA - Movimento
Popular para a Libertação de Angola. O grupo está associado à religião metodista e à
economia urbana de emprego estatal. Os Ovimbundu, oriundos principalmente do
planalto central
13
, estão associados à UNITA União Nacional para a Independência
Total de Angola e pertencem principalmente à igreja Congregacional, estando ligados
ao comércio associado com o caminho-de-ferro. Por último os Bakongo
14
, da região
norte, estão igualmente presentes no Congo (Congo-Brazzaville) e na República
Democrática do Congo (RDC). O grupo está associado à FNLA - Frente Nacional para a
Libertação de Angola , pertence principalmente à igreja Batista e está ligado à
produção de café (Birmingham, 2006). O principal e às vezes único denominador
político comum destes três grupos era a independência de Angola.
Apesar de ter havido sublevações na história de Angola, não surgiram novos
ressentimentos sociais e económicos ou oportunidades económicas neste período que
pudessem explicar o início do conflito. Em vez disso, o que é específico a este período
foram as mudanças que ocorreram no contexto internacional da Guerra Fria,
nomeadamente: o pró-nacionalismo inicial da administração Kennedy nos Estados
Unidos da América (EUA)
15
, e, no âmbito regional, o ano da independência africana em
1960, em particular a independência do Congo (posteriormente chamado RDC)
16
.
Neste ambiente internacional e regional propício, no início de 1961 uma sequência de
eventos conduziu ao início do conflito. O primeiro evento, em Janeiro, ocorreu quando
os Mbundu atacaram principalmente os representantes e os edifícios da indústria do
algodão, tirando partido das queixas sobre trabalho forçado e as políticas de produção
10
173.000 em 1960.
11
Cerca de 54.000 em 1960 e 30.000 em 1950, respetivamente.
12
Cerca de 24 por cento da população.
13
Cerca de 32 por cento da população.
14
Cerca de 32 por cento da população.
15
Até 1962, quando a tese pró-europeia ganha à posição africanista na Casa Branca (Rodrigues, 2004).
16
Alguns dos acontecimentos contemporâneos incluíram: a independência do Egito em 1951, a Conferência
de Bandung para a autodeterminação e governo autónomo de povos colonizados em 1955, a Conferência
de Todos os Povos Africanos, que reuniu delegados dos movimentos independentistas e teve lugar em
Acra em 1958 e em Tunes em 1960, e, de forma significativa, a independência de 17 países africanos em
1960.
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Ganância, ressentimento, liderança e intervenções externas no início e
intensificação da guerra civil em Angola
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de algodão, que envolvia a produção forçada de algodão, o controlo estatal do mercado
e a apropriação de terras (Birmingham, 2006)
17
.
No mês de Fevereiro, na capital Luanda, um grupo falhou uma tentativa de libertação
de presos políticos nacionalistas, sendo que alguns dos membros do grupo viriam
futuramente a pertencer ao MPLA. No rescaldo, seguiu-se uma severa repressão na
cidade por parte da polícia e civis armados. Esta revolta pode ser associada às queixas
dos crioulos e mestiços entre a população urbana, especialmente em relação às
políticas públicas discriminatórias implementadas desde a década de 1950 devido ao
aumento do afluxo de colonos portugueses
18
(Hodges, 2001, Birmingham, 2006).
O terceiro evento ocorreu em Março de 1961 nas áreas de produção de café no
Bakongo do Norte (Uíge), de onde a rebelião se espalhou violentamente. Neste caso,
não foram os agricultores brancos e as suas famílias que foram atacados, mas
também os mestiços e trabalhadores negros migrantes - Ovimbundu originários do sul
(Spikes, 1993). Estes últimos eram vistos tanto como colaboradores dos colonizadores
(Birmingham, 1999) como a razão para os baixos salários que prevaleciam na região
(Cramer, 2006), onde se fazia sentir uma frustração significativa devido à expropriação
de fazendeiros de café angolanos no Norte (Cramer, 2002). Holden Roberto, líder do
então UPA - União do Povo de Angola
19
, viria a reivindicar responsabilidade pela
insurreição rural, que ocorreu ao mesmo tempo que ele viajava para Nova Iorque para
discutir a autodeterminação de Angola nas Nações Unidas (Spikes, 1993).
Em contraste tanto com os belgas (os colonizadores do país vizinho, de onde vieram os
rebeldes da UPA, que ganhara a sua própria independência apenas alguns meses
antes) e com a paisagem política da época, a administração portuguesa não negociou
e, apesar de a ditadura estar a enfrentar um de seus períodos mais difíceis, o regime
reforçou a sua política colonial e aumentou as suas capacidades repressivas na colónia.
Ao mesmo tempo, iniciou-se uma política de "conquista dos corações" dos povos
governados e, a vel internacional, jogou-se a "cartada" das Lajes (bases militares
estratégicas localizadas nas ilhas dos Açores, de grande importância para os EUA) a fim
de aliviar a pressão internacional para a descolonização.
O modelo e o início do conflito em 1961
A maioria dos factores de oportunidade económica não se verificava em 1961, quando
a guerra de independência começou. Os recursos naturais tinham um peso significativo
no volume das exportações, embora o petróleo não fosse o principal recurso. O café era
o principal produto de exportação, com 36 por cento, o que em conjunto com outros
produtos agrícolas não transformados, ascendia a 56 por cento do valor total das
exportações em 1961, enquanto as exportações de petróleo representavam 20 por
cento das exportações (Ferreira, 2006).
17
Estas queixas tinham sido associadas a revoltas em 1915 e 1945, embora nessa altura o regime
português tivesse tido a capacidade de controlá-las. O único outro período com revoltas ocorreu no início
do século, no período de consolidação do controlo português sobre o território, e estavam associadas à
resistência oferecida pelos reinos dos Ovimbundu (1902 e 1904) e dos Bakongo (1913 e 1916) (Spikes,
1993).
18
De 80.000 em 1950, a população de colonos aumentou para 170.000 em 1960 e cerca de 300.000 à
época da independência em 1975 (Pereira, 1994).
19
Que mais tarde se tornou na FNLA.
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Ganância, ressentimento, liderança e intervenções externas no início e
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Não existem dados sobre a diáspora nos EUA para qualquer um dos quatro períodos
analisados. Contudo, a literatura qualitativa raramente se refere ao papel da diáspora
angolana no financiamento da rebelião, limitando-se a fazer referências individuais aos
exilados políticos em Lisboa, Brazzaville e Conacri na década de 1960. Para além disso,
Angola não dispunha de capital de guerra e não havia um grande grupo étnico
dominante no país. Em vez disso, havia uma minoria de colonos dominantes, portanto,
um caso de ressentimento político por parte da população Bantu.
A primeira tentativa de insurreição em Luanda não foi bem-sucedida devido
principalmente à capacidade do Estado de controlar uma área com uma alta
concentração de população, e levou a que os insurgentes procurassem refúgio na densa
floresta do Dembo no nordeste de Luanda (George, 2005). O conflito iniciou-se
principalmente no ambiente rural de uma vasta região com uma população dispersa,
pelas mãos de um grupo que partilha a identidade Bakongo. Os insurgentes também
tinham problemas económicos semelhantes relativamente à política agrícola e laboral
no setor do café, que se traduziam no baixo rendimento per capita e fraca matrícula no
ensino secundário por parte do sexo masculino. Devido à estrutura económica, o
prémio associado à tomada do Estado era pequeno porque estava diretamente
dependente dos mesmos salários baixos no sector agrícola, em comparação com uma
situação em que o rendimento proviria principalmente do petróleo off shore. Portanto, o
incentivo financeiro para a rebelião pode ser encontrado no exterior.
O facto da liderança da UPA estar baseada em Leopoldville e da RDC se ter tornado
independente recentemente contribuiu significativamente para a tese da difusão e
contágio. A difusão estava relacionada com o efeito de demonstração da independência
da RDC. O contágio estava associado às origens dos insurgentes e agitadores, muito
provavelmente Bakongo, que viviam tanto no norte de Angola como no país vizinho. A
consciência política nacionalista de uma elite emigrada era apoiada por um ambiente
regional e internacional favorável aos movimentos independentistas, com a RDC e os
EUA a apoiarem a UPA
20
.
Em suma, o contexto colonial com os ressentimentos políticos da população, os
ressentimentos étnicos devido às desigualdades económicas, população dispersa, que
dificultava o controlo Estatal das revoltas, e a coesão dos grupos insurgentes, que
diminuía os custos de coordenação de uma rebelião, foram factores importantes para
explicar o início do conflito. Mas esses factores tinham estado presentes durante algum
tempo em Angola e, portanto, não são suficientes para explicar os acontecimentos em
1961. Em vez disso, o período favorável da Guerra Fria e o contexto regional, com a
independência da RDC, poderão ter sido os factores decisivos que conduziram ao início
do conflito em 1961.
O início da Guerra Civil internacional em 1975
Apesar da melhoria económica da população local na década de 1960
21
e dos
ressentimentos políticos terem sido resolvidos através da independência de Angola, o
cenário da Guerra Fria não permitia o desenvolvimento de uma solução pacífica
independente. Também o capital de guerra (na forma de grupos de combate e
20
Desde 1961 que o Conselho de Segurança Nacional dos EUA (CSN) apoiava oficialmente a UPA (Wright,
2001).
21
Entre 1962 e 1973 o crescimento médio real do PIB foi de 5 por cento (Ferreira, 2006).
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Ganância, ressentimento, liderança e intervenções externas no início e
intensificação da guerra civil em Angola
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equipamento militar) resultante da anterior guerra da independência foram um
desincentivo para os grupos nacionais encontrarem um compromisso político. Esta
Guerra Civil que começou em 1975 duraria até Abril de 2002, com uma breve pausa no
conflito em 1991/1992 e em 1996/1997.
Dois processos o importantes para entender o início da Guerra Civil: a configuração
socioeconómica de Angola antes da independência, e; o processo de transição para a
independência, em particular o período entre a data da revolução portuguesa no dia 25
de Abril de 1974 e o primeiro trimestre de 1976.
No período de pré-independência, o crescimento económico e políticas coloniais
atenderam aos ressentimentos das populações locais, ao mesmo tempo que uma série
de táticas militares provaram ser fundamentais no controlo com sucesso da rebelião.
Um certo grau de industrialização e o aparecimento do petróleo como principal produto
de exportação constituíram os desenvolvimentos socioeconómicos mais significativos
neste período (Ferreira, 2006).
Os três principais movimentos nacionalistas desenvolveram-se de forma distinta, cada
um com apoio internacional específico. A FNLA era liderada por Holden Roberto com o
apoio de Mobutu Sese Seko e fazia parte dos grupos antissoviéticos, apoiados pelos
Estados Unidos (EUA), República Democrática do Congo e República Popular da China.
No entanto, o apoio prestado foi simbólico e nunca suficiente para permitir à FNLA
conduzir um processo independente capaz de desafiar o governo colonial de uma forma
decisiva. Nesta fase, o MPLA encontrava-se ameaçado pela fragmentação, com a
"Revolta de Leste" liderada por Daniel Chipenda e a "Revolta Ativa" dirigida pelos
irmãos Andrade desafiando a liderança.
Agostinho Neto acabaria por assegurar a sua posição em 1974 assim como o apoio
soviético e cubano ao MPLA. Na UNITA, a liderança de Jonas Savimbi estava firme e a
presença do movimento fazia-se sentir principalmente nas regiões do sul. A UNITA era
o movimento que detinha menos apoio estrangeiro nesta fase. Aparentemente, todos
os movimentos independentistas foram tomados de surpresa quando no dia 25 de Abril
de 1974 se deu o golpe militar em Portugal para derrubar o "Estado Novo", e que tinha
como objetivo fundamental acabar com as guerras coloniais.
Este período em que se o início da internacionalização da Guerra Civil apresenta
duas características principais: por um lado, a aparente inevitabilidade de cada
movimento nacionalista procurar adquirir poder exclusivo em Angola e, por outro, não
a falta de cooperação e coordenação de cada ator externo para conter o ímpeto
conflituoso, mas também o aumento gradual do seu envolvimento num processo
competitivo.
Inicialmente, Portugal desempenhou um papel de liderança no processo de
descolonização, conseguindo assegurar um acordo de cessar-fogo e a assinatura dos
Acordos de Alvor pelos três movimentos em Janeiro de 1975. O acordo estipulava um
plano de transição e a data de 11 de Novembro de 1975 para a independência. Na
prática, Portugal não tinha nem capacidade nem disponibilidade para gerir o processo,
e em Agosto de 1975 entregou o processo de transição à sorte dos partidos no terreno.
No princípio, os três movimentos receberam o apoio limitado dos seus apoiantes
externos da Guerra Fria. Mas nos meses que antecederam o dia da independência,
tanto o MPLA em Luanda como a FNLA no norte de Angola (apoiado pela RDC)
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aumentaram progressivamente a intensidade do conflito. Este facto levaria a uma
dimensão internacional decisiva em Outubro/Novembro, quando a África do Sul decidiu
enviar uma força de invasão de apoio à UNITA, e Cuba aumentou o seu apoio ao MPLA
(Operações Savana e Carlota, respetivamente).
Holden Roberto tentou conquistar Luanda com um confronto decisivo na batalha de
Quifangondo, que terminou a 10 de Novembro de 1975. Esta batalha opôs o MPLA
apoiado pelos cubanos à FNLA apoiada pela RDC. As tropas sul-africanas não estiveram
envolvidas porque foram detidas no Lobito (uma cidade no sul de Angola) a caminho da
capital. Ao vencer esta batalha e tendo o controlo da capital, o MPLA declarou a
independência de Angola a 11 de Novembro de 1975 e reivindicou o direito de governar
a sua soberania.
Esta data marca o início da Guerra Civil internacionalizada em Angola e que opôs o
MPLA à UNITA e à FNLA. Após a independência de Angola, o congresso americano
decidiu, através da emenda Clark, acabar com o envolvimento americano direto em
Angola, o que contribuiria, alguns meses mais tarde, para a retirada das forças
militares sul-africanas do sul de Angola. A emenda Clark esteve em vigor entre 1976 e
1985, limitando significativamente o apoio americano à FNLA e à UNITA.
O modelo e o início do conflito em 1975
O início da Guerra Civil foi o resultado do acumular de oportunidades. O MPLA e a FNLA
tinham a intenção de reivindicar o governo segurando a capital de Luanda no dia de
independência, e a UNITA pretendia dominar o sul, com todos os grupos respeitando a
integridade territorial do Estado angolano.
As oportunidades derivadas dos ganhos com o conflito estão relacionadas com os
recursos naturais e o apoio internacional. O petróleo tinha-se tornado o principal
produto de exportação, constituindo um "prémio" importante para o grupo que
controlava o governo
22
. Ao mesmo tempo, embora as condições económicas tivessem
melhorado desde 1961, os custos de recrutamento de potenciais rebeldes continuavam
baixos em comparação com outros países
23
.
O período específico da Guerra Fria foi relevante para determinar a falta de interesse -
ou incapacidade das superpotências em chegar a acordo sobre uma solução de baixa
intensidade para o conflito. A fase específica da Guerra Fria, após a guerra árabe-
israelense, onde os soviéticos tinham perdido terreno no Médio Oriente e os americanos
sido vencidos no Vietname, era propícia aos soviéticos para testar a determinação
americana no caso de Angola. Esta decisão foi facilitada pela disponibilidade e
"idealismo" dos cubanos, que forneciam o recurso mais complicado de obter - tropas.
A disponibilidade da África do Sul para assumir um papel regional de contrapeso
também foi relevante, controlando o fervor nacionalista africano e respetivas
tendências soviéticas, em linha com a sua própria necessidade em manter o sistema de
apartheid.
22
Representava 36 por cento do PIB em 1975.
23
O rendimento per capita e a matrícula no ensino secundário era inferior à média dos países onde a Guerra
Civil começou entre 1975 e 1980.
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Além disso, o capital de guerra
24
conferiu aos grupos a capacidade organizacional para
fazer a guerra, mas também o reconhecimento internacional consubstanciado nos três
grupos signatários dos Acordos de Alvor. Neste caso, o capital de guerra não está
ligado à acumulação de ódios entre os grupos porque o principal inimigo comum tinha
sido os portugueses
25
.
Outro factor foi o vazio de poder no governo nacional. A nível simbólico, nenhuma das
partes beligerantes conseguiu conquistar o poder colonial, mas antes foi o poder
estabelecido que proclamou a sua própria extinção. Não havia nenhuma foça legítima
para assumir o poder e, portanto, requeresse um processo de transição propicio à
concorrência. Ao mesmo tempo, como Portugal se encontrava incapaz de assegurar o
papel de mediador em todo o processo de transição, o monopólio do poder foi, na
prática, abandonado aos atores que o disputavam, com alguma vantagem para o MPLA,
pois estava baseado em Luanda.
Finalmente, e inversamente à previsão do modelo
26
, a elevada fragmentação social no
país
27
e a falta de dominação étnica poderão ter contribuído para o início do conflito.
Em Angola existiam três partidos políticos formados com base em identidades étnicas
de importância semelhante e nenhum tinha uma presença hegemónica. Para além de
outros factores, poderá ter sido precisamente esta falta de hegemonia de qualquer um
dos três grupos que conduziu às condições políticas de cada um dos grupos e às suas
ambições hegemónicas de poder num processo de transição de regime.
Em suma, as potenciais receitas do petróleo provenientes do controlo do estado (e os
baixos custos de recrutamento de combatentes) foram importantes neste período,
juntamente com o capital de guerra, mas precisam de ser analisados juntamente com
as dinâmicas regionais e internacionais da Guerra Fria que contribuíram para a
escalada do conflito. As intervenções externas internacionais e regionais explicam
significativamente o processo de escalada do conflito. Ao mesmo tempo, a
fragmentação social sem hegemonia foi a condição que conduziu a um processo
concorrencial conflituoso para ocupar o vazio de poder deixado pelos portugueses, que
não foram derrotados, tendo-se retirado do conflito.
O fracasso das eleições de 1992
A assinatura dos Acordos de Nova Iorque em 1988 marcou o fim da influência da
Guerra Fria na Guerra Civil em Angola. Os acordos implementaram a resolução 435 do
Conselho de Segurança das Nações Unidas, que concedeu a independência à Namíbia,
acordou a retirada das tropas cubanas de Angola e, indiretamente, o fim das incursões
sul-africanas no sul de Angola.
Três anos depois, em Maio de 1991, os Acordos de Bicesse foram assinados entre o
MPLA e a UNITA, e incluíam um plano para a realização de eleições. Os Acordos de
Bicesse trouxeram um período de paz relativa a Angola, que se manteve até às eleições
de Setembro de 1992, quando o conflito recomeçou após o anúncio dos resultados das
eleições.
24
Resultante dos 14 anos de insurreição.
25
Mesmo que os três grupos raramente estivessem envolvidos em operações conjuntas.
26
De acordo com o modelo, quando uma maior fragmentação social e a hegemonia é evitada, a
probabilidade de início de conflitos diminui significativamente.
27
Quase o dobro dos níveis identificados nos países quando se iniciam Guerras Civis.
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Ganância, ressentimento, liderança e intervenções externas no início e
intensificação da guerra civil em Angola
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O fracasso em assegurar a paz neste processo esteve em parte relacionado com as
características organizacionais, económicas e políticas específicas das duas partes em
conflito.
O partido do MPLA passou por uma reorganização significativa após a presidência de
Agostinho Neto ter sido contestada dentro do partido num golpe de Estado falhado
liderado por Nito Alves em 1977
28
. Com a morte de Agostinho Neto em 1979, José
Eduardo dos Santos assumiu a presidência do partido e do Estado. O MPLA foi um
projeto de estado inspirado na ideia marxista-leninista durante a maior parte do final
dos anos setenta e oitenta. Mas reformas tiveram que ser iniciadas na década de
noventa como resultado de uma série de constrangimentos estruturais,
nomeadamente: a dependência excessiva da economia no petróleo torna-a suscetível
às flutuações dos preços do mesmo; um sistema económico desacreditado e em dívida;
o fim do apoio dos seus hábeis parceiros estratégicos
29
; o colapso do aparelho de
Estado em termos de educação, saúde, água, esgotos, lixo, eletricidade e transportes
(Pereira, 1994), e; um impasse militar no conflito
30
.
Neste contexto, o MPLA iniciou um processo de reformas político-económicas: abriu o
estado ao sistema multipartidário; abriu ainda mais a economia; promoveu a
participação da sociedade civil, e; introduziu a liberdade de imprensa. Estas mudanças
foram inspiradas nos modelos propostos pela comunidade internacional e estavam em
conformidade com as exigências da UNITA (Hodges, 2001). Do ponto de vista
económico, a reforma foi parcial no que toca à missão impossível de fundir mecanismos
de mercado regulados por um plano numa economia centralizada e planificada
(Ferreira, 2002). Politicamente, a Constituição foi modificada em 1991 e 1992, com
uma série de leis aprovadas no espírito dos Acordos de Bicesse. A incapacidade de
implementar as disposições de descentralização e de governo local previstas na
Constituição, juntamente com o reforço do sistema presidencial, significou o
estabelecimento de um sistema de pirâmide formal sob o presidente. Significou
igualmente que se decidia "tudo ou nada" nas eleições. A ideologia da UNITA, o outro
partido principal, era uma mistura de Maoísmo com nacionalismo
31
e regionalismo
32
Ovimbundu. Ao longo da cada de 1970, a UNITA transformou-se numa organização
estruturada e hierárquica dentro das exigências de um movimento nacionalista,
exercendo o monopólio da violência dentro das áreas controladas e operando um
aparelho administrativo, que incluía a prestação de serviços sociais (Bakonyi e Stuvøy,
2005). Durante a década de oitenta, a UNITA expandiu o seu controlo territorial
33
,
desenvolveu a economia assente nos diamantes e melhorou a estrutura de
governança
34
.
A coesão organizacional interna da UNITA foi mérito da sua liderança e de um sistema
patrimonial eficaz, mesmo que dependente do financiamento da CIA e do apoio militar
da África do Sul (Stuvøy, 2002).
28
De acordo com Hodges (2001, p.46), as iniciativas tomadas no período após a tentativa de golpe
resultaram numa cultura caracterizada por "medo, conformismo, dependência do Estado, falta de
iniciativa e submissão", num processo que ele refere como a "perda da inocência" em Angola (ibid,
p.161).
29
Politicamente e economicamente a União Soviética, e Cuba do ponto de vista militar.
30
Incapaz de vencer militarmente a UNITA, mesmo após o fim do apoio direto da África do Sul.
31
Diferente do nacionalismo da FNLA ou do MPLA.
32
Por oposição às perspetivas marxista, pan-africanista e socialista, que prevaleciam na altura.
33
O território controlado pela UNITA era o planalto central, o seu principal bastião.
34
Alguns analistas consideram-na um quase-Estado.
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Em contraste com o MPLA, a UNITA estava intimamente ligada às estruturas de poder
tradicionais locais. No final da década de 1980, um mero estimado de 8.000 a
10.000 pessoas vivia sob o domínio da UNITA na Jamba, cerca de 80.000 a 100.000
nos seus arredores e tinha cerca de 30.000 soldados em 1984 (George, 2005). A
UNITA considerava que uma solução eleitoral lhe daria uma vitória sobre o seu principal
concorrente na altura, o MPLA, e estava unida em torno da liderança de Jonas Savimbi.
Relativamente ao bem-estar geral da população, a partir de 1987 Angola foi
classificada como estando em estado de calamidade e em 1991 recebeu 6 milhões de
dólares de assistência, parte de um pacote de 40 milhões de dólares de ajuda
humanitária canalizada para Organizações Não-Governamentais. Além disso, a
Organização das Nações Unidas (ONU) forneceu 165 milhões de dólares para os
refugiados e para combater as secas.
Os angolanos tiveram que escolher um desses dois partidos e os seus líderes nos dias
29 e 30 de Setembro de 1992, nas primeiras eleições livres e justas em Angola. Um
total de 4,8 milhões de angolanos votou, com uma taxa de participação de 92 por cento
dos eleitores registados
35
(Pereira, 1994). O resultado das eleições para a presidência
não concedeu a maioria necessária a qualquer um dos concorrentes, mas José Eduardo
dos Santos, com 49,7 por cento, tinha conseguido mais votos do que Jonas Savimbi,
com 40 por cento. A segunda volta das eleições nunca se realizou porque o conflito
recomeçou
36
.
A derrota eleitoral da UNITA refletia o caráter étnico do partido. Das quatro províncias
onde ganhou
37
, só numa é que os Ovimbundu não constituíam a maioria - a de Kuando
Kubango, onde a UNITA operava desde os anos 1970. Em contraste, o MPLA foi capaz
de atrair grupos além dos Mbundu (Hodges, 2001). Este padrão eleitoral reflete o que
Pereira (1994) identifica como a visão de choque dos partidos, ambos patrióticos e
centralizadores do estado, o MPLA inclinando-se para um nacionalismo inclusivo,
enquanto a UNITA tinha um cariz particular de nacionalismo étnico. Embora os
observadores tivessem considerado as eleições justas, a UNITA não aceitou os
resultados anunciados no dia 17 de Outubro de 1992 e intensificou o conflito. Desta
vez, o conflito ocorreu não no campo, mas também nas cidades, incluindo Luanda
(Wright, 2001), e teve como alvo o próprio sistema estatal. Em Dezembro de 1992, o
governo de Angola lançou uma contraofensiva militar (Wright, 2001) e a Guerra Civil
recomeçou.
O modelo e a intensificação da guerra civil em 1992
Embora a década de 1990 tivesse começado com uma série de factores favoráveis à
paz, como o fim da Guerra Fria, o compromisso internacional e regional de paz e o
anseio da população pela paz (tal como atesta a participação da população no ato
eleitoral), o reinício do conflito em 1992 está principalmente relacionado com as
oportunidades económicas proporcionadas pelos recursos do país (diamantes e
petróleo), combinado com os ressentimentos políticos gerados por um modelo de
governo onde o "vencedor ganha tudo".
35
90 por cento da população adulta estava registada.
36
O Parlamento foi ganho pelo MPLA com 54 por cento dos votos contra os 34 por cento da UNITA, com os
outros pequenos partidos vencedores detendo 12 por cento dos votos.
37
Benguela, Bié, Huambo e Kuando Kubango.
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As oportunidades de financiamento do MPLA através do petróleo, e dos diamantes no
caso da UNITA
38
determinaram substancialmente a predisposição para o conflito,
principalmente no caso da UNITA, mas também indiretamente no do MPLA. Para a
UNITA, esta predisposição foi mais direta no sentido em que tinha perdido as eleições
e, portanto, estava prestes a perder o controlo sobre o seu território
39
e a sua fonte de
receitas (diamantes).
No caso do MPLA, não há evidência contrafactual para a sua eventual reação caso
tivesse perdido as eleições. Contudo, o facto de haver um modelo presidencial do "tudo
ou nada" permite supor que o MPLA não tinha a intenção de partilhar ou abandonar o
poder executivo estatal que controlava as receitas do petróleo. Os recursos naturais
foram um factor-chave nesta fase e a melhor comparação para o papel que
desempenharam reside no caso de Moçambique, que teve uma história da Guerra Civil
semelhante, mas que, sem recursos naturais, conseguiu alcançar a paz em 1992.
Juntamente com os recursos naturais, o sistema de governo em vigor na altura das
eleições, um modelo presidencial não descentralizado, contribuiu para um factor
essencial: ressentimento devido a exclusão política de um grupo
40
, tanto a vel central
como local da governação. Este ressentimento seria inaceitável para uma UNITA
autoritária endurecida pela guerra, que, juntamente com o histórico baixo vel de
unidade nacional e as limitações dos Acordos de Bicesse, contribuiu de forma decisiva
para o fracasso do plano de paz
41
(Pereira, 1994). De um modo geral, a
responsabilidade da liderança no conflito pode ser atribuída a ambas as partes (Anstee,
1996), mesmo se nesta fase em particular a UNITA e o presidente Jonas Savimbi
tivessem sido identificados como "saqueadores gananciosos" do processo de paz
(Stedman, 1997).
Além das principais dinâmicas descritas anteriormente, uma série de outros factores
contribuíram para o conflito ou foram favoráveis à paz. Por um lado, houve factores de
oportunidade que contribuíram para o conflito, tais como: os custos baixos atípicos de
recrutamento, com milhares de pessoas que não conheciam outro tipo de trabalho além
de lutar ou viver numa economia de guerra; a destruição da economia e a pobreza
generalizada, que não ofereciam grandes alternativas de rendimento aos jovens
desempregados ou aos soldados desmobilizados, e; a acumulação de equipamento de
guerra de onde se podia extrair retornos rápidos e fáceis. Por outro lado, os factores
que contribuíram para a paz foram: a dinâmica internacional e regional com apoio ativo
da ONU e a decisão das grandes potências de proibir o apoio militar às partes em
conflito; a concentração da população em áreas urbanas devido à guerra, e; a
legitimação nacional do governo por se terem realizado eleições.
38
A proporção de exportação de produtos básicos primários em relação ao PIB foi de 47% em 1990.
39
Porque a legislação de descentralização ainda não tinha sido aprovada.
40
Considerando a economia assente nos recursos, poder-se-ia argumentar que a exclusão política também
significava exclusão económica.
41
As limitações dos Acordos de Bicesse foram os recursos limitados da ONU para o mandato, o curto espaço
de tempo do processo, a execução das eleições sem o cumprimento integral das cláusulas do acordo
(principalmente em relação à componente militar), e a inexistência de uma solução de partilha de poder
(Hodges, 2001).
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A intensificação da Guerra Civil em 1998
Após o recomeço da Guerra Civil em 1992, o conflito diminuiu em 1996 e 1997,
representando dois anos de quase paz no país. Contudo, a Guerra Civil eclodiu
novamente em 1998 e duraria até 2002.
Entre 1992 e 1998 fizeram-se avanços significativos na implementação de um modelo
multipartidário, com um sistema de governo mais inclusivo, ao mesmo tempo que o
governo angolano adquiriu legitimidade com as eleições de 1992 e com o
reconhecimento dos EUA em 1993. A UNITA voltaria à mesa de negociações em 1993,
como resultado de perdas territoriais para o MPLA
42
e das sanções das Nações Unidas
em 1993 visando a liderança da UNITA. No ano seguinte, a 20 de Novembro de 1994,
Jonas Savimbi assinou o protocolo de Lusaka.
O protocolo baseava-se no de Bicesse, mas continha disposições significativas para a
maior partilha do poder executivo entre as partes e a realização de eleições após o
fim das atividades militares. Estipulava ainda o respeito pela legislação nacional por
parte da UNITA, que os representantes eleitos da UNITA deveriam assumir os seus
mandatos no parlamento, a devolução de todos os bens aos membros da UNITA e
garantias de alojamento para os líderes da UNITA (Wright, 2001). A responsabilidade
pela monitorização do acordo foi confiada à ONU, e uma força de paz significativa foi
instaurada em Fevereiro de 1995.
Do ponto de vista da economia, a década de 1990 caracterizou-se pela incapacidade do
governo em implementar um programa económico coerente. Para Ferreira (2006), a
guerra certamente condicionou a economia angolana, mas os principais obstáculos
foram as políticas inadequadas e o sistema político que promoveu uma elite rentista.
Como Oliveira (2007) referre, é a receita do petróleo nos petro-estados que permite
que um sistema insustentável dure muito tempo para além do seu período normal de
vida e, juntamente com ele, a elite que o administra.
Para a UNITA, esta década foi marcada pelo processo malsucedido de transformação de
uma força de guerrilha em partido político com representação parlamentar e
responsabilidades executivas. Deu-se assim um duplo processo de desintegração: o do
"sistema social" estabelecido no "quase-Estado", e; outro relativo à liderança do partido
com o aparecimento de fações separatistas
43
. As dificuldades em fazer com que a
UNITA cumprisse o protocolo de Lusaka levaria a comunidade internacional a continuar
com uma política de sanções. Em 1997 e 1998, as sanções das Nações Unidas tiveram
como alvo a liderança da UNITA, o partido da UNITA e em particular o negócio dos
diamantes. Estima-se que as receitas de diamantes da UNITA andavam na ordem dos 2
a 3,5 milhões de dólares entre 1992 e 1998 (Cramer, 2006).
Devido à falta de implementação dos protocolos de Lusaka pela UNITA, em Dezembro
de 1998, no IV Congresso do MPLA, o Presidente José Eduardo dos Santos declarou que
o único caminho para a paz era a guerra, pedindo o fim do processo de paz de Lusaka e
o fim da missão da ONU
44
(Hodges, 2001). Em Janeiro de 1999, Jo Eduardo dos
42
Em 1992, a UNITA controlava cerca de 60 a 70 por cento do território, enquanto em 1994 controlava 40
por cento. Em Novembro de 1994 perdeu as áreas chave de Huambo e Uige.
43
Por exemplo a UNITA Renovada em 1998.
44
Saiu em Fevereiro de 1999.
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Santos reuniu um gabinete de guerra para alcançar a vitória total (James, 2004) e em
Julho desse ano, o governo de Angola, através do seu Departamento de Investigação
Criminal, emitiu um mandato em nome de Jonas Malheiro Sidónio Savimbi por crimes
de "rebelião armada, sabotagem e assassínio" (James, 2004, p.xxxv). A guerra tinha-
se reiniciado e desta vez terminaria após a morte em combate de Jonas Savimbi a
12 de Março de 2002.
O modelo e a intensificação do conflito em 1998
O contexto de uma contínua falta de cumprimento das disposições dos acordos por
parte da UNITA levou o MPLA a optar por uma solução bélica para o conflito, dentro de
um contexto socioeconómico específico.
Por um lado, a UNITA parecia nunca aceitar qualquer solução de paz. A incapacidade de
atrair a plena cooperação da UNITA, ampliando a fórmula de paz de partilha do poder
levou a uma maior pressão da comunidade internacional, o que intensificou a
desintegração do partido, em curso. Embora alguns membros da UNITA assumissem
funções legislativas e executivas, a fação de Jonas Savimbi não aceitou o processo,
continuando a desafiar a constitucionalidade do Estado.
Por outro lado, o MPLA estava a ser pressionado internacionalmente e internamente.
Não conseguia implementar processos de reforma económica numa fase em que a
economia estava extremamente debilitada. Embora as receitas do petróleo fossem
fundamentais e suficientes para a manutenção do sistema patrimonial em torno do
presidente, as iniciativas sucessivas de inspiração populista e restrições às liberdades
civis revelam preocupações com a crise económica e ressentimentos populares (MRP,
2005)
45
. Numa altura em que o MPLA poderia ser mais responsabilizado pela sua
governação, a comunidade internacional passou a década de 1990 a criticar e
pressionar o MPLA para aumentar a transparência, ter maior respeito pelos direitos
humanos e pela justiça. O envolvimento militar do MPLA nos conflitos na República do
Congo em 1997 e na RDC em 1998 permitiu-lhe fechar bases estrangeiras da UNITA.
Desta forma, e especificamente para o MPLA, os factores identificados para o início do
conflito em 1992 ainda se mantêm, em particular as oportunidades de financiamento a
partir do petróleo, o baixo nível de fontes alternativas de rendimento para potenciais
soldados, o alto vel de capital guerra acumulado, juntamente com um certo ódio
dirigido aos Ovimbundu que se tinha desenvolvido, entretanto (de que a violência
étnica pós-eleitoral é um exemplo). No entanto, nesta fase, também poderão ter
havido outros factores que contribuíram para o início da Guerra Civil relacionados com
a sobrevivência política da elite do MPLA e uma perspetiva de que a debilidade da
UNITA
46
, juntamente com o apoio internacional ao MPLA, poderia permitir a vitória
militar do MPLA.
A UNITA, por sua vez, tentou manter o estado dentro do estado até ao último
momento, com as suas características económicas e sociais específicas. O facto de a
UNITA ter sido financiada por diamantes e o MPLA pelo petróleo a partir de um enclave
45
O ressentimento foi também resultado da estratégia de guerra de "implosão social" adotada pela UNITA a
partir de 1992 com ataques em áreas urbanas, aos sistemas administrativos e forçando o êxodo da
população para as cidades, ao mesmo tempo que cometia atrocidades humanas.
46
Tanto politicamente como militarmente, resultado do estrangulamento das fontes de receita.
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foi importante na medida em que aumentou progressivamente os recursos disponíveis
para o MPLA (com uma fonte segura) e diminuiu os da UNITA (com uma fonte incerta),
com possíveis repercussões nas capacidades militares. Por conseguinte, a manutenção
das áreas de recursos e respetivas receitas foram importantes para a capacidade
militar, mas não parecem ter sido a principal motivação. Em vez disso, permitiram que
o conflito se arrastasse e depois que recomeçasse, reforçando a perspetiva de que os
recursos são um meio, bem como uma finalidade, no conflito. Por exemplo, é muito
provável que, nesta fase do conflito, a liderança da UNITA teria tido mais a ganhar
financeiramente em mudar-se para Luanda e integrar o sistema neo-patrimonial do
Estado, em vez de continuar lutando. Isto é corroborado pela fragmentação e
emergência da UNITA-Renovada.
Finalmente, esta beligerância da UNITA, que se divide para continuar lutando, reforça a
importância da liderança, neste caso, Jonas Savimbi, e o papel que este facto
desempenha na concretização ou o de soluções políticas. No reinício do conflito em
1998, começou a tornar-se evidente que o conflito dependia da capacidade militar e
liderança de Jonas Savimbi.
Liderança
Vários elementos contribuem para uma explicação racionalista e construtivista do papel
da liderança em Angola, em vez de perspetivas primordiais.
Na descrição acima exposta, as lideranças são apresentadas como sendo
individualizadas, mas, de facto, os quatro líderes principais são o topo de uma
estrutura de poder político, económico e militar, e, nestes casos, maioritariamente
autocráticos e centralizados, mas dependendo de uma rede de elite e poder. Agostinho
Neto necessitou de redefinir o partido para consolidar a sua liderança do MPLA; José
Eduardo dos Santos promoveu uma nomenklatura económico-militar assente no
petróleo; Jonas Savimbi baseou a sua estrutura nos deres tradicionais e no sistema
patrimonial dos diamantes, juntamente com uma ala militar; e Holden Roberto estava
significativamente relacionado com a elite de Mobutu Sese Seko.
com capacidades de liderança reconhecidas enquanto membro da FNLA e após ter
negociado com o MPLA na cada de 1960, parece que foi uma determinação
messiânica ou ambição que levou Jonas Savimbi a optar por iniciar um processo a
partir do zero e criar a UNITA sem apoio internacional significativo nos anos sessenta.
Com apenas um pequeno grupo nacionalista e não representativo em 1975, foi depois
da independência que Jonas Savimbi conseguiu montar uma estrutura socioeconómica
de "quase-Estado" no sul de Angola. Estas origens e o desenvolvimento da UNITA
enquanto grupo étnico coerente foi produto essencialmente de uma construção social
pela elite política, em detrimento de perspetivas primordiais. Após o fim da Guerra Fria
e das eleições de 1992, a sobrevivência da UNITA fora do Estado deve-se
principalmente à sua capacidade estabelecida. Também nessa época, foi a incapacidade
de aceitar um papel secundário na estrutura do Estado que levou Jonas Savimbi a
envolver-se novamente em conflito. Mesmo os períodos de paz, ou de quase paz,
assemelham-se mais a fases de organização e gestão do status quo, que Jonas
Savimbi nunca ocupou o seu lugar na capital Luanda.
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A desintegração da UNITA neste período atesta igualmente contra uma visão
primordial, pois alguns elementos da direção da UNITA conseguiram integrar-se no
sistema do MPLA.
Podemos identificar a importância de Jonas Savimbi pelo facto de o conflito só terminar
após a sua morte em 2002. Com o benefício de uma análise retrospetiva, parece que o
único momento em que um acordo com Jonas Savimbi poderia ter sido possível foi em
1975, se uma solução federalista tivesse sido estabelecido antes de a UNITA criar o
"quase-Estado" e, eventualmente, em 1992, se uma solução descentralizada tivesse
sido implementada, embora naquela altura parecesse praticamente impossível colocar
Jonas Savimbi sob alguma outra autoridade.
O outro der, Holden Roberto, é essencialmente a manifestação de um factor externo,
representante do primeiro impulso nacionalista no continente, ligado após 1970 a
Mobutu Sese Seko. Desde o início do processo de independência da RDC, a libertação
do povo Bakongo tinha estado na agenda dos líderes nacionalistas e Holden Roberto
surgiu como o líder de um movimento que rapidamente mudou o seu foco regionalista
para um foco nacionalista e pan-africanista, de acordo com as orientações políticas
prevalecentes. Intimamente associado aos movimentos políticos emergentes de
Leopoldville, Holden Roberto não tinha a determinação, capacidade ou possibilidade de
ter um movimento independente e isto poderá ter levado à sua apropriação por Mobutu
Sese Seko, que acabou por ordenar-lhe que deixasse o país em 1987 (Spikes, 1993). A
falta de financiamento não terá sido o principal factor neste processo gradual de
desaparecimento da FNLA, pois os EUA trocaram o apoio à FNLA para a UNITA após
a independência.
Também no caso da FNLA, foi a construção de identidade pela liderança com apoio
externo que alimentou a rebelião. O facto de a FNLA e sua liderança terem
praticamente desaparecido no período pós-independência, enquanto o conflito entre o
MPLA e a UNITA continuou, reforça a rejeição de perspetivas primordiais.
Finalmente, no caso do MPLA, a liderança inicial de Agostinho Neto foi fundamental pois
transformou um partido heterogéneo num grupo político coeso, deixando o caminho
livre para JoEduardo dos Santos. Parte da escalada do conflito em Luanda em 1975
pode ser atribuída a Agostinho Neto enquanto der do MPLA (possivelmente ajudado
pelos portugueses), mesmo que fosse inevitável que a FNLA tentasse tomar a cidade.
José Eduardo dos Santos recebeu um partido homogéneo em 1980, mas tem o mérito
de mantê-lo e governar o partido sem desafios violentos à sua liderança.
Formado por mestiços e Mbundu, o MPLA teve uma plataforma mais inclusiva e
multiétnica, que nas suas origens assentava em fundamentos mais ideológicos. Mesmo
não existindo evidência para reforçar uma tese construtivista, aponta para uma
rejeição da perspetiva primordial. Exemplos significativos incluem a adoção do
Português como ngua nacional ou a campanha para a eleição de 1992 assente num
discurso multiétnico inclusivo, contrastando com a UNITA, que tinha explicitamente
uma agenda étnica exclusivista.
Conclusão
O estudo de caso valida a importância da liderança e das intervenções externas como
variáveis explicativas do início ou intensificação da Guerra Civil. No geral, todos os
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factores - "ganância", "ressentimento", liderança e intervenções externas estiveram
presentes em Angola. O desafio é distinguir entre os mecanismos (factores) presentes
em cada início ou intensificação do conflito, aquele(s) que mais decisivamente
contribuiu para esse resultado, mesmo se limitado pela dificuldade de isolar os
processos com dependência histórica.
O início da guerra da independência 1961 é o menos bem explicado pelo modelo de
"ganância" versus "ressentimento". Foi com base na combinação de ressentimentos
económicos e políticos ao longo de linhas étnicas que o conflito contra a dominação
colonial surgiu. Mas este motivo da descolonização não teria encontrado forma e
expressão sem influência externa. A difusão regional e internacional da ideia de
independência, juntamente com o apoio político e militar (limitado) foram os
mecanismos necessários para o conflito começar.
O início do conflito em 1975 é explicado principalmente pela Guerra Fria e pelos
factores de "ganância" económicos. Numa configuração inicial, surge o vazio de poder
resultante da independência que, combinado com um fracionamento sem hegemonia,
conduziria a uma concorrência intensa sem que nenhum partido fosse capaz de
reivindicar legitimidade para o governo. Os aspetos económicos surgem principalmente
através da existência de recursos que constituíam um prémio importante para os
vencedores, mas esses factores de "ganância" são operativos principalmente através do
apoio externo no contexto geopolítico da Guerra Fria. O apoio prestado a nível
internacional e regional às partes em conflito foi um mecanismo essencial para o
começo do conflito.
Na intensificação do conflito em 1992, podemos encontrar factores de "ganância" na
importância dos recursos (petróleo e diamantes), na pobreza e nos anos de conflito, e
factores de "ressentimento" no sistema de governança, que concedeu poder
hegemónico ao vencedor das eleições e ressentimentos políticos ao vencido.
Mas, nesta fase, os recursos naturais tinham-se tornado os meios e os fins do conflito
tanto para o MPLA como para a UNITA, explicando a solução constitucional adotada nas
eleições de o "vencedor ganha tudo". Portanto, os factores económicos de "ganância"
parecem ser o mecanismo essencial para a intensificação de conflitos nesta fase. É
importante destacar que neste período houve um contexto internacional e regional
propício a uma solução pacífica. A partir desta fase, a liderança de Jonas Savimbi
assumiu um papel importante na impossibilidade de acabar com o conflito.
Finalmente, na intensificação do conflito em 1998, podemos encontrar os mesmos
factores económicos de "ganância" de 1992. O ressentimento político resultante do
sistema de governação existente em 1992 tinha sido resolvido através de soluções de
maior partilha de poder que foram capazes de atrair alguns membros da UNITA. A
liderança de Jonas Savimbi constituiu o factor essencial para explicar a intensificação
dos conflitos nesta fase. O fim do conflito após a morte de Jonas Savimbi destaca a
importância de eliminar os factores de "ressentimento" na prevenção de conflitos.
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Notas e Reflexões
ENCONTRO DE FRANCISCO I E KIRILL I: PEQUENO PASSO NUMA
APROXIMAÇÃO CHEIO DE INCERTEZAS
José Milhazes
zemilhazes@hotmail.com
Licenciado em História da Rússia pela Universidade de Moscovo (Lomonossov) em 1984 e
doutorado pela Faculdade de Letras da Universidade do Porto em 2007.
Entre 1989 e 2015 trabalhou como correspondente de vários órgãos de informação, nacionais e
internacionais, na Rússia. Autor de numerosos artigos e livros sobre relações entre Portugal e a
Rússia, política da URSS nas ex-colónias portuguesas de África e relações entre o Partido
Comunista Português e o Partido Comunista da União Soviética.
Leccionou em universidades russas e portuguesas. Actualmente é comentador de assuntos
internacionais da SIC e RDP e colunista do Observador.pt (Portugal).
O primeiro encontro entre um Papa de Roma e um Patriarca de Moscovo e de Toda a
Rússia, realizado em Havana a 12 de Fevereiro passado, foi realmente um
acontecimento histórico, facto reconhecido unanimemente por todos, mas não se pode
criar grandes ilusões, pois Francisco e Kirill apenas deram um pequeno passo de
aproximação entre as duas maiores igrejas cristãs num clima de desconfiança milenar.
Recorrendo a uma alegoria frequente na natureza russa, o cabeça da Igreja Católica e
o chefe da Igreja Ortodoxa começaram a pisar uma camada de gelo muito fina que
cobre um rio ou um lago, mas que pode partir a um movimento mais brusco.
Preparação do encontro
A preparação do encontro em Havana foi realizada no maior dos segredos, ao nível da
mais escondida diplomacia, e o anúncio do acontecimento foi feito a poucos dias da sua
realização.
Em Junho do ano passado, o metropolita Ilarion, que dirige a Secção de Relações do
Patriarcado de Moscovo, admitiu essa possibilidade “numa perspectiva próxima”, mas
sublinhando que o encontro deveria ser “cuidadosamente preparado” e “realizar-se em
território neutro” (Ilarion, 2015).
Todavia, esse tipo de promessas tinha sido feito antes, mas sem qualquer resultado
positivo. Muito se esforçou o Papa João Paulo II na normalização das relações entre
ortodoxos russos e católicos, tendo até sido marcado um encontro do chefe da Igreja
Católica Romana com Alexis II, na altura Patriarca de Moscovo e de Toda a Rússia, na
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Encontro de Francisco I e Kirill I: pequeno passo numa aproximação cheio de incertezas
José Milhazes
103
Áustria, que acabou por não ocorrer (Lima, 2016). Foram precisos 20 aturados e
difíceis anos de conversações para que o encontro dos dignitários máximos da Igreja
Ortodoxa Russa e do Vaticano se encontrassem.
Moscovo acusava a Igreja Católica de desenvolver missionação (proselitismo) no seu
“território canónico”: Rússia, Bielorrússia e Ucrânia, bem como os greco-católicos ou
uniatas ucranianos, cristãos que seguem o rito oriental, mas que reconhecem a
primazia do Papa no mundo cristão, de ocuparem templos pertencentes à Igreja
Ortodoxa Russa.
O segundo desses problemas não encontrou ainda solução e no interior da Igreja
Ortodoxa Russa existiu sempre uma forte oposição à aproximação com os “hereges”.
Por isso, o encontro foi anunciado apenas a 5 de Fevereiro, para apanhar de surpresa
os seus opositores.
Nesse sentido, a cidade de Havana também não foi escolhida por mero acaso. Era difícil
encontrar um local mais neutro do que Cuba: por um lado, do ponto de vista
geopolítico russo, esse país ainda faz parte da sua zona de influência e, por outro lado
é parte do mundo católico.
O encontro não se poderia realizar em Moscovo, porque, actualmente, é difícil imaginar
uma visita de um Papa de Roma à Rússia. Tanto mais de uma figura popular, humilde
e carismática como é Francisco I. Tratar-se-ia de mais um pretexto para críticas da
parte do clero e leigos ortodoxos que continuam a ver no Bispo de Roma um “herege”.
A reunião também não poderia realizar-se no Vaticano, pois a ida de Kirill seria
certamente interpretada pelos mesmos círculos conservadores e nacionalistas russos
como um sinal de reconhecimento do Papa pelo Patriarca de Moscovo como chefe da
Igreja Universal.
A pedido do chefe da Igreja Ortodoxa Russa, o encontro também não se realizou no
continente europeu, pois este simboliza a divisão dos cristãos, por isso, foi decidido
organizar a reunião num dos países da América Latina, onde o Cristianismo continua a
ser uma força viva e interveniente.
“Desde o início que o Santo Patriarca Kirill não queria que o
encontro decorresse na Europa, porque precisamente à Europa
está ligada a pesada história das divisões e dos conflitos entre
cristãos”,
reconheceu o metropolita Ilarion, chefe da Secção de Relações Internacionais da Igreja
Ortodoxa Russa. (Ilarion, 2016)
Mais uma prova de que tudo foi preparado minuciosamente reside no facto de a
Declaração Conjunta aprovada em Havana ter a assinatura não do Papa, mas do Bispo
de Roma. Isto foi de extrema importância para mostrar que estiveram reunidas duas
partes iguais. (Declaração Conjunta, 2016).
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Encontro de Francisco I e Kirill I: pequeno passo numa aproximação cheio de incertezas
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Motivos políticos
O encontro do Papa e do Patriarca russo era também de suma importância para este
último, pois tratava-se de uma forma de ele se afirmar no mundo ortodoxo antes do
Concílio das Igrejas Ortodoxas, marcado para Junho de 2016 na Grécia, de fazer frente
ao seu principal concorrente: Bartolomeu, Patriarca de Constantinopla. O Patriarcado
de Moscovo receia que este último recebe sob a sua jurisdição Igrejas Ortodoxas que
se querem ver independentes da Russa como são os casos da Ucraniana, Estónia e
Finlandesa.
Iegor Kholmogorov, um dos ideólogos do nacionalismo russo, escreveu a propósito:
“Quanto à influência desse encontro nas relações dentro da
Ortodoxia, o Patriarca Kirill volta de Cuba como o líder
incondicional do mundo ortodoxo, de facto, o seu chefe informal”
(Kholmogorov, 2016).
Da parte russa, é evidente que este encontro visou contribuir também para reduzir o
isolamento do Kremlin face aos países ocidentais e melhorar a imagem do Presidente
Putin, fortemente prejudicada pela sua agressiva política externa. O apoio de um Papa
tão popular no mundo cristão e o é de extrema importância num período de
relações internacionais tão conturbadas como o actual. Tendo em conta a forte
dependência da Igreja Ortodoxa Russa face ao poder laico, é difícil imaginar que esse
encontro se tenha realizado sem a “bênção” do Presidente Putin.
Aliás, a preparação do encontro de Havana foi acelerada depois do encontro de
Francisco com Vladimir Putin, realizado a 13 de Junho do ano passado. Três dias depois
da audiência do dirigente russo no Vaticano, o Papa veio propor que Católicos e
Ortodoxos passassem a celebrar a Páscoa no mesmo dia, o que até agora não
acontecia. Além disso, posteriormente, observou-se um aumento de contactos entre
representantes das duas Igrejas, que desaguaram em Havana.
Não se pode deixar de assinalar que a submissão quase total do poder religioso ao
poder político não é uma particularidade actual, mas tem profundas raízes históricas.
A Rus de Kiev foi baptizada em 980 pelo príncipe Vladimir, o Grande. A partir dessa
data, a Igreja Ortodoxa Russa era dirigida por metropolitas que se sujeitavam ao
Patriarca de Constantinopla. Quando do processo de centralização política, os czares
russos consideram ser necessário a criação do cargo de Patriarca da Igreja Ortodoxa
Russa, com uma dependência apenas formal de Constantinopla. Essa política tinha por
base a ideologia da “Moscovo Terceira Roma”, ou seja, a ideia de Moscovo como
sucessora de Bizâncio. Em 1472, Ivan III, o Grande (reinou entre 1462 e 1505), casou-
se com a sobrinha do último Imperador bizantino. O grão-príncipe de Moscovo Ivan IV,
o Terrível começou a chamar a si os tulos de “autocrata” e “czar” e a usar a águia
bicéfala de Bizâncio.
Ideologicamente, esta primeira pretensão universalista de Moscovo foi justificada pelo
monge Filoteu de Pskov em algumas cartas dirigidas ao czar Vassili III em 1510:
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“digamos algumas palavras sobre o actual reinado glorioso do
Nosso Senhor mais iluminado e mais poderoso, que, em toda a
Terra, é o único czar dos cristãos e o soberano de todos os tronos
Divinos, da santa igreja apostólica universal que nasceu no lugar
da de Roma e de Constantinopla e que existe na cidade por Deus
salva de Moscovo, a igreja da santa e gloriosa Assunção da Virgem
Mãe de Deus, que ela no universo reluz com maior beleza do
que o Sol. Fica a saber, abençoado por Deus e por Cristo, que
todos os reinos cristãos chegaram ao fim e juntaram-se num único
reino do Nosso Senhor, segundo os livros dos profetas, o reino
romano: porque duas Romas caíram, a terceira está de e a
quarta não virá”. (Milhazes, 2016).
A eleição do primeiro Patriarca da Igreja Ortodoxa Russa: Job, foi impulsionada pelo
czar Fiodor, filho de Ivan, o Terrível, em 1589. Na realidade, Fiodor era completamente
controlado pelo boiardo Boris Godunov, que lhe veio a suceder no trono russo.
(Ulojionnaia Gramota, 1589).
Porém, com o advento do absolutismo, o poder imperial russo passou a controlar
completamente a Igreja Ortodoxa Russa. Pedro, o Grande decidiu, em 1700, liquidar o
cargo de Patriarca e colocar os ortodoxos russos sobre a alçada do Santo Sínodo, uma
espécie de ministério dirigido por um leigo nomeado pelo próprio czar.
Esta situação continuou até 1917, mas, quando a Igreja Ortodoxa Russa elegeu o
Patriarca Tikhon, o país era dirigido por um regime comunista que tinha como
objectivo pôr fim à religião enquanto fenómeno social. (Gubonin, 1994). Por isso, até
ao fim da URSS, em 1991, essa Igreja, ou mais precisamente, o que restou dela depois
de numerosas campanhas anti-religiosas, também dependia totalmente do Comide
Estado para os Assuntos Religiosos.
Depois da queda do comunismo na URSS, assistiu-se a uma “invasãode religiões e
seitas que tentaram preencher o cuo deixado pelo ateísmo. Vendo-se não preparada
para enfrentar a concorrência, a Igreja Ortodoxa Russa exigiu que fossem
reconhecidos, pelo poder político, os seus “territórios canónicos” o só na Rússia, mas
também em países vizinhos como a Bielorrússia e a Ucrânia.
Pelo seu lado, o poder político, principalmente durante a presidência de Vladimir Putin,
iniciada em 2000, tem ido ao encontro das exigências da Igreja Ortodoxa Russa,
recebendo em troca o apoio para a sua política interna e externa. No campo da
diplomacia, o Patriarcado de Moscovo apoiou o envio de tropas russas para a Ossétia
do Sul e Abkhásia, regiões separatistas da Geórgia, em 2008; a invasão da Crimeia e
do Leste da Ucrânia em 2014-2015; bem como a participação da aviação russa na
guerra da Síria.
Plataformas de entendimento
A Declaração Conjunta aprovada na Cimeira de Havana contém os problemas e
preocupações que poderão cimentar o início de um trabalho conjunto das duas Igrejas
Cristãs a nível internacional.
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Encontro de Francisco I e Kirill I: pequeno passo numa aproximação cheio de incertezas
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Nos parágrafos 8-13, o Papa Francisco e o Patriarca Kirill lançaram um apelo dramático
em defesa dos cristãos perseguidos e assassinados no Médio Oriente e no Norte de
África, regiões mergulhadas em cruéis guerras civis.
Não podemos passar ao lado do parágrafo 14, onde se saúda o aumento da
religiosidade em países outrora oprimidos por regimes comunistas, nomeadamente a
Rússia (Declaração Conjunta, 2016). Um estudo realizado pelo Levada Center em
Novembro de 2012 na Federação da Rússia parece mostrar isso: 74% dos
respondentes afirmaram ser ortodoxos. Porém, é de sublinhar que apenas uma minoria
frequenta regularmente templos ou cumpre os deveres religiosos. Segundo a mesma
sondagem, 24% dos inquiridos “nunca frequentam um templo”, 29% só lá vão aquando
de “baptizados, casamentos e funerais” e apenas 7% para se confessar e comungar
(Levada Center, 2012). No fundo, a maioria considera-se ortodoxa tendo por base a
consciência nacional.
Na Declaração Conjunta, Francisco e Kirill chamam também a atenção para o perigo
que encerram em si processos que têm lugar no mundo moderno, como, por exemplo,
a secularização e o relativismo, a defesa do aborto e da eutanásia, os ataques contra o
conceito cristão de família. Nesta situação, apelam para que a Europa não se esqueça
das suas raízes cristãs (Declaração Conjunta, 2016).
Este é, sem dúvida, um dos campos onde a cooperação entre as duas Igrejas Cristãs
poderá desenvolver-se com maior intensidade, pois enfrentam os mesmos desafios,
mas, nalguns casos, sob diferente forma. Por exemplo, se, na questão do aborto, a
Igreja Católica luta contra a sua legalização, a Igreja Ortodoxa luta pela sua proibição.
Isto porque, na URSS e, mais tarde, na Rússia, o aborto foi quase sempre legal e,
devido à quase inexistência de anti-conceptivos, principalmente na União Soviética, o
seu número era muito alto. Nomeadamente, em 1980, foram registados 4 506 000
abortos legais (Rossiiskii Statistitcheskii ejegodnik, 2007). O mero tem conhecido
uma redução muito significativa (1 186 100 em 2007, ou seja, 66,6 abortos para cada
100 nascimentos) (Federalnaia Slujba gossudarstvennoi statistiki, 2011), mas o
Patriarcado de Moscovo continua a considera-lo uma autêntica “matança de inocentes”
e tem-se empenhado em campanhas que visem proibir o aborto no país.
Guerra entre cristãos
Os dirigentes das duas Igrejas Cristãs não podiam deixar de abordam o conflito militar
na Ucrânia. Primeiro, porque vive a segunda maior comunidade ortodoxa depois da
Rússia e, segundo, porque na parte ocidental a maioria dos habitantes são greco-
católicos (uniatas), cristãos que seguem o rito litúrgico ortodoxo, mas que reconhece a
supremacia do Papa de Roma.
Quando a Ucrânia se tornou independente devido à desintegração da União Soviética,
em 1991, a elite política ucraniana necessitou também de criar uma «Igreja nacional» a
fim de se demarcar de Moscovo. Em 1992, parte do clero ortodoxo ucraniano separou-
se da Igreja Ortodoxa da Ucrânia do Patriarcado de Moscovo (IOUPM) e criou a Igreja
Ortodoxa da Ucrânia do Patriarcado de Kiev (IOUPK), dirigida, actualmente, por
Filarete, Patriarca de Kiev e de toda a Ucrânia, com cerca de 3000 paróquias no país. O
Patriarca de Moscovo cortou relações com a nova Igreja ucraniana, considerando-a
«cisionista».
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Não obstante todos os esforços dos dirigentes ucranianos para restabelecer o diálogo,
as duas comunidades ortodoxas continuam de «costas viradas» e as relações entre elas
azedaram depois de Moscovo ter anexado a Crimeia em 2014 e ocupado militarmente
parte do Leste da Ucrânia, que continua até hoje.
Existe também a Igreja Ortodoxa Autocéfala da Ucrânia (IOAU), que foi criada no
estrangeiro entre a numerosa diáspora ucraniana. Em 1989, esta Igreja instalou-se na
Ucrânia mas, no ano seguinte, parte do clero e fiéis passou para a IOUPM e parte
juntou-se à IOUPK. Actualmente, com cerca de 550 paróquias, a IOAU mantém
contactos irregulares com as outras duas Igrejas ortodoxas.
Por sua vez, o mundo católico está representado no país por duas Igrejas: a Igreja
Greco-Católica Ucraniana (IGCU) e a Igreja Católica Romana Ucraniana (ICRU). Se esta
tem um peso pouco significativo na sociedade ucraniana cerca de 800 paróquias , a
IGCU constitui a segunda mais numerosa comunidade eclesial no país, com mais de
3000 paróquias e 10 milhões de fiéis.
A IGCU foi criada em 1596 graças à União de Brest, tentativa do Vaticano de unir
ortodoxos e católicos (do nome de Uniata) numa só Igreja sob a direcção do Papa de
Roma. Em conformidade com outra denominação sua (Greco-Católica), os uniatas
conservam os seus ritos e ngua litúrgica tradicionais, mas reconhecem a autoridade
do Santo Padre e a dogmática católica.
O catolicismo de rito oriental foi alvo de várias tentativas de proibição. Em 1839, o czar
russo Nicolau I de cujo império fazia parte a Ucrânia dissolveu o Sínodo da Igreja
Greco-Católica, ordenando aos fiéis que optassem pela Igreja Ortodoxa Russa ou a
Igreja Católica. Porém, a maioria dos uniatas não obedeceu a essa ordem.
Em 1945, a pretexto de os hierarcas uniatas terem colaborado com o nazismo alemão,
o ditador soviético José Estaline dissolveu a IGCU. Em 1946, as autoridades comunistas
organizaram o «Concílio de Lvov da Igreja Greco-Católica Ucraniana», que votou pela
passagem dos seus fiéis para a Igreja Ortodoxa Russa.
Porém, os uniatas não acataram tal decisão e passaram à clandestinidade. No Concílio
de Lvov não participou nenhum bispo uniata, tendo os pastores greco-católicos
preferido os campos de concentração ou a emigração à colaboração com o regime
comunista.
Até ao fim da ditadura soviética, os milhões de uniatas ucranianos viram-se obrigados a
organizar cerimónias de culto clandestinas em casas particulares ou a frequentar os
poucos templos católicos e ortodoxos russos que continuavam abertos.
Em 1990, o Comité para Assuntos Religiosos junto do Conselho de Ministros da Ucrânia
legalizou os uniatas, que exigiram que a Igreja Ortodoxa Russa lhes devolvesse os
numerosos templos que lhe tinham sido confiscados e entregues aos ortodoxos russos
por José Estaline. Em 1945, a IGCU possuía mais de 4000 templos e capelas,
seminários e uma Academia de Teologia.
Foi criada uma comissão, constituída por representantes do Vaticano, da Igreja Uniata,
da Igreja Ortodoxa Russa e da Igreja Ortodoxa Ucraniana do Patriarcado de Moscovo, a
fim de controlar a devolução dos templos confiscados aos uniatas e evitar conflitos.
Porém, devido à morosidade do processo, os fiéis da Igreja Greco-Católica Ucraniana
começaram a ocupar os edifícios de culto que lhe tinham sido tirados em 1945.
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O Patriarcado de Moscovo reagiu bruscamente, acusando o Vaticano de estar por detrás
das acções dos fiéis uniatas, interpretadas como uma ofensiva contra a IOUPM. Este
constitui um dos principais atritos entre o Patriarcado de Moscovo e o Vaticano, mas
não é o único no que respeita à situação criada em torno da IGCU. (Milhazes, 2005).
Vozes contestatárias
Como era de esperar, este encontro provocou reacções negativas no seio da ala
fundamentalista e nacionalista da Igreja Ortodoxa Russa. O arcipreste Vladislav
Emilianov, pároco numa das regiões da Sibéria, considerou o encontro de Havana uma
“traição”:
“Os tristes e conhecidos acontecimentos levam-me a levantar a
voz em apoio do clero e leigo ortodoxos o indiferentes, que
lutam pela defesa dos dogmas e cânones da Igreja Ortodoxa… O
encontro do patriarca Kirill com o papa provocou a sensação de
traição” (Emilianov, 2016).
O padre Alexei Morozov, pároco da região de Novgorod, membro da União de Escritores
da Rússia e presidente da Assembleia da Intelectualidade Ortodoxa, ameaça mesmo
com um cisma no interior da Igreja Ortodoxa Russa:
“Hoje, a nossa Igreja encontra-se no limiar de um cisma. Depois
dos conhecidos acontecimentos religiosos do início de Fevereiro de
2016, numerosos paroquianos receiam entrar nos seus templos,
confessar-se e comungar. Centenas de milhares de pessoas
dirigem-se aos seus guias espirituais e perguntam o que fazer se o
chefe da Igreja, a despeito dos nones e da tradição ortodoxa,
entrou em contacto aberto com os latinos e seu chefe: o Papa de
Roma, e prega a heresia do ecumenismo como parte integrante da
vida da Igreja” (Alexei, 2016).
Alguns greco-católicos também ficaram descontentes com a própria ocorrência do
encontro. O bispo Sviatoslav, chefe da Igreja Uniata (Greco-Católica) Ucraniana,
comentou:
“Baseando-me na nossa experiência multissecular, posso afirmar:
quando o Vaticano e Moscovo organizam encontros ou assinam
textos comuns, não vale a pena esperar nada de bom deles”.
Comentando concretamente o parágrafo 25 da Declaração Conjunta:
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“Esperamos que o nosso encontro possa contribuir também para a
reconciliação, onde existirem tensões entre greco-católicos e
ortodoxos. Hoje, é claro que o método do «uniatismo» do passado,
entendido como a união duma comunidade à outra separando-a da
sua Igreja, não é uma forma que permita restabelecer a unidade.
Contudo, as comunidades eclesiais surgidas nestas circunstâncias
históricas têm o direito de existir e de empreender tudo o que é
necessário para satisfazer as exigências espirituais dos seus fiéis,
procurando ao mesmo tempo viver em paz com os seus vizinhos.
Ortodoxos e greco-católicos precisam de reconciliar-se e encontrar
formas mutuamente aceitáveis de convivência”,
ele frisou:
“Sem dúvida que esse texto provocou uma total desilusão entre
muitos crentes da nossa Igreja, e entre muitos cidadãos
empenhados da Ucrânia. Hoje muitos dirigiram-se a mim a
propósito e disseram-me que se sentem traídos pelo Vaticano,
desiludidos com a meia-verdade desse documento” (Sviatoslav,
2016)
Os uniatas consideram que a Igreja Ortodoxa Russa apoiou incondicionalmente a
invasão da Crimeia por tropas russas em 2014 e as acções militares das tropas russas
no Leste da Ucrânia.
Por conseguinte, é muito difícil prever como se irá desenvolver o diálogo entre Roma e
Moscovo, mas não há dúvidas de que as duas Igrejas Cristãs terão de superar enormes
obstáculos para se começar a falar de uma união num futuro longínquo. Por exemplo,
o é previsível, nem a médio, nem a longo prazo, uma visita do Sumo Pontífice de
Roma à Rússia. O mesmo se pode dizer de uma visita do Patriarca de Moscovo ao
Vaticano. Muito idepender também da evolução da política externa russa e dos seus
objectivos.
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José Milhazes
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Como citar esta Nota
Milhazes, José (2016). "O encontro de Francisco I e Kirill I: pequeno passo numa
aproximação cheio de incertezas". Notas e Reflexões, JANUS.NET e-journal of International
Relations, Vol. 7, Nº. 1, Maio-Outubro 2016. Consultado [online] em data da última
consulta, observare.ual.pt/janus.net/pt_vol7_n1_not1 (http://hdl.handle.net/11144/2624)