OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 2 (Novembro 2015-Abril 2016), pp. 80-84
Recensão Crítica
CARR, E.H. (2001). The Twenty Years Crisis, 1919-1939. An
Introduction to the Study of International Relations. Brasília:
Editora Universidade de Brasília: 305 pp. ISBN: 85-230-0635-
4
por Matheus Gonzaga Teles
gonzagamatheusax@gmail.com
Negociador Internacional (Universidade Estadual de Santa Cruz,
Brasil) e Especialista em Gestão Estratégica Empresarial (União Metropolitana de
Educação e Cultura). Analista Universitário e Secretário Executivo na Assessoria de
Relações Internacionais da Universidade Estadual de Santa Cruz UESC.
.
“A CIÊNCIA da política internacional está em sua infância” (pp: III).
Século XIX, cenário que antecede o contexto das duas Grandes Guerras mundiais,
responsáveis por originar as Relações Internacionais como uma ciência. O objeto
principal desta nova ciência foi de prevenir as doenças do corpo político internacional,
assim como evitar as provocações ou os esforços que conduzam à uma nova guerra. O
desejo passional de prevenir a guerra determinou as direções e as primeiras
observações do estudo da disciplina.
Não foi muito fácil para a sociedade internacional do início do século XX entender o
motivo do assassinato do Duque Francisco Ferdinando na Primeira Guerra e o porquê
disto ter motivado a guerra de trincheiras. Além disso, a Alemanha foi considerada
“culpada” e outras nações exigiram planos de compensação econômica demasiado
caros à nação germânica como um resultado para frear sua expansão política.
Rapidamente, as principais potências dessa época descobriram que essas práticas
anteriores não seriam suficientes para trazer a paz de volta, assim como a estabilidade
à sociedade internacional. Nesse contexto crítico, no qual houve uma perturbação da
ordem política e econômica, Carr escreve esta obra única. Da mesma maneira que os
principais realistas da Escola Inglesa de Relações Internacionais, ele demonstra que as
duas guerras foram as responsáveis pela ruína da velha ordem mundial, a qual era
colonialista e demandava uma exacerbada expansão territorial.
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A criação das Relações Internacionais como uma matéria é mais recente do que se
imagina. Os estadunidenses e os britânicos a criaram no começo do século XX como
uma resposta às demandas da sociedade em relação à maneira que a política
internacional era conduzida. No que concerne a isso, o autor escreve o seguinte: “o
desejo de curar as doenças do corpo político estimulou e inspirou a Cncia Política”
(Carr, 2001: 5). Uma das razões para criar essa ciência foi o desejo dos Estados Unidos
em observar o cenário político internacional e logo após compreendê-lo, exercer sua
hegemonia como uma superpotência. Portanto, esta ciência por si mesma, reunia todos
os requisitos necessários para inspirar e instruir essa nova superpotência fortalecida
pelas derrotas de seus aliados das duas Grandes Guerras Mundiais e isso tornou
possível mudar o cenário de dominação da velha ordem política mundial influenciada
pelo velho continente.
Por ser uma nova ciência, as Relações Internacionais careciam de sérias reflexões.
Muitas delas não ocorriam a tempo e isso acarretou sérias consequências à ordem
internacional nos vinte anos de crise (período de graves tensões políticas entre as duas
guerras, o qual também influenciou de modo veemente a escrita e a produção dessa
obra). Essas reflexões foram somente algum tipo de aspirações utópicas, as quais têm
toda ciência nos primeiros passos de sua criação, centenas delas tidas como simples
aspirações puras e para Carr consideradas como ingênuas. Os acontecimentos em 1931
revelaram as incorreções da aspiração pura como base da ciência política internacional
e isso possibilitou, desde os primórdios, a difundir um pensamento crítico sério e
analítico sobre os problemas internacionais.
Para Carr, os ideais utópicos do período dos vinte anos de crise têm sua base nos ideais
iluministas e primavam essencialmente pela não utilização da força; tal utopia levou à
falência de concertos como a Liga das Nações e do status quo europeu.
A linha ideológica de pensamento que se descortina na obra, especialmente a de
caráter utópico, apresenta como as ideias se esforçam e se unem a planos políticos
para transformar a ordem mundial ao longo do tempo. Tal visão obscurece o papel
desenvolvido pelos fatores e restrições materiais, pois uma vez que essas ideias
utópicas se unem a eles, adquirem uma função alienadora das próprias ideias. Em
contraponto a esta linha de pensamento, surge o realismo ou corrente realista. O
realismo enfatiza os poderes e os processos militares e econômicos. Do ponto de vista
prático, o poder é uno e indissociável, mas, para melhor compreensão, o autor o divide
em três partes: militar, econômico e sobre a opinião. Quanto à racionalidade, assim
como às revoluções de tecnologia militar e de território, econômica e assim por diante,
o realismo praticamente ignora quão importante é a resistência à ordem consolidada
do ponto de vista tecnológico ou utópico e como ela pode ser importante para
contribuir à transformação ou substituição da ordem.
A capitulação dos comentários realistas e práticos é um fato que chama bastante
atenção para a obra. Com uma sabedoria inigualável, o autor faz referência às obras de
Maquiavel (Carr neste o primeiro importante cientista realista político, o qual lança
as pedras fundamentais da filosofia realista) e Hobbes, situa os fatos políticos nos seus
devidos contextos de atuação e, muitas vezes, critica o uso excessivo de medidas
realistas, o que para Carr torna a ação política extrema ou inviável (Carr, 2001). Como
uma de suas principais contribuições, tem-se que o equilíbrio da ordem política
depende essencialmente do equilíbrio entre o idealismo e o realismo. A utopia, muitas
vezes,o aparecia completamente desvirginada ou em seu conceito teórico mais puro.
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Assim, ela configurava-se em muitas políticas internacionais como um bem universal e
também assumia outras acepções, tais como: “todos os homens são criados iguais”, “a
paz é indivisível’?” (Carr, 2001:18), a liberalização do comércio, ideias de pronto
desmascaradas pelos realistas que as classificavam em simples interesses de
particulares ou no caso da liberalização do comércio, como a afirmação e a soberania
plena da Grã-Bretanha através de seu pujante comércio.
Os realistas descreveram e identificaram estes supostos interesses universais através
da suposta doutrina da harmonia de interesses. A escola do laissez-faire de Adam
Smith foi a principal responsável pela popularização da doutrina da harmonia de
interesses, em outras palavras, foi a propulsora dos disfarçados ideais liberais da
Sociedade Vitoriana. Quanto ao desmascaramento de doutrinas, este também tem
outra função, a de evidenciar que em política o poder é sempre um elemento essencial.
Importante ressaltar que mesmo Carr sendo um realista convicto, ele estava
plenamente seguro, como todo e qualquer cientista político consciente dos seus
estudos científicos, que o realismo apresenta falhas. Uma delas relaciona-se
diretamente à impossibilidade de o realista em ser consistente e completo, esta mesma
impossibilidade configura-se como uma das mais corretas e curiosas lições da ciência
política. O realismo consistente exclui quatro coisas, as quais são fatores essenciais de
todo pensamento político eficaz: um objeto finito, um apelo emocional, um direito de
julgamento moral e um campo de ação. Segundo Carr, o realismo puro não atrairia
eleitores ou seguidores fiéis, suas perspectivas materiais são intensamente duras para
aqueles que buscam uma promessa espiritual, algo quase mecânico, e é evidente que a
humanidade como um todo “rejeita este teste racional como uma base universalmente
válida de todo julgamento político” (Carr, 2001:120). Antes de qualquer coisa, o
realismo consistente falha porque deixa de oferecer campo para a ação destinada a
objetivos e significados. O que de mais válido o autor esclarece na sua crítica ao
realismo, é que não há uma situação plenamente estática. Pois, conforme explica, há
sempre algo que o homem pode pensar e fazer, ao mesmo tempo em que esclarece
que tanto este pensamento quanto esta ação, não são robotizados e muitos menos
desprovidos de sentido. Dessa forma, ele retoma o ponto no qual deve haver sempre
um equilíbrio constante entre utopia e realidade, pois o realismo puro não oferta nada
mais do que a luta crua do poder pelo poder, o que inviabiliza qualquer manifestação
ou tipo de sociedade internacional. Para concluir esta crítica, ele rememora que toda
situação política deve unir, de forma mútua, elementos incompatíveis de utopia e
realidade, de moral e poder.
É interessante ressaltar que Carr via os bastidores da guerra não somente pela
exclusividade do poder militar (um fato essencialmente realista), mas através de
muitos outros vieses. Por exemplo, durante sua época, haviam muitas disputas por
tratados (territoriais ou não), expansão econômica ou de influência monetária. Desse
modo, as intervenções e discussões em muitos países eram mais do que a simples
exposição de poder, configuravam-se de alguma forma, como antes uma exigência ou
necessidade de compensação moral. Como caso de compensação moral, tem-se a
Alemanha no contexto do Entre-Guerras. Muitos conflitos tinham uma natureza
puramente ideológica. Neste caso, tem-se as disputas acirradas entre os regimes
nazifascistas e os de cunho democrático, este último, ao tempo das guerras, encontrara
poucos adeptos. A fim de estimular outros participantes, esses regimes criaram um
amplo conjunto estrutural de propaganda cujo expoente mais influente fôra o de Hitler.
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Uma notável inflexão do autor foi quanto a pretensão de uma grande potência a querer
estar sempre à frente da liderança mundial. Assim, sempre que uma grande potência
esteve à frente da liderança mundial, ela procurava estabelecer uma paz mundial. Foi o
que o ocorreu com a Pax Romana, Pax Britannica e ocorre atualmente com a Pax
Americana. O autor já percebera desde o início do século XX as aspirações dos EUA em
se tornar uma potência hegemônica global, assim como as suas táticas políticas de
completo isolacionismo/unilateralismo em relação à agenda mundial. Entretanto,
somada à esta inflexão, ele traz à tona que, mesmo em proveito próprio, os EUA
afirmaram que o bombardeio de Vera Cruz, em 1914 no México, era um pleno serviço à
humanidade. Outra coisa percebida pelo autor foi que a aspiração mundial pela Pax era
uma característica peculiar às nações imperialistas. Dessa forma, não era estranho ao
Japão pensar em Pax Niponica ou os alemães pensarem em Pax Germanica. Como se
pode empreender, o autor era um estrategista sábio no campo das relações
internacionais e notava os detalhes mais sutis pela disputa de poder.
Como importantes fatores de contribuição à ciência política, encontram-se as
inferências de Carr pelo viés histórico dos fatos e da análise histórica e econômica de
Marx (esta possui um caráter eminentemente determinista, porém não muito rígida), a
qual contempla a continuidade dos fatos, tal como tendências fluindo de uma
necessidade férrea em meio a uma meta inevitável. De acordo com a hipótese
"científica" dos realistas, a realidade é identificada com o curso total da evolução
histórica, cuja investigação e revelação sobre as leis é trabalho do filósofo. o se pode
conceber realidade alguma dissociada do processo histórico. Para realçar este
argumento, o autor o expõe da seguinte maneira:
"conceber a história como evolução e progresso, implica acei-la
em todos os seus aspectos, e, portanto, negar a validade de
julgamentos sobre ela" (Carr, 2001: 89).
Para Carr, o que foi, está certo. A história não pode ser julgada, exceto pelos próprios
padrões históricos (Carr, 2001).
O livro é composto de quatro partes e quatorze capítulos, acrescidos da introdução e
conclusão. Na primeira parte, composta dos capítulos um e dois, tem-se as bases
conceituais da ciência. Na segunda parte, composta dos capítulos três ao seis, são
apresentadas as evidências empíricas embasando as afirmações do autor, não somente
no contexto das duas guerras, mas nos cenários de fundo e nas reais motivações que
levam à “universalidade” dos fatos. Na terceira parte, constituída de três capítulos, são
analisadas as motivações políticas com base na natureza da política, assim como o
poder e a moral e sua grande influência no contexto da ordem internacional a ditar os
rumos das nações, ambos conceitos são baseados na teoria realista. Na quarta parte,
composta pelos capítulos de dez a treze, o autor expõe que a mudança no cenário
político percorre diversos fundamentos jurídicos e traz à luz discussões e visões que
aperfeiçoam e solidificam o convívio nas relações internacionais. Por fim, no capítulo de
conclusão, o autor traz importantes perspectivas e previsões à ordem internacional,
dentre as quais, um questionamento que permanece atual entre os internacionalistas a
respeito da sobrevivência do Estado-nação como unidade de poder e aponta que o
aspecto da futura ordem internacional está intimamente ligado ao futuro da unidade
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grupal. Quanto à unidade grupal, a previsão dele se confirmou em cheio, pois a nova
ordem internacional encontra-se disposta em blocos econômicos, os quais são
literalmente grupos de países e desenvolvem complexas relações de poder. O livro é
muito interessante e oferece um insight diferenciado do já mostrado pelos tradicionais
realistas, a exemplo das teorias clássicas de Maquiavel. Constitui-se num excelente
exercício de síntese, mostrando aos leitores que conexões podem ser articuladas entre
a linha utópica e a realista e que tais esforços não se originam por simples tensão
teórica. Constitui-se numa boa leitura, imprescindível para acadêmicos e profissionais
de Relações Internacionais, História, Sociologia e áreas afins.
Vinte Anos de Crise” induz a refletir e a antecipar ações e práticas na política, não
somente relacionadas à história da sua época; enfim, leva a humanidade a posicionar-
se sobre a velha ordem mundial, e conscientizar-se sobre a real situação ocasionada
pelos jogos de poder e dominação. Suas preciosas lições são importantes
recomendações de como evitar os constrangimentos e aflições a que se submeteu a
humanidade no conturbado contexto de guerra. Ademais, os temas discutidos por Carr
permanecem muito atuais, suas críticas sobre o uso do poder e as suas relações e
observações às obras consagradas do Príncipe e o Leviatã, fazem dele um gênio e um
autor apreciadíssimo no seio da comunidade política intern
acional. .
Como citar esta Recensão
Teles, Matheus Gonzaga (2015). Recensão Crítica de Carr, E. H. (2001). The twenty crisis, 1919-
1939. An introduction to the study of International relations. Brasília: Editora Universidade de
Brasília: 305 pp. ISBN: 85-230-0635-4, JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 6,
N.º 2, Novembro 2015-Abril 2016. Consultado [online] em data da última consulta,
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