OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 10, Nº. 2 (Novembro 2019-Abril 2020), pp. 118-132
A INICIATIVA DOS 3 MARES: GEOPOLÍTICA E INFRAESTRUTURAS
Bernardo Calheiros
bernardo.calheiros@gmail.com
Mestre em estratégia e licenciado em relações internacionais. Curso de Defesa Nacional e Curso
de Estudos Avançados de Geopolítica. Foi Diretor de Serviços das Relações Bilaterais no
Ministério da Defesa Nacional (Portugal). Consultor das empresas Gaporsul e Kyron Consultores.
Atualmente, é técnico superior da Direção de Serviços de Relações Internacionais da Direção-
Geral de Política de Defesa Nacional
Resumo
A Iniciativa dos Três Mares (I3M) é um ambicioso projeto geopolítico que engloba doze
Estados-membros da UE situados entre o Mar Báltico, o Mar Negro e o Mar Adriático: de Norte
a Sul, uma vasta faixa englobando a Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia, República Checa,
Eslováquia, Hungria, Áustria, Roménia, Bulgária, Eslovénia e Croácia. Trata-se de uma região
com mais de 25% do território da UE e com cerca de 22% da sua população, mas que tem
uma representatividade económica muito inferior. A I3M visa promover o desenvolvimento
das infraestruturas centro-europeias, com vista a aproximar esta região dos níveis de
desenvolvimento económico dos restantes países europeus.
A I3M destina-se ao desenvolvimento de grandes projetos de infraestruturas regionais em
três grandes áreas: a energia, os transportes (rodoviários e ferroviários) e a área digital
(comunicações).
A importância geopolítica deste projeto é desde logo evidente pelo facto de muitos destes
países serem Estados-encravados, sem acesso ao mar. Estas infraestruturas vão agora dar-
lhes acesso a três mares e, dessa forma, contribuir para uma maior independência e espaço
de manobra das suas políticas. Esta região, situada no centro do continente europeu, um dos
principais mercados energéticos do futuro, é também palco de uma luta comercial muito forte
entre a Rússia, com os seus fornecimentos de gás natural, e os EUA, com a sua crescente
produção de gás de xisto.
Os projetos lançados pela I3M são, portanto, da maior relevância económica e geopolítica,
embora tenham ainda que assegurar o respetivo financiamento. Muito embora tenha sido
criado o Three Seas Fund (TSF), com uma duração de trinta anos e que pretende assegurar
um financiamento na ordem dos 100 biliões de euros (a partir de um investimento inicial dos
Estados-membros no valor de 5 biliões de euros), a verdade é que muito dependerá do apoio
que lhe for dado pela UE e pelos países interessados nesses projetos, como é o caso dos EUA
e da China (ligação à rota da seda).
Alguns países europeus têm visto o nascimento desta Iniciativa com alguma desconfiança,
como é o caso da Alemanha, que tem vindo a apostar crescentemente no Nordstream II, e
da Rússia, que acusam os seus promotores de estar a representar os interesses norte-
americanos no continente europeu.
Independentemente das controvérsias levantadas, certo é que a I3M parece ser uma forma
de cooperação regional que faz todo o sentido e que se integra plenamente no espírito da
construção europeia, procurando para os seus povos o mesmo desenvolvimento dos restantes
Estados-membros.
Palavras-chave
Iniciativa Três Mares, Europa Central, Energia, Infraestruturas
Como citar este artigo
Calheiros, Bernardo (2019). "A iniciativa dos 3 Mares: geopolítica e infraestruturas".
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 10, N.º 2, Novembro 2019-Abril 2020.
Consultado [em linha] data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.2.8
Artigo recibido em 17 de Setembro de 2019 e aceite para publicação em 1 de Outubro de 2019
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A iniciativa dos 3 Mares: geopolítica e infraestruturas
Bernardo Calheiros
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A INICIATIVA DOS 3 MARES: GEOPOLÍTICA E INFRAESTRUTURAS
Bernardo Calheiros
Introdução
Gradualmente, a União Europeia tem vindo a expandir-se, sendo cada vez maior o
número dos seus Estados membros. Conseguiu também, em paralelo, lançar a moeda
única o euro e aprofundar o seu grau de integração, mesmo num período de crise.
Não foi capaz, contudo, de evitar a existência de uma Europa a várias velocidades,
geradora de clivagens ideológicas e de diferentes perceções sobre o modelo da União.
Nem de lograr manter o acquis communautaire intacto... e até porventura ver a sua
integridade como grande território, com questões como a do Brexit...
Neste processo, aspetos que são cruciais para o futuro da Europa e, nela, sobretudo
da Europa comunitária. Desde logo, a definição dos seus limites geográficos. A União não
tem parado de se expandir, incluindo nela qualquer Estado que cumpra os critérios de
adesão, sem que tenha o cuidado de definir de forma clara os seus limites. Surgem,
assim, problemas como os suscitados por questões como a da deriva da Turquia, e os
processos de fragmentação induzida pela Federação Russa na Ucrânia e na Geórgia. Uma
entidade geopolítica como é a União Europeia tem necessariamente de explicar o seu
projeto, a sua ideia fundadora e qual é o espaço a que diz respeito. Um processo que,
para dizer o mínimo, parece estar hoje em crise.
O alargamento tem sido rápido, mas não isento de tensões, pois vão surgindo divisões e
a formação de blocos regionais entre Estados-membros que partilham interesses comuns
e que não se reveem no eixo Paris-Berlim. Estas divisões estão também a assumir uma
característica ideológica, com o surgimento de propostas alternativas, que têm até levado
a tentativas de marginalização dos países que as propõem. Mais grave ainda, alguns
países discutem o abandono do euro, ou mesmo da União como é o caso paradigmático
do Reino Unido.
O presente trabalho centra-se concretamente na região da Europa Central um conceito
alargado de Europa Central, como veremos e, mais especificamente, na recente
Iniciativa dos Três Mares (I3M), que se refere ao espaço compreendido entre os mares
Báltico, Adriático e Negro e que se tem visto envolta nalguma polémica. A Europa Central
parece estar de volta, sendo uma região que apresenta características e problemas
comuns entre os Estados que a compõem, alguma identificação no plano político, um
passado partilhado e a perceção de ameaças comuns.
O alargamento das Comunidades Europeias e depois da União Europeia foi feito, até
um determinado momento, integrando países que tinham em comum o facto de
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pertencerem à comunidade das democracias da Europa ocidental. Tratava-se de um
conjunto de Estados que, embora com desenvolvimentos económicos diferentes,
apresentavam uma grande homogeneidade em termos políticos e a de experiência
histórica recente, marcada pelas garantias de segurança dadas pela Aliança Atlântica,
o que lhes permitiu um desenvolvimento económico grande apoiado numa crescente
segurança jurídica que, embora de forma marcadamente desigual, se tem vindo a
estabelecer.
Com a queda do Muro e a libertação dos países da “Europa do Leste”, estes desde logo
aspiraram a aderir, por um lado, à União Europeia, em busca do desenvolvimento com
que tinham sonhado, e por outro lado à NATO, a organização que lhes proporcionava
essas garantias de segurança e de respeito pela sua soberania recém-adquirida.
Porém, se é verdade que a maior parte destes países aderiu à União Europeia e à Aliança
Atlântica nos primeiros anos logo a seguir à queda do Muro, é também certo que
continuavam muito desconfiados em relação ao seu vizinho a Leste agora a Federação
da Rússia e também algo reticentes em aderir a projetos federalistas que implicavam
cedências importantes em termos de soberania nacional. Não é, assim, de estranhar que,
paralelamente ao processo de integração europeia, se fossem desenhando formas de
cooperação regional de que é exemplo mais visível o Pacto de Visegrado um ponto a
que voltaremos. Estas não punham em causa a integração europeia longe disso mas
enfatizavam as especificidades regionais, que abarcavam não apenas as questões
económicas (em termos de desenvolvimento, necessidades infraestruturais, dependência
energética, etc.), mas também políticas e de segurança (receio do intervencionismo
russo, defesa da soberania, etc.). As suas perceções de segurança muitas vezes não
eram partilhadas pelos outros países, que não conheciam a experiência do que era viver
sob um regime totalitário de cariz comunista durante quase meio século.
A União Europeia não se opôs a estas formas de integração regionais, tendo até
considerado que apresentavam diversos aspetos positivos. Assim, estas foram crescendo
em número e em importância, tornando-se particularmente ativas precisamente no
momento em que na Rússia surge um Presidente Vladimir Putin que vem contestar
as políticas dos seus antecessores e dar guarida a algumas teorias revisionistas que
criticavam o desmembramento da União Soviética, a perda de territórios e o avanço
estratégico da NATO para junto das suas fronteiras. Assim, organizações como o Pacto
de Visegrado (os chamados Visegrad 4, que começou por uma série de reuniões informais
para concertar posições no âmbito da entrada deles para a União Europeia, e que depois
se tem vindo a formalizar, recriando-se como um Visegrad Plus, uma entidade mais
alargada e menos formal gizada de forma a englobar “sem perdas identitárias” outros
Estados adjacentes, como por exemplo a Geórgia) que agrupa a Polónia, a República
Checa, a Eslováquia e a Hungria , que tinham uma atividade até bastante residual,
reforçaram a sua cooperação e vão até suscitar o interesse de outros pses da região,
como é o caso dos Bálticos e da Roménia.
Este conjunto de países, ao mesmo tempo que afirmava a sua fidelidade à União Europeia
e ao projeto europeu, via com crescente desconfiança as propostas mais federalistas que
iam sendo apresentadas por França e por outros Estados-membros. A sua segurança
é essa a sua convicção é garantida essencialmente pela NATO e pelos Estados Unidos,
havendo problemas que afetavam sobremaneira os países da região e que tinham
implicações económicas e de segurança, sendo um dos principais a dependência
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energética em relação à Rússia. Problema tão importante quanto estava provado que o
Kremlin o usava como arma geopolítica, como se tornou evidente no caso da Ucrânia.
Refira-se, contudo, que esta região da Europa Central tinha uma tradição longa no que
se refere a tentativas de integração regional, havendo portanto uma marcada identidade
centro-europeia, embora este conceito não tivesse uma base geográfica e científica e
fosse variando ao longo da história, ao sabor do interesse das potências. As propostas
de criação de uma Mitteleuropa, “o território onde a cultura germânica constitui o
denominador comum” (Joseph Platsch, Mitteleuropa, 1904), somavam-se, numa
perspetiva mais favorável ao interesse das pequenas potências que a compunham, a
outras mais centradas nos Estados eslavos e na Hungria, como é o caso do Intermarium
(proposta do Marechal Pilsudski, Presidente da Polónia no período entre guerras), um
construto que tinha a vantagem de constituir um verdadeiro glacis de segurança face à
Rússia. Outras visões, de historiadores e analistas recentes, vieram alargar este conceito
à Roménia (Elena Zamfirescu, no seu Mapping Central Europe) ou até aos países
balcânicos segundo uma definição de Europa Central como o espaço de influência de
quatro grandes impérios: o germânico, o austro-húngaro, o russo e o turco (Frédèric
Mitterrand, Les Aigles Foudroyées). Este alargamento do conceito faz sentido face ao
passado recente.
Na verdade, independentemente de lhe chamarmos Europa Central ou Europa Central e
Oriental (como alguns defendem), facto é que existe uma faixa de países que, pela sua
experiência histórica recente e as implicações da mesma a diversos níveis, sentem que
têm problemas e desafios comuns que terão a ganhar em ser tratados por todos em
conjunto. Mesmo sem pôr em causa outros compromissos geopolíticos decorrentes da
sua aposta na construção europeia.
Fruto das características acima referidas, não seestranho constatar que, entre estes
países, há uma percentagem relativamente alta de governos “populistas” conservadores
que contestam o modelo federal para a Europa, as políticas de imigração (suscetíveis de
colocar desafios à sua identidade recém-adquirida) e até algumas das prioridades
económicas definidas para a União Europeia.
1. O espaço Europa Central e contexto histórico
Embora este trabalho não seja sobre o conceito de Europa Central, considera-se que,
dada a complexidade da região e as numerosas propostas de integração apresentadas
ao longo do tempo, toda a conveniência em que nos debrucemos, ainda que muito
brevemente, sobre estas últimas, antes de estudarmos a mais recente: a Iniciativa dos
Três Mares.
A complexidade da região assenta em diversos fatores, desde logo a multiplicidade de
pequenas potências que a compõem, resultantes na maior parte do desmembramento
de grandes impérios, e a particularidade de incluírem todas elas diversas línguas, culturas
e etnias, sendo que estas raramente se encontram circunscritas a apenas um Estado.
Têm ainda fronteiras recentes e, nalguns casos, muito discutidas, sendo assim natural
que se tenham multiplicado os conflitos, as reivindicações e também as tentativas de
integração em espaços mais vastos, seja sob o conceito abrangente de Império ou de
Federação.
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Estas iniciativas de integração assumiram formas diversas, desde meras uniões
aduaneiras até projetos geopolíticos de maior envergadura, de natureza federal e
envolvendo um número maior ou menor de países. Desde conceções mais homogéneas,
abarcando apenas os dois impérios o alemão e o austro-húngaro até se virar para
conceitos mais abrangentes que se estendem aos Bálticos, aos Balcãs e mesmo a Itália
e países vizinhos, como é o caso da Bélgica ou da Holanda. Algumas chegam mesmo a
propor modelos que evoluam para a integração de todo o continente.
Para este trabalho adotaremos uma visão mais abrangente de Europa Central. É esse,
aliás, o espírito da I3M, que vai do mar Báltico até aos Balcãs, englobando ainda os
Estados ribeirinhos do Danúbio, o principal rio centro-europeu, que nasce na Alemanha
e desagua na costa do mar Negro da Roménia.
Este espaço é delimitado, a norte, pelo mar Báltico e pela grande planície europeia, que
vai do rio Elba ao golfo da Finlândia e que é um dos grandes motivos de preocupação
para a segurança da Polónia. No centro destacam-se os terrenos montanhosos checos,
mas também a célebre Porta da Morávia, que passagem para diversos países e
constitui um ponto importante para os projetos da I3M. Seguem-se os Cárpatos, mais a
sul, entrando por diversos países e cercando a grande planície da Panónia. A ocidente,
os Alpes abarcam a Áustria e a Eslovénia e a sul os Balcãs delimitam a península com o
mesmo nome. Por último, a Transilvânia, uma região planáltica e que constituiu o ponto
de entrada e estabelecimento histórico das minorias de ngua alemã, ainda
residualmente presentes no território da atual Roménia.
Trata-se de um conceito que, deliberadamente, deixa a Alemanha de fora, até por se
considerar que foi precisamente este país que, desde Bismarck, mas sobretudo desde
Guilherme II, foi inviabilizando a integração de toda esta região correspondente aos
territórios do Império Alemão e da Monarquia Austro-Húngara. Além disso, no caso
concreto da Iniciativa dos Três Mares, a Alemanha, embora tendo o estatuto de
observadora, acaba por estar “do outro lado”, na medida em que, com a construção do
Nordstream II e o fornecimento direto do gás russo à Europa através do seu território,
situa-se no centro da ameaça de dependência energética para toda a Europa Central.
A opção de Bismarck pela criação do Império alemão e, portanto, pondo de lado o ideal
da Grossdeutschland (a união da Alemanha e da Áustria), vai ter um grande impacto na
esperança de constituição de um Reich (Império) capaz de se assumir como uma
plataforma para o enquadramento de todas estas pequenas nações maioritariamente
eslavas e que não se reveem na monarquia dual austro-ngara. “Aquilo que admiram
no Reich os partidários da Mitteleuropa, é o de ser, não um Estado no sentido moderno
do termo, mas um princípio de organização, uma noção supranacional, um centro de
atração para os novos Estados, que o federalismo adaptável das instituições permitiria
integrar”
1
.
Este ideal federal para a organização do espaço da Europa Central foi particularmente
vivo no seio dos autores eslavos como refere Jacques Droz: “numerosos foram entre os
Eslavos aqueles que reconheceram que não haveria outra solução para a organização da
Europa Central senão a autonomia nacional no quadro de uma federação de Estados”
2
.
1
Droz, Jacques, 1960. L’Europe Centrale. Évolution Historique de l’Idée de «Mitteleuropa», Paris, Payot, pág.
26 [Trad. do autor].
2
Idem, p. 27.
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Outras propostas de integração centraram-se essencialmente no domínio económico,
como a defendida por Frédéric List, em 1840, através da criação de “um grande espaço
económico”, “um vasto Estado federal, constituindo uma unidade comercial, englobando
as pequenas nações vizinhas Dinamarca, Holanda, Bélgica, Suiça que veriam aberta,
por intermédio dos Estados dos Habsburgos, a rota do Danúbio e do Mediterrâneo”
3
.
Várias outras propostas como a de Gustave Höfken (1842), do Chanceler
Schwarzenberg ou do Barão Karl von Bruck (1848) defenderam a criação de um vasto
Zollverein, uma união aduaneira continental estendendo-se do Mar do Norte ao Adriático.
Estas iniciativas, que irão ganhar numerosos adeptos, vão ter um primeiro revés com a
criação do II Reich por Bismarck, que vai inviabilizar a união com a Áustria, derrotada
em Sadowa. Como refere Jacques Droz, “a ideologia da Mitteleuropa, ou seja o
sentimento dos interesses solidários dos grandes Estados da Europa Central, conhece
entre 1871 e 1914 um eclipse quase completo”
4
. Mas, entretanto, as nações eslavas da
Dupla Monarquia vão-se agitando sob a bandeira do princípio das nacionalidades.
Em 1917, aproveitando as desgraças causadas pela guerra, o alemão Friedrich Naumann
vai apresentar uma das mais interessantes propostas de integração da Europa Central
com o seu livro “Mitteleuropa”, que se torna de imediato num sucesso de vendas
5
. A sua
proposta era a de que o Império Alemão e o Império Austro-Húngaro deveriam aproveitar
a assinatura da paz para criarem uma união, uma Mitteleuropa, que constituiria um
grande espaço capaz de rivalizar com as outras grandes potências como a Rússia e os
EUA. Numa segunda fase, seria possível então aceitar as candidaturas de outros países
europeus. A liderança seria alemã, mas seriam respeitadas todas as nacionalidades.
Contudo, durante a I Guerra Mundial, no período entre guerras e sobretudo sob o III
Reich vencem as ideias pangermanistas e as teorias do espaço vital que vão fazer com
que as elites virem as costas à ideia de Mitteleuropa e comecem a pensar mais em termos
de Osteuropa (Europa de Leste) e nos vastos espaços a leste, o célebre Lebensraum (ou
“espaço vital”) que Hitler visou como objetivo.
Uma importante tentativa de integração regional da Europa Central, e com o mérito de
nascer num país não-germânico, surge com o projeto de 1919 do Intermarium, proposto
pelo primeiro Presidente da República de uma Polónia então renascida, Marechal Józef
Pilsudski. Este pretendia a criação de uma federação dos Estados situados entre o Mar
Báltico e o Mar Negro, a saber, a Polónia, os três Estados bálticos (Estónia, Letónia e
Lituânia), a Finlândia, Bielorrússia, Ucrânia, Hungria, Roménia, Jugoslávia e
Checoslováquia
6
. É uma tentativa importante mas que não se vai concretizar, pelo que
um dos seus seguidores, o Ministro dos Negócios Estrangeiros polaco, Józef Beck, vai por
sua vez propor a criação de uma União Centro-europeia incluindo a Polónia, a
Checoslováquia, a Hungria, Escandinávia, os três Países Bálticos, Itália, Roménia,
Bulgária, Jugoslávia e Grécia. Mais um projeto que não passa disso mesmo.
Winston Churchill ainda tenta, no final da II Guerra Mundial, a criação de uma federação
das pequenas nações da Europa Central
7
, o que constituiria um glacis de segurança em
3
Idem, p. 54.
4
Idem, p. 155.
5
Naumann, Friedrich, 1917. Central Europe, [translation by Christabel M. Meredith], New York, Alfred A.
Knopf, (Classical Reprint Series, Forgotten Books, 2012).
6
Chodakiewicz, Marek Jan, 2016. Intermarium: The Land Between the Black and Baltic Seas”, Routledge,
1
st
. ed.
7
Droz, Jacques, op. Cit, pág. 264.
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relação à União Soviética. Mas Moscovo opõe-se liminarmente. E não se volta a falar
destes projetos praticamente até à queda do muro.
Algumas exceções existiram, propostas de intelectuais que divulgavam os seus ideais em
samizdat, mas que não tiveram grande expressão. Em 1953, o Tenente-Coronel F.O.
Miksche, um oficial da Checoslováquia comunista exilado em Londres, defendeu com
vigor a criação de federações regionais na Europa, agrupando países com interesses
idênticos, uma mesma cultura e interdependência económica. Considerava que a Bacia
do Danúbio podia constituir “o núcleo de um desenvolvimento futuro destinado a toda a
Europa Central e de Leste no caso de um colapso ou diminuição da pressão russa”
8
. Na
sua obra, o autor especifica um pouco melhor esta ideia quando refere que “o problema
da criação de uma Federação da Europa Central só pode ser ultrapassado de uma forma,
através de uma federação limitada numa área com condições favoráveis, e que
constituiria um cleo ao qual as nações vizinhas poderiam mais tarde aderir. As regiões
habitadas pelos austríacos, checos, húngaros e eslovacos, que são geograficamente,
culturalmente, psicologicamente e economicamente complementares, têm condições
favoráveis para a federação inicial
9
. Trata-se de uma região bastante limitada, que deixa
de fora os Bálticos, mas também a Polónia, a Roménia ou os Balcãs.
no final do século XX, houve também algumas propostas de cooperação regional, de
que se destacam aqui algumas:
Em 1989, quatro países lançaram o projeto Quadragonal a Itália, Áustria, Hungria e
Jugoslávia. Foi uma iniciativa do Presidente italiano, Gianni De Michelis e procurava
contrabalançar a crescente influência alemã na região. A iniciativa depressa se alargou a
18 países, assumindo a designação de Iniciativa Centro Europeia, mas a variedade de
agendas e a guerra da Jugoslávia acabou por a privar de qualquer sucesso.
Mais importante foi a criação do Grupo de Visegrado com a participação da Polónia,
Checoslováquia (mais tarde República Checa e Eslováquia) e Hungria que, após uma
fase inicial pouco dinâmica, começou a ganhar importância depois da subida ao poder na
Rússia do Presidente Putin.
2. A iniciativa dos Três Mares
A Iniciativa dos Três Mares (I3M), um ambicioso projeto geopolítico lançado pela Polónia,
foi criada em agosto de 2016 em Dubrovnik, na costa adriática da Croácia, naquela que
foi a I Cimeira da I3M contando com doze Estados-membros: de Norte a Sul, uma vasta
faixa englobando a Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia, República Checa, Eslováquia,
Hungria, Áustria, Roménia, Bulgária, Eslovénia e Croácia. Uma faixa que, se bem que
seja geográfica e demograficamente significativa da UE, o não é em termos económicos.
Estamos a falar de “uma região que representa 28% do território da União Europeia e
22% da sua população, mas apenas 10% do seu PIB.”
10
Tratava-se de promover o
desenvolvimento das infraestruturas centro-europeias, o que permitiria um maior
8
Miksche, F.O., 1953. Danubian Federation. A Study of Past Mistakes and Future Possibilities, England,
Kenion Press Ltd., Bucks (introduction by Philip Dunant, viii+38 págs.), pág. 4. [trad. do autor].
9
Op. Cit., pág. 33.
10
PWC & Atlantic Council, 2017. The Road Ahead CEE Transport Infrastructure Dynamics
(https://www.pwc.pl/pl/pdf/the-roa-ahead-raport-pwc-atlantic-council.pdf).
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desenvolvimento económico e, dessa forma, aproximar essa região dos níveis dos
restantes países europeus.
Mapa nº1 - Países participantes na Iniciativa dos 3 Mares
Fonte: https://es.wikipedia.org/wiki/Iniciativa_Tres_Mares
Em julho de 2017 teve lugar a II Cimeira, em Varsóvia, que contou com a participação
do Presidente norte-americano, Donald Trump, que fez grandes elogios a esta iniciativa,
ao mesmo tempo que lançou duros ataques ao gasoduto Nordstream II e à própria
Alemanha por se lançar neste projeto com a Rússia ao mesmo tempo que apoia a política
de sanções a propósito do conflito com a Ucrânia.
A III Cimeira teve lugar em Bucareste, em Setembro de 2018, e teve como objetivo
principal a identificação dos projetos prioritários a desenvolver. O encontro revelou-se
um sucesso, tendo sido criado o Forum Empresarial
11
e estabelecida uma Rede de
Câmaras de Comércio da I3M. Foi ainda assinada uma Declaração de Intenções para a
criação do Fundo de Investimento dos Três Mares. Mas a Cimeira teve também um
impacto internacional grande ao contar com a presença de “parceiros estratégicos”,
nomeadamente os EUA, a UE e a Alemanha, esta última com o estatuto de “observador”
e convidada pela Polónia
12
.
11
Para além de se destinar a criar um ambiente favorável à implementação dos projetos prioritários da I3M,
o Forum Empresarial terá também uma função de monitorização da evolução dos projetos em fase de
implementação.
12
A questão de uma eventual futura inclusão da Alemanha na I3M, como Estado-membro, tem sido debatida
nas margens das suas reuniões, dado constituir um grande desafio. Se, por um lado, são evidentes a
potencialidade daí resultante, nomeadamente em termos de financiamento, também é evidente que
problemas poderão surgir, sobretudo no sector energético. A Alemanha, contudo, solicitou apenas o
estatuto de observadora, pois quer estar presente e influenciar uma iniciativa que agrupa a vizinha
Europa Central e que é terreno da competição global entre os EUA, a Europa, a China e até a Turquia (vide
Korybko, Andrew, 2018. Germany’s Request to Partner with the Three Seas Initiative Is a Win for Poland”,
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A IV Cimeira, realizada em 5 e 6 de junho de 2019 na Eslovénia, pretendia-se que fosse
o momento de fazer um primeiro ponto de situação sobre o desenvolvimento dos
projetos identificados em Bucareste. Contudo, os seus resultados acabaram por saber a
pouco na medida em que o grande desenvolvimento acabou por ser a criação efetiva do
Fundo dos Três Mares, que fica sob a administração da Polónia, da Roménia e da
República Checa e que conta com 500 milhões de euros, uma verba ainda muito
reduzida para as necessidades globais deste projeto. Foi consensual a ideia de que está
na altura de se passar das declarações políticas para os atos. No entanto, é justo realçar
que se começa a ver uma mudança nas perceções da Alemanha e da União Europeia em
relação à I3M, com a primeira a discutir internamente a possibilidade de uma adesão e
com Bruxelas a considerar que esta Iniciativa se enquadra plenamente no espírito da
construção europeia e que, portanto, estará disponível para apoiar vários dos seus
projetos.
Sobre o carácter e objetivos da I3M muito se tem falado. Os responsáveis pela sua
criação, que recusam qualquer referência à geopolítica, defendem que se trata apenas
de uma iniciativa destinada ao desenvolvimento das infraestruturas regionais e dessa
forma favorecendo a integração europeia, através da convergência das suas economias
com as da Europa Ocidental
13
. Trata-se de um projeto que permitia esta região tirar
todo o proveito da sua posição central na Europa e do facto de ter uma boa rede de
contactos com o Ocidente e com o Leste. Permite, assim, aproximar o norte do sul e o
Leste do Oeste, ao mesmo tempo que põe fim às limitações de alguns Estados que não
tinham acesso ao mar.
Os seus inimigos, porém, veem nela tão-somente uma forma de interferência norte-
americana destinada a vender o seu gás de xisto (shale gas) a um continente que, tudo
o indica, será o maior consumidor de gás do mundo. Outros, finalmente, consideram que
há aqui também uma tentativa de criar uma região com um modelo político e económico
diferente do de Bruxelas (embora perfeitamente enquadrado na UE). A realidade será
porventura diferente de todas estas interpretações e tetalvez um pouco de todas elas.
A I3M foi criada oficialmente como uma forma de se conseguirem concretizar grandes
projetos de infraestruturas regionais em três grandes áreas: a energia, os transportes
(rodoviários e ferroviários) e a área digital (comunicações), de maneira a ser
ultrapassado o atraso relativo que estes países têm ainda nestes domínios. Tal como
sintetizado por Alexandr Vondra
14
, ao vel energético estão em cima da mesa quatro
grandes projetos:
“Uma ligação por pipeline a dois grandes terminais GNL (gás natural liquefeito):
Swinoujsce, na costa báltica [da Polónia], operacional; e Krk, uma ilha croata do
Mar Adriático”;
A Gas Interconnection Poland-Lithuania (GIPL), que integrará mercados de gás
isolados dos países do Báltico na rede da UE”;
Global Research, disponível em https://www.globalresearch.ca/germanys-request-to-partner-with-the-
three-seas-initiative-is-a-win-for-poland/5652168.
13
“Um cidadão da velha Europa tem, em média, o dobro de quilómetros de auto-estrada que um da Europa
Central”, in Patricio de Antonio, 2017. La iniciativa de los Tres Mares que conectará la Vieja y la Nueva
Europa, disponível em https://ideas.pwc.es/archivos/20171013/iniciativa-de-los-tres-mares-conectara-
vieja-y-nueva-europa/.
14
Vondra, Alexandr, 2018. Regional Integration at the Three Seas Summit, disponível em https://emerging-
europe.com/voices/regional-integration-at-the-three-seas-summit/.
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“O Corredor Gasífero Norte-Sul (BRUA), um sistema de pipelines bidirecionais. No Sul
ligará às explorações offshore nos mares Negro e Cáspio (via pipeline TANAP na
Turquia). No Oeste, integrará os Balcãs na rede da UE, via Baumgarten na Áustria”;
O pipeline Eastring, que ligará os pipelines existentes na Bulgária, Roménia, Hungria
e Eslováquia.”
No que se refere aos grandes projetos de infraestruturas na área dos transportes a
referir, segundo o mesmo autor, os seguintes:
“Via Carpathia, uma auto-estrada que ligará um porto báltico (Klaipeda, Lituânia) a
um hub comercial Egeu (Tessalónica, Grécia);
Modernização da auto-estrada Norte-Sul, ao longo da estrada E65, que ligará o Báltico
(de Szczecin, Polónia) ao Mar Adriático (Rijeka, Croácia);
Rail Baltica, que ligará Varsóvia, Kaunas (Lituânia), Riga, Tallinn e Helsínquia;
Rail 2 Sea, que ligará Gdansk, na Polónia, a Constância, um porto romeno do Mar
Negro”
15
.
As infraestruturas digitais previstas e apoiadas pela UE são as seguintes
16
:
Projeto RuNe (Rural Networks), uma rede de fibra de banda larga que ligará áreas
da Eslovénia, a Região Autónoma de Friuli-Venezia Giulia (Itália) e as regiões de
Primorsko-Goranska e Istarska (Croácia);
RO-NET Broadband Project, criação de infraestruturas de banda larga em zonas mais
desfavorecidas da Roménia.
Contudo, a I3M lancou também uma “Digital 3 Seas Initiative” (D3SI), que prevê
várias áreas de cooperação
17
:
Cibersegurança;
3 Seas Digital Highway, visando preencher as lacunas em termos de infraestruturas
de comunicações, incluindo fibra óptica e tecnologia 5G;
Lançamento de iniciativas tecnológicas conjuntas;
Implementação do programa Industry 4.0;
Fortalecer as redes de e-commerce
18
.
Trata-se de um conjunto de iniciativas muito ambicioso e que terá um impacto muito
grande nestes países e em toda a Europa. o esqueçamos que muitos destes países
15
Op. Cit.
16
European Commission, 2018. The Three Seas Initiative Summit: European Commission Investments in
Connectivity Projects Bucharest, Romania.
17
The Kosciuszko Institute, 2018. The Digital 3 Seas Initiative: a call for a cyber upgrade of Regional
Cooperation, Livro Branco, Polónia, disponível em https://ik.org.pl/wp-
content/uploads/white_paper_the_digital_3_seas_initiative-1.pdf.
18
Aqui apresentou-se apenas uma seleção dos projetos mais emblemáticos. Para uma lista completa destes
projetos, ver “Priority Interconnection Projects” da Presidência Eslovena.
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são Estados-encravados, sem acesso ao mar. Estas infraestruturas vão agora dar-lhes
acesso a três mares e, dessa forma, muito contribuirão para uma maior independência e
espaço de manobra das suas políticas. Contudo, para a implementação destes projetos
necessidade de assegurar um importante financiamento que não poderá ser garantido
apenas pelos Estados-membros. Assim, para além de apelos à União Europeia, foram já
assegurados investimentos norte-americanos (sobretudo no domínio da energia) e
chineses (embora estes ainda se não tenham concretizado). Foi também decidida a
criação do Three Seas Fund (TSF), com uma duração de trinta anos e que pretende
assegurar um financiamento na ordem dos 100 biliões de euros (a partir de um
investimento inicial dos Estados-membros no valor de 5 biliões de euros). Uma escala
não-despicienda.
Dado o acima referido, é fácil ver as implicações geopolíticas desta Iniciativa. Antes de
mais, a região encontra-se no centro de uma luta de titãs pelo fornecimento de gás
natural à Europa, sendo conhecido que este será um dos maiores mercados a vel
mundial. Por outro lado, uma preocupação crescente em assegurar uma
independência energética para a região que evite a excessiva dependência atual dos
fornecimentos oriundos da Rússia e que serão canalizados através da Alemanha (o
referido Nordstream II). Os Estados-membros
19
na sua maioria sentem, aliás, uma
grande desconfiança em relação a este projeto germano-russo, e consideram necessária
a promoção da sua independência energética através da diversificação dos
fornecimentos.
Os EUA têm-se manifestado abertamente contra o Nordstream II, tendo o Presidente
Donald Trump, na conferência da I3M, em Varsóvia, atacado duramente esta política
energética da Alemanha, apontando a contradição entre, por um lado, o apoio à política
de sanções contra a Rússia por causa do conflito na Ucrânia e, por outro, o pagamento
de somas milionárias pelos hidrocarbonetos russos, que constitui uma ajuda significativa
à sua economia.
Mas as implicações desta Iniciativa são mais vastas e incluem, de facto, os interesses
norte-americanos no fornecimento de gás de xisto à Europa (um mercado em
crescimento), o que faz de Washington um dos seus principais aliados. Mas, para que os
fornecimentos norte-americanos se venham a concretizar na escala pretendida,
questões complexas que têm antes de ser resolvidas, como é o caso de saber se os países
da região vão optar por esta solução, sendo os preços do gás de xisto consideravelmente
mais elevados que o gás russo, mas constituindo um instrumento para a diversificação
das fontes energéticas
20
. Um primeiro passo foi dado pela Polónia, em 2017, ao fazer as
suas primeiras importações de gás de xisto a partir dos EUA
21
. O Presidente polaco,
Andrzej Duda, chegou mesmo a afirmar durante a Cimeira de Varsóvia a intenção do seu
país de celebrar com os EUA contratos de longa duração para estes fornecimentos,
19
Com particular destaque para a Polónia que, com o Nordstream II, perderá a maior parte dos direitos de
passagem do gás russo pelo seu território.
20
Embora a questão do preço seja naturalmente importante, há também a considerar a crescente influência
da geopolítica no mercado da energia na União Europeia.
21
Refira-se, contudo, que a Polónia pretende tornar-se um hub energético regional que, eventualmente, possa
vir a substituir a Rússia no fornecimento de gás natural à Ucrânia e à Moldávia. Está também a fazer grandes
prospecções para a produção local de gás de xisto, tendo já aberto vários furos.
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embora tenham ainda de se realizar negociações complicadas a respeito dos preços, que
o Presidente americano afirmou já poderem vir a aumentar
22
.
Em contraste com as escolhas da Polónia, vimos que a visita do Vice-Presidente norte-
americano, Mike Pence, à Hungria no mês de fevereiro de 2019 não foi o sucesso que
alguns esperavam. As conversações foram tensas e, quando Mike Pence tentou
convencer a Hungria a não apoiar as propostas russas de alargamento do Turkish Stream
até à Europa Central e, em vez disso, optar pelos fornecimentos com origem nos EUA, a
resposta recebida foi, no nimo, fria. Embora a verdade seja que estas ambições norte-
americanas, por enquanto, não passam disso mesmo, os russos podem garantir um
fornecimento contínuo imediato e a preços muito mais baixos.
Por sua vez, a China também com grande interesse a I3M, suscetível de lhe permitir
utilizar essa enorme rede infraestrutural (sobretudo em matéria de portos, auto-estradas
e caminhos-de-ferro) no âmbito do seu projeto One Belt, One Road. Embora a cooperação
entre a China e os países da região tenha por base a iniciativa “16+1”
23
, Pequim
acompanha com crescente interesse os desenvolvimentos desta Iniciativa
24
.
Noutro plano mais controverso , é também importante referir que entre estes países
estão alguns dos Estados mais conservadores da Europa, como a Hungria, a Polónia, a
Áustria ou a Eslováquia, que têm vindo a contestar algumas das políticas de Bruxelas,
nomeadamente em termos de cedências de soberania (a via federal), o euro, a imigração
e a defesa
25
. Assim, têm sido levantadas suspeições de que estes poderiam estar a tentar
criar, dentro da União Europeia, um modelo de integração alternativo ao do eixo Paris-
Berlim (hoje cada vez mais Berlim-Paris), o que foi sempre desmentido pelos promotores
da I3M, que não se têm cansado de afirmar que a mesma se integra na UE e se limita à
cooperação no âmbito das infraestruturas. Contudo, ninguém ignora que deres como
Viktor Órban, ou o italiano Matteo Salvini, agora numa travessia do deserto depois da
quebra da aliança que o mantinha no poder, têm vindo a patrocinar a ideia duma
reformulação da União Europeia num projeto mais igualitário, ou homogéneo na
distribuição nela do poder dos seus Estados-membros, e com uma diferente visão de
futuro.
Têm sido visíveis crescentes desconfianças destes países em relação à Alemanha
(sobretudo depois do anunciado Nordstream II, que acusam de ser no fundo e
essencialmente antieuropeu”, pois visa tornear a Polónia ao passar ostensivamente
pelos fundos do Mar Báltico, marginalizando-a no seu percurso) e aos projetos franceses
sobre a defesa europeia e um aprofundamento da integração (com as consequentes
cedências ao nível da soberania recentemente adquirida). Estes países têm também, na
sua maioria, vindo a contestar as políticas migratórias de Bruxelas, que consideram
22
Engdahl, William, 2017. Initiative polonaise des Trois Mers. Quel en est l’enjeu géopolitique?, New Eastern
Outlook, disponível em http://lesakerfrancophone.fr/linitiative-polonaise-des-trois-mers-quel-en-est-
lenjeu-geopolitique.
23
Iniciativa chinesa para o aprofundamento da cooperação com diversos Estados europeus: Albânia, Bósnia-
Herzegovina, Bulgária, Croácia, República Checa, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Macedónia do Norte,
Montenegro, Polónia, Roménia, Sérvia, Eslováquia e Eslovénia. A cooperação centra-se nas áreas das
infraestruturas, educação e cultura, tendo três áreas prioritárias: infraestruturas, tecnologias de ponta e
tecnologias verdes.
24
A Polónia tem vindo a manifestar alguma desconfiança em relação à iniciativa “16+1” por considerar que
esta não tem levado a grandes concretizações práticas. Também tem vindo a evidenciar algum desconforto
face ao desequilíbrio da balança comercial a favor da China.
25
A maior parte destes Estados continua a considerar que a NATO constitui o garante da sua independência
e segurança e têm uma cooperação bilateral muito forte com os EUA.
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contrárias aos interesses europeus, tendo manifestado de forma clara a recusa de
acolhimento nos seus países das quotas de imigrantes que lhes foram atribuídas.
Por sua vez, na 55ª edição da Conferência de Segurança de Munique, em janeiro de
2019, a Chanceler Angela Merkel defendeu que a questão da dependência do s russo
não se pode reduzir a uma discussão sobre se este vem pelo gasoduto ucraniano ou pelo
Nordstream II, tendo-se mostrado disponível para uma discussão aberta que também
inclua o fornecimento de GNL americano à Europa. Em contraponto, na mesma
conferência, o Vice-Presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, manifestou o desconforto
do seu país sobre esta questão, referindo que os EUA não poderão garantir a defesa do
Ocidente se os seus aliados continuarem a depender do Leste, tendo-se manifestado
ainda como “vigorosamente contra o Nordstream II”.
Por aqui se vê, com alguma nitidez e clareza, a dimensão das questões que estão em
jogo e que, contrariamente ao afirmado pelos seus responsáveis, a I3M é claramente
uma Iniciativa com a maior das relevâncias ao nível geopolítico.
Conclusões
Esta iniciativa, com uma importância geopolítica evidente, apresenta, contudo, rios
desafios importantes. Desde logo, o montante de investimento necessário à
concretização dos seus diferentes projetos, sobretudo os relativos à energia e às
infraestruturas rodoviárias e ferroviárias, que só poderá ser garantido com recurso ao
investimento externo. A União Europeia deu o seu apoio a alguns deles (a maior parte
dos quais se inscreve, aliás, em projetos mais vastos da União Europeia destinados a
todos os Estados-membros). A China, por sua vez, não concretizou ainda nada de muito
significativo, havendo países que a acusam de não passar das declarações de intenções
e os EUA têm apoiado apenas projetos nos quais têm um interesse direto, como é o
caso dos relativos ao sector energético. Falta, assim, assegurar a maior parte deste
investimento milionário e isto num tempo que, tudo o leva a crer, será de arrefecimento
da economia. O Fórum Empresarial, sendo aberto à participação de países terceiros,
poderá ter um papel importante neste domínio; esperemos que assim seja.
Um desafio importante para os EUA será o de convencer os Estados-membros, mais uma
vez num clima de alguma incerteza económica, a comprar gás de xisto proveniente do
outro lado do Atlântico, mais caro e mais difícil de manipular, com o argumento da
necessidade de diversificação dos abastecimentos. Ao mesmo tempo, estes países terão
de enfrentar a pressão russa e também alemã. Facto é que as necessidades de
abastecimento de gás natural são grandes e com tendência para crescerem
consideravelmente no futuro, pelo que a tentação será grande de recorrer aos
fornecedores com melhores preços, apesar de que os Estados Unidos tudo farão para
que o seu shale gas seja parte desta equação.
Também o será fácil manter a coesão deste conjunto, sobretudo se a I3M não puder
contar com o apoio da União Europeia (é, assim, importante não hostilizar demasiado a
Alemanha). A dificultar a situação, há a referir a existência de perceções de segurança
diferentes, níveis muito desiguais de desenvolvimento económico e diferenças ao nível
político.
Finalmente, e embora os méritos desta Iniciativa sejam evidentes, não parece que a
mesma, do ponto de vista político, venha a ganhar uma dinâmica suscetível de a
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constituir como uma alternativa ao atual modelo de integração europeia. várias razões
para tal, mas a dependência da região em relação aos fundos da União Europeia para o
desenvolvimento destes projetos, leva a que seja perigoso optar por lançar desafios de
ordem política às orientações de Bruxelas ou antagonizar as principais potências da UE.
do ponto de vista económico, parece que todos terão a ganhar (e não apenas os
Estados-membros) no desenvolvimento das referidas infraestruturas, capazes de virem
a criar uma maior dinâmica de contactos e de negócios na região.
Tudo leva, assim, a crer que a I3M poderá vir a ter sucesso se mantiver a orientação
atual de se apresentar apenas como uma iniciativa regional destinada a desenvolver as
infraestruturas da região no quadro da UE, mas sem ter de estar excessivamente
dependente dos mecanismos da União, sempre lentos e exigindo consensos alargados
difíceis de conseguir. do ponto de vista da segurança, os seus promotores têm sempre
realçado a importância da relação transatlântica, expressamente por forma a servir de
um contrapeso ao eixo franco-alemão ou germano-francês, se se preferir.
Espera-se que a próxima cimeira na Eslovénia seja já dedicada à implementação dos
projetos definidos em Bucareste, sendo este um teste decisivo para avaliar da capacidade
de captação dos investimentos necessários e da vontade política dos Estados para
resistirem às já referidas pressões a que se têm visto sujeitos.
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