OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 10, Nº. 2 (Novembro 2019-Abril 2020), pp. 56-71
UNIÃO EUROPEIA, RÚSSIA E O CASO DO MH17: UMA ANÁLISE DAS
NARRATIVAS ESTRATÉGICAS (2014-2019)
Paulo Ramos
paulocamoesramos@gmail.com
Mestrando em Relações Internacionais na Escola de Economia e Gestão-Universidade do Minho,
Braga, Portugal e Licenciado em Ciências de Comunicação pela Universidade do Porto. Os seus
interesses de investigação incluem as relações entre a UE e a NATO com os países do Leste
Europeu, incluindo a Rússia.
Alena Vieira
d4215@eeg.uminho.pt
Membro integrado do Centro de Investigação em Ciência Política (CICP) e Professora do
Departamento de Relações Internacionais e Administração Pública, Escola de Economia e Gestão,
Universidade do Minho, Portugal. É Doutorada em Ciência Política pela Universidade de Erlangen-
Nuremberga (Alemanha). Foi Visiting Researcher da Finnish Institute of International Affairs,
Instituto Estudos Estratégicos e Internacionais (Lisboa), e Universidade Católica de Leuven.
Recebeu bolsas e research grants das fundações Chair Inbev-Baillet Latour; Hanns-Seidel-
Stiftung; Haniel-Stiftung; Compania di San Paulo, Riksbanken Jubileumsfond e Volkswagen-
Stiftung, bem como da Fundação para Ciência e Tecnologia. O seu livro ‘Russland , Belarus und
die EU-Osterweiterung’ foi publicado pela editora Ibidem-Verlag, e os seus artigos em revistas
Europe-Asia Studies, Post-Soviet Affairs, EIOP Cambridge Review of International Affairs,
International Spectator, entre outras. Alena Vieira publicou também vários briefing papers e
relatórios para as instituições da UE e think-tanks (orcid: 0000-0002-5643-0398)
Resumo
O conflito armado que se instalou na Ucrânia, desde 2014, tem vindo a afetar a forma como
os Estados envolvidos interagem e como procuram implementar determinadas narrativas num
novo contexto político regional. Enquanto a Rússia tem assumido uma postura mais assertiva
na sua vizinhança, através de uma narrativa que procura contrariar os valores ocidentais
promovidos pela União Europeia (UE), esta última tem demonstrado alguma dificuldade em
apresentar uma narrativa coerente perante os desenvolvimentos dos últimos cinco anos.
Nesse sentido, este artigo propõe-se a analisar a interação UE-Rússia, utilizando como estudo
de caso o incidente que envolveu a queda do avião civil MH17 da Malaysia Airlines. A
perspetiva analítica combina elementos de Role Theory - que aqui se foca na interação dos
Estados em função de determinadas expectativas em relação ao seu papel a nível interno
(nacional) e externo (regional/internacional) - e das Narrativas Estratégicas. São exploradas
diferenças entre issue narratives (incluindo em relação à narrativa da Bellingcat Investigation
Team) system narratives e identity narratives. O argumento aqui apresentado é que a
externalização da issue narrative da UE tem surgido de duas formas distintas uma mais
moderada, na sua postura oficial enquanto instituição; outra mais assertiva, do ponto de vista
do trabalho desenvolvido pela East Stratcom Task Force (EATF). Isto acaba por criar algumas
dissonâncias na forma como a União Europeia projeta a sua narrativa, e desalinhamento com
a identity narrative da UE enquanto um role state.
Palavras-chave
MH-17, Role Theory; Narrativas Estratégicas; Ucrânia; União Europeia; Rússia
Como citar este artigo
Ramos, Paulo; Vieira, Alena (2019). "União Europeia, Rússia e o caso do MH17: uma análise
das narrativas estratégicas (2014-2019)". JANUS.NET e-journal of International Relations,
Vol. 10, N.º 2, Novembro 2019-Abril 2020. Consultado [online] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.2.4
Artigo recebido em 29 de Novembro de 2018 e aceite para publicação em 22 de Maio de 2019
JANUS.NET, e-journal of International Relations
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UNIÃO EUROPEIA, RÚSSIA E O CASO DO MH17: UMA ANÁLISE DAS
NARRATIVAS ESTRATÉGICAS (2014-2019)
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Paulo Ramos
Alena Vieira
Introdução
O conflito armado que se vive na Ucrânia, na região de Donbass, ganhou um ímpeto
renovado com o abate do avião da Malaysia Airlines que fazia a rota entre Amesterdão e
Kuala Lumpur, a 17 de julho de 2014, quando este sobrevoava a zona de conflito no
Leste da Ucrânia. A morte de quase 300 pessoas, a grande maioria delas europeia, levou
a que os países da UE assumissem uma postura conjunta mais assertiva na busca por
uma resolução do conflito armado naquela região. A postura da UE destacou-se por uma
maior unidade, abrindo o caminho para sanções mais abrangentes contra a ssia,
direcionadas para setores-chave da economia russa, incluindo setor financeiro, de
armamento e de energia. No entanto, o Protocolo de Minsk, assinado em Setembro de
2014 sob o auspício da OSCE, falhou em alcançar o cessar-fogo proposto no documento.
O mesmo aconteceu com o Minsk II, assinado pela Ucrânia, Rússia, França e Alemanha
em Fevereiro de 2015, e que procurou, sem sucesso, resolver as falhas do primeiro
acordo.
Petro Poroshenko, que em 2014 se tornou novo Presidente da Ucrânia, desde cedo se
mostrou decidido a recuperar os laços institucionais com a UE, ao mesmo tempo que a
Rússia tem procurado implementar novas formas de destabilizar o país e fomentar a sua
própria narrativa sobre os acontecimentos na Ucrânia. O seu sucessor, Volodymyr
Zelensky, eleito em 2019, encontra-se na mesma posição, e mantém as mesmas
aspirações. Assim, o facto de ter às suas portas um conflito que, de acordo com a ONU,
levou à morte de 13 000 pessoas , mais de 3 000 delas civis (Escritório do Alto
Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, 2019), faz com que a política
externa da UE se veja sob forte pressão mediática nos últimos anos, o que aumenta
ainda mais a sua responsabilidade neste processo.
Através da análise de várias fontes secundárias e primárias, este trabalho propõe-se,
assim, a analisar a evolução das narrativas da Rússia e da UE em relação à queda do
MH17, que serve como caso de estudo principal neste contexto.
1
Dossiê temático de artigos apresentados na Conferência Internacional de Resolução de Conflitos e
Estudos da Paz realizada na UAL a 29 e 30 de Novembro de 2018.
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Enquadramento teórico
A estrutura teórica deste artigo terá como base o conceito de Role Theory. Desenvolvido
no âmbito da Sociologia e da Psicologia, este quadro teórico tem sido adaptado às
Relações Internacionais desde a década de 1970 (Harnisch, 2011, p.7; vf Walker 1987).
Os papéis desempenhados por determinados atores são definidos como “posições sociais”
influenciadas por expectativas internas e externas relativamente ao propósito desses
atores (Thies, 2010b, p.6336; Andrews, 1975, p.529; cit em Harnisch, 2011, p.8). De
acordo com Sebastian Harnisch, as expectativas (role expectations) e as perceções (role
conceptions) surgem como internas (ego) e externas (alter), e podem ser alvo de
contestação, que o papel de um determinado ator pode entrar em colisão com o de
outro. De acordo com Stephan Klose (2018, p.6), por exemplo, a “capacidade de um ator
internacional para concretizar as suas aspirações representativas na sociedade depende
tanto da sua criatividade e recursos, como das expectativas sociais de outros”. Nesse
sentido, os Estados do espaço pós-Soviético têm perceções distintas do papel da UE na
região, sendo que apenas alguns olham para a instituição como um poder normativo
(Nitoiu, 2018, p.704). Esta breve explicação assume relevância no contexto deste artigo,
já que a perceção e as expectativas do papel da UE enquanto ator internacional não são
uniformes, dentro da UE ou fora da instituição - nomeadamente na Rússia, com quem
entra frequentemente em rota de colisão, como é exemplo o conflito na Ucrânia
(Ademmer et al., 2016; Chaban e Holland, 2014; Delcour e Wolczuk, 2018; Lucarelli,
2014).
Dirk Nabers (2011, p.82) apresenta duas formas distintas através das quais os papéis
desempenhados por diferentes atores se relacionam com as suas identidades. Por um
lado, o papel de um determinado ator representa o limite das ações do mesmo, o que
por sua vez acaba por definir a sua identidade. Por outro lado, a representação do ator
também pode ser influenciada pela sua identidade, podendo o primeiro servir como uma
referência ou enquadramento para o segundo (Nabers, 2011, p.83). Isto é importante
no contexto da UE, particularmente no caso do conflito na Ucrânia, devido ao que vários
autores identificam como um desequilíbrio entre aquilo que é percecionado como
“identidade europeia” e o que é feito em matérias de política externa.
Para além do suporte fornecido pela Role Theory enquanto abordagem teórica, este
trabalho também iutilizar as Narrativas Estratégicas, um conceito desenvolvido por
Alister Miskimmon, Ben O’Loughlin e Laura Roselle (2013). Esta escolha prende-se com
o facto de nos permitir compreender melhor como a comunicação (política e não só) afeta
as relações entre os Estados, algo que pode também ajudar a perceber se essa
narrativa se encaixa na identidade e no papel assumido pela UE.
O conflito armado na Ucrânia ganha um destaque particular pelo confronto de interesses,
discursos e identidades entre os atores envolvidos, sejam eles mais próximos da
narrativa da UE ou da narrativa russa. Por esse motivo, é fundamental perceber como
essas dinâmicas evoluem e afetam os atores envolvidos, sobretudo numa altura em que
a Rússia procura afirmar-se como um verdadeiro ator global, e num contexto em que a
UE sofre as consequências de problemas relacionados com as migrações, o Brexit ou a
administração norte-americana liderada por Donald Trump.
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UE Ucrânia Rússia Um Triângulo Imperfeito
O conflito armado na Ucrânia tem atraído atenção académica nos últimos anos, em
virtude de se ter transformado num palco de combate, não apenas em termos militares,
mas sobretudo ao nível da comunicação política. Contudo, ainda não é frequente
encontrar aplicações empíricas do conceito de Narrativas Estratégicas neste contexto.
Para além disso, o trabalho que tem sido desenvolvido foca-se, sobretudo, no impacto
da narrativa russa, como são disso exemplo os contributos de Joanna Szostek (2017;
2018) ou Irina Khaldarova (2016). Por esse motivo, importa então perceber de que forma
essa dinâmica tem sido construída do lado da UE, e que influência tem tido na
consolidação do papel da organização enquanto ator internacional.
Alguns autores defendem que a UE se comportou como qualquer outro ator, perante as
circunstâncias, e notaram que a reação foi rápida a vários veis (Karolewski e Cross,
2017: 138). Também Michal Natorski e Karolina Pomorska (2017: 66) concordam com
esta ideia, dizendo que o conflito armado na Ucrânia conduziu mesmo a um aumento da
confiança entre os membros da UE face a um crescente desconforto nas relações com a
Rússia. A clivagem entre a UE e a Rússia é, de resto, um dos aspetos mais importantes
deste conflito, pelas consequências que tem não na Ucrânia, mas também para os
dois primeiros. Relativamente a essa diferença, Svante Cornell argumenta o seguinte:
“(…) the Russian sphere of influence is incompatible not only with
the form of European integration envisaged by the EaP, but at a
more fundamental level with the type of countries that the EU’s
instruments would help to create. Where European leaders want a
stable neighbourhood, Russia seeks an unstable one; where Europe
seeks to develop accountability, Russia undermines it. Thus, the
competition between Russia and Europe is not only geopolitical; it is
fundamentally ideological. (Cornell, 2014: 119)
Allister Miskimmon (2017: 164) afirma que a incongruência da narrativa da UE em
relação à Ucrânia tem afetado a credibilidade internacional da instituição e dificultado o
processo de afirmação enquanto ator internacional ao vel da política externa. Embora
o argumento não se refira diretamente à questão do MH17, demonstra a dificuldade da
UE em criar uma narrativa que possa ter recetividade não junto da comunidade
ucraniana, mas também dentro da instituição; Ucrânia representa assim “um teste para
a sua narrativa identitária como pacificador regional e defensor de valores universais”
(Miskimmon (2017: 161).
A ideia de que a UE tem tido um papel limitado face ao conflito ucraniano é corroborada
por outros autores. Taras Kuzio, por exemplo, apresenta três fatores no sentido de
comprovar esse argumento: a incapacidade de exercer uma influência assertiva ao nível
das reformas internas na Ucrânia, face à ausência de uma perspetiva de integração do
país na UE; a dificuldade de compreender as motivações das elites ucranianas; e a
dificuldade em compreender as dinâmicas de política externa da Rússia, ao achar que o
alargamento aos países de Leste não teria repercussões (Kuzio, 2017: 116-117).
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As dificuldades sentidas na relação com a Ucrânia advêm, em parte, de uma relação com
vários altos e baixos ao longo das últimas duas décadas. Esta ligação entre as duas partes
é descrita como uma parceria ambígua, fundada num desenho legal e institucional
complexo” (Ferreira-Pereira e Vieira, 2014: 12). Para além dessa dificuldade institucional,
a aproximação da Ucrânia à UE tem sido igualmente afetada por problemas internos,
como a corrupção ou a falta instituições democráticas estáveis. Aliás, “a vontade das
elites em explorar a dependência energética para seu próprio proveito” é vista como um
dos principais motivos para a elevada dependência ucraniana vis-à-vis à Rússia
(Dragneva e Wolczuk, 2016, p.694). Este aspeto faz com que “os obstáculos que a
Ucrânia enfrenta no ‘caminho para a Europa’ sejam formidáveis” (Wolczuk, 2017: 287).
A mesma autora, noutro artigo, destaca a ironia de, “após décadas de marginalização, a
Ucrânia se ter tornado crucial para os debates sobre o futuro da Europa” (Wolczuk, 2016:
70).
Esta relação algo tumultuosa é exacerbada, como se percebe, pelo crescente
afastamento da Rússia em relação à UE, e vice-versa. As relações dentro deste triângulo,
pelo menos até ao início do conflito, são descritas por Vsevolod Samokhvalov (2015:
1372) como “um complexo mais ou menos homogéneo de dinâmicas de soma-zero”. O
autor enumera quatro argumentos fundamentais no desenvolvimento desse processo, e
que importa observar com atenção: em primeiro lugar, cada um dos atores (UE e Rússia)
procura introduzir na Ucrânia práticas políticas coadunáveis com os seus próprios valores
e interesses; em segundo, ao nível económico, cada um dos atores tem procurado abrir
o mercado ucraniano aos seus próprios mercados no sentido de criar uma dinâmica
transnacional; em terceiro, ambos os lados têm procurado atrair a Ucrânia para os seus
projetos de segurança na região, um cenário em que a OTAN aparece também como ator
central; por último, cada um dos dois lados tem tentado introduzir uma ideologia e
perceção da história mais próxima dos seus interesses (Samokhvalov, 2015: 1372-
1373).
Tudo isto leva a crer que a UE tem tido, efetivamente, rias dificuldades em assumir
um papel coerente vis-à-vis à Rússia e à Ucrânia. Para além disso, o papel que
desempenha nem sempre é visto de forma positiva (por outros atores). Na opinião de
Bengtsson e Elgstrom (2011: 129), isto é consequência de uma performance incoerente
e de elementos contraditórios no desenvolvimento - e o resultado atual - da integração
europeia.
As Narrativas Estratégicas em Contexto de Conflito Armado na Ucrânia
Perante o cenário anteriormente descrito, torna-se importante explorar com maior
atenção o conceito de Narrativas Estratégicas. De acordo com Miskimmon, O’Loughlin e
Roselle, estas são representações de uma sequência de eventos e identidades, uma
ferramenta comunicativa através da qual os atores políticos normalmente as elites
tentam atribuir um determinado significado ao passado, presente e futuro no sentido de
alcançar objetivos políticos” (Miskimmon et al., 2013: 5). O foco nestas narrativas
enquanto veículos de transmissão de ideias ou identidades é importante porque permite
“ligar o espaço entre os conceitos de hard e soft power” (Roselle et al., 2014: 75), isto
porque a narrativa de um determinado ator pode, por exemplo, incluir o uso de recursos
militares, pelo que o estudo da comunicação e das narrativas permite estabelecer uma
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ponte entre estes dois conceitos e perceber que nem sempre os limites o facilmente
percetíveis.
Um aspeto importante das Narrativas Estratégicas, sobretudo no contexto do trabalho
aqui desenvolvido, é a sua divisão em três formas distintas: issue narratives; identity
narratives; e system narratives (Miskimmon, 2017: 155). No caso das primeiras, o autor
explica que se referem à forma como uma determinada narrativa se adequa a uma
política, ação ou evento em particular. Identity narratives estão relacionadas com a
identidade que um determinado ator atribui a si mesmo, e que acaba por influenciar a
sua narrativa e forma de atuar no campo internacional. Por último, system narratives
referem-se ao modo como esses mesmos atores encaram o sistema internacional
moderno, o que por sua vez tem influência na forma como as narrativas o criadas e
projetadas.
Alguns autores aplicam o conceito de Narrativas Estratégicas no âmbito de uma análise
da propagação de fake news durante o conflito armado na Ucrânia (Khaldarova e Pantti,
2016). As autoras concluem que as notícias e reportagens fabricadas fazem parte de
uma estratégia pré-estabelecida no sentido de “provocar uma resposta afetiva por parte
do público” (Khaldarova e Pantti, 2016: 899). Isto significa que as narrativas estratégicas
podem, em determinados contextos, assumir um papel desestabilizador, como se tem
verificado em relação à posição da Rússia no conflito com a Ucrânia.
Um dos principais catalisadores desta “anarquia” informativa característica dos conflitos
modernos foi o surgimento de novas ferramentas comunicativas, nomeadamente a social
media. Uma das grandes inovações desta tecnologia foi o facto de “providenciar os
utilizadores com a capacidade de pesquisar informação e partilhar o seu próprio conteúdo
dentro das suas próprias redes” (Zeitzoff, 2017: 1972). Isto acaba por criar um ambiente
mais caótico, em que a informação pode ser reproduzida e partilhada por qualquer pessoa
com acesso a estas ferramentas, aumentando assim a possibilidade de propagação de
fake news algo extremamente comum no contexto do incidente do MH17, como
veremos mais à frente. No caso do conflito entre a ssia e a Ucrânia, isto pode ser visto
como um caso em que a Internet veio aumentar o poder dos atores envolvidos para
produzir desinformação (Mejias e Vokuev, 2017: 1027).
Este novo ambiente comunicativo é muitas vezes descrito como o regime da pós-
verdade, isto é, um mundo em que os factos são menos importantes para moldar a
opinião pública do que os apelos às emoções e crenças pessoais. Este aspeto ganha uma
importância crescente se tivermos em conta que a identidade das populações é um fator
central na perceção de determinadas narrativas. No caso da Ucrânia, por exemplo,
Joanna Szostek (2018: 129) refere que “não deve ser surpreendente que as pessoas
negoceiem o significado das notícias com referência aos seus valores e experiências”.
Esta ideia está presente noutro artigo da mesma autora:
“A state may spend any amount of money on disseminating
messages about itself and the world, but the results will ultimately
still hinge on factors that are largely beyond its control including
the attributes of (multiple, diverse) receiving audiences and the
discursive context.” (Szostek, 2017: 380).
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Se as narrativas são produzidas por atores de forma a atingir determinados objetivos,
essas mesmas narrativas estão suscetíveis a manipulação por parte dos atores
envolvidos. Nesse sentido, é importante enquadrar o conceito de disinformation, ou
desinformação. Este pode ser entendido como “mentiras intencionais difundidas como
notícias ou formatos de documentários simulados para atingir objetivos políticos”
(Bennett e Livingston, 2018: 124). A facilidade com que este tipo de informações, mal-
intencionadas, circulam entre os vários meios de comunicação, faz com que seja cada
vez mais difícil distinguir a informação verdadeira daquela que pretende apenas mentir
ou enganar.
Alguns autores colocam a responsabilidade deste processo no fortalecimento das redes
sociais como veículo de comunicação (Hannan, 2018). Isto faz com que seja fundamental
analisar a evolução deste procedimento nas redes sociais, onde a difusão de conteúdos
noticiosos falsos (fake news) é consideravelmente mais fácil e eficaz.
No caso da Ucrânia e do conflito que se desenvolveu a partir de 2014, um dos argumentos
existentes é de que “a utilização da social media enfraqueceu o poder da sociedade civil
ao permitir a difusão galopante da desinformação” (Mejias e Vokuev, 2017: 1028).
Associado ao que se considera ser uma “quebra de confiança nas instituições
democráticas de imprensa e política” (Bennett e Livingston, 2018: 127), a enorme
quantidade de fontes de informação no panorama comunicativo atual faz com que a
desinformação seja uma ferramenta cada vez mais viável. Olhemos para as palavras de
Bennett e Livingston para uma ideia deste quadro:
“Compared to the mass media era, the current age displays a
kaleidoscopic mediascape of television networks, newspapers and
magazines (both online and print), YouTube, WikiLeak, and LiveLeak
content, Astroturf think tanks, radical websites spreading
disinformation using journalistic formats, Twitter and Facebook
among other social media, troll factories, bots, and 4chan discussion
threads, among others.” (Bennett e Livingston, 2018: 129)
Isto ajuda a criar um ambiente informativo mais caótico, uma espécie de “velho-Oeste
da comunicação” (Hannan, 2018: 11). Por sua vez, esse fator aumenta a possibilidade
de ocorrerem “guerras de informação”, como se tem verificado na Ucrânia, onde posições
distintas procuram diluir a importância da narrativa do adversário. Num dos estudos que
desenvolveu junto da população ucraniana, Joanna Szostek demonstra como a maioria
das pessoas que participaram no mesmo olhavam para os meios de comunicação em
geral com um elevado nível de desconfiança (Szostek, 2018: 124).
Este tipo de métodos bridos de combate (utilizando não apenas meios militares
tradicionais, mas também sistemas de information warfare) tem sido, de resto, uma
grande preocupação para a UE, sobretudo perante a atuação recente da ssia em
termos de ação externa (Wagnsson e Hellman, 2018). Estes autores propõem uma
postura normativa que privilegie o apoio a atores secundários que possam contestar
atitudes que identificam como incorretas, isto sem procurar ridiculizar “o outro”
(Wagnsson e Hellman, 2018: 12). Esta dificuldade, dentro da UE, em encontrar uma
postura adequada perante o que é geralmente entendido como uma escalada em termos
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de hybrid warfare por parte da Rússia, demonstra a importância de aplicar o conceito de
Narrativas Estratégicas. Ao compreender como este processo é montado e propagado,
será no futuro mais fácil encontrar formas de lidar com o mesmo.
Por outro lado, a literatura existente sobre esta temática tem-se focado, como referido
anteriormente, no impacto das narrativas russas durante o conflito armado na Ucrânia
(Khaldarova e Pantii, 2016; Mejias e Vokuev, 2017; Szostek, 2017; Szostek, 2018). Uma
das lacunas que este artigo pretende preencher é precisamente explicar o papel da UE
nesse processo, e perceber de que forma a narrativa europeia foi evoluindo ao longo dos
últimos anos.
O MH-17 e o Choque de Narrativas
A queda do avião MH17 em julho de 2014 representou um momento crucial no que diz
respeito à evolução das narrativas dos atores envolvidos em relação ao conflito na
Ucrânia. Por um lado, a UE teve a oportunidade de reforçar o seu papel enquanto ator
relevante no terreno, já que dois dos seus membros (Holanda e Bélgica) foram afetados
diretamente, e tem sido envolvidos na Joint Investigation Team (JIT)
2
, equipa
responsável por analisar o caso do MH17. Por outro lado, a ssia tem procurado utilizar
o incidente como prova de que o Ocidente continua a afastar o país do centro das
decisões, em particular devido à recusa da participação russa na JIT (vf Tabela 1).
Contudo, a postura assumida pela Rússia não foi orientada para cooperação; ao invés
disto, criou-se um contexto em que a JIT tenha sido constantemente confrontada com
novas versões dos acontecimentos que levaram à tragédia MH17. Nesta secção,
procuramos analisar alguns pontos de viragem importantes no desenvolvimento do
processo relacionado com o MH17.
No dia 18 de julho de 2014, um dia após a queda do avião MH17, autoridades ucranianas
revelaram várias gravações com conversas entre separatistas ucranianos e oficiais
militares russos sobre o acidente (BBC, 2014). Embora não fosse possível confirmar a
veracidade das mesmas, as suspeitas levantadas desde a primeira hora tinham como
ponto central a participação da Rússia na queda da aeronave. Esta situação provocou
uma rápida reação por parte do governo russo, que desde logo assumiu uma postura
acusatória em relação ao papel da Ucrânia no caso. Numa declaração oficial feita no
mesmo dia, o Ministério de Defesa Russo assegurava que os sistemas de defesa aérea
russos não estariam a operar naquela área no dia do acidente, insinuando por sua vez
que existiriam na região forças ucranianas com acesso a unidades de defesa antiaérea
iguais à que teria sido utilizada para abater o avião, o BUK-TELAR (Ministério da Defesa
Russo, 2014).
No dia 21 de julho, o mesmo Ministério realizava uma conferência de imprensa onde
acusava diretamente a Ucrânia pelo desastre, nomeadamente através de um avião de
combate ucraniano, de modelo Su-25, que teria alegadamente sido avistado junto do
MH17 antes da queda. De acordo com o grupo Bellingcat, todas as hipóteses levantadas
por Moscovo “foram refutadas por ltiplas fontes, por vezes até mesmo pelas provas
providenciadas pelo próprio governo russo” (Toler, 2018). Durante vários meses após o
2
A Joint Investigation Team foi criada após a queda do MH17 em agosto de 2014, com o objetivo de liderar
a investigação criminal do caso. O grupo é composto por forças policiais e judiciais dos Países Baixos,
Ucrânia, Bélgica, Malásia e Austrália.
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desastre, a narrativa russa dos acontecimentos foi alternando, sobretudo, entre estas
duas versões: por um lado, a de que o avião teria sido abatido por um sistema BUK
controlado pelo exército ucraniano; por outro lado, a teoria de que teria sido um caça
ucraniano a provocar a queda do MH17.
em junho de 2015, uma análise da empresa estatal de armamento russa Almaz-Antey
alegava que o míssil 9M38M1, utilizado para abater o MH17, não era utilizado pelas forças
russas desde 1999 (Russia Today, 2015). Esta informação surge em linha com a teoria
de que o ssil teria sido operado por forças ucranianas, sem que militares russos
estivessem de alguma forma envolvidos no processo. Mais uma vez, o grupo de
investigação Bellingcat viria a contestar esta informação, reunindo um conjunto de
imagens que mostravam como as forças militares russas continuariam a utilizar o mesmo
tipo de ssil descrito (Higgins, 2015). Em outubro do mesmo ano, o relatório final do
Dutch Safety Board (DSB)
3
concluía que o MH17 teria mesmo sido abatido por um
sistema BUK fabricado na ssia, ainda que não apresentasse conclusões definitivas
sobre quem teria sido o responsável pelo disparo do mesmo (Dutch Safety Board, 2015).
Estes resultados, ainda que não definitivos, voltavam a colocar o governo russo debaixo
de fogo. Mais uma vez, a narrativa de Moscovo era de negação, procurando passar a
mensagem de que o Ocidente estaria a tentar incriminar a Rússia sem provas suficientes
(vf. Tabela 1).
Neste contexto, os anos que se seguiram ao incidente ficaram marcados por uma batalha
narrativa em que os resultados levantados pelo DSB ou pela JIT eram rapidamente
desmentidos por responsáveis russos, que procuravam alimentar várias teorias acerca
da queda do avião, com particular destaque para as duas anteriormente referidas. Em
setembro de 2016, por exemplo, o Ministério de Defesa Russo apresentava imagens de
radar que mostravam a alegada presença de sistemas de defesa aérea ucranianos na
região onde o MH17 tinha caído, mas sem referência à presença de aviões militares
ucranianos perto do MH17, em contradição com o que havia sido dito dois anos antes,
na conferência de imprensa de 21 de julho de 2014 (Higgins, 2016).
Verifica-se, portanto, que a postura da Rússia ao longo de todo o processo tem variado,
demonstrando uma inconsistência grave na sua dimensão de issue narrative
nomeadamente no que diz respeito à sua preocupação com a questão do míssil BUK que
abateu o MH17 e os detalhes que envolveram o seu processo de produção e o transporte
para território ucraniano. Além disto, na dimensão de identity narrative, podemos
enquadrar a postura russa, no contexto da Role Theory, como um ego state sobretudo
no contexto da sua posição contestatória em relação ao trabalho do JIT, atribuição da
responsabilidade à Ucrânia, e a crítica da UE bem como do Ocidente pelo apoio
incondicional à Ucrânia (Telegraph 2014, vf Tabela 1).
Ainda que o caso tenha perdido alguma atenção mediática desde então, o relatório da
JIT, de maio de 2018, voltou a colocar as atenções sobre o alegado papel da Rússia.
Olhemos para uma das principais conclusões:
“Today, the JIT has concluded that the BUK-TELAR which was used
to shoot down flight MH17 originated from the 53rd Anti-Aircraft
3
O Dutch Safety Board foi convidado a participar na investigação criminal do caso MH17 pelo National Bureau
of Air Accidents Investigation of Ukraine.
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Missile Brigade of the Russian armed forces. This observation raises
questions, such as the question whether the Brigade itself was
actively involved in the downing of flight MH17 on 17 July 2014. An
important question, which the JIT is still investigating.” (Joint
Investigation Team, 2018)
De acordo com o argumento apresentado, as forças militares russas teriam tido um
envolvimento direto no transporte do sistema utilizado para abater o MH17, uma
narrativa corroborada pela equipa do Bellingcat. A narrativa russa, por outro lado,
continua a ser de negação em relação a qualquer tipo de envolvimento no caso,
reforçando (recentemente) a postura acusatória em relação à Ucrânia. Em Setembro de
2018, o exército russo anunciava que o ssil utilizado para abater o MH17 pertenceria
aos militares ucranianos, tendo saído de território russo em 1986 (Vasilyeva, 2018).
Em 19 de junho de 2019, a JIT anunciou que serão instaurados processos penais nos
Países Baixos contra quatro pessoas responsáveis pela tragédia do voo MH17.
A East Stratcom Task Force e a resposta da UE
A tradicional dificuldade da UE em agir a uma voz em relação à Ucrânia tem sido
aumentada, nos últimos anos, pelas crescentes campanhas de descredibilização e
desinformação, promovidas em larga escala no contexto do conflito por meios de
comunicação de influência russa ou pelo próprio Kremlin. Este aspeto ganha particular
relevância perante a incapacidade da UE em impedir que os seus membros tenham, por
vezes, posições distintas ou até contraditórias entre si (Karolewski e Cross, 2017: 148).
Apesar disso, a queda do MH17 veio impulsionar, inicialmente, uma maior coesão na
postura da UE perante a Rússia, sobretudo através do endurecimento das sanções
impostas a Moscovo e da maior assertividade de alguns atores anteriormente reticentes
em hostilizar a Rússia, com particular destaque para o caso da Alemanha. Esta alteração,
provocada pela morte de cidadãos europeus, permitiu à UE atribuir-se uma narrativa
própria enquanto ator proeminente na região, cujo papel é fundamental para a resolução
do conflito, assumindo o seu papel enquanto role state perante o envolvimento russo. A
narrativa estratégica da UE destaca-se pelo reconhecimento que a ssia esteja
envolvido no conflito armado na Ucrânia, e apelos à Rússia para assumir a sua
reponsabilidade em relação à tragédia do MH17 (e.g., Alta Representante, 2018, 2019).
No entanto, em particular no início, a UE procurou afastar-se da ‘guerra das narrativas’
relativamente ao curso dos acontecimentos que levaram à queda do MH17, sem
acompanhar as alterações na narrativa russa, ou destacar a incoerência grave desta
narrativa, no seu discurso oficial. Eventualmente, isto fez com que a narrativa estratégica
russa mantivesse a sua projeção, algo que foi adicionalmente reforçado pela
surpreendente posição de Mahathir Mohamad, Premier-Ministro de Malásia, que em
Junho 2019, contrariamente à posição do governo anterior, desafiou as conclusões da
JIT ao declarar que esta última não tem provas do envolvimento russo na tragédia. A
postura da EU - que se centrou no apoio ao trabalho da EIC/JIT, considerado “essencial”
e conduzido ‘com independência, profissionalismo e isenção” (Alta Representante, 2018)
- não foi mais longe do que isso, acabando por enfraquecer a dimensão de issue narrative
da narrativa estratégica da UE, criando um desalinhamento com a sua identity narrative
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de um ator investido na promoção e defesa dos Direitos Humanos, valores, e capaz de
contribuir para resolução de um conflito armado, em linha com a atuação de um role
state (vf Tabela 1).
A principal forma que a UE encontrou para combater as campanhas de desinformação
russas foi a criação, em 2015, da East Stratcom Task Force (ESTF), uma equipa com o
objetivo de monitorizar e documentar as narrativas de desinformação que estejam de
alguma forma ligadas ao Estado russo ou a grupos de media ligados ao mesmo a atuar
na região do Leste Europeu. Nas suas conclusões de março de 2015, o Conselho Europeu
reiterava a “necessidade de enfrentar as contínuas campanhas de desinformação russas”
(Conselho Europeu, 2015), o que levou à elaboração de um Plano de Ação, apresentado
em junho desse mesmo ano. A importância que a UE atribui à ESTF revela-se na
apreciação do seu trabalho, que consiste na sistematização de 4500 casos de
desinformação russa pelo Conselho em 2018, e a triplicação do orçamento da ESTF em
2019, em relação ao de 2018 (EEAS 2018). No entanto, a posição da ESTF “não pode ser
considerada a posição oficial da EU” (EEAS 2018).
Através de uma publicação semanal intitulada Disinformation Review e do seu website
EUvsDisinfo, a ESTF procura analisar notícias falsas ou enviesadas a favor da posição
oficial do Kremlin. Ao contrário da UE, a ESTF adota uma postura muito mais crítica em
relação ao papel da Rússia no conflito armado na Ucrânia. No caso do MH17, o trabalho
desenvolvido resultou na publicacão de vários artigos que, na generalidade, apontam a
Rússia como a responsável pelo encobrimento da verdadeira causa e dos culpados pela
queda do avião, com ‘nove ondas’ de desinformação russa direcionada para o caso de
MH17 a serem enunciadas num dos exemplos analisados (EUvsDisinfo 2017). Num outro
atigo referente a esta matéria, a equipa defende que “as autoridades russas têm
conduzido, em conjunto com os media, uma campanha de desinformação que controlam
de forma direta e indireta com o objetivo de encobrir a verdade sobre quem abateu o
voo MH17 da Malaysian Airlines no Leste da Ucrânia” (EUvsDisinfo, 2018). Um artigo
mais recente apresenta uma análise cronológica do que se define como “cinco anos de
campanhas de desinformação pró-Kremlin” (EuvsDisinfo2019). Isto demonstra que a
ESTF a Rússia não como “inimiga” da investigação sobre o MH17, mas também
como um obstáculo aos próprios valores da UE.
Se compararmos esta posição com a de um certo afastamento oficial da EU em relação
a estas campanhas de desinformação, percebemos que existe uma dissonância na
narrativa estratégica da UE, com uma posição mais ponderada e que procura manter
uma linha de diálogo aberta com a Rússia; e outra mais assertiva, que identifica
claramente a Rússia como um ator antagónico posição da ESTF. Esta última apresenta
um melhor alinhamento entre a issue narrative e identity narrative da UE enquanto um
ator normativo na linha de um role state, mas não é aceite como narrativa estratégica
oficial da UE.
Conclusões
O conflito armado que despoletou na Ucrânia em 2014, tem-se revelado um obstáculo
difícil de ultrapassar para a UE em matéria de política externa e projeção internacional.
A tragédia do voo MH17 serve com o exemplo mais claro deste conflito como um palco
de combate, não apenas em termos militares, mas sobretudo ao vel da comunicação
política.
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No caso da Rússia, a resposta ao incidente tem variado entre um foco na issue narrative
nomeadamente no que diz respeito à sua preocupação com a questão do ssil BUK
que abateu o MH17 e os detalhes que envolveram o seu processo de produção e o
transporte para território ucraniano; e numa identity narrative que podemos enquadrar,
no contexto da Role Theory, como um ego state sobretudo no contexto da sua posição
constestatória em relação ao trabalho do JIT. As dimensões narrativas apresentadas
revelam-se pouco consistentes, e desalinhadas entre si, mas acabam por resultar na
criação de um desafio sério para a projeção da própria narrativa da UE, que inicialmente
procurou afastar-se dessa guerra de narrativas.
Após a análise aqui apresentada, verificamos que esse afastamento dificultou a projeção
de uma narrativa mais assertiva, de forma oficial, ocorrendo uma espécie de
“outsourcingda resposta para os Estados-membros e a JIT. A resposta mais clara surge
como resultado do trabalho desenvolvido pela ESTF e pela campanha “EU vs. Desinfo”,
ainda que esta raramente seja incorporada na posição da UE enquanto instituição. A
dissonância que resulta desta posição da EU acaba por enfraquecer a dimensão de issue
narrative, da sua narrativa estratégica, criando ainda incongruência com a sua identity
narrative de um ator investido na promoção e defesa dos Direitos Humanos, valores, e
capaz de contribuir para a paz na região. Podemos concluir que a UE, embora tenha
procurado manter a sua identity narrative enquanto role state na região, tem tido
dificuldade em combater as constantes campanhas de desinformação levadas a cabo pela
Rússia no contexto da queda do MH17. A aspiração de manter a sua identity narrative
acabou por não se traduzir na projeção de uma narrativa consistente e suficientemente
forte por parte da instituição, tendo servido como uma espécie de “campo de testes”
para a projeção de novas campanhas de desinformação.
Tabela 1. As narrativas estratégicas russas e UE em relação ao MH 17: identity, system, issue
Identity/identidade
System/Sistema
Issue/Questão (MH17)
Rússia
- Narrativa de um ego state
- Tentativas ocidentais de
representar a Rússia como
‘culpado’ e ‘inimigo’ –
exclusão da Rússia pelo
Ocidente/UE e não-aceitação
da Rússia enquanto Ator
Global;
- Confrontação entre a
Rússia e o Ocidente na
Europa
- UE/Ocidente deve
aceitar Rússia
enquanto ego state,
para o bem da
estabilidade regional
- Responsabilidade pela
tragédia: ucraniana;
- Crítica do apoio
incondicional ocidental à
Ucrânia, tanto em relação
MH17 como conflito
armado
UE
- Narrativa de um role state
- Ator com aspirações de
encontrar solução para
conflitos regionais
- Governação com base nos
princípios da democracia e
direitos humanos o poder do
exemplo da UE (apesar do
Brexit)
- Princípios da
democracia e Direitos
Humanos
- Pragmatismo aliado
aos princípios
(principled
pragmatism);
- Responsabilidade pela
tragédia: russa, deve ser
assumida pela Rússia
- Envolvimento da Rússia
no conflito armado na
Ucrânia: Rússia enquanto
Problema e não Parceiro
Estratégico
***- STRATCOM: Rússia
enquanto ator responsável
pela desinformação
propositada e que desafia
os valores da UE
Fonte: Tabela elaborada pelos autores, com base no contributo de Miskimmon (2017).
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