OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 11, Nº. 1 (Maio-Outubro 2020), pp. 64-81
UMA PERSPETIVA HISTÓRICA DO EMPREENDEDORISMO EM ANGOLA
Renato Pereira
rpereira@autonoma.pt
Investigador Integrado do OBSERVARE, Universidade Autónoma de Lisboa (Portugal). Professor
Associado da UAL. Professor Convidado do ISCTE-IUL. Doutor em Ciências de Gestão pela
Université Paris Dauphine.
Resumo
O presente artigo faz uma análise histórica do empreendedorismo em Angola, partindo da
própria evolução histórica do conceito de empreendedorismo para se centrar na evolução
deste fenómeno em Angola, ao longo de quatro períodos históricos distintos. Através da
consulta de fontes bibliográficas de autores de referência sobre a temática em estudo, e de
uma exaustiva análise das mesmas, foi possível obter uma perspetiva histórica do
empreendedorismo em Angola, à qual se juntou uma abordagem crítica à evolução deste
fenómeno no país e uma reflexão sobre possíveis cenários de desenvolvimento futuro.
Palavras chave
Empreendedorismo, Angola, África, História
Como citar este artigo
Pereira, Renato (2020). "Uma perspetiva histórica do empreendedorismo em Angola".
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 11, N.º 1, Maio-Outubro 2020.
Consultado [em linha] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-
7251.11.1.5
Artigo recebido em 18 de Abril 2019 e aceite para publicação a 4 de Fevereiro de 2020
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Uma perspetiva histórica do empreendedorismo em Angola
Renato Pereira
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UMA PERSPETIVA HISTÓRICA DO EMPREENDEDORISMO EM ANGOLA
1
Renato Pereira
Introdução
A perspetiva histórica do empreendedorismo em Angola está fortemente condicionada
pela conjugação de pelo menos duas circunstâncias históricas: (i) um período colonial de
cerca de cinco séculos marcados por uma preponderância de um regime monárquico; (ii)
um período s-colonial marcado por uma longa guerra civil que só viria a terminar
totalmente em 2002 (Schubert, 2015).
Por outro lado, o próprio empreendedorismo é um fenómeno que data da era industrial,
tendo o seu locus onde a iniciativa privada teve mais expressão, ou seja, no Norte da
Europa.
Angola, fruto do modelo económico colonial, primeiro; do recrudescimento desse modelo
económico com a ascensão do Estado Novo português, depois; e, finalmente, do modelo
económico de orientação socialista implementado após a independência do país, a 11 de
novembro de 1975, e que durou até à queda da União Soviética, em 1991, embora sujeito
ainda a um período de “partido único”, encontrou verdadeiramente espaço muito
recentemente (Ovadia, 2018).
Sente-se em Angola, em todas as gerações, a procura de um sentido histórico que ajude
a encontrar soluções para se sair do atual momento de bloqueio financeiro que o país
atravessa.
Nunca antes, como agora, desde que uma paz duradoura foi finalmente alcançada, o
devir histórico preocupou tanto os angolanos. A mudança brusca na perceção das reais
capacidades económicas do país, e a clara inversão na tendência de evolução do nível de
vida, lançou a sociedade no seu conjunto, mas também a classe política e dirigente, em
particular, para uma situação de angústia.
Assim, a História começa a ser cada vez mais utilizada como uma espécie de oráculo
sobre o incerto futuro de um país que já viveu, em diversas fases do seu processo
histórico, grandes desafios.
1
O autor expressa o seu mais profundo agradecimento ao Professor Redento Maia, Decano da Faculdade de
Economia da Universidade Agostinho Neto, pelo acesso concedido, durante esta investigação, aos recursos
do CISE Centro de Investigação Sócio-Económica da mesma faculdade.
O autor expressa ainda os seus agradecimentos aos dois revisores anónimos da primeira versão deste
trabalho, cujos comentários muito contribuíram para a melhoria do mesmo.
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Por outro lado, a oralidade enquanto fonte histórica fundamental em África (e.g. Henige,
2005; Cooper, 2005) é plenamente confirmada pela interpelação acima referida, e pelo
diálogo que de seguida se estabeleceu.
Importa, pois, escrever sobre a história dos povos, dos territórios e dos países africanos.
Todos os contributos para a clarificação do sentido histórico das sociedades africanas
atuais é de grande relevância para a sustentabilidade das soluções coletivas a que as
mesmas terão de chegar no momento atual do seu processo histórico.
Os objetivos desta investigação passam assim por dar uma perspetiva histórica sobre o
percurso do empreendedorismo em Angola, sem esquecer o seu caracter geográfico e o
enquadramento histórico do próprio empreendedorismo, enquanto conceito, enquanto
realidade económica e enquanto objeto teórico.
1. Contexto histórico do empreendedorismo
1.1. Do conceito de empreendedorismo
Segundo Haahti (1989), citado por Zinga (2007), o termo empreendedorismo aparece
pela primeira vez referido no Dicionário Universal de Comércio, publicado em Paris em
1723 por Jacques de Brunslons Savary.
A mesma fonte refere que o termo seria corrente no vocabulário francês do século XII,
associado à ideia de “realizar uma atividadee que no século XV o seu significado teria
uma conotação jurídica, de “alguém que contrata”.
Zinga (2007) e Quiongodi (2013), citando várias fontes, referem a existência de uma
convergência na ideia de que o primeiro teórico do empreendedorismo, também de língua
francesa, terá sido o economista Richard Cantillon (1680?-1734).
Cantillon defende, numa obra póstuma datada de 1755, que o “empreendedor” é um
agente económico de pleno direito, tal como o são “capitalistas” e trabalhadores”,
lançando um debate sobre os distintos papéis de “empreendedores” e “empresários”,
discussão essa que dura até aos dias de hoje.
Nesta fase, o conceito já está associado aquele que assume riscos e a análise económica
desenvolvida por Cantillon revela que na França desses dias se vive um capitalismo
inesperadamente sofisticado.
Quiongodi (2013), citando também vários autores, salienta que terá sido esta análise
económica inicial (ou mesmo iniciática) de Cantillon a inspirar os trabalhos de Knight
(1921) sobre incerteza e risco, objecto teórico fundamental para o desenvolvimento das
Finanças no período pós-depressão de 1929.
O segundo autor-chave do empreendedorismo é Jean-Baptiste Say (1767-1832), ele
próprio, tal como Cantillon, considerado fora do lote de economistas clássicos que
começam a publicar a partir do último quartel do século XVIII.
Segundo Zinga (2007), citando Praag (1999), este autor especificou o papel do
empreendedor enquanto gestor das iniciativas (em princípio, empresas) por ele criadas.
O economista (clássico) seguinte a contribuir para o estabelecimento teórico do
empreendedorismo é Alfred Marshall (1842-1924). O seu contributo mais relevante,
também salientado por Zinga (2007) e por Quiangodi (2013), foi ter enquadrado o
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empreendedor como alguém que identifica oportunidades de negócio, objeto teórico de
importância central na tradição teórica do empreendedorismo.
O autor subsequente com elevado peso histórico no empreendedorismo é o economista
austríaco Joseph Schumpeter (1883-1950), cujo contributo central é a atribuição ao
empreendedor da tarefa fundamental (para a economia) da “destruição criativa” de
mercados através da inovação. Para além de romper com a tradição microeconómica dos
seus predecessores, este teórico relaciona pela primeira vez o empreendedorismo com o
desenvolvimento económico, fazendo de si próprio fonte incontornável de rias
subdisciplinas da ciência económica. Na sua perspetiva, a racionalidade económica não
assenta na procura do equilíbrio mas antes num permanente processo de descoberta,
assimilação de informação e rutura do status quo que exige do empreendedor
características excecionais (Schumpeter, 1911).
Outro contributo de elevada relevância é o do economista americano Frank Knight (1885-
1972) que vai contribuir para o desenvolvimento teórico do empreendedorismo fazendo
a distinção entre risco evento aleatório com probabilidade conhecida e incerteza
evento aleatório com probabilidade desconhecida e estabelecendo a relação entre o
empreendedor e a geração de benefícios económicos pela empresa o agente económico
que transforma a incerteza em risco através do seu julgamento, sendo o lucro a
remuneração pelo risco corrido (Knight, 1921).
Na segunda metade do século XX, observa-se um desenvolvimento espetacular no
empreendedorismo enquanto disciplina científica, fruto da proliferação de publicações
científicas e do próprio desenvolvimento das Ciências de Gestão, que rapidamente
adotam o empreendedorismo, embora só lhe dando um estatuto definitivo no século
XXI.
Voltando à metade do século XX, é importante referir Peter Drucker (1909-2005), um
dos grandes teóricos do management que vai relacionar, de forma decisiva, a gestão
com a inovação, e esta com o empreendedorismo Drucker, 1985). Os trabalhos de
Drucker, tal como os de outros autores menos conhecidos, salientados por Sarkar (2014),
a par do fenómeno das chamadas economias emergentes, entre as quais se encontram
(ou encontravam?) vários países africanos, trazem o empreendedorismo definitivamente
à ordem do dia e ao estatuto disciplinar de pleno direito.
1.2. Da sua evolução teórica
O empreendedorismo é um objeto teórico suscetível de diferentes abordagens, que se
tem deparado com diversas perspetivas e mesmo ontologias, originárias de rios
quadrantes, sendo as mais significativas a Economia, as Finanças, a Gestão e a Psicologia
(e.g. Sarkar, 2014).
A sua evolução teórica está associada à evolução histórica referida no ponto anterior,
nomeadamente à sua génese nos primórdios da era industrial em França e posterior
adoção por diversos economistas e teóricos da gestão.
Portanto, a sua génese é “empreender”, levar a cabo qualquer empreendimento, “fazer
coisas”. Em linguagem atual, “fazer acontecer”. Esta ontologia sica mantém-se
constante, apesar de todas as evoluções, até aos nossos dias (e.g. Sarkar, 2014).
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Baumol (1990) relembra que os economistas mais teóricos dos séculos XVIII e XIX não
se interessam substancialmente por esta figura. Para a generalidade dos autores deste
período, “empreendedor” e “empresário” são uma só e mesma coisa, ou seja, o
proprietário do agente económico empresa, independentemente da natureza do ímpeto
fundador.
Por outras palavras, a ciência económica “ficou à porta da empresa”, não se tendo
verdadeiramente interessado pela dimensão organizacional da mesma. Daí o
desenvolvimento das ciências organizacionais logo no século XX e o posterior
aparecimento das ciências de gestão, com nascimento simbólico em 1911, quando as
empresas passaram a ter dimensão (social, económica e financeira) significativa.
A segunda dimensão teórica fundamental do empreendedorismo é o risco e a incerteza,
acima discutidas a propósito de Frank Knight. No início da década de 1920, claros
sinais de um predomínio crescente de especulação nos mercados financeiros norte-
americanos, o que viria a favorecer o eclodir da grande depressão de 1929.
No entanto, aprender a gerir a incerteza, sem ter como objetivo a eliminação do risco, é
uma atitude fundamental dos agentes económicos, tal como a grave crise financeira
mundial de 2008 veio a demonstrar.
O terceiro elemento teórico de relevo é a orientação para a identificação de oportunidades
(de mercado), também chamado de empreendedorismo de oportunidade”, por contraste
com o empreendedorismo de sobrevivência”, predominante nas economias em vias de
desenvolvimento, como o são a generalidade dos países africanos.
Os trabalhos de Schumpeter, na primeira metade do século XX, são determinantes para
o estabelecimento de um nexo de causalidade entre o empreendedorismo e o
desenvolvimento económico, análise essa que prossegue pelo século XX juntando-se a
compreensão da importância da inovação para a processo empreendedor.
2. Empreendedorismo em Angola
2.1. Contexto do empreendedorismo africano
De acordo com Porter et al. (2002), a esmagadora maioria dos países em vias de
desenvolvimento encontra-se na categoria de factor-driven economies, ou seja,
economias baseadas em recursos naturais, sejam eles hidrocarbonetos com elevado
valor de mercado ou simplesmente terra arável.
Nestas economias, verifica-se essencialmente um empreendedorismo “de
sobrevivência”, uma vez que a base de recursos (tecnológicos) à disposição dos
empreendedores não é suficiente para gerar oportunidades de negócio.
Por força destas circunstâncias, e de fatores contextuais, políticos e culturais cuja análise
será efetuada nos pontos seguintes, tem-se vindo a generalizar em África, desde meados
do século XX, a chamada “economia informal”, ou seja, uma preponderância de
microempresas unipessoais que nunca chegam a formalizar a sua existência nem a sua
atividade económica (Ellis & Fauré, 1995). “The practicing economist present on the
ground is struck by the creativity, by the initiative of people in the urban setting, and by
the emergence of new organizations and an entrepreneurial spirit that escape accounting
records” nas palavras de Hugon (2004, p.115).
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A informação que a origem da economia informal africana ocorre ainda quando muitos
destes países se encontravam em período colonial é abordada explicitamente por vários
autores (e.g. Lopes, 2007) mas foi-nos também transmitida oralmente por várias
pessoas “mais velhas” que ainda sobrevivem desta atividade em Luanda, em Bissau e
em Maputo.
A inexistência de um mercado de trabalho eficiente, a pobreza, a falta de educação básica
e de capacitação profissional elementar, entre outros aspetos, por simples observação
empírica, estarão certamente na origem e no desenvolvimento espetacular desta forma
de organização económica e de empreendedorismo.
Como seria de esperar, as independências dos países africanos não inverteram esta
tendência, apenas a contiveram, nalguns casos e durante algum tempo, até que a
realidade se impôs.
No entanto, existe também, e desde o século XIX, uma base empresarial formal em
África, distinta do mero mercantilismo tradicional, muito dele nómada ou quase-nómada
e oriundo do Magreb ou dos territórios do Sahara. Esse empreendedorismo não logrou,
todavia, uma evolução semelhante à que se verificou na Europa, Estados Unidos ou
mesmo na Ásia durante o século XX pois o legado histórico colonial assentou na
exploração de matérias-primas e não no desenvolvimento de um verdadeiro capitalismo
industrial assente no investimento. Na tentativa de recuperar o tempo perdido, e sob
influência de uma ancestral tradição política e económica centralista e de doutrinas de
inspiração marxista ou afim, muitos governos africanos tentaram acelerar este processo
pela criação de empresas públicas de grande dimensão que não dificultaram o
estabelecimento de um empreendedorismo indígena ou mesmo estrangeiro, como
criaram sobre estes um anátema que ainda hoje persiste em muitos países do continente
(Spring & McDade, 1998).
Por fim, a situação de fragilidade económica e política em que se encontram muitos dos
países africanos, alguns dos quais mergulhados em infindáveis guerras civis,
convencionais luta pelo poder entre forças internas ou menos convencionais
geradas pelas diferentes formas de jihadismo islâmico deu origem a uma espécie de
“empreendedorismo de guerra” (Hugon, 2006).
2.2. Contexto colonial angolano no século XIX
De acordo com Henriques (1996), o aparecimento de formas embrionárias de um
empresariado africano «tradicional» pode situar-se no último quartel do século XIX, em
consequência de uma dupla situação: as propostas comerciais europeias e a existência
de estruturas comerciais africanas, dinâmicas e flexíveis, capazes de responder aos
desafios vindos do exterior.”
Por seu lado, Fonseca-Statter (2008), afirma que em África “quando se procura fazer
uma reflexão sobre a natureza e origem da empresa enquanto eventual motor do
processo de desenvolvimento, somos forçados a considerar uma abordagem que leva
necessariamente em linha de conta a perspetiva histórica concreta da criação destas ou
daquelas empresas, assim como do seu relacionamento com o papel regulador do
Estado”.
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De uma análise destas fontes, ressalta a constatação da ausência da utilização do termo
“empreendedorismo” para caracterizar a atividade empresarial, tendo os autores optado
ambos pela fórmula de “empresariado”. Outros autores confirmam a mesma perspetiva
(e.g. Reis, 1996).
Assim, e para os propósitos do presente trabalho, consideraremos “empresariado” como
unidade de análise sinónima de “empreendedor”, cujo âmbito mais específico foi objeto
de análise em secção anterior.
Retomando a questão do empreendedorismo angolano do século XIX, o mesmo
enquadra-se numa evolução da perspetiva europeia sobre África resultante de um
acontecimento histórico de capital importância e impacto: o fim (gradual) da exportação
de escravos e da sua progressiva substituição pelo chamado “comércio legítimo”.
Importa também salientar que as transações comerciais inter-africanas, pré-existentes
à chegada dos Europeus, envolvendo chefes políticos e comerciantes, mantiveram-se ao
longo de todo o período colonial e (surpreendentemente) sem qualquer intervenção
daqueles. Mais, procuram impor as suas novas regras aos Europeus!
Carvalho (1984), citado por Henriques (1996, p.56) refere que, no final do século XIX,
ainda prevalecem, no nordeste de Angola, circuitos comerciais africanos baseados no
tráfico de escravos, totalmente fora do controlo português. Este importante facto
histórico para a compreensão da génese da iniciativa empreendedora em Angola,
centrada no comércio, é também salientado por Birmingham (2015).
Henriques (1996, p.57) salienta outro elemento de enorme relevância para os propósitos
do presente trabalho: a saturação africana relativamente às mercadorias europeias (e
asiáticas) e consequente procura de novas “produções, para dispor de mercadorias que,
aceites pelos Europeus, permitam recuperar a autonomia técnica e comercial africana.”
Este facto, sem dúvida, impacta a atividade empreendedora e representa uma atitude
empreendedora no pleno sentido do termo. De facto, o desenvolvimento do comércio
legítimo permite o aparecimento de pequenos comerciantes africanos, agindo
autonomamente.
A análise histórica permite ainda relacionar esta atividade empreendedora com a
inovação, uma das relações teóricas de causalidade mais fundamentais do ponto de vista
epistemológico.
Na Angola da segunda metade do século XIX, o desenvolvimento do empreendedorismo
leva à introdução de novas técnicas de circulação e de capacidades de investimento
diversificadas, abre novas áreas de exploração de recursos naturais e de mercados […]
permite/exige inventar práticas comerciais mais adequadas à procura e à resposta,
estimula a produção, incentiva a inovação técnica, organiza novas formas de trabalho,
introduz o salário, banaliza o crédito, gera lucros, cria capital, autoriza novos
investimentos” (Henriques, 1996, p.59).
O impacto do empreendedorismo nas transformações sociais é reforçado por diversos
autores citados por Henriques (1996, p.61). As “iniciativas de tipo empresarial não
podem deixar de colidir com a chefia política, tal como são forçadas a afastar o peso das
estruturas familiares. Não estamos ainda perante a família nuclear moderna, mas já nos
encontramos perante a necessidade de reduzir a intervenção da família, única maneira
de dispor do espaço para a afirmação empresarial” (Henriques, 1996, p.62).
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O aludido desenvolvimento do comércio legítimo tem ainda outra consequência
fundamental para o desenvolvimento do empreendedorismo: o acesso generalizado de
todos à criação e à prossecução de negócios, elemento central do mesmo
empreendedorismo, pelo favorecimento da concorrência e, consequentemente, do
aumento da eficiência dos mercados.
Henriques (1996, p.61) refere-se a um (primeiro?) caso de um empreendedor angolano
bem-sucedido, Narciso António Paschoal de seu nome, que por volta de 1880 já seria
rico em virtude de uma impressionante atividade empreendedora. Este caso é
efetivamente um caso emblemático pois trata-se de uma figura que espelha já todas as
características associadas ao empreendedor atual na literatura do século XXI.
Um outro caso interessante é o do mestiço Lourenço Bezerra que, na mesma segunda
metade do século XIX, desenvolve intensa atividade empreendedora em Angola. Entre
outros negócios e iniciativas, “as plantações de tabaco que desenvolve são a prova do
espírito empreendedor e das práticas modernizantes deste comerciante africano”
(Henriques, 1996, p.61).
Não subsistem, portanto, dúvidas sobre a emergência de um empreendedorismo em
Angola durante a segunda metade do século XIX nem sobre o carácter moderno dos
empreendedores dessa época. “Esses homens que dirigem «empresas» comerciais,
organizam os diferentes fatores de produção […] inventado soluções e produções de
forma a responder a solicitações exteriores, constituem as primeiras formas de
empresariado africano […] põem em evidência o dinamismo, a flexibilidade, a vontade e
a capacidade de modernização das sociedades africanas” (Henriques, 1996, pp.64-65).
2.3. Empreendedorismo angolano pré-independência
O período histórico tratado na presente secção ocupa, grosso modo, os primeiros três
quarteis do século XX.
Este período começa com o regicídio de D. Carlos I e do herdeiro ao trono de Portugal, a
1 de fevereiro de 1908, e a subsequente implantação da República a 5 de outubro de
1910. Seguiu-se o período histórico da I República, que termina com um golpe de Estado
a 28 de maio de 1926.
Estas transformações políticas na metrópole vão ter um impacto profundo na orientação
política e na forma de administração das “províncias ultramarinas”, reduzindo
substancialmente a autonomia de que historicamente gozavam as colónias portuguesas.
Não cabe no âmbito do presente trabalho uma discussão sobre a doutrina fascista para
a gestão colonial, com destaque para a nova abordagem ao racismo que vai incluir uma
série de exposições públicas e de monumentos visando construir uma memória oficial da
história desta província ultramarina (Ball, 2018) assim como um reordenamento do
território e relocalização forçada de populações nativas (Coghe, 2017; Cruz, 2019) assim
como o trabalho forçado, o castigo coletivo e as deportações (Keese, 2015; Neto, 2019).
Compete apenas salientar que há uma interrupção no desenvolvimento do
empreendedorismo, tal como vinha acontecendo desde meados do século anterior, com
fortes consequências sobre a possibilidade de acumulação de capital dos povos africanos.
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Conjugadamente, estes fatores favoreceram o desenvolvimento do pan-africanismo”
nas colónias portuguesas, a antítese encontrada para o recrudescimento do imperialismo
lusitano, em Angola e nos demais territórios portugueses em África.
O pan-africanismo é “provavelmente, o movimento político mais inclusivo do seu tempo.
Foi uma espécie de nacionalismo unindo todos aqueles que achavam que África deveria
recuperar o controlo da sua própria terra aliando-se aos descendentes de escravos
africanos do Novo Mundo que ainda eram objeto de exclusão racial lá” (Hart, 2007, p.95).
Durante este período, observa-se então a instituição da “economia informal” como (nova)
forma de prosseguimento do empreendedorismo, não um empreendedorismo de
oportunidade, por força do devir histórico, mas essencialmente um empreendedorismo
de sobrevivência, fruto da exclusão económica e do agravamento das desigualdades
sociais.
Trata-se de um fenómeno que se começa a desenhar com a revolução urbana ocorrida
em África na dinâmica histórica século XX e que tem o seu apogeu na transição da social-
democracia para o neo-liberalismo, já em período pós-colonial (Hart, 2007, p.97).
Grassi (1998) infere que sendo “a realidade económica predominante, em muitos países
da África subsariana, […] o mercado informal, é neste espaço que, provavelmente,
embora não exclusivamente, se tem que procurar o empresário africano emergente”.
Lopes (2007, p.40) confirma explicitamente a existência de uma economia informal pré-
independência na cidade de Luanda. Essas “actividades informais desempenhavam uma
função estritamente subsidiária do sector formal da economia, dominante, estruturante
e dotado dos indispensáveis mecanismos de controlo e regulação. A economia informal
de Luanda restringia-se às atividades artesanais tradicionais, à prestação de serviços
nomeadamente serviços domésticos , ao comércio ambulante, ao comércio à porta de
casa, aos mercados dos musseques e às atividades relacionadas com construção de
habitação das populações autóctones na sua periferia”.
Embora não existam (naturalmente) estatísticas oficiais que permitam dimensionar o
fenómeno com precisão absoluta, a mesma fonte, citando dados de 1995, refere que “a
economia informal de Luanda assegurava, de forma exclusiva, a subsistência de 42%
das famílias luandenses, representando 56% da população economicamente ativa
(população de 10 anos de idade ou mais) na capital angolana” (Lopes, 2007, p.39).
Vários outros estudos, citados na mesma obra, permitem estimar que a economia
informal representaria cerca de 50% do sector não petrolífero angolano neste período,
com tendência para estabilizar em torno deste percentual, apesar de vários aumentos e
recuos até ao momento atual.
Fora da economia informal, Rodrigues (2008), utilizando dados recolhidos por Rela
(1992), salienta que, em 1955, três quartos das 1.810 empresas com atividade registada
em Angola encontra-se ligada à produção agrícola e a atividades semi-artesanais, como
moagens, padarias e marcenarias. Empresas marcadamente industriais não seriam mais
de 12, quase todas situadas em Luanda.
A mesma fonte refere que “após a segunda guerra mundial, o aumento da importância
do porto de Luanda que passa a concorrer com o maior existente até à data, o do
Lobito associado ao incremento da atividade comercial, tornam Luanda um local
atraente para a implantação de indústria” (Rodrigues, 2008, p.194)
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Em 1962, o mesmo trabalho (p.190) refere que o mero de empresas a funcionar em
Angola teria crescido para 2.057 (13,64%) e o número de empresas com atividade
industrial para 19 (58,33%).
No período de 1962 a 1973, nas vésperas da independência, “a produção industrial
angolana cresceu a um ritmo bastante elevado cerca de 15% ao ano e em 1973 a
produção industrial encontrava-se ligada à indústria ligeira, concentrando-se no ramo da
alimentação (27,4%), das bebidas (11,3%), dos têxteis (12,4%), da indústria química
(11,7%) e no sector metalo-mecânico (6,4%) (Rodrigues, 2008, p.190).
Utilizando dados de Ferreira (1999), Rodrigues (2008, pp.190-191) refere que, aquando
da independência, existiriam 3.846 empresas na indústria transformadora angolana.
No entanto, a dependência externa é de cerca de 50%, sobretudo de produtos semi-
acabados e de matérias-primas.
O que não fica claro, nesta análise, é o peso do empreendedorismo em toda esta
atividade empresarial, por virtude do condicionalismo industrial e agrícola vigente no
império português. De facto, neste período histórico, o empresariado da época pouco
tem que ver com aquele que foi descrito no período histórico anterior.
Outro elemento económico relevante deste período é a generalização do trabalho infantil
em Angola, que se instala paulatinamente desde a proibição total do comércio ilegítimo
e que vai suportar o desenvolvimento das grandes atividades extrativas, nomeadamente
no setor diamantífero (Cleveland, 2010).
2.4. Desenvolvimento do empreendedorismo no período pós-colonial
Lopes (2007, pp.37-38) refere que, até aquela data, se poderia falar de cinco fases
distintas no processo histórico da economia angolana: (i) o período de transição para a
economia centralizada (1975-1977), caracterizado por nacionalizações e criação de
monopólios estatais; (ii) o período da centralização económica e da regulação
administrativa do sistema económico (1977-1987); (iii) o período embrionário da
transição para a economia de mercado (1987-1992), caracterizado pela liberalização
progressiva da economia; (iv) o período da continuidade condicionada (1992-2002),
condicionado pelo esfoço de guerra; e (v) o período da estabilização macroeconómica em
contexto de paz, que correria desde 2002.
Olhando para este percurso, parece claro que se pode voltar a falar de (verdadeiro)
empreendedorismo em Angola, no sentido vigente durante a segunda metade do século
XIX, a partir de 2002 e, mesmo assim, corrigido do fenómeno de informalização
económica.
As condições de dependência económica externa que já eram visíveis no final do período
colonial vão condicionar a trajetória económica do país no período pós-independência.
“[…] os aspetos socioculturais constituíram os fatores determinantes de estagnação das
atividades produtivas em Angola: a fraca qualificação da mão-de-obra, o carácter
“externo” do investimento e do desenvolvimento industrial […] a falta de cultura
industrial”, fatores estes que aliados à centralização económica e à subsequente
incapacidade de gestão económica e à guerra que se iniciou após a independência,
criaram o cenário industrial existente até ao início dos anos 90 do século XX” (Rodrigues,
2008, p. 191).
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ainda a interferência de um elemento geopolítico (externo) fundamental que vai ter
um impacto determinante nas opções de política económica e do grau de liberalização
económica seguidos em Angola, a guerra fria, que é exportada para Angola a um nível
sem precedentes no continente africano (Sá, 2019).
A partir dos mesmos dados, podemos constatar que uma década após a independência,
o número de empresas em laboração tinha decrescido de 4.000 para apenas 280, fruto
da orientação económica marxista-leninista implementada no país e de um movimento
migratório em larga escala de pessoas que fogem da guerra civil que se instala no país
(e.g. Schenck, 2016).
Da análise efetuada a estas fontes, é possível perceber outros fatores com impacto
significativo sobre a redução da atividade empreendedora até 1990: “dificuldade de
obtenção de matérias-primas e energia, [e] degradação dos equipamentos existentes”
(Rodrigues, 2008, p. 193) como consequência do conflito armado e do modelo económico
adotado.
A guerra civil angolana e os seus efeitos devastadores sobre a frágil economia do país
aceleram o fim do marxismo e a transição para um sistema económico mais aberto e
liberal no período 1987-1992 (Pryor, 2005).
Ainda sobre a década de 1990, importa referir o estudo de Reis (1996) que permite obter
alguma informação sobre, entre outros aspetos, as motivações empreendedoras e a
caracterização da base empreendedora dos PALOP, entre os quais, Angola.
Os dados recolhidos entre 1991 e 1994 permitem concluir que as principais motivações
empreendedoras em Angola, naquele período, eram: “dar segurança à mulher e aos
filhos”, “contribuir para o bem-estar dos familiares” e “continuar a aprender”. Sobre os
valores e a cultura, foi possível concluir que os empresários angolanos concordavam que
“a mudança de status social está ao alcance de todos”. Olhando para os resultados no
seu conjunto, parece que havia uma certa ambivalência na lógica empreendedora, entre
a sobrevivência, o bem-estar e a ascensão social.
A atividade empreendedora evolui em Luanda de forma significativa: em 1997 existiam
611 empresas industriais registadas e no ano seguinte o número ascende a 637, de
acordo com dados do INE de Angola, citados por Rodrigues (2008, p. 203).
A partir de 2002, a situação é de outra envergadura. Graças a uma nova forma de
registo empresarial, o REMPE, contam-se 10.609 empresas registadas em Luanda, das
quais 1.042 da indústria transformadora.
A mesma fonte informa-nos ainda que, entre 2003 e 2004, um enorme crescimento
da produção de peixe congelado, de peixe seco e de sal comum, verificando-se um
retrocesso apenas na produção de peixe artesanal (Rodrigues, 2008, p. 209).
Fonseca-Statter (2008, pp.52-61) refere-se à situação aos anos de 2004-2005, tentando
caracterizar especificamente o empreendedorismo de oportunidade em Angola (e em
Moçambique também).
Em concreto, salientam-se as seguintes conclusões: um predomínio de empresários
oriundos do sector público; um predomínio de empresários “crioulos”; um desconforto
desses empresários relativamente à falta de eficiência da administração pública; a
constatação de um elevado nível de desemprego e de mercados caracterizados por uma
reduzia dimensão.
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Em paralelo, os mesmos empresários apresentavam como objetivo explícito a
diversificação e a expansão sofrendo, consequentemente, da insuficiência de fundos
próprios e da dependência de acesso a fontes de capital alheio como o bancário e o
capital de risco, bem como da falta de mão-de-obra qualificada.
A mesma fonte nota em Angola um ambiente “de quase euforia e ambição, mitigada no
entanto por sentimentos de frustração face a dificuldades encontradas” levando a um
modelo de “reconstrução nacional auto-centrada (do estilo “aqui há de tudo”)”.
Anjos (2009) nota que, de acordo com o relatório “Doing Business 2008” do Banco
Mundial, Angola tem um desempenho empreendedor inferior à média dos países
produtores de petróleo e dos países lusófonos, sendo o 167º entre 178 países estudados.
Como principais barreiras ao empreendedorismo, salientam-se o tempo de criação de
uma empresa e as dificuldades de cumprimento dos vários requisitos administrativos. O
impacto da corrupção, sustentado por dados do Fundo Monetário Internacional, também
é mencionado, sendo considerado uma das mais importantes barreiras ao
desenvolvimento do empreendedorismo.
Ekungu (2016) identifica que o empreendedorismo é tão central para o desenvolvimento
económico dos países africanos que as próprias Nações Unidas, através da ONUDI,
começaram a trabalhar com estes países no sentido do empreendedorismo ser
introduzido no curriculum do ensino secundário.
No caso de Angola, tal trabalho começou a ser feito a partir de 2004, tendo havido um
reconhecimento formal da sua importância em junho de 2007 com a aprovação do
programa nacional “Educação Empresarial no Ensino Secundário em Angola”, que veio a
ser efetivado no ano letivo de 2011 através da publicação do Despacho n.º 214-A/10 do
Ministério da Educação a 5 de novembro de 2010.
2.5. Empreendedorismo no período contemporâneo
O período 2002-2013 é, sem dúvida, o período de maior expansão do empreendedorismo
no país, devido ao crescimento económico contínuo e a um ambiente de quase euforia
social, mas é também um período de apropriação e mesmo de confisco dos principais
ativos do país por parte da elite política, criando um “empreendedorismo de Estado
(Ovadia, 2018).
Em meados de 2014, inicia-se uma queda acentuada e persistente do preço de petróleo
nos mercados internacionais provocando uma profunda crise financeira em Angola e
abrindo as portas a uma transição política de continuidade” através do anúncio do
Presidente José Eduardo dos Santos, em março de 2016, de que não se recandidataria a
um novo mandato em 2018, pondo fim a 39 anos de exercício desse cargo.
O agudizar da crise financeira atinge o seu pico no final de 2015. Entre novembro e
dezembro desse ano, todos os bancos que vendiam dólares americanos físicos (em notas)
a Angola, exceto um, vêm essa autorização revogada pela Reserva Federal Americana
ao mesmo tempo que Angola é impedida de emitir títulos de dívida soberana em moeda
americana, lançando o país numa crise cambial e de liquidez severa.
Esta crise vai ter, entre muitas outras, duas importantes consequências com impacto
negativo sobre a evolução do empreendedorismo em Angola: em primeiro lugar, um
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aumento da importância da China na economia e nas decisões políticas do país e, em
segundo lugar, uma crise bancária de uma dimensão ainda por conhecer.
Relativamente às relações sino-angolanas, as mesmas remontam ao período da luta pela
independência nacional, tendo a China fornecido apoio financeiro à UNITA até 1970 para
depois focar o seu apoio ao MPLA a partir de 1972 (Garret, 1976). Após a explosão do
crescimento económico chinês como consequência da sua adesão à Organização Mundial
de Comércio, as necessidades energéticas chinesas cresceram exponencialmente e a
importância de Angola para a satisfação dessas necessidades tornou-se especialmente
relevante. Em 2007, a China ultrapassou os EUA enquanto principal importador de
petróleo angolano e em 2008 Angola representava 18,2% do total das importações de
petróleo chinesas, tendo atingido 204 milhões de toneladas em 2009 (Burgos & Hear,
2012). Entre 2016 e 2018, a China torna-se o principal financiador da economia
angolana, trocando produtos e serviços diretamente por petróleo, sem circulação de
liquidez pela economia angolana. Esta troca, cujos termos concretos nunca foram
divulgados, vai tornar inviáveis muitas das existentes e potenciais iniciativas
empreendedoras angolanas que os bens e serviços chineses são fornecidos e prestados
diretamente por empresas chinesas utilizando uma esmagadora maioria de mão-de-obra
e de matérias-primas trazidas diretamente daquele país.
Relativamente ao sistema bancário, o mesmo desenvolveu-se durante a fase de
crescimento económico acelerado (2002-2013) numa lógica de financiamento do acima
aludido “empreendedorismo de Estado”, enquanto durou a consolidação oligárquica da
elite dominante do MPLA (Ferreira & Oliveira, 2018), que elevou Angola à categoria de
cleptocracia tal como o escândalo do Luanda Leaks” noticiou em janeiro de 2020,
revelando o contributo das filiais de três bancos angolanos em Portugal em diversas
operações de branqueamento internacional de capitais sob investigação de diversas
autoridades europeias. Com a crise financeira iniciada em 2014, muitos desses bancos,
fortemente endividados no mercado internacional em dólares para financiar inúmeros
projetos imobiliários de elevada envergadura, entram em situação de iliquidez e deixam
de ter condições para financiar o empreendedorismo nacional e local, mesmo a taxas de
juro de dois dígitos. E até mesmo aqueles empreendedores que tinham adquirido
alguma capacidade financeira por virtude da consolidação da sua operação comercial
doméstica durante o período anterior, ficam impedidos de adquirir matérias-primas no
mercado internacional por falta de acesso a divisas, levando à derrocada da maioria
dessas iniciativas.
Conclusão e reflexão sobre o futuro
O presente trabalho tinha como objetivo dar uma perspetiva histórica sobre o percurso
do empreendedorismo em Angola, valorizando a sua dimensão geográfica e o
enquadramento histórico do próprio empreendedorismo, enquanto conceito, enquanto
realidade económica e enquanto objeto teórico.
A ambição era, naturalmente, a de ser apenas um estudo exploratório devido à relativa
escassez de fontes de informação sobre um tema, porventura, demasiado específico.
Apesar destas limitações, foi possível, ainda assim, retirar algumas conclusões
interessantes sobre este assunto.
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Em primeiro lugar, nota-se que o conceito de empreendedorismo” nasce fora do
mainstream teórico, mesmo para os padrões do século XVIII, e que em larga medida foi
sempre muito mais um conceito dos “práticos” do que dos “académicos”, até
praticamente ao século XXI.
O contexto do empreendedorismo africano é, atualmente, o de um empreendedorismo
de sobrevivência, dadas as vicissitudes do processo histórico que impediu este
continente, com poucas exceções, de aceder a infraestruturas científicas e tecnológicas
que o suportem convenientemente.
Foi possível também identificar, com recurso a várias fontes, que esse
empreendedorismo está muito ligado em cerca de 50%, com base em estimativas
diversas feitas nomeadamente em Angola à chamada “economia informalum processo
histórico de desestruturação económica decorrente da revolução urbana ocorrida em
África durante o século XX.
Sobre o desenvolvimento do empreendedorismo em Angola, concretamente, foi possível
situar a génese deste fenómeno no último quartel do século XIX, no contexto que se
estabelece naquele país a partir do fim da exportação de escravos e florescimento do
comércio legítimo.
Conseguiu-se identificar um empreendedor individual com especial interesse histórico,
por ser certamente um dos primeiros empreendedores africanos bem-sucedidos, do
ponto de vista empresarial, em Angola. Trata-se de Narciso António Paschoal e o seu
relato situa-o em 1880. Não será certamente um estereótipo mas a sua história
comprova as possibilidades que se abriam aos empreendedores angolanos nesse período.
A análise ao empreendedorismo angolano no período entre finais de século XIX e 11 de
novembro de 1975, data da independência daquele país, é prejudicada por uma
dificuldade de acesso a fontes de informação.
No entanto, foi possível concluir que as transformações políticas ocorridas na metrópole
na viragem de século, culminando no golpe de Estado de 28 de maio de 1926, vão levar
a um (quase) desmantelamento da base empreendedora africana em Angola, e mesmo
a de origem portuguesa é fortemente limitada pelo condicionamento industrial e agrícola.
A independência de Angola não melhorou o contexto empresarial do país, dada a
instabilidade em que o mesmo submerge fruto da guerra civil que lhe sucede e da opção
política de alinhamento com o bloco comunista liderado pela União Soviética.
Até 1992, só não se pode falar de um retrocesso na atividade empreendedora devido ao
aumento espetacular da economia informal. A partir daqui, em contexto pós-queda do
Muro de Berlim e nos escombros do primeiro processo de paz, existe uma inversão de
tendência.
Outra conclusão deste trabalho é que se pode verdadeiramente falar de
empreendedorismo em Angola a partir de 2002. No entanto, o período histórico que terá,
porventura, terminado em 2014, apresenta como desafio central o combate à corrupção
tal como tem vindo a ser reclamado por importantes organismos internacionais como o
Banco Mundial e o Fundo Monetário Internacional.
Fica também provado, com base na ênfase dada por estes organismos ao
desenvolvimento do empreendedorismo, a relevância da sua influência sobre o
desenvolvimento económico.
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Assinala-se, também, o programa de introdução do ensino do empreendedorismo no
sistema de ensino secundário em Angola, a partir de 2011, que terá certamente um
contributo positivo no contexto da nova dinâmica histórica angolana, subsequente à
mudança de presidente recentemente ocorrida.
Relativamente ao período contemporâneo, salienta-se que a crise financeira iniciada em
meados de 2014 tem vindo a ter consequências extremamente negativas sobre o
empreendedorismo angolano, quer pelo lado da “invasão” de empresas chinesas em
todos os setores da economia do país, gerando uma concorrência desleal relativamente
aos empreendedores locais, quer pelo lado do colapso da liquidez do sistema bancário
que deixou de ter condições para alavancar a atividade empreendedora existente ou
emergente, quer ainda pela extrema dificuldade de acesso a divisas para importação de
matérias-primas e serviços fundamentais para as empresas.
Por fim, uma breve reflexão sobre cenários de desenvolvimento futuro do
empreendedorismo em Angola, sendo certo que, no curto prazo, todos os fatores que
têm contribuído negativamente para a situação atual agravar-seo ainda mais em
virtude da crise pandémica gerada pelo Covid-19 em meados de março de 2020. Num
plano de médio e longo prazo, é previsível que o empreendedorismo aumente de
importância e de peso na geração de riqueza nacional já que não existem alternativas à
estratégia de diversificação económica do país, por um lado, e que as condições de
investimento direto estrangeiro não serão atrativas num previsível contexto de maior
eficiência dos mercados e de menor intervenção política na economia, por outro. Nesse
cenário, e considerando ainda que o saneamento financeiro do país ocorrerá de forma
efetiva embora gradual, Angola poderá contar, entre outros elementos que já foram
importantes no passado recente, como a ambição e o otimismo dos seus
empreendedores, com a capacidade criativa dos recursos humanos do país (De Clercq &
Pereira, 2019), com a sua privilegiada localização costeira e com a sua baixa
heterogeneidade étnica (Decker, Estrin & Mickiewicz, 2020), elementos que poderão
atenuar o défice de qualificações e de capacidade científica e tecnológica do país.
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