OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 10, Nº. 2 (Novembro 2019-Abril 2020), pp. 87-97
PORQUE É IMPORTANTE UMA PERSPETIVA REGIONAL QUANDO ANALISAMOS
CONFLITOS CIVIS NO MÉDIO ORIENTE E NO NORTE DE ÁFRICA?
Samer Hamati
Samer_hamati@yahoo.com
Doutorado em Economia, Faculdade de Economia e Gestão, Universidade do Minho (Portugal).
Foi Investigador Visitante no Departamento de Estudos Políticos e Económicos da Universidade
de Helsínquia. É especialista em reconstrução de capital social na Síria, Training and Research
Institute da Roménia. Investigador Sénior de Pobreza e Desigualdade num projeto do Programa
de Desenvolvimento das Nações Unidas de Estabelecimento do Fundo Nacional de Assistência
Social na Síria, Projetos do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, Damasco, Síria.
Consultor externo da definição da Estratégia de Segurança Alimentar da Síria, National
Agricultural Policy Center, Síria. Recebeu os parabéns aprovados por unanimidade do Parlamento
Português por ser o primeiro aluno sírio a obter o doutoramento em Portugal.
Tem experiência de trabalho voluntário
Resumo
Investigar as diferentes variáveis políticas e sociais no Médio Oriente e Norte da África
(MENA) está a ser alvo de mais atenção por parte dos cientistas sociais, particularmente nos
institutos de paz e conflito. Isto deve-se à singularidade da região e aos violentos conflitos
que testemunhou nas últimas décadas. Esses conflitos tornam-se interestatais, mas
transitórios, daí a sua transferência para conflitos civis internacionais com grandes
externalidades que extravasam as fronteiras da região. Esses conflitos mostram a elevada
ligação entre os países MENA e, recentemente, a Primavera Árabe demonstrou o 'efeito
contágio' das revoltas na região. Seguindo uma abordagem multidisciplinar, esta nota de
investigação é uma tentativa de explicar a importância do estudo dos conflitos MENA a partir
de uma perspetiva regional e apresentar os fatores que comprovam os efeitos do contágio.
Esperamos que, ao ler esta nota, o leitor entenda suficientemente os aspetos regionais dos
conflitos MENA.
Palavras-chave
MENA; efeito de contágio; conflitos civis
Como citar este artigo
Hamati, Samer (2019). "Porque é importante uma perspetiva regional quando analisamos
conflitos civis no Médio Oriente e no Norte de África?". JANUS.NET e-journal of International
Relations, Vol. 10, N.º 2, Novembro 2019-Abril 2020. Consultado [online] em data da última
consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.2.6
Artigo recebido em 2 de Junho de 2019 e aceite para publicação em 18 de Setembro de 2019
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no Médio Oriente e no Norte de África?
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PORQUE É IMPORTANTE UMA PERSPETIVA REGIONAL QUANDO ANALISAMOS
CONFLITOS CIVIS NO MÉDIO ORIENTE E NO NORTE DE ÁFRICA?
1
Samer Hamati
Introdução
Durante décadas, a região MENA em geral experienciou violência e conflitos civis, o que
conduziu a um ambiente de permanente instabilidade. Essa violência tornou-se uma
forma normal de governar e de transferência de poder desde a fundação política moderna
do MENA até ao final da Primeira Guerra Mundial. Analisando a história moderna do
MENA, notamos facilmente as características históricas partilhadas, nas quais as
trajetórias de conflito foram semelhantes nos rios países. Estas características
partilhadas estendem-se à vida política, social e económica, estabelecendo regimes
autoritários e paternalistas na região e colocando desafios particulares às transições e ao
processo de desenvolvimento. Acima de tudo, essas características fortalecem os vínculos
nessa região e conduzem a grandes intervenções entre os estados recém-estabelecidos.
A compreensão dessas intervenções é essencial no estudo da paz e dos conflitos na região
MENA.
Semelhante às tendências globais, o número de conflitos no MENA diminuiu
significativamente no início dos anos 90 e a região ficou estável após o Processo de
Libertação do Kuwait em 1991, como se constata ao analisar o Banco de Dados de
Conflitos Armados da UCDP/PRIO (Universidade de Uppsala, 2015). No entanto, o
número de conflitos aumentou no novo milénio, principalmente devido à ocorrência de
conflitos civis. Mais especificamente, os conflitos anticoloniais e interestatais quase
desapareceram e quase todas as guerras de hoje são interestatais mas com grandes
intervenções internacionais, tornando-as 'guerras civis internacionalizadas'. Além disso,
esses conflitos têm sido guerras por procuração (Marshall, 2016). Os conflitos anteriores
a 1990 faziam parte da Guerra Fria, em que as fações recebiam apoio dos seus aliados
em Moscovo ou Washington. A partir do final dos anos 90, os concorrentes tornaram-se
regionais e surgiu um ciclo de guerra por procuração regional, especialmente entre a
Arábia Saudita e o Irão, (Nerguizian e Kasting, 2013). Os conflitos na ria, Iraque,
men, Bahrein e Líbano são exemplos claros desse fenómeno.
1
A tradução deste artigo foi financiada por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e
a Tecnologia no âmbito do projeto do OBSERVARE com a referência UID/CPO/04155/2019, e tem como
objetivo a publicação no JANUS.NET. Texto traduzido por Carolina Peralta.
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As novas ondas de violência pós-primavera árabe aumentam a conscientização sobre os
conflitos civis que explodem na região MENA. Torna-se claro que esses conflitos não são
puramente "civis". Além disso, as suas consequências extravasam as fronteiras do MENA.
Ross et al. (2011) argumentam que a Primavera Árabe atesta o 'efeito de contágio' das
revoltas na região. Com base na revisão da literatura, a presente nota examina os fatores
que comprovam esse contágio e enfatiza a perspetiva regional na investigação dos
conflitos civis no MENA. Primeiro discutimos brevemente o termo MENA, e depois
explicamos algumas características dos conflitos civis do MENA que tornam o seu estudo
essencial para apoiar a paz e a prosperidade globais. Posteriormente, esclarecemos por
que é melhor analisar esses conflitos a partir de uma janela regional. Para o efeito,
adotamos uma abordagem multidisciplinar de análise usando breves evidências sociais,
económicas, culturais, familiares e históricas. A nota termina com dois avisos
importantes.
O que queremos dizer com MENA?
O termo Médio Oriente surgiu séculos depois do aumento da preocupação ocidental com
essa região. Desde as Cruzadas, o Oriente foi identificado com o Islão e o Ocidente
tornou-se idêntico ao Cristianismo. As regiões foram assim divididas simbolicamente de
acordo com dois sistemas de crenças. Mais tarde, no último quartel do século XVIII, os
europeus começaram a referir-se aos territórios controlados pelo Império Otomano
Islâmico como o Próximo Oriente, enquanto Mahan e Chirol usaram o termo Médio
Oriente para apelidar o Golfo de Áden e a Índia em artigos separados publicados em
1902 (Davison, 1960). Devido às mudanças políticas após a Primeira Guerra Mundial,
surgiu a necessidade de alterar a definição da área geográfica conhecida como Médio
Oriente e, em março de 1921, Winston Churchill, com a ajuda da Royal Geographic
Society, remapeou o Médio Oriente do Bósforo às fronteiras ocidentais da Índia (Özalp,
2011). Mais tarde, esse termo começou a aparecer com frequência na literatura
internacional.
No entanto, apesar da adoção do termo Médio Oriente na literatura internacional, não
acordo sobre a extensão das áreas geográficas e dos países do Médio Oriente (Johannsen,
2009). Os estudiosos incluíram países diferentes, embora sobrepostos, ao usarem esta
frase. Muitos consideram que são os países antes ocupados pelo Império Otomano
(Tunçdilek, 1971; Brown, 1984; Tibi, 1989), outros referem-se-lhe como países islâmicos
(Steinbach, 1979), alguns consideram-no limitado aos países árabes (Hudson, 1976), e
outros incluíram países africanos, como a Etiópia (Davison, 1960). A maior parte da
literatura recente define a região MENA como sendo composta pelos países árabes, ou
seja, os vinte e dois países membros da Liga Árabe, além de três países não árabes cujas
ações contribuem para as situações políticas e de segurança na região MENA: Turquia,
Irão e Israel, embora esses estados tenham seguido uma trajetória histórica um pouco
diferente da dos estados árabes e possuam estruturas económicas diferentes das dos
países árabes (Owen, 2013).
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O que torna os conflitos civis no MENA globalmente importantes?
Não é apenas um fator que cria conflitos civis no MENA e que atrai atenção global. Os
conflitos na região o duradouros e as suas consequências são grandes e trágicas. No
entanto, a posição do MENA é a principal razão para essa atenção global. Devido à sua
posição geográfica estratégica, a região assistiu a muitos eventos cujas causas e
consequências ultrapassaram as suas fronteiras. Barakat (1993: 31) afirmou que “a
centralidade do mundo árabe nos tempos antigos e modernos qualificou-o para servir
como um importante ponto nodal na história da humanidade. Atuou como uma passagem
que liga a Ásia, África e a Europa. Produziu algumas das mais importantes contribuições
intelectuais, culturais e religiosas da história. É essa posição na encruzilhada humana e
geográfica, e não apenas o petróleo e outros recursos, que tornam o mundo árabe tão
estrategicamente significativo”. Como consequência dessa posição geográfica central, os
conflitos têm sido frequentes e caracterizados por atributos que os diferenciam dos que
ocorrem noutras regiões: sustentabilidade, derrame de sangue, consequências trágicas
e externalidades.
Os conflitos civis são sustentáveis na região MENA. Paralelamente à ocorrência de
conflitos internos, um fenómeno chamado "armadilha de conflitos" tornou-se mais
dominante. Essa armadilha refere-se a uma situação em que um país pós-conflito civil
cai novamente noutra guerra civil. Walter (2015) encontra fortes evidências de 'armadilha
de conflito'; 57% de todos os países que sofreram uma guerra civil durante o período de
1945-2009 sofreram pelo menos um conflito depois disso. Além disso, ela ressalta que,
na década de 2000, 90% de todas as guerras civis foram repetidas. Collier (2007) mostra
que o risco de novos conflitos nos países emergentes da guerra civil é quase duas vezes
maior do que na véspera desse conflito. Cevik e Rahmati (2015) afirmam que essa
armadilha é mais apertada na região MENA, pois os países do Médio Oriente parecem
sofrer um risco elevado de recorrência de conflitos sem grande declínio nos anos
subsequentes, o que conduz a um sentimento sustentável de violência e insegurança. lá.
Esta sustentabilidade é uma das razões que faz aumentar os custos dos conflitos MENA.
Os conflitos civis no MENA são caros tanto em termos de sangue como de dinheiro. A
crise síria, considerada o "pior desastre causado pelo homem que o mundo viu desde
a Segunda Guerra Mundial", de acordo com um funcionário da ONU (Al-Hussein, 2017),
é a principal evidência recente desses custos; cerca de 11,5% da população foi morta ou
ferida em menos de cinco anos de conflito (SCPR, 2016). Além disso, a região representa
40% do total global estimado de mortes em batalhas desde 1946, de acordo com o
Programa de Dados de Conflitos de Uppsala. Em relação aos altos custos económicos,
Rother et al. (2016) argumentam que três anos de conflitos após a Primavera Árabe
traduziram-se em perdas de 6 a 15 pontos percentuais do PIB nos países MENA em
conflito, em comparação com 4 a 9 pontos percentuais no mundo.
Além disso, esses custos não se limitam à região, e existem outros custos internacionais.
De fato, os conflitos MENA geram grandes externalidades representadas por saídas de
refugiados e flutuações no preço da energia. Cerca de dois terços dos atuais refugiados
em todo o mundo vêm do MENA
2
. Os refugiados não são simplesmente os subprodutos
infelizes da guerra, mas podem causar conflitos interestatais (Posen, 1996). Salehyan
2
UNHCR. (25 de maio de 2018). Figures at a Glance. Disponível em http://www.unhcr.org/figures-at-a-
glance.html
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(2008) afirma que os fluxos de refugiados entre estados aumentam a probabilidade de
disputas interestatais militarizadas (MIDs) através de dois canais: os estados recetores
de refugiados têm mais probabilidade de iniciar MIDs quando intervêm para impedir
outras externalidades, e estados emissores de refugiados iniciam MIDs ao violarem
fronteiras em busca de dissidentes.
Acima de tudo, as instabilidades no preço da energia ainda são a externalidade mais clara
causada pelos conflitos que ocorrem no MENA. Essa região possui 55% das reservas
globais de petróleo (Guidolin e La Ferrara, 2010), portanto, qualquer tipo de tensão afeta
os preços, produtos, emprego e crescimento económico em todo o mundo. dois
choques anormais nos gráficos económicos globais que são fortemente distintos: um
apareceu em 1973-1974 e o outro em 1979-1980. Esses choques surgiram na sequência
de dois eventos que ocorreram na região MENA: a Guerra de Outubro (Yom Kippur) de
1973 e a Revolução Iraniana de 1979. Guidolin e La Ferrara (2010), usando a
metodologia de estudo de eventos para analisar o impacto do conflito num mercado de
ativos selecionado, afirmam que o Médio Oriente é muito importante para os índices de
commodities, incluindo os preços do petróleo, pois 73% dos conflitos que ocorrem nessa
região têm impacto nos futuros de petróleo, e esse impacto é distinguível do zero.
Por que é importante estudar conflitos civis através do contexto
regional?
Os países MENA estão conectados geograficamente, economicamente e culturalmente,
mostrando uma forte tendência para conexão e contágio. As palavras de Elias Hrawi, ex-
presidente do Líbano, ao descrever os conflitos civis no seu país são famosas: "não era
o nosso conflito, mas o dos outros na nossa terra", e atestam isso mesmo (Atallah, 2008:
217). Portanto, não se pode investigar nenhum conflito civil isoladamente do contexto
regional. Essa interferência política e de segurança não se deve apenas às fronteiras
comuns, mas também às fortes ligações entre os seus povos, onde a maioria mantém
crenças, cultura e religião semelhantes e partilha a mesma história.
As raízes históricas e culturais desta conexão são muito profundas e longas. Durante os
treze séculos anteriores à Primeira Guerra Mundial, a maioria dos territórios da região foi
controlada por diferentes poderes que governavam mediante uma ideologia, o Islão. O
Império Otomano foi o último grande estado que controlou a região. A sua queda
terminou com o Califado e abriu caminho para a construção de países artificiais modernos
que acolhem pessoas que partilham uma história, cultura, alfabeto, sentimentos e
ligações demográficas comuns, incluindo relações tribais. Heydemann, conforme citado
em Yousef (2004: 95), destaca que “a excecionalidade da região é um fenómeno recente
e não cultural derivado de crenças, valores e normas intrínsecas nas sociedades árabe-
muçulmanas”. Estes valores e sentidos partilhados impedem a criação de identidades
diferentes nas sociedades recém-criadas, e, portanto, validam a teoria de Anderson de
'comunidades imaginadas' (Anderson, 2006). As comunidades no Médio Oriente são
produzidas de maneira semelhante e projetam hierarquias de poder semelhantes entre
elas, levando a uma forte imaginação coletiva.
O estabelecimento dos estados modernos MENA no final da Primeira Guerra Mundial
explica a parte principal dessa conexão. Os Aliados, que venceram a Primeira Guerra
Mundial, incluindo a Grã-Bretanha e a França, dividiram os territórios árabes
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anteriormente ocupados pelo Império Otomano. Mais tarde, esses poderes coloniais
criariam as principais estruturas e a administração pública dos novos estados. Owen
(2013: 9) examina esse desenvolvimento:
No que diz respeito ao Médio Oriente, geralmente era o poder
colonial dominante que primeiro criou as características essenciais
de um estado moderno, dando-lhe uma administração centralizada,
um sistema legal, uma bandeira e fronteiras internacionalmente
reconhecidas. Em alguns casos, isso foi feito com base em alguma
entidade administrativa preexistente, como na Argélia; noutros,
envolvia desanexar uma parte de uma antiga província otomana
(por exemplo, Transjordânia) ou, mais frequentemente, juntar
várias províncias (por exemplo, Síria e Iraque). Isso deu a muitos
dos novos estados uma aparência um tanto artificial, com os seus
novos nomes, novas capitais, a sua falta de homogeneidade étnica
e as suas fronteiras totalmente retas que eram tão obviamente obra
de um oficial colonial britânico ou francês a usar uma régua.”
Esses novos estados, com uma natureza mal definida (Milton-Edwards e Hinchcliffe,
2007), acolhem pessoas que pertencem a diferentes grupos étnicos, linguísticos e
religiosos. Barakat disse que “certas comunidades foram impostas a outras pessoas
dentro do mesmo país” (1993: 6). Um ano após o início do conflito civil no Líbano, Anne
Sinai e Chaim Waxman escreveram na introdução da Middle East Review (1976: 5):
[A] atual guerra civil no Líbano é apenas a mais recente e mais
divulgada numa ampla gama de eventos e situações que
desmentem a afirmação de que o Médio Oriente é um mundo
unitário de árabes com origem, cultura, idioma e identidade
comuns. O Médio Oriente na verdade consiste num intrincado
mosaico de diferentes povos… Existem xiitas, alauítas, drusos,
yazidis, ismaelianos e seguidores de rias outras denominações
muçulmanas, que se apegam com determinação ao seu próprio
estilo de e ao seu conjunto próprio de crenças. Eles nem o
necessariamente etnicamente ‘árabes’, sendo descendentes de
muitos povos diferentes conquistados e convertidos pelos exércitos
islâmicos... A primeira das três grandes religiões monoteístas, o
judaísmo e as pessoas com quem se identifica, fizeram parte do
mosaico do Médio Oriente desde o início.... Existem, além disso...
outros pequenos grupos religiosos, cada um agarrado à sua própria
identidade distinta. Nenhum estado árabe pode, portanto,
reivindicar homogeneidade social e todos são grupos religiosos,
linguísticos e étnicos maiores ou menores.
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Esta heterogeneidade criou entidades social e culturalmente incompletas, onde os grupos
étnicos e religiosos, assim como tribos e famílias, foram divididos entre países
adjacentes. A heterogeneidade religiosa domina os outros tipos de heterogeneidade na
região. Essa heterogeneidade foi associada a procedimentos discriminatórios em relação
às minorias. Fox (2013) considera que quase todas as minorias religiosas em 17 estados
maioritariamente muçulmanos do Médio Oriente sofrem discriminação religiosa. A
literatura mostra que essa discriminação, assim como outros tipos de perseguições, pode
provocar países vizinhos a intervir noutros países para proteger os seus parentes étnicos
(Saideman, 2001; Trumbore, 2003; Woodwell, 2004). Svensson (2013) identifica uma
grande mudança de conflito não religioso para religioso na região MENA, tornando-a a
região mundial onde o conflito armado religioso é mais proeminente.
Além disso, os vínculos económicos atuais, especialmente o emprego, apoiam as raízes
sociais e culturais e tornam as pessoas de diferentes países MENA mais conectadas.
Milhões da força de trabalho migrante da região MENA trabalham nos países ricos do
Golfo e as suas remessas apoiam as suas famílias e governos nos seus países. Essas
remessas o o apenas financeiras, mas também sociais, o que significa que os
migrantes transferem novas ideias, valores e comportamentos para os seus países de
origem (Levitt, 1998), influenciando as atitudes e o comportamento político das famílias
que residem na terra natal. Ao investigar a difusão do salafismo político entre egípcios
que trabalham na Arábia Saudita, Karakoç et al. (2017) descobriu que o apoio mais forte
ao partido salafista Nour veio de indivíduos cujos membros da família haviam imigrado
para a Arábia Saudita.
3
Os fluxos intra-comerciais e de investimento são outros laços económicos que sustentam
a conexão árabe. Segundo relatos publicados pelo Fundo Monetário Árabe (2017), muitos
países árabes dependem fortemente do comércio com outros países árabes. A Somália,
Djibuti, Jordânia, Líbano, ria, Egito e Sudão exportam 91%, 85%, 50%, 45%, 40%,
32% e 30% de suas exportações totais, respetivamente, para outros países árabes,
enquanto os investimentos intra-árabes subiram de 3% para 15% do PIB árabe total
entre 2000 e 2008, devido à subida dos preços do petróleo.
A evidências histórica confirma que os nculos entre os países MENA, em particular o
Levante, são muito fortes. Exemplos dessas fortes conexões o os dois assassinatos
ocorridos no verão de 1951. Em 17 de julho, Riad Al-Solh, o primeiro primeiro ministro
do Líbano após a independência, foi assassinado em Amã, capital da Jordânia, por Micheal
El-Deek, um sírio. Três dias depois, o rei Abdullah I, o primeiro rei da Jordânia, foi
assassinado em Jerusalém por um alfaiate palestino. O rei Abdullah poderia não ter sido
morto se se tivesse tornado rei do Iraque, como era suposto. Este ponto leva-nos a outro
exemplo importante que confirma os fortes nculos regionais no MENA, que o as
linhagens entre as famílias de elite.
A genealogia é importante entre as tribos árabes. Assim, é fundamental entender o
parentesco entre as famílias reais da região. Hussein bin Ali, Xerife de Meca e der dos
haxemitas, aliou-se aos britânicos e rebelou-se contra os otomanos. Dois dos seus filhos
tornaram-se reis: Faisal, da Síria, e posteriormente do Iraque, e Abdullah, da Jordânia.
3
O partido salafista Nour, que significa Partido da Luz, é um dos partidos políticos criados no Egito após a
Revolta Egípcia de 2011. Possui uma ideologia islâmica ultraconservadora, que acredita na implementação
da rigorosa lei da Sharia.
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Outro filho, Ali, foi o último rei de Hejaz antes de ser derrotado por Ibn Saud, o fundador
do Reino da Arábia Saudita.
Encontramos um parentesco semelhante, mas entre partidos políticos árabes. Os partidos
do nacionalismo pan-árabe surgiram durante o século passado, e muitos deles acreditam
na unidade dos países árabes. Tomemos, por exemplo, o Partido Ba'ath na Síria e no
Iraque; a União Socialista Árabe no Egito; o Partido Popular da Conferência na Líbia; e o
Partido Socialista no Iémen do Sul. Todos esses partidos estiveram no poder nos seus
países durante anos. Alguns tinham uma relação amigável com os outros e outros eram
inimigos. O Ba'ath era o partido no poder na ria e no Iraque, mas as duas fações
estavam em forte conflito décadas.
Combinadas com restrições orçamentárias leves nos países exportadores de petróleo,
essas fortes interconexões facilitam as intervenções entre países. Acima de tudo, o
regime militar, comum na maioria dos países MENA, intensifica essa tendência. O domínio
militar sobre o sistema político nacional na região pode ser comprovado pelo grande
número de golpes e revoluções militares. Milton-Edwards e Hinchcliffe (2007: 4) notam
que essa “natureza militarista do estado na região tem uma relação direta de causa e
efeito nos processos políticos dos países”, e Picard (1993) argumenta que as prefencias
estatistas, a política de massas e as lutas anticoloniais que existiam no Médio Oriente
pós-otomano, conduziram a um forte envolvimento dos militares na política. Esses
governos militares parecem operar de acordo com uma lógica de expansão e, portanto,
intervêm na vida política dos estados vizinhos.
Considerações finais
Ao assistir às notícias diárias, o observador ocidental apercebe-se da violência na região
MENA. De facto, a declaração de Karl Remarks: "e então Deus criou o Médio Oriente e
disse: que haja notícias de última hora e análises", que se tornou o tulo do seu recente
livro publicado em 2018, atesta isso. No entanto, o observador ocidental pode ser
confundido com o alto grau de conectividade entre esses eventos violentos. A presente
nota tenta expor as razões desta ligação, recorrendo a uma abordagem multidisciplinar
para explicar por que o efeito domi apareceu na região e por que deveríamos
considerar os conflitos que se travam, incluindo guerras civis, sob uma perspetiva
regional.
É importante, antes de terminar, mencionar dois pontos importantes. Primeiro, embora
seja única, a região MENA faz parte do Terceiro Mundo, e, como tal, está sujeita ao
mesmo processo universal de subdesenvolvimento dos restantes países do Terceiro
Mundo, e esse aspeto deve ser considerado na investigação de conflitos nesse local. No
prefácio do seu livro, Owen adverte os investigadores a não explicarem tudo o que
acontece no MENA “pelo facto de a maioria do seu povo ser árabe ou muçulmano que,
até ficar rico por causa do petróleo, viveu em tribos nos desertos” (2013: xii).
Observando com atenção outros conflitos noutras regiões do mundo, como, por
exemplo, na África Subsaariana, Sul da Ásia, Balcãs e América Latina, encontramos
muitas semelhanças nas razões e consequências dos conflitos civis.
Em segundo lugar, os estudiosos não devem ignorar as características específicas de
cada país MENA. Esses países o heterogéneos em termos de desenvolvimento
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económico e institucional. Pode-se notar isso facilmente vendo os números económicos
e, mais importante, o índice de desenvolvimento humano (PNUD, 2018). Embora todos
os países do CCG sejam classificados como altamente desenvolvidos, a ria, Sudão,
Iémen, Djibuti, Somália e Mauritânia têm a classificação mais baixa.
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