OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
ISSN: 1647-7251
Vol. 6, n.º 2 (Novembro 2015-Abril 2016), pp. 34-46
A "MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA" DA RÚSSIA:
COMO SILENCIAR AS VOZES DA OPOSIÇÃO
Richard Rousseau
richard.rousseau@aurak.ac.ae
Professor Associado de Ciência Política, Universidade Americana de Ras Al Khaimah
(Emirados Árabes Unidos)
Resumo
Sob a presidência de Dmitry Medvedev e agora da de Vladimir Putin, a modernização tem
sido/é apresentada como um imperativo nacional para o governo russo. Tornou-se um
slogan político e um meio de restaurar o poder da Rússia, interna e externamente. Esta
campanha serve para promover os interesses de alguns membros da elite russa dentro de
um grupo decisório mais alargado. O presente artigo tenta responder à seguinte questão:
como é que as elites russas entendem a modernização, tanto historicamente como no
contexto atual? Conclui que os "tecnólogos políticos" russos que têm estado no poder nos
últimos 15 anos tornaram-se mestres na arte de silenciar as vozes daqueles que têm uma
visão crítica das políticas do governo.
Palavras-chave
Rússia, Modernização, Putin, Medvedev, Conservadorismo
Como citar este artigo
Rousseau, Richard (2015). "A «modernização conservadora» da Rússia: como silenciar as
vozes da oposição". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 6, N 2, Novembro
2015-Abril 2016. Consultado [online] em data da última consulta,
observare.ual.pt/janus.net/pt_vol6_n2_art03
Artigo recebido em 25 de Junho de 2015 e aceite para publicação em 29 de Setembro
de 2015
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A "modernização conservadora" da Rússia: como silenciar as vozes da oposição
Richard Rousseau
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A "MODERNIZAÇÃO CONSERVADORA" DA RÚSSIA:
COMO SILENCIAR AS VOZES DA OPOSIÇÃO
1
Richard Rousseau
Em 2011, sob o lema "Para a Frente Rússia!", o presidente russo Dmitri Medvedev
(2008-2012) convidou os cidadãos a olhar de novo para a história e rumo do seu ps,
com a intenção de introduzir um debate sobre a necessidade de modernização da
economia, que tem sido um tema recorrente ao longo da história da Rússia,
remontando ao tempo de Pedro, o Grande.
Sob a administração de Putin, a modernização é agora apresentada como sendo um
imperativo nacional, embrulhada de novo num slogan político e revestida pelas
habituais camadas de retórica e nacionalismo. Esta campanha serve para promover os
interesses de alguns membros da elite russa dentro de um grupo decisório mais
alargado. Mas como é que elites russas entendem a modernização, tanto
historicamente como no contexto atual?
A Rússia é muitas vezes incompreendida pelos peritos e políticos ocidentais, pois
parece que não existe meio termo. Alguns têm uma visão muito negativa e obscura do
país
2
, ou afirmam que a Rússia é tão singular e exótica que está numa categoria
própria, não comparável a outros estados
3
.
Ambos pontos de vista sobre a Rússia são enganadores. O primeiro pinta um quadro
muito sombrio das condições sociais e económicas da Rússia, e recorre ao precedente
histórico para argumentar que sempre foi vista como um país perigoso. Não se pode
negar que tenha havido, e continue a haver, muitos aspetos perturbadores no
desenvolvimento da Rússia, mas este fascínio com o lado negro da Rússia permeia as
perceções da Rússia mais normalmente sentidas no Ocidente, que derivam de uma
recordação excessivamente seletiva de eventos históricos.
1
A tradução deste texto foi financiada por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e
a Tecnologia - como parte do projecto OBSERVARE com a referência UID/CPO/04155/2013, e tem como
objectivo a publicação na Janus.net. Texto traduzido por Carolina Peralta.
2
Veja-se Blank, Stephen (2015). Putin Celebrates Stalinism. Again. Atlantic Council, 27 de maio. Disponível
em: http://www.atlanticcouncil.org/blogs/new-atlanticist/putin-celebrates-stalinism-again
; Pipes, R.
(1991). The Russian Revolution. Vintage, 1ª Ed; Brzezinski, Zbigniew (1990). Grand Failure: The Birth
and Death of Communism in the Twentieth Century. Collier Books; Nolte, E., and Furret, F. (2004).
Fascism and Communism. University of Nebraska Press, 1ª Ed
3
Veja-se Getty, J. H., e Naumov, Oleg (1999). The Road to Terror: Stalin and the Self-Destruction of the
Bolsheviks, 1932-1939. Yale University Press; Malia, M. (1995). The Soviet Tragedy: A History of
Socialism in Russia, 1917-1991. Free Press; Applebaum, A. (2003). Gulag: A History. Doubleday; Raeff,
M. (1994). Political Ideas and Institutions in Imperial Russia. Boulder, CO: Westview.
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A segunda perceção, de que a Rússia é um lugar exótico, quase oriental, cheia de
paradoxos, mistério e intriga, implica que o país não pode ser facilmente compreendido
recorrendo aos paradigmas gerais das ciências sociais. O argumento é que, sendo a
Rússia culturalmente única, está longe de seguir formas de desenvolvimento normais,
especialmente quando comparados com os dos países ocidentais. Este ponto de vista é,
na verdade, uma forma de evitar fazer qualquer declaração definitiva sobre o que é a
Rússia.
A Rússia é diferente, em muitos aspetos, não só de outros estados que constituíam a
antiga União Soviética como de países de tamanho e população semelhantes. Também
se destaca devido ao papel geopolítico que desempenha na Europa e Eurásia, e pela
sua importância estratégica enquanto segunda maior potência nuclear do mundo.
Exerce uma importante influência política devido ao seu estatuto de membro
permanente do Conselho de Segurança da ONU. Acima de tudo, a Rússia é única
porque se vê a si própria como sendo diferente - mas todos os países se veem a si
mesmos como tendo algo de único -, e quer continuar a sê-lo.
O colapso e a reconstrução das estruturas do Estado, instituições políticas e do sistema
económico da Rússia após a queda da URSS, em 1991, criaram uma enorme incerteza
na Rússia e afetou a forma como os russos se definiram como nação. Por exemplo,
embora a atual Federação Russa seja é o sucessor direto de mil anos de existência do
estado, as formas políticas e fronteiras do estado contemporâneo diferem de quaisquer
outras que a Rússia tenha conhecido. Como a União Soviética, a República Russa
também foi formalmente considerada uma federação com subdivisões étnico-nacionais
internas. Mas, ao contrário de uma URSS mais vasta, apenas alguns dos seus membros
constituintes são territórios nacionais étnicos. Porquê? Porque a maioria das repúblicas
da Federação Russa são puras subdivisões administrativas habitadas por russos. Sob o
sistema soviético, os territórios nacionais étnicos internos da Rússia foram classificados
por tamanho e estado em repúblicas e províncias autónomas e por distritos nacionais.
Atualmente, todas as antigas repúblicas autónomas são simplesmente denominadas
repúblicas. Em muitas repúblicas, o grupo étnico autóctone inclui uma minoria da
população. Desde 1991, os nomes e estatuto de algumas das unidades constituintes da
Rússia mudaram
4
.
O imperativo da modernização iniciou-se no chamado terceiro ciclo de
desenvolvimento, ou ciclo pós-comunista, que começou em 1991, sendo que os dois
primeiros ciclos foram o período entre a Revolução de 1905 e a Revolução de Fevereiro
de 1917, e o período comunista (1917-1991)
5
. Em setembro de 2009, Dmitry
Medvedev escreveu no website do Presidente da Rússia que "as tentativas anteriores
para modernizar a Rússia - iniciadas por Pedro o Grande e pela União Soviética -
tinham parcialmente falhado e tido um custo social elevado para a Rússia."
6
Olhando para trás para a transformação da Rússia desde 1991, este período tem sido
caracterizado por impulsos alternados de reforma e estabilidade e tem contribuído em
grande parte para a criação de um sistema híbrido que combina elementos da
ocidentalização superficial com os restos de uma política soviética de mão de ferro. Os
4
Veja-se Sakwa, R. (2008). Russian Politics and Society. Londres e Nova Iorque, Routledge, Quarta Edição.
5
Veja-se Figes, Orlando (2014). Revolutionary Russia, 18911991, Metropolitan Books.
6
Medvedev, Dmitry (2009). Go Russia! President of Russia Official Web-Site, 10 de setembro. Disponível
em: http://eng.news.kremlin.ru/news/298
.
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resultados globais aparentam ser uma modernização do sistema económico e da
sociedade conduzida por uma elite que fundiu com o domínio político com um maior
nível de autoritarismo
7
.
As elites governamentais transformaram-se num novo tipo de classe dominante -
semelhante à realeza - que hoje controla as muitas camadas de burocracias estatais e
paraestatais, instituições militares e entidades responsáveis pela aplicação da lei. Esta
classe está ligada às empresas russas através do uso de recursos administrativos e do
seu comportamento de procura de benefícios financeiros. Por exemplo, a maioria das
empresas geridas por ex-colegas de Putin na KGB como o Presidente dos Caminhos
de Ferro russos Vladimir Yakunin ou Igor Sechin, o Presidente Executivo da Rosneft -,
duramente atingidos pelas sanções da UE e dos EUA provocadas pela guerra no Leste
da Ucrânia, receberam resgates do governo russo
8
. Estes interesses pessoais
constituem a sinergia e determinam o futuro da Rússia.
A classe dominante pós-soviética, em particular o grupo conhecido por "siloviki"
(aqueles "homens de uniforme” criados nos serviços secretos e policiais e no Exército
Soviético), chegou ao comando do poder durante a primeira presidência de Putin
(2000-2008) e efetivamente alienaram-se do tecido social russo
9
. O fosso entre a
classe dominante e os russos comuns é semelhante ao que encontramos nos países
mais pobres do terceiro mundo. Devido a este fosso cada vez maior entre governantes
e governados, os sociólogos russos diagnosticaram um aprofundamento da crise
económico-social na Rússia contemporânea.
O semi-autoritário "novo projeto de integração para a Eurásia"
10
, de Putin, que
supostamente visa proporcionar a possibilidade de um salto civilizacional para o século
XXI, tornou-se de facto uma barreira à mudança social
11
. A "modernização
conservadora" de Putin, que tem predominado no discurso oficial da Rússia desde
2011, tem, de fato, sancionado a proteção social e o prolongamento do status quo, e
passou a simbolizar apenas as boas intenções e interesse dos poderes constituídos
12
.
Este estilo de modernização tem pouco em comum com as ideias dos modernizadores
da Europa Ocidental do século XX
13
.
Para alguns observadores russos, é comparável ao
dos "obstrucionistas" e "reacionários" da época da "estagnação" sob a liderança de
Leonid Brezhnev
14
.
7
Mezrich, B. (2015). Once Upon a Time in Russia: The Rise of the Oligarchs. A True Story of Ambition,
Wealth, Betrayal, and Murder. Atria Books.
8
Miller, Chris (2015). Russia’s Economy: Sanctions, Bailouts, and Austerity. Foreign Policy Research
Institute, fevereiro. Disponível em: http://www.fpri.org/articles/2015/02/russias-economy-sanctions-
bailouts-and-austerity
9
Veja-se Hoffman, D. E. (2011). The Oligarchs: Wealth And Power In The New Russia. Public Affairs,
Revised Edition; Illarionov, Andrey (2009). The Siloviki in Charge. Journal of Democracy, 20 (2), pp. 69-
72.
10
Putin, Vladimir (2013). A New Integration Project for Eurasia: The Future in the Making. Izvestia, 3 de
outubro (Reproduced on the Permanent Mission of the Russian Federation to the European Union
website). Disponível em: http://www.russianmission.eu/en#sthash.H1eXjC3e.dpuf
11
Inozemtsev, Vladislav (2010). Russie, Une Société Libre Sous Contrôle Autoritaire. (Russia A Free
Society Under Authoritarian Control). Le Monde Diplomatique, Nº.10, pp 4-5.
12
Veja-se Inozemtsev, Vladislav (2010). Istoriya i Uroki Rossiyskikh Modernizatsiy. (The History and
Lessons of Russian Modernisations). Rossiya i Sovremenniy Mir, Nº 2 [67], abril-junho, pp. 6-11; Trenin,
Dmitri (2010). Russia’s Conservative Modernization: A Mission Impossible? SAIS Review, Volume 30,
Número 1, Inverno-Primavera, pp. 27-37.
13
Von Laue, Theodore H. (1987). The World Revolution of Westernization. The Twentieth Century in Global
Perspective. Oxford, Nova Iorque: Oxford University Press.
14
Inozemtsev, Vladislav (2010). O Tsennostyakh I Normakh. (On values and Norms). Nezavisimaya Gazeta,
5 de Março, p. 3.
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Modernização Conservadora
O liberalismo no Ocidente desenvolveu-se durante muito tempo sob a forma de
propriedade privada, liberdades individuais e desenvolvimento do pensamento
racionalista, ao passo que na Rússia todos os três têm estado ausentes ou foram
severamente limitados. O principal problema na Rússia era que o sujeito do liberalismo,
o homo economicus, era praticamente inexistente e assim o liberalismo encontrou o
seu principal apoio entre a intelectualidade liberal urbana
15
.
No ocidente, o liberalismo (incluindo a propriedade privada, o individualismo e a defesa
do direito de propriedade e do direito individual através da lei) chegou antes da
democracia, mas na Rússia foi a própria revolução democrática em 1987-1991 que
criou as bases do liberalismo. O liberalismo russo difundiu o poder económico que está
associado à propriedade privada para estabelecer a base dos direitos individuais; mas
ao mesmo tempo afirmou a necessidade de concentração de poder potico, um Leviatã
pós-comunista, sob a forma de poder presidencial
16
.
O liberalismo económico, mas não necessariamente a democracia de pleno direito,
estava assim na agenda. Além disso, a desconcentração do poder económico conseguiu
criar uma classe de "novos russos" e oligarcas, mas pouco fez pela maioria da
população, uma grande parte da qual perdeu as garantias sociais do período soviético e
ganhou muito pouco em troca. O liberalismo continuou longe de ser hegemónico,
desafiado pela contraideologia do estadismo, e também não era universal, limitando-se
a certos enclaves do globalismo na Rússia, como Moscovo, São Petersburgo e algumas
outras cidades. No entanto, apesar da perda de território e do colapso das certezas
confortadoras de uma ideologia abrangente, seria falso argumentar que o liberalismo
não conseguiu criar raízes nassia.
No coração da revolução democrática liberal reside a tentativa de estabelecer uma
economia de mercado e um governo representativo. Mas como? Enquanto os
reformistas liberais da década de 1990 seguiam as orientações de um governo
representativo, confrontados com o que lhes parecia ser a oposição intratável dos
conservadores no parlamento, muitos argumentaram a favor de uma "mão de ferro",
uma presidência forte e um estado que agisse com uma espécie de despotismo
esclarecido, fazendo avançar as reformas mas preservando as principais instituições
políticas pós-soviéticas.
Boris Ieltsin, o primeiro presidente pós-soviético, aparentou ter êxito onde Mikhail
Gorbachev falhara em encontrar um caminho intermédio entre governo representativo
e coação pura e simples, um tipo de representação virtual de interesses políticos e
sociais descritos pelos vários rótulos de democracia delegativa, iliberal ou de regime. O
colapso do poder comunista e o fraco desenvolvimento de um contra-sistema
democrático permitiu que as estruturas burocráticas e de elite obtivessem um grau
relativamente elevado de autonomia.
Isto foi mais evidente no próprio governo na década de 1990, que se estabeleceu como
uma espécie de alto comando tecnocrático da transição económica. Também nas
15
Raeff, M. (1994). Political Ideas andOp. Cit., p. 56.
16
Gill, G, and Merkwick, R., D. (2000). Russia’s Stillborn Democracy? From Gorbachev to Yeltsin. Oxford
University Press, pp. 127-150.
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regiões, as funções de controlo anteriormente assumidas pelo Partido Comunista foram
apenas fracamente substituídas pelo sistema de representantes federais a nível distrital
regional ou federal. Embora a mudança social e a transformação económica talvez
fossem os pré-requisitos para uma ordem liberal, o desenvolvimento político e a
democratização exigem mais.
Como reação à tentativa de alcançar uma modernização liberal sem liberais, emergiu
um tipo de conservadorismo russo pós-comunista. O conservadorismo na Rússia tem
raízes e tradições filoficas muito mais profundas onde se apoiar do que o liberalismo;
mas na viragem do século e no início do terceiro mandato presidencial de Putin (2011-
2012), fizeram-se tentativas para combinar os dois numa ideologia russa distinta de
modernização conservadora.
No entanto, a fonte mais forte de modernização conservadora foi talvez a opinião
patriótica sobre a necessidade de um Estado forte combinado com direitos individuais e
um sistema constitucional
17
. Assim, na Rússia emergiu uma síntese única de
liberalismo económico, modernização e conservadorismo político que assumiu forma
política desde o regresso de Putin à presidência em março de 2012.
A modernização conservadora de Putin baseou-se em tradições pré-revolucionárias do
período soviético e, no período pós-soviético, na experiência do mundo do
conservadorismo liberal e social. Tentou combinar a ênfase liberal nas liberdades
económicas com restrições graduais sobre os direitos individuais e políticos e uma
conceção orgânica da comunidade em geral, focando-se na tentativa de preservar as
distintas tradições da Rússia, reavivar a Igreja Ortodoxa e salvar alguma coisa das
políticas sociais do período soviético. Uma marca diferente da modernização
conservadora, defendida pelos neocomunistas e alguns patriotas nacionais, procurou as
raízes da 'nova comunidade' nas tradições russas. O governo de Putin representa uma
poderosa combinação desses atributos e adapta o esforço de modernização à condição
atual e histórica da Rússia.
O próprio conceito de democracia na Rússia aparece agora deslegitimado, enquanto a
própria palavra é usada como sendo um opróbrio. A falta de credibilidade entre as
declarações da liderança e as realidades da vida quotidiana deu origem ao que tem sido
apelidado de cultura de desconfiança e a um sentimento generalizado de niilismo social.
A ideologia da modernização conservadora significa que as instituões políticas do
Estado se tornaram mais ordenadas e a liderança mais firme e consistente. Por outras
palavras, a estabilidade política é melhor garantida por um regime autoritário do que
pela desordem democtica.
No seu livro Political Order in Changing Societies (Ordem Política nas sociedades em
transformação) publicado em 1968, Samuel Huntington argumentou que as sociedades
em transição para a modernidade exigem uma liderança firme, se não mesmo militar,
para negociar as enormes tensões colocadas sobre a sociedade por um período de
rápida mudança
18
. Na Rússia de Putin, o papel "pretoriano" está a ser cumprido pela
Presidência e pelos seus aliados mais próximos, em vez de pelo exército. A Presidência
17
Markov, Sergei (2009). Conservative Modernization. The Moscow Times, 30 de novembro. Disponível em:
http://www.themoscowtimes.com/opinion/article/tmt/390539.html
; Trenin, Dmitri (2010). Russia’s
Conservative Modernization: A Mission Impossible? Carnegie Moscow Center, 25 de maio. Disponível em:
http://carnegie.ru/2010/05/25/russia-s-conservative-modernization-mission-impossible
18
Huntington, Samuel (1968). Political Order in Changing Societies. New Haven/Londres: Yale University
Press, p. 1.
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recriou um centro não só para a nação, mas também para a sociedade política, o centro
que se tinha desintegrado com Ieltsin. Desde 2012, o medo, no entanto, que a
Presidência forte não agisse como um baluarte contra a ilegalidade, mas que seria ela
própria o veículo para uma nova forma de arbitrariedade, provou ser fundamentado.
A Rússia tem hoje um sistema político híbrido, simultaneamente democrático e
autoritário, mas cada vez mais inclinado para o último tipo. As liberdades que tinham
começado durante o glasnost floresceram numa verdadeira liberdade de expressão e de
imprensa, e a variedade de publicações e a abertura dos seus contdos não tiveram
paralelo na história da Rússia. A censura foi explicitamente proibida e só os tribunais
podiam proibir jornais de forma permanente, e apenas por razões específicas e após
advertência prévia.
A natureza híbrida da democracia autoritária na Rússia de Putin surgiu do conflito entre
fins e meios e tem uma dupla função: a de minar as velhas estruturas do poder social e
político dominado pelos oligarcas, enquanto, ao mesmo tempo, proporcionar a
estrutura que permita o crescimento de formas conservadoras que, em última análise,
poderiam manter-se por si próprias. Por outro lado, sob Putin a política regional e
federal ficou mais protegida das pressões dos interesses económicos, e a presidência
funciona menos como um agente abusivo nos interstícios do Estado e da sociedade,
como tinha acontecido na era Ieltsin, e mais como uma ordem estatal a tentar
modernizar o estado russo e a sociedade.
Efeitos Negativos
Este modelo de modernização conservadora teve muitos efeitos negativos. O mais
notável é a escala e a natureza sistetica de corrupção e niilismo legal. Valery Zorkin,
presidente do Tribunal Constitucional da Federação da Rússia e uma das personalidades
mais poderosas no país, admitiu publicamente que o crime está entranhado no
aparelho de estado e na economia e que os interesses dos membros do aparelho de
estado e da classe empresarial vão de mão dada com os interesses dos círculos
criminais. Numa entrevista ao Izvestia em 2004, disse "o suborno nos tribunais tornou-
se um dos maiores mercados de corrupção na Rússia". A evidência sugere que o nível
de corruão no sistema judicial aumenta quanto mais se desce na hierarquia e quanto
mais longe de Moscovo nos encontramos
19
.
Em 2004, a Rússia ficou em 90º lugar entre 149 pses no Índice Global de Corrupção
da Transparência Internacional, enquanto que em 2013 ficou em 127º, ao lado de
países notoriamente corruptos, como o Paquistão, Bangladesh e Costa do Marfim
20
.
Ficou igualmente mal classificado no Doing Business Survey do Banco Mundial,
ocupando o 112º lugar num universo de 185 países, colocando-o ao nível das ex-
repúblicas soviéticas, como o Uzbequistão, Cazaquistão e Azerbaijão
21
. Os governos de
19
Blass, Tom (2007). Combating Corruption and Political Influence in Russia’s Court System. Global
Corruption Report 2007: Corruption in Judicial Systems. Transparency International. Cambridge
University Press, pp. 31-34; Gilinskiy, Yakov (2006). Crime in Contemporary. European Journal of
Criminology Russia, Vol. 3, p. 259.
20
Corruption Perceptions Index 2013. Transparency International. (2013). Disponível em:
https://www.transparency.org/cpi2013/results
21
Doing Business 2013. World Bank. (2013). p. 3. Disponível em:
http://www.doingbusiness.org/~/media/GIAWB/Doing%20Business/Documents/Annual-
Reports/English/DB13-full-report.pdf
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Medvedev e de Putin têm, porém, tomado algumas medidas para combater a corrupção
e mudar a perceção dos estrangeiros de que assia não é um lugar fácil para fazer
negócios. Em 2010, Medvedev assinou a Convenção Anti-Suborno da OCDE, embora a
Rússia seja apenas parceira desta poderosa organização económica.
O Institute of Contemporary Development INSOR (Instituto de Desenvolvimento
Contemporâneo) e o Center for Strategic Analysis CSR (Centro de Análise
Estratégica), duas instituições próximas do Kremlin, chegaram a conclusões ainda mais
reveladoras sobre as circunstâncias em que a Rússia se encontra no meio da segunda
década do século XXI. Estas instituições afirmam que o alto nível de corrupção é o
principal fator que causa a "crise" global que a Rússia enfrenta atualmente. O desdém
para com o aparelho de estado sentido pela grande maioria dos russos está a abrandar
a modernização das instituições políticas
22
. O poder dominante tem "estado a dormir”
durante as mudanças sociais provocadas pela combinação de uma economia de
transição e a perda de mecanismos de segurança para os mais vulneráveis.
A sociedade russa sofreu mudanças substanciais na sua estrutura e estratificação, que
ainda estão em curso. Com o desenvolvimento das tecnologias de comunicação de
massa globais e maior acesso a fontes de informação independentes, os cidadãos pós-
comunistas saíram da hibernação e começaram a desenvolver competências básicas de
auto-organização. Milhões de trabalhadores da classe média e centenas de grupos de
jovens, radicalizados pela falta de oportunidades de melhorar o seu estatuto social,
uniram-se com os intelectuais da oposição. Na verdade, a imagem estereotipada da
incapacidade dos russos de reagir e ir para a rua quando confrontados com abusos e
incompetência do seu governo revelou-se uma coisa do passado durante o terceiro
mandato de Putin como presidente, em Maio de 2012.
Reagindo ao que se lhes afigurava fraude eleitoral generalizada, uma série de
instituões paralelas e organizões sociais uniram-se para fazer campanha contra a
manipulação do processo eleitoral e prática de outras atividades antidemocráticas por
parte das autoridades durante as eleições de 2012. As redes sociais e projetos como o
"Parlamento Online" ganharam popularidade rapidamente, muitas vezes em resposta
ao flagrante desrespeito do Kremlin pelos direitos civis fundamentais das pessoas. Esta
forma negligente de governo das elites explica em parte a razão pela qual a liberdade
tem vindo constantemente a diminuir
23
.
Muitos analistas preveem que os próximos anos trarão consigo uma força de oposição
dinâmica que pode até mesmo superar a que varreu a URSS entre 1986 e 1991
24
.
Calculam que a grave deterioração da situação económica e os distúrbios sociais
reavivados no Cáucaso Norte serão os principais catalisadores da abertura dos portões
do descontentamento e de uma enxurrada de ativismo político na sociedade russa.
22
INSOR Experts Focus Attention on Fight Against Corruption. (2008). Institute of Contemporary
Development (INSOR), 26 de junho. Disponível em: http://www.insor-russia.ru/en/_news/890
23
Livejournal, Online Parliament and Freedom House. (2011). The Voice of Russia, 21 de abril. Disponível
em: http://sputniknews.com/voiceofrussia/radio_broadcast/36172287/49273362/?link-1
24
Veja-se Fauconnier, Clémentine (2011). Conflit et Compétition Politiques Dans La “Démocratie
Souveraine” : L’Opposition Vue Par Russie Unie. Revue d’études comparatives Est-Ouest, 42 (1), março,
pp. 17-36; Narizhnaya, Khristina (2013); Russians Go West. The World Policy Journal, 30 de março, pp.
95-103. Disponível em: http://www.worldpolicy.org/journal/spring2013/russians-go-west
; Caracciolo,
Lucio (2015). Democratorship: The Ancient Heart of Putin’s Regime. Stratfor, 27 de março. Disponível
em: https://www.stratfor.com/the-hub/democratorship-ancient-heart-putin%E2%80%99s-regime
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No contexto da crise no Leste da Ucrânia e das sanções económicas que a UE e os EUA
impuseram à Rússia como retaliação, o ano de 2015 pode de fato ser extremamente
perigoso para o Kremlin. Esta é a opinião de Igor Yurgens, Presidente do Conselho de
Administração do INSOR, que reconheceu abertamente que a Rússia está "em recessão
agora, e em breve estaremos em queda livre”
25
.
As condições económicas internacionais têm o potencial de desempenhar um papel
dinâmico no futuro da Rússia. A crescente interdependência global tem feito com que o
crescimento económico do país esteja a tornar-se mais dependente do comércio
externo, forçando-o a prestar mais atenção à sua competitividade nos mercados
mundiais. Enquanto isso, a "Grande Recessão" de 2008-2009 pôs dolorosamente a nu a
falibilidade das economias baseadas em recursos.
A diminuição de 8% do PIB que a Rússia sofreu na sequência da crise económica
mundial de 2008-2009 fez com que os habitantes do Kremlin se apercebessem que
uma adequada diversificação comercial não só é uma necessidade primordial, mas
também tem que ser acompanhada pela implementação imediata da modernização
económica.
Existem vulnerabilidades económicas graves, a começar pela forte dependência da
Rússia na exportação dos seus recursos naturais e a debilidade das suas indústrias
transformadora, de serviços e de alta tecnologia. O potencial educativo, científico e
tecnológico da Rússia, como as instalações industriais herdadas da União Sovtica,
chegou ao fim ou esgotou-se. Muitas destas instalações já não se adequam à economia
global, e não têm lugar num mundo de concorrência feroz entre os estados, economias
de escala e terceirização (outsourcing).
Fações Diferentes
A Rússia está assim a enfrentar outro ponto de viragem histórico. Qual a direção
política e económica que deverá agora seguir? O espectro dos processos de
modernização inacabados paira sobre o país desde o tempo de Pedro, o Grande, no
início do século XVIII, e os dilemas enfrentados pelas antigas e atuais elites são quase
idênticos em termos de objetivos e restrições.
Os líderes políticos russos, como tantas vezes aconteceu na história do seu país, estão
à procura de algum tipo de fórmula económica mágica que satisfaça todos, ao mesmo
tempo que preserva o status quo político e económico. Muitos acreditam que um
regresso à situação pré-crise é possível, enquanto outros são da opinião de que a
inércia irá resultar numa reação em cadeia descontrolada e prejudicial, que poderia, no
entanto, trazer finalmente a verdadeira democracia à Rússia
26
.
Um elevado número de relatos e análises alarmistas partilham uma conclusão comum:
mudanças políticas profundas, e especialmente uma mudança inequívoca no sentido da
democratização e do Estado de Direito, são ingredientes necessários para uma
25
Yurgens, Igor (2014). We Are in a Recession Now, and Soon We’ll Be in a Free Fall. Institute of
Contemporary Development (INSOR), 19 de novembro. Disponível em:
http://www.insor-
russia.ru/en/_news/11319
26
Veja-se Vstrecha s Vedushimi Rossiyskimi i Zarubezhnimi Politologami. (Meeting With the Leading Russian
and Foreign Political Science Experts). (2010). Disponível em: www.kremlin.ru/news/8882
; Para uma
análise detalhada da literatura relevante veja-se: Diskin, Iosif (2009). Krizis... I Vse Zhe Modernizatsiya!
(Crisis... Yet It’s Still Modernization!). Moscow: “Evropa” Publishing House, pp. 7-16.
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recuperação económica mais abrangente e para o bem-estar social
27
. Só essa
modernização permitirá uma transformação cultural que seja suficientemente decisiva
para possibilitar a criação de uma identidade russa moderna e sólida, e, de um ponto
de vista legal, um Estado assente no respeito para com a lei
28
. A Rússia deve retomar a
via da ocidentalização a fim de transformar a tirania política de alguns num novo
sistema político assente em valores que conduzam a uma boa governação, liderança
responsável, inovação, eficiência e liberdade
29
.
Classificar a elite dominante em duas facões - conservadores e liberais - é simplificar
em excesso, já que o debate político é multifacetado no seio dos círculos políticos. Por
exemplo, a fação reacionária no Kremlin define a modernização como um meio de
otimizar o poder do regime político atual, uma vez que melhora a sua capacidade de
governar o ps. A fé num "contrato" estável e a longo prazo entre o Estado e o povo é
emblemático dessa visão de modernização. No entanto, tal paradigma não se opõe a
políticas ecomicas liberais, a um sistema multipartidário e ao recurso à mobilização
social para obter a modernização económica necessária para recuperar do atraso em
relação ao Ocidente - e atualmente em relação a muitos países da Ásia Oriental e do
Sudeste Asiático tal como o "programa de modernização” do Presidente Medvedev,
lançado em 2009 mas relegado ao passado a partir de 2012, é disso exemplo
30
.
Na política externa, a perceção da fação conservadora do lugar da Rússia no cenário
mundial assenta no conceito de "choque de civilizações" proposto por Samuel
Huntington: a "civilização euro-asiática" contra a "europeia". Pressupõe igualmente que
o atual sistema internacional é caracterizado pela multipolaridade e pela predominância
do poder militar sobre o que é agora normalmente denominado de "soft power".
Os "conservadores", como são muitas vezes referidos na imprensa russa, não são um
grupo homogéneo. Há defensores de mudanças cosméticas e defensores da tábua rasa
(os "ultras", por assim dizer) que defendem que se deve começar com uma ardósia em
branco. As fações dos "chekistas" e "ortodoxos" acreditam que a democracia e o
liberalismo representam uma ameaça mortal para a Rússia
31
. Em certa medida, a
vertente da modernização conservadora, onde o Partido Comunista da Rússia poderia
ser incluído, está ideologicamente próximo do pensamento dos tradicionalistas russos.
Não constitui surpresa que as entidades burocráticas estatais, as instituições de defesa
e aplicação da lei, bem como o exército e as grandes empresas estatais, em especial no
sector dos recursos naturais e do complexo militar-industrial, se assumam como
bastiões do conservadorismo
32
.
27
Veja-se Aslund, Anders (2009). Why Market Reform Succeeded and Democracy Failed in Russia. Social
Research, Primavera; Russia’s Economy to Reach Pre-Crisis Level by Late 2012. (2009). RIA Novosti, 16
de dezembro. Disponível em: http://en.rian.ru/business/20091216/157255443.html
28
Rousseau, R. (2015). Russia’s Attempt To Deliver Democratic Transition Is A Non-Starter. Eurasia Review,
News & Analysis, 14 de julho. Disponível em:
http://www.eurasiareview.com/14072015-russias-attempt-
to-deliver-democratic-transition-is-a-non-starter-analysis
29
Veja-se Lindley-French, J. (2014). Greater Russia: How Moscow Exploits and Misunderstands History. The
Europe’s World, 17 de março. Disponível em:
http://europesworld.org/2014/03/17/greater-russia-how-
moscow-exploits-and-misunderstands-history/#.Ve5wn_mSyRQ
30
Andrey Issayev, Andrei (2011). Konservatizm: Oplot Modernizacii. (Conservatisme: The Pilar of
Modernisation). Vestnik Edinoy Rossii, 4 (83), abril, p. 2.
31
Idem.
32
Kateb, Alexandre (2014). La Russie, l’Europe et l’Émergence d’un Monde Multipolaire. La Tribune, 19 de
agosto. Disponível em:
http://www.latribune.fr/opinions/tribunes/20140819trib000844968/la-russie-l-
europe-et-l-emergence-d-un-monde-multipolaire.html
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Por seu lado, a fação "liberal" dentro do partido no poder, a Rússia Unida, que nasceu
das estruturas institucionais soviética e pós-Ieltsin (ou seja, a nomenklatura soviética e
pós-soviética) tem uma visão estreita da modernização: encara a transição política
gradual e as reformas económicas liberais como meios para prevenir revoluções
políticas repentinas e dispendiosas, especialmente porque o temperamento do país
deverá tornar-se cada vez mais inquieto e assertivo
33
.
A situação atual na Rússia é um remanescente de - e uma reminiscência de - muitas
hipóteses históricas desperdiçadas de modernizar a Rússia de forma definitiva sem
nunca mais olhar para trás. Personalidades como Nikolai Speranski, Piotr Stolypin e
Boris Chicherin, conhecidos por serem reformadores na história da Rússia, esforçaram-
se por modernizar o tecido político, social e económico da Rússia na viragem do século
XX. O programa do histórico Partido Kadet (Partido Democrático Constitucional) nos
primeiros meses da Revolução de Fevereiro de 1917 apresentou ideias reformistas que
ainda são relevantes na Rússia de hoje
34
.
Durante a celebração do 150º aniversário da emancipação dos servos em 2011, o
presidente russo Dmitry Medvedev identificou-se com o czar da modernização,
Alexandre II. Os "liberais" de hoje são lealistas que aderem à famosa frase de Pushkin
no século XIX: "o único europeu na Rússia é o governo". O impulso para a reforma,
acreditam, deve vir de cima, como resposta ao processo cultural que vem de baixo. Um
cientista político contemporâneo chamaria a isso uma "abordagem de cima para baixo"
- a única utilizada na Rússia nos dois últimos séculos
35
.
Apesar de alguma indecisão sobre a questão da reforma, tecnocratas russos
iluminados, políticos e académicos de hoje (Grigory Yavlinski, Anatoly Chubais, Mikhail
Kasyanov, Alexei Kudrin, o falecido político da oposição Boris Nemtsov etc.) apoiam
uma política de integração com instituições transatlânticas, apesar de não
especificarem a que instituições se referem. Consideram que a Rússia faz parte
integrante da Europa e a sua esperança de conclrem o trabalho de Pedro, o Grande,
assenta na criação e florescimento de uma classe média verdadeiramente russa
36
. Sob
a presidência de Medvedev, a fação liberal contou com o chamado programa dos
"quatro Is" ou quatro áreas-chave: Instituições, Infraestruturas, Inovação e
Investimento. A criação de condições para o desenvolvimento de empresas de pequena
e média dimensão foi um marco deste programa
37
.
Não é exagero imaginar uma fação política que una os novos rostos da oposição
democrática (a intelligentsia oposicionista, principalmente anti-Putin) e a fação liberal
do Kremlin, independentemente de quão pequena e pouco clara esta possa ser, que
apresente uma plataforma modernizadora aos líderes das instituições políticas e ao
povo.
No entanto, para que isso aconteça, os dois campos terão de diluir um pouco de água
no seu vinho. A intelligentsia oposicionista considera que a fão liberal é um projeto
33
Veja-se: Russia After Nemtsov. Uncontrolled Violence (2015). The Economist, 7 de março.
34
Veja-se Tuminez, Astrid (2000). Russian Nationalism Since 1856: Ideology and the Making of Foreign
Policy. Lanham: Rowman & Littlefield.
35
Veja-se Kennedy, Paul T., and Danks, Catherine J. (2001). Globalization and National Identities: Crisis or
Opportunity? Houndsmills, Basingstoke, Hampshire. Nova Iorque: Palgrave; Kortunov, S. (1998). Russia’s
Way: National Identity and Foreign Policy. International Affairs: A Russian Journal, 44, nº. 4.
36
Vstrecha s Vedushimi Rossiyskimi i… Op. Cit.
37
Veja-se Rousseau, R. (2011). Modernization of Russia: Real or a Pipedream? G8 Summit Magazine, junho.
Disponível em: http://www.scribd.com/doc/55959348/1/G8-G20-France-2011-New-World-New-Ideas
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de Relações Públicas e liberal apenas em nome, que, na verdade, serve para reforçar o
status quo existente. Yuri Afanasiev, um historiador russo famoso, deu uma entrevista
ao Semana ucraniana em 2012, em que dissecou a alegada missão liberalizadora do
campo liberal e chegou à conclusão que as expectativas de reformas reais são
exagerados
38
.
O conflito entre fações do Kremlin sobre como responder ao declínio de competitividade
da Rússia tem vindo a intensificar-se, na esteira da desaceleração económica global de
origem norte-americana de 2007-2008. Nestas circunstâncias terríveis, as disputas em
curso sobre ideias e estratégias de modernização estão a ser usadas pelas classes
políticas para tentar reforçar a sua posição dentro das diferentes fações. Contudo, a
efervescência entre a classe média em crescimento implica que um grande número de
russos está agora mobilizado para questões de importância política e económica de
longo alcance, tais como a propriedade público-privada, o sistema político autoritário, a
economia corrupta e criminalizada, o governo - federal e regional - a prestação de
contas, a violação da liberdade de imprensa e a independência do sistema de justiça.
O debate público revestiu-se de uma nova dignidade e de novas opções políticas. Este
desenvolvimento exclusivo tornou-se mais evidente na corrida para as eleições para a
Duma de Estado em dezembro de 2011 e nas eleições presidenciais de 2012. A Rússia
enfrenta atualmente uma crise política importante. Os abusos do regime de Putin são
tão numerosos que sem uma mudança profunda é improvável que o movimento de
protesto possa ser contido. No entanto, é duvidoso que Putin concorde com reformas
que ameaçam a sua permanência no poder. O palco está, portanto, pronto para um
conflito prolongado entre Putin e a oposição.
A par das mudanças políticas e socioeconómicas, a identidade russa precisa de evoluir,
caso contrário a modernização continuará a ser nada mais do que um chavão vazio na
retórica de campanha, evocada para ganhos políticos. A raiz do dilema da Rússia é a
total ausência de uma força de coesão social ou cultural moderna e integrada a
utilização de propaganda que remonta à Grande Guerra Patriótica e ao passado
imperial da Rússia não desempenha um papel importante na formação de uma
mentalidade coletiva nacional voltada para um projeto de modernização. É por isso
que, para muitos, as esperanças futuras residem nas iniciativas de associações cívicas
e organizações não-governamentais (ONGs) de des-totalitarizar a Rússia e proteger o
país de tendências autoritárias renovadas, como o comunismo e o estalinismo ou os
seus descendentes.
Conclusão
A atual recessão económica, ampliada pelas sanções ocidentais, vai libertar a tensão
social em todo o vasto território russo, embora a probabilidade de uma rutura política
séria seja baixa a curto prazo. O capital de confiança que Putin goza desde a sua
primeira presidência não vai derreter rapidamente. Os russos ainda se lembram que ele
conseguiu elevar os seus padrões de vida ao longo de toda a década de 2000.
Além disso, a armada de "tecnólogos políticos" que trabalha para o Kremlin está
permanentemente à procura de maneiras de dividir e exercer pressão sobre a oposição.
38
Afanasyev, Yuri (2012). Russia Is Ruled by Feudalism. Ukrainian Week, 13 de fevereiro. Disponível em:
http://ukrainianweek.com/World/42179
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Quando o líder da oposição Alexey Navalny entrou com um pedido de autorização para
realizar um protesto anticrise em 1 de março de 2014, os tecnólogos políticos
certificaram-se de que o Partido Comunista e cerca de dez outros grupos realizaram
protestos no mesmo dia, uma tática clássica dos Estados pós-soviéticos
39
. As 15
anos no poder, tornaram-se mestres na arte de silenciar as vozes daqueles que têm
uma visão crítica das políticas do governo.
Com a inflação a subir e valor do rublo a permanecer baixo em relação a outras
moedas, Putin e reputação do partido no poder de ser competente na gestão da
economia acabará por desaparecer. A modernização dos sistemas políticos e
económicos da Rússia foi colocada em banho-maria em 2011 e a dependência no
nacionalismo, repressão e frustração contra o Ocidente será a melhor estratégia para
os próximos anos.
A transição da Rússia foi uma tentativa de proporcionar um quadro institucional para
estabelecer o pluralismo na sociedade, garantir os direitos de propriedade e superar o
isolamento da Rússia dos processos globais. Embora as instituições democráticas
tenham aparecido, apesar de vacilantes e incompletas, levará mais tempo para que a
cultura democrática e as estruturas económicas que as sustentem possam surgir, e
para que as regras não escritas da convenção se plasmem nas palavras escritas da
Constituição. A primeira liderança russa pós-comunista lançou as bases de uma nova
ordem política, acreditando que a Rússia só poderia ingressar na civilização mundial se
a refizesse como sendo sua. Na segunda década do século XXI, torna-se claro que a
Rússia e o mundo enfrentam desafios que não podem ser resolvidos se estiverem
isolados um do outro.
39
Englund, Will (2014). In Moscow, Tens of Thousands Turn Out to Protest Russian Intervention in Ukraine.
The Washington Post, 15 de março. Disponível em:
https://www.washingtonpost.com/world/europe/in-
moscow-tens-of-thousands-turn-out-to-protest-russian-intervention-in-ukraine/2014/03/15/a3b35c34-
caa3-49ee-9612-d6e883535eb8_story.html