OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 10, Nº. 2 (Novembro 2019-Abril 2020)
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https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.2
ARTIGOS
A ONU na resolução de conflitos: o caso de Timor-Leste* - Francisco Proença Garcia, Mónica Dias e
Raquel Duque pp 1-12
Oportunidades de prevenção de conflitos. Lições da Comunidade Económica dos Estados da África
Ocidental (CEDEAO)* - Jara Cuadrado pp 13-34
A influência das alterações climáticas na escalada do conflito comunal entre pastores e agricultores:
o caso da etnia Fulani na Nigéria* - Gustavo Furini pp 35-55
União Europeia, Rússia e o caso do MH17: uma análise das narrativas estratégicas (2014-2019)*
Paulo Ramos e Alena Vieira pp 56-71
Global Security Assemblages: mapping the field* - Jovana Jezdimirovic Ranito pp 72-86
Por que é importante uma perspetiva regional quando analisamos conflitos civis no Médio Oriente e
no Norte de África? - Samer Hamati – pp 87-97
La cooperación de China en África en el área de infraestructura de conectividad física. El caso de la
vía ferroviaria Mombasa-Nairobi - María Noel Dussort e Agustina Marchetti – pp 98-117
A iniciativa dos 3 mares: geopolítica e infraestruturas - Bernardo Calheiros – pp 118-132
Derechos de los migrantes: apuntes a la jurisprudência de la corte interamericana de derechos
humanos - María Teresa Palacios Sanabria pp 133-150
Entre a liberdade de contrato e o princípio da boa-fé: uma visão interna da reforma do direito privado
do Cazaquistão - Kamal Sabirov, Venera Konussova e Marat Alenov pp 151-161
A Observância do Direito Humano à Liberdade contra a Tortura na Atividade Profissional da Polícia
Nacional da Ucrânia (Artigo 3 da Convenção Para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades
Fundamentais) - Andrii Voitsikhovskyi, Vadym Seliukov, Oleksandr Bakumov e Olena Ustymenko
pp 162-175
* Dossiê temático de artigos apresentados na 1ª Conferência Internacional de Resolução de
Conflitos e Estudos da Paz realizada na UAL a 29 e 30 de Novembro de 2018.
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A ONU NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS: O CASO DE TIMOR-LESTE
Francisco Proença Garcia
franciscoproencagarcia@iep.lisboa.ucp.pt
Tenente-Coronel na Reserva. Professor Associado com Agregação, Instituto de Estudos Políticos,
Universidade Católica Portuguesa (Portugal), Professor Convidado da Faculdade de Direito,
Universidade Nova de Lisboa e Instituto Universitário Militar. Foi Oficial de Planeamento do
Quartel-General do Setor Central da PKF/UNTAET, Timor-Leste.
É Diretor da Sociedade de Geografia.
Mónica Dias
moni@iep.lisboa.ucp.pt
Coordenadora do Programa de Doutoramento no Instituto de Estudos Políticos, Universidade
Católica Portuguesa (Portugal). Doutorada em Ciência Política e Relações Internacionais.
Desenvolve investigação em Estudos de Conflitos e da Paz, Estudos da Democracia, Política
Internacional Contemporânea e Direitos Humanos. Leccionou na Universidade de Colónia e no
Curso de Verão da United States Information Agency.
Raquel Duque
raquelsantosduque@gmail.com
Doutorada em Ciência Política e Relações Internacionais: Segurança e Defesa; Mestre em
Segurança Internacional e Terrorismo. Professora auxiliar convidada no Instituto de Estudos
Políticos da Universidade Católica Portuguesa (Portugal) e no Instituto Superior de Ciências
Policiais e Segurança Interna. Investigadora do ICPOL, Centro de Investigação do Instituto
de Estudos Políticos e Centro de Administração e Políticas Públicas, ISCSP.
Resumo
O envolvimento das Nações Unidas em Timor-Leste pode ser dividido em quatro períodos,
entre os quais o período anti-colonial (1955-1974), o período de reação (1975-1982), o
período de atenuação (1983-1998) e o período de empenhamento (a partir de 1999). É sobre
este último que incidirá este texto, com vista a analisar os passos decisivos da ONU enquanto
organização multilateral com mandato de segurança, na resolução do conflito timorense e na
construção da paz daquele território. Esta análise será guiada através das propostas do
documento Uma Agenda para a Paz apresentado em 1992 por Boutros Boutros-Ghali, na
altura Secretário-Geral das Nações Unidas, e as expetativas que criou no campo das
operações de paz. Interessa-nos, particularmente, olhar para a conceção das missões post-
conflict peace building e avaliar em que medida as mais valias (esperadas) destas operações
em relação às convencionais missões peacekeeping se viriam a concretizar ou não. Importa
examinar como decorreram as principais missões realizadas, com especial enfoque nos
diferentes atores e proceder a um balanço crítico com algum distanciamento histórico. Neste
contexto, parece-nos que o caso de Timor-Leste será um bom exemplo para entendermos a
necessidade de uma nova abordagem para a construção da paz, defendida neste Relatório,
mas que à distância de mais do que 25 anos se torna ainda mais evidente. A perceção da paz
como um processo contínuo que envolve toda uma rede de sustentabilidade, e que depende
sobretudo do fomento e do desenvolvimento de competências para a paz (envolvendo
múltiplos e distintos atores em constante desafio de coordenação e negociação) permite então
exigir um maior empenho por parte do Conselho de Segurança, mas também da Assembleia-
Geral na concretização desta difícil tarefa num contexto da nova (des-)ordem mundial.
Palavras-chave
Estudos de Paz, Organizações Internacionais, Operações de Manutenção da Paz, Governação
e Construção do Estado, Timor-Leste
Como citar este artigo
Garcia, Francisco Proença; Dias, Mónica; Duque, Raquel (2019). "A ONU na resolução de
conflitos: o caso de Timor-Leste". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 10,
N.º 2, Novembro 2019-Abril 2020. Consultado [online] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.2.1
Artigo recebido em 29 de Novembro de 2018 e aceite para publicação em 28 de Junho de 2019
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A ONU NA RESOLUÇÃO DE CONFLITOS: O CASO DE TIMOR-LESTE
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Francisco Proença Garcia
Mónica Dias
Raquel Duque
I. A ONU na resolução de conflitos
A última década do século XX testemunhou mudanças assinaláveis no campo da
geopolítica que alteraram a paz artificial entre o bloco de leste e o bloco ocidental para
um globo fragmentado num número crescente de Estados soberanos e de actores não-
estatais com elevado protagonismo transnacional (destacando-se, por exemplo, grupos
económicos e financeiros, organizações não-governamentais com as mais diversas
reivindicações, redes de crime organizado ou grupos terroristas). Estas transformações
foram acompanhadas de avanços tecnológicos de grande impacto em sectores vários
como o das comunicações, da informação, e militar, onde se assistiu à evolução dos
conflitos armados e não-armados, designadamente, na guerra do ciberespaço. A
prevenção de conflitos entre Estados figurou como objectivo central das Nações Unidas.
Porém, a Carta norteadora desta organização não especifica sobre conflitos no interior
dos Estados que, no ambiente pós-Guerra Fria, têm sido predominantes, com situações
complexas como a guerra dos Balcãs ou o genocídio no Ruanda, e têm exigido uma
resposta dos principais atores no espaço internacional.
Perante uma dinâmica internacional acelerada e complexa nas teias de interdependências
que se vão gerando entre os múltiplos actores da nova (e incerta) ordem mundial, o
então Secretário-Geral da ONU, Boutros Boutros-Ghali, compreendeu a necessidade de
dar uma resposta que se ajustasse ao novo contexto, exigindo o compromisso de todos
os Estados para com o objectivo de alcançar a paz. O relatório An Agenda for Peace.
Preventive Diplomacy, Peacemaking and Peace-Keeping (United Nations, 1992)
2
corporiza a visão de Boutros-Ghali e propõe-se transformar os caminhos que conduzem
à paz de uma forma complementar à Carta das Nações Unidas que já previa
peacekeeping operations no Capítulo VI e peace enforcement operations no Capítulo VII.
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Dossiê temático de artigos apresentados na 1ª Conferência Internacional de Resolução de Conflitos e
Estudos da Paz realizada na UAL a 29 e 30 de Novembro de 2018.
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Doravante designado de Uma Agenda para a Paz ou, simplesmente, Agenda.
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A ONU na resolução de conflitos: o caso de Timor-Leste
Francisco Proença Garcia, Mónica Dias, Raquel Duque
3
Volvidos 26 anos, a ONU permanece como o fórum internacional mais abrangente e
reconhecido da prossecução da paz e o legado de Boutros-Ghali perdura no estímulo a
novas concepções de resolução de conflitos. Um elemento que, porventura, sustenta a
durabilidade da Agenda ainda em 2018 consiste na fórmula inovadora da construção da
paz pós-conflito (post-conflict peace building), que anima o desenvolvimento da
investigação ao nível dos estudos para a paz e apresenta resultados efectivos no terreno.
Por um lado, este documento veio declarar uma premissa crucial para qualquer debate
sobre a paz no novo sistema internacional, a de que os meios tradicionais de acabar as
guerras seriam desadequados às configurações dos conflitos modernos. Desta forma, a
Agenda para a Paz procura estabelecer um ponto de partida sólido para a conservação
da paz e, além disso, introduz um novo paradigma de paz: a paz enquanto missão que
não pode ser feita, mas antes desenvolvida, através do empenho de todos aqueles que
foram afectados pelo conflito, ou seja, num compromisso alargado a toda a sociedade.
Na esteira de Immanuel Kant, a uma pactum pacis sobrepõe-se uma, mais complexa,
foedus pacificum (1795) e, assim, a solução de paz preconizada pela Agenda ultrapassa
a mera trégua política e avança para a inclusão i) da reforma das instituições políticas,
ii) da segurança, iii) da reconstrução de infra-estruturas, bem como das capacidades
económicas, sociais e culturais que empoderam as pessoas, estimulam a sociedade civil,
fomentam a cooperação no seio da comunidade e na região e eliminam as causas de
pobreza extrema, medo, opressão, ódio e ressentimento. Por outro lado, a Agenda para
a Paz actuou como um alarme que soou nas instâncias mais elevadas da própria ONU,
em concreto, o Conselho de Segurança e a Assembleia-Geral, para demonstrar que as
Missões de Paz da ONU convencionais mais positivas em conflitos inter-Estados do que
intra-Estados (Branco, 2004: 108-109) não conseguirão responder às novas ameaças
à paz e terão de se ajustar aos conflitos contemporâneos.
Aqui temos obviamente de assinalar que a noção de conflitualidade se transformou de
forma decisiva colocando novos desafios a quem procura o apaziguamento das tensões.
Emergiram zonas de conflito violento em regiões fronteiriças e a um nível intra-estadual
ou sub-estadual, criando verdadeiros “enclaves” de guerra (urbana ou regional) em
espaços de paz (Manwaring, 2005). Mas é sobretudo em regiões onde o Estado não
(ou ainda não) detém o monopólio do uso legítimo da força, nem é capaz de cumprir as
mais básicas tarefas de governação que este tipo de conflito eclode. Estas regiões
encontram-se, frequentemente, numa fase de reconstrução após longos períodos de
guerra em que os esforços de (re-)conciliação ainda não superaram a cultura de
violência, mas também durante processos de independência após a queda de regimes
ditatoriais em que a transferência de poder ainda não foi nem consolidada, nem regulada.
Contudo é importante referir que estas “novas guerras
(Creveld, 1991; Duffield, 2001;
Kaldor, 2001; Kalyvas et al., 2008; nkler, 2003) também podem ser perspectivadas
como regresso a velhas formas de conflito violento que marcaram as sociedades durante
milhares de anos e que, na verdade, muito recentemente se alteraram, em grande
medida a partir de uma cultura de guerra que o “euromundoimpôs (Keegan, 1993;
Münkler, 2003).
3
Em todo o caso, a ideia de um post-conflict peace building reflete esse “contexto novo”
(Boutros-Ghali, 1992) no sentido em que aponta para toda uma abordagem diferente na
construção da paz, que requer um maior envolvimento não durante o conflito, mas
também nos momentos que precedem e sucedem a escalada da violência, integrando,
3
A discussão do conceito “novas guerras”, por muito interessante que seja, ultrapassa o âmbito deste artigo.
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nesta fase posterior ao conflito, a reconstrução de áreas essenciais com vista a uma paz
sustentável e apropriada por toda a sociedade.
Podemos observar duas orientações desta viragem de paradigma, uma respeitante ao
conceito de paz, outra concernente à prática das missões de paz; ambas interligadas e
preocupadas com a paz como a missão possível que pode ser atingida numa estratégia
de médio-prazo. De acordo com a primeira orientação, na declaração de Boutros-Ghali,
a paz é entendida como (um) valor composto ou abrangente. Baseando-se em estudos
inovadores e críticos dos estudos da paz, desenvolvidos por especialistas como Johan
Galtung (1969) ou Dieter Senghaas (1971), a paz não é concebida apenas como ausência
de violência directa ou de guerra, mas sobretudo como a possibilidade de vida sem
violência indirecta (como, por exemplo, repressão política e social) e com plena
participação em instituições livres e justas (incluindo formas de educação) que geram
capacidades civis para a tolerância, a construção de consenso através de debate
pluralista e competitivo e de resolução de conflitos. A proposta de gestão de conflitos de
Senghaas denominada de Zivilisierung que é hoje uma pedra basilar nos estudos para
paz parece-nos aqui particularmente relevante, pois implica uma visão integrada do
apaziguamento que se reflete no convívio político e social das comunidades a reconstruir
no pós-guerra. Valerá a pena recordar, sinteticamente, o modelo do “hexágono
civilizacional” (Senghaas, 1971) elaborado por este autor no âmbito das suas ideias sobre
a consolidação da paz. Assim, a paz é essencialmente observada como um projecto de
civilização que corresponde a um percurso de apaziguamento individual e colectivo
4
. No
debate teórico, o hexágono civilizacional representa, de modo figurativo, a
interdependência entre seis factores considerados essenciais à possibilidade da paz. O
primeiro factor seria o monopólio da violência. este monopólio legítimo (isto é:
segundo leis precisas) da violência por parte do Estado, que exigiria o desarmamento da
população e a proibição geral de grupos armados o dependentes do Estado, poderia
garantir a gestão discursiva de conflitos no espaço público, eliminando gradualmente a
utilização da força como padrão de combate e estimulando formas argumentativas na
defesa de interesses particulares em confronto. O segundo factor realçaria o imperativo
do Estado de Direito, na medida em que dizer que o monopólio da violência por parte do
Estado pressupõe mecanismos transparentes, regulados e controlados não seria
suficiente. Para Senghaas, toda a arquitectura política de um Estado empenhado na paz
fundamenta-se no respeito por uma Constituição que consagra a divisão do poder, a
igualdade perante a lei e todos os outros princípios que caracterizam o que entendemos
hoje por um Estado de Direito Democrático. O terceiro factor chama a atenção para o
controlo das paixões. Numa sociedade aberta, a moderação é, enquanto domesticação
dos impulsos, uma forma de gerir conflitos de modo pacífico e de substituir a violência
pela tolerância. A paz social e política pressupõe, assim, competências individuais de
autocontrolo e de moderação das paixões. A participação democrática surge como quarto
factor, evidenciando-se não a importância da participação política, mas ainda toda
uma aprendizagem das regras democráticas que exigem capacidade de compromisso, de
cooperação e de responsabilidade. No contexto das sociedades modernas fortemente
marcadas por permanentes mudanças e re-adaptações, a colaboração crítica e activa é
tanto mais importante. A justiça social constitui o quinto factor do modelo de Senghaas.
A partir de vários exemplos de Estados nos quais surgiram graves conflitos violentos, o
4
Note-se porém, desde já, que na aplicação do conceito de “civilização” aos estudos para a paz, Senghaas
foi muito influenciado pelo conceito do “processo civilizacional” cunhado por Norbert Elias (1994).
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A ONU na resolução de conflitos: o caso de Timor-Leste
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autor destaca a importância da justiça social entendida como fair-play político que
garante a igualdade de oportunidades e a solidariedade, permitindo a confiança e a
esperança no Estado valores estes que dão origem à disponibilidade de cooperação e
de gestão de conflitos pacífica. Por fim, esboça-se a gestão de conflitos construtiva como
sexto factor. Na sequência dos factores anteriores, a capacidade de optar por formas não
violentas para confrontar e trabalhar conflitos, Senghaas aponta para toda uma cultura
de regulação pacífica de conflitos que é um resultado de condições ou de
aprendizagens anteriores. Pressupõe hábitos e bons exemplos, como provavelmente
ainda certas características consideradas como “virtudes” (a tolerância, a moderação, a
empatia, a capacidade de compromisso, o respeito pelas regras sociais e políticas, a
disponibilidade de confiar, etc.) que facilitam um convívio pacífico em sociedades plurais
e multiculturais. Este último factor aponta em si para a sinergia de todos os factores
que constituem o “hexágono” que permitiria, assim, uma cultura da paz enquanto acto
de moralização, humanização ou “civilização”.
Regressando à segunda orientação relativa à viragem de paradigma, referida
anteriormente e relacionada com a prática das missões de paz, cumpre dizer que a
construção da paz pós-conflito deve aumentar e aprofundar a manutenção da paz
tradicional no terreno. Não é concebida como substituta ou upgrade para missões de
manutenção da paz, mas como um complemento natural que pode fornecer um alcance
mais forte para o trabalho cada vez mais complexo (e em rede) da ONU.
Graças ao impacto de Uma Agenda para a Paz, que antecipou muitas tendências na arena
política internacional, as missões de manutenção da paz expandiram-se muito desde
1992. Uma análise simples do mero e da natureza das missões, mas também dos
recursos envolvidos (incluindo financiamento, materiais, estruturas e mão de obra)
constata a sua força crescente. Isto é particularmente verdadeiro quando consideramos
a capacidade da ONU de envolver organizações não-governamentais em operações de
paz e de promover a cooperação de militares, paramilitares e civis no terreno. Para uma
visão de conjunto deste trabalho destacamos o universo de missões de peacekeeping da
ONU reveladoras do esforço desenvolvido pela paz: um total de 71 missões, com 14
missões activas em todo o mundo
5
.
Não deixa ainda de ser importante mencionar a disponibilidade da ONU em integrar
diferentes conceitos da construção da paz que derivam não apenas de uma ideia geral
e universal da paz (que está em consonância com a cultura ocidental) e que se pretende
impor “de cima para baixo” mas que partem precisamente das tradições locais das
comunidades por reconstruir (“de baixo para cima”), como explicam, por exemplo, os
trabalhos de John Paul Lederach e Janice Jenner (2002) ou de Wolfgang Dietrich (2005).
Os autores entendem a paz como conceito plural, de variadíssimas materializações, mas
que integra sempre uma forte noção de participação cívica da população afectada. Neste
sentido alertam também para a necessidade de cada operação de paz ter de ser diferente,
dependendo das condições anteriores e posteriores do conflito, da intensidade do conflito
e das partes envolvidas, dos recursos remanescentes e infra-estruturas no final da
escalada da violência e da cultura e organização política anterior.
5
No momento em que este artigo é escrito, as missões no terreno são as seguintes: Haiti (MINUJUSTH), Mali
(MINUSMA), Golã (UNDOF), Abyei (UNISFA), Índia e Paquistão (UNMOGIP), Saara Ocidental (MINURSO),
República Democrática do Congo (MONUSCO), Chipre (UNFICYP), Kosovo (UNMIK), Médio Oriente (UNTSO),
República Centro Africana (MINUSCA), Darfur (UNAMID), Líbano (UNIFIL) e Sudão do Sul (UNMISS).
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Todas estas acepções alimentaram (e vieram depois alimentar-se) da Agenda para a Paz
de Boutros-Ghali. Do ponto de vista conceptual, este documento que aqui debatemos
abriu portas para uma nova reflexão sobre a paz, e formas e instrumentos para
implementá-la no terreno. Mencionamos aqui, a este propósito, a comprehensive
approach desenvolvida nas operações da NATO ou, anteriormente, as inovações
introduzidas pela resolução 1325 do Conselho de Segurança sobre Mulheres, Paz e
Segurança, de 31 de Outubro de 2000.
Se seguirmos as ideias de Michael Doyle e de Nicholas Sambanis na sua tentativa de
avaliar as operações de paz das Nações Unidas em 2006 e também suas preocupações
críticas, mas ainda assim construtivas , as conclusões gerais são encorajadoras (Doyle
e Sambanis, 2006). Assim, apesar das suas muitas imperfeições, os resultados positivos
alcançados num período de apenas uma geração, chegando a milhões de vidas e povos,
revelam estas operações como um reduto mundial de esperança. Nesse sentido,
podemos concluir que, mais do que responder ao pedido do Conselho de Segurança de
fazer recomendações para fortalecer a construção da paz e a manutenção da paz na era
pós-Guerra Fria, Uma Agenda para a Paz revitalizou todo o trabalho de paz da ONU,
trazendo as operações de paz para um vel mais abrangente e com grande impacto e
retorno a longo-prazo.
Na senda da Agenda outros documentos e ideias sucederam e contribuíram para a
atualização da ação da ONU em territórios em conflito e das suas missões,
designadamente o Brahimi Report (2000), a Capstone Doctrine (2008), ou o processo
New Horizon (2009).
Num esforço de realizar um balanço das, então, seis décadas de missões e de apresentar
orientações escritas para a ação em crises complexas, foi publicado, em 2008, o
documento United Nation Peacekeeping Operations Principles and Guidelines, também
denominado como Doutrina Capstone
6
. Em 100 páginas, ficam patenteados os maiores
desafios para as operações da ONU, assim como a relevância do diálogo continuado entre
as várias partes envolvidas nos cenários das missões para ajustamentos sempre que as
situações exigirem. Assim, a Doutrina Capstone sistematiza elementos, aparentemente
óbvios, como o quadro normativo no qual as operações de peacekeeping da ONU se
sustentam, ao mesmo tempo que expõe elementos de ordem estratégica e operacional,
de que são exemplo as fases de destacamento e implantação, ou os períodos de
passagem de testemunho e de retirada.
O processo New Horizon, iniciado em 2009 e com o objetivo de desenvolver uma agenda
com perspetivas de futuro para as operações de manutenção de paz da ONU, baseadas
em parcerias e em diálogo alargado, beneficiou do lançamento de um documento interno,
intitulado A New Partnership Agenda: Charting a New Horizon for UN Peacekeeping
7
, que
foi partilhado com os Estados-membros e outros parceiros.
Será ainda relevante, neste conjunto de iniciativas orientadoras e conducentes missões
de paz o mais eficazes possível, referir o Painel Independente de Alto-Nível sobre
Operações de Paz da ONU, criado em Outubro de 2014 durante o mandato de Ban Ki-
moon e composto por 16 individualidades (entre as quais José Ramos Horta, de Timor-
6
United Nations (2008). United Nation Peacekeeping Operations Principles and Guidelines, Department of
Peacekeeping Operations and Department of Field Support, New York.
7
United Nations (2009). A New Partnership Agenda: Charting a New Horizon for UN Peacekeeping,
Department of Peacekeeping Operations and Department of Field Support, New York.
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Leste, que presidiu aos trabalhos). Este Painel teve como objectivo realizar não uma
avaliação abrangente das operações de paz, mas também uma aferição das necessidades
futuras e do papel da ONU, acompanhando as alterações e evoluções dos próprios
conflitos. O relatório
8
ficou concluído em Junho de 2015 e foi entregue tanto à
Assembleia-Geral como ao Conselho de Segurança, que têm tentado assimilar e
acomodar as 166 recomendações a abarcar nove áreas estratégicas.
Com o objectivo de demonstrar o contributo das Missões da ONU e os passos para se
efectivar um processo de construção da paz, que estava implícito nas peacekeeping
operations (agora alargadas) gostaríamos de apresentar o estudo de caso de Timor-
Leste.
II. O caso de Timor-Leste
A ONU tem um envolvimento de longas décadas em Timor-Leste, todavia, cingiremos a
análise deste trabalho ao período posterior a 1999 e abarcaremos um excurso inicial
sobre a Indonésia, uma vez que a situação interna neste país teve repercussões
significativas em Timor-Leste. Convém, por isso, lembrar a crise financeira asiática de
1997 que afectou, precisamente e entre outros países, a Indonésia. Esta crise foi de tal
modo séria que implicou a intervenção do Fundo Monetário Internacional com um pacote
de ajuda no valor de 11.4 mil milhões de dólares para um período de três anos
(International Monetary Fund, 2000). A situação interna agudizou-se e o General Shuarto
saiu de cena depois de três décadas no poder, dando lugar, em 1998, a um novo
Presidente, o General Habibie, que inicia um conjunto de reformas políticas, incluindo
uma inflexão relativamente a Timor. Na verdade, em 5 de Maio de 1999 é celebrado um
acordo em Nova Iorque entre Portugal e a Indonésia com vista i) à realização de uma
consulta popular ao povo timorense sob a égide da ONU, bem como ii) à
responsabilização da Indonésia pela paz e segurança em Timor-Leste, de modo a garantir
uma consulta em ambiente pacífico e livre de pressões ou intimidações. Contudo, e antes
mesmo da realização da consulta popular registaram-se episódios de grande violência,
que tinham o nome de código de Operasi Sapu Jagad, conduzidos deliberadamente por
milícias que integravam timorenses e militares indonésios das TNI (Tentarra Nasional
Indonesia/Forças Armadas da Indonésia).
A ONU manteve-se atenta ao desenrolar dos acontecimentos e com vista a que essa
consulta decorresse sem interferências o Conselho de Segurança aprova a constituição
de uma missão para organizar e conduzir o processo de consulta à população em Timor-
Leste, a UNAMET (United Nations Mission in East Timor) através da Resolução 1246, de
11 de Junho de 1999 e com um mandato de Junho a Outubro de 1999. A realização da
consulta popular ocorreu a 30 de Agosto desse mesmo ano e teve resultados expressivos
favoráveis à independência (78,5% dos votos), que surpreenderam o poder indonésio
(que considerava que a opção de uma autonomia especial no seio da Indonésia seria a
mais votada) e que originaram uma onda de violência sem precedentes por parte das
milícias integracionistas.
Como a UNAMET consistia numa missão política e as ocorrências de violência se
multiplicavam, o Conselho de Segurança, através da Resolução 1264 de 15 de Setembro
8
United Nations (2015). Report of the High-Level Independent Panel on United Nations Peace Operations,
UN Doc. A/70/95S/2015/446, 17 June, 2015.
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de 1999, constituiu uma força internacional, a INTERFET (International Force in East
Timor), para restaurar a lei e a ordem no país, proteger e apoiar a UNAMET e facilitar a
assistência humanitária. No dia 20 de Setembro, a INTERFET, sob comando australiano
e com o consentimento indonésio, inicia o seu mandado em Díli, dispondo de um efectivo
militar de aproximadamente 7.500 homens provenientes de 12 países.
Um passo importante na construção deste novo país foi dado pela Indonésia quando
revogou a anexação da 27ª Província, Timor-Leste, a 19 de Outubro de 1999. Poucos
dias depois, a 25 de Outubro, o Conselho de Segurança estabelece, pela Resolução 1272,
a UNTAET (United Nations Transitional Administration in East Timor), enquanto operação
multidimensional de peacekeeping, cujo mandato compreendeu o período de Outubro de
1999 a Maio de 2002. O objectivo central das operações de peacekeeping residia na
criação de condições para a estabilidade de um país, de tal forma que fosse possível,
num ambiente de paz, apostar na capacitação de recursos humanos e no
desenvolvimento institucional, contribuindo assim para a legitimidade do (novo) Estado.
Na verdade, a UNTAET constituía-se como uma figura actuante em três frentes: uma
administração transitória da ONU do território timorense, detendo poderes para exercer
todas as funções legislativas e executivas, incluindo a administração da justiça e ordem
pública com as forças policiais; funções de segurança e manutenção da ordem de
componente militar; e a coordenação da assistência humanitária.
Timor-Leste tornou-se um país independente em 20 de Maio de 2002, momento em que
a UNTAET foi substituída pela UNMISET (The United Nations Mission of Support in East
Timor) através da Resolução 1410, de 17 de Maio de 2002. Esta nova missão, também
de peacekeeping, tinha um mandato inicial de um ano e estava investida da garantia da
segurança e da estabilidade de Timor-Leste, nomeadamente, na assistência às estruturas
administrativas críticas para a viabilidade e a estabilidade políticas do país; no apoio à
segurança pública e ao desenvolvimento da Polícia; e na manutenção da segurança
externa de Timor. A UNMISET viu o seu mandato renovado até 20 de Maio de 2005 como
forma de assegurar e consolidar os resultados alcançados pela UNTAET e até as
autoridades timorenses assumirem as responsabilidades de forma autónoma.
Em Maio de 2005, com o fim de mandato da UNMISET foi criada uma missão política,
designada de United Nations Office in Timor-Leste (UNOTIL), para prestar auxílio no
desenvolvimento das instituições básicas do Estado timorense, incluindo as forças
policiais, e dar formação em governação democrática e direitos humanos. Com uma
duração prevista de um ano (até Maio de 2006), a delegação da UNOTIL esteve no
terreno até Agosto desse ano devido ao agravamento da situação política, humanitária e
de segurança. A situação agudizou-se ao ponto de, a 11 de Junho de 2006, as mais
elevadas autoridades políticas do país, designadamente, Presidente da República,
Presidente do Parlamento e Primeiro-Ministro, terem dirigido uma carta ao Secretário-
Geral da ONU a solicitar que este propusesse ao Conselho de Segurança a criação de
uma força policial das Nações Unidas em Timor-Leste para a manutenção da ordem até
à reorganização da polícia nacional. O Secretário-Geral recomendou, efectivamente, uma
missão multidimensional e integrada da ONU, com o objectivo de apoiar o governo
timorense em diversas vertentes, concretamente na reconciliação nacional, nos
processos eleitorais para presidente e para o parlamento, na segurança e na capacitação
institucional na monitorização, promoção e protecção dos direitos humanos.
A última missão de peacekeeping das Nações Unidas em Timor-Leste, a UNMIT (United
Nations Integrated Mission in Timor-Leste), foi estabelecida pela Resolução 1704 de 25
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de Agosto de 2006 e viu o seu mandato prolongado até 31 de Dezembro de 2012. Neste
período importava consolidar o que fora alcançado e zelar pela estabilidade, governação
democrática e diálogo político entre os vários parceiros da sociedade timorense para um
processo de reconciliação nacional e uma sólida coesão nacional. Esta missão revestiu-
se de um aspecto inovador que consistiu na elaboração de um plano conjunto entre
Governo e UNMIT (Joint Transition Plan) que delineava 129 actividades que
correspondiam às prioridades e aos objectivos para o período de transição entre
Setembro de 2011 e o fim do mandato da UNMIT, em Dezembro de 2012.
No quadro 1 podemos ver sintetizadas as missões referidas nos parágrafos acima, bem
como os seus mandatos.
Quadro 1. As Missões da ONU em Timor-Leste
Mandato
A resolução 1246 de 11 de Junho de 1999 do Conselho de Segurança estabeleceu
a UNAMET até 31 de Agosto de 1999 com o objectivo de organizar e conduzir a
consulta popular agendada para 8 de Agosto do mesmo ano.
A resolução 1257 alargou a missão até 30 de Setembro de 1999.
A resolução 1271 de 25 de Outubro de 1999 do Conselho de Segurança
estabeleceu a UNTAET com a responsabilidade de administrar Timor-Leste, tendo
para tal autoridade executiva e legislativa, incluindo a administração da justiça.
A UNTAET teve a sua vigência entre 25 de Outubro de 1999 e 20 de Maio de 2002.
O total de recursos humanos somou: 9.150 militares; 1.640 polícias; e mais de
2.000 elementos civis (internacionais e locais).
Registou-se um total de 17 vítimas mortais de entre os recursos humanos (15
militares, um polícia e um observador militar)
A resolução 1410 de 17 de Maio de 2002 do Conselho de Segurança estabeleceu
a UNMISET com a missão de garantir assistência em áreas administrativas vitais
à viabilidade e estabilidade políticas de Timor-Leste, bem como segurança.
O mandato da UNMISET vigorou de 20 de Maio de 2002 a 20 de Maio de 2005.
Inicialmente a dimensão dos recursos humanos previa cerca de 5.000 militares;
1.250 polícias; cerca de 1800 civis (entre pessoal internacional, local e
voluntários).
Em termos de vítimas mortais destes recursos humanos registaram-se 21
baixas.
A resolução 1599 de 28 de Abril de 2005 do Conselho de Segurança estabelece
a UNOTIL com um mandato de um ano (até 20 de Maio de 2006). Consistiu
numa missão política especial de acompanhamento e apoio ao desenvolvimento
de instituições estatais nas áreas da capacitação policial, patrulhamento
fronteiriço, aconselhamento militar, direitos humanos e governação
democrática.
A resolução 1704 de 25 de Agosto de 2006 do Conselho de Segurança
estabeleceu a UNMIT com um mandato inicial de seis meses, renovável por
períodos iguais, com uma esfera de actuação ao vel do apoio ao governo e
instituições relevantes para a consolidação da estabilidade, reforço da cultura
de governação democrática e a facilitação do diálogo político entre os
intervenientes timorenses nos seu esforço de reconciliação nacional e de coesão
social, além de apoiar nos processos eleitorais de 2007 (presidencial e
parlamentar).
A força autorizada compreendia 1.608 polícias, 34 militares oficiais de ligação e
civis. Desde 2006 assumiram a missão 5.119 polícias, 262 militares e cerca de
3.000 civis e voluntários.
Registou-se um total de 17 vítimas mortais (9 polícias, quatro civis locais e
quatro civis internacionais).
Fonte: elaboração dos autores com dados das resoluções consultadas.
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Os esforços empreendidos pela ONU e que ficaram aqui sintetizados constitiram em nosso
entender um fator importantíssimo não para a pacificação de Timor, mas também
para o seu desenvolvimento e a sua gradual, mas ainda assim crescente, prosperidade.
Diferentes relatórios e rankings internacionais comprovam a melhoria das condições de
vida, bem como um aumento da liberdade. Global Peace Index situa Timor em 2018 no
lugar 53 (de 163)
9
. Segundo a avaliação feita pela Freedom House relativamente ao
“estado de liberdade” em cada país, Timor melhorou no passado ano a sua posição de
“parcialmente livre” para “livre”, o que nos parece uma evolução muito positiva.
Conclusão
A presença da ONU em Timor-Leste revestiu-se de um conjunto de elementos
imprescindíveis para a condução do país a um ambiente de paz, nomeadamente
empenho, compromisso e acompanhamento das situações. Este pequeno país que se
afirmava na comunidade internacional foi uma prova de sucesso para as Nações Unidas
que contribuíram substancialmente para a reabilitação de infra-estrutura públicas, a
restauração da harmonia social, das estruturas administrativas e comunitárias, bem
como para o estabelecimento de uma governação democrática. Acresce que o caso
timorense integra praticamente todas as tipologias de operações da Agenda para a Paz,
na medida em que se inicia a intervenção com uma peace-enforcement, ao abrigo do
capítulo VII, com a INTERFET; segue-se uma operação de peacekeeping/peacebuilding
10
multidimensional; e culmina-se na apropriação por parte do próprio país das
competências para o seu desenvolvimento normal e expectável. Com efeito, registou-se
a transformação do conflito, pico das operações de paz, num produto estruturado de
várias intervenções levadas a cabo por actores oficiais e não oficiais que trabalharam a
todos os níveis da sociedade e com a sociedade. Durante as missões das NU, a
componente militar integrada contribuiu decisivamente para a estabilidade global e o
ambiente seguro dentro do território, particularmente nas áreas de fronteira. Contudo,
para além da presença imprescindível dos militares, que garantem o ambiente de
segurança, e que é fundamental para o desenvolvimento e o bem-estar das populações,
as operações post-conflict peace building permitiram pensar e encontrar respostas mais
abrangentes (e mais eficazes) para os desafios que os novos conflitos colocam não só a
uma comunidade, mas a toda uma região. Será por isso na capacidade de a ONU se
ajustar às conflitualidades em tranformação num mundo globalizado, e na sua coragem
em continuar e alargar as suas missões, que está a chave para, sempre de novo e dia
após dia, ganhar a paz.
9
Em primeiro lugar está a Islândia e em último a Síria.
10
Peacebuilding, seja no pós-violência, pós-Acordo (compreensive settlement) ou como esforço de
impedimento de reemergir do conflito, depende da capacidade para transformar a situação conflituosa de
uma potencial/actual violência em massa, numa relação pacífica e cooperativa, capaz de promover a
reconciliação e a reconstrução e um desenvolvimento sustentado no tempo. O Peacekeeping é uma
ferramenta de gestão de conflitos, para conter a violência, enquanto peacebuilding são os meios para
estabelecer uma governação democrática viável e inclusiva numa sociedade de pós-conflito, por norma
através de eleições livres e justas, função legislativa e judicial independentes, transparência e administração
responsáveis, acesso a oportunidades políticas e económicas, e partilha equitativa da riqueza.
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Universidade Autónoma de Lisboa
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OPORTUNIDADES DE PREVENÇÃO DE CONFLITOS. LIÇÕES DA COMUNIDADE
ECONÓMICA DOS ESTADOS DA ÁFRICA OCIDENTAL (CEDEAO)
Jara Cuadrado
jaracb.4488@gmail.com
Doutorada em Segurança Internacional pela Universidad Nacional de Educación a Distancia
(UNED). Investigadora Pós-Doc no Instituto Universitario General Gutiérrez Mellado (Espanha). É
investigadora integrada no OBSERVARE, Observatório de Relações Exteriores da Universidade
Autónoma de Lisboa.
Resumo
A prevenção de conflitos tornou-se uma doutrina importante nas políticas de gestão de
conflitos em organizações internacionais e regionais, especialmente desde o final da Guerra
Fria. Houve uma evolução nas últimas três cadas no contexto de paz e segurança que
tornou relevante a prevenção de conflitos. No contexto atual, com António Guterres como
Secretário-Geral das Nações Unidas (ONU), a doutrina de prevenção de conflitos poderia ser
incentivada, uma vez que decidiu que essa deveria ser a prioridade da organização.
A prevenção de conflitos oferece várias vantagens para enfrentar os contextos de crise, pois
trabalha para evitar situações de violência que se encaminham para conflitos armados e para
ajudar a controlar a propagação de ameaças à segurança. Com recurso a medidas
preventivas, as causas estruturais dos conflitos podem ser tratadas da maneira mais durável
e eficiente, pois o objetivo final das ações preventivas é transformar conflitos reais ou
potencialmente violentos em processos não violentos de mudança social e política.
Enquanto a prevenção de conflitos ganhou maior importância, outra tendência foi igualmente
promovida; a regionalização da segurança. Desde meados dos anos 90, tem havido uma
transição nas missões internacionais de manutenção da paz, destinadas a garantir paz e
segurança em todo o mundo centrada nos atores regionais. Esta prática foi particularmente
bem-vinda em África.
Ambas as tendências - prevenção de conflitos e regionalização da segurança - serão objeto
de estudo neste artigo, utilizando como cenário prático a região da África Ocidental. É uma
área geográfica onde se concentram uma série de ameaças transfronteiriças, tornando-a uma
zona de preocupação internacional. Além disso, a experiência em prevenção de conflitos da
organização regional Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO) é
interessante. De facto, a CEDEAO realizou uma atividade significativa em relação à diplomacia
preventiva e mediação em conflitos.
Assim, os objetivos desta investigação são: (1) estudar a evolução da doutrina de prevenção
de conflitos; (2) avaliar a ligação entre políticas de prevenção de conflitos e a regionalização
da segurança; e (3) usar o caso da CEDEAO como exemplo, uma vez que a organização está
na vanguarda das iniciativas de prevenção de conflitos no continente africano.
Palavras-chave
Prevenção de conflitos, diplomacia, regionalização da segurança, África Ocidental, CEDEAO
Como citar este artigo
Cuadrado, Jara (2019). "Oportunidades de prevenção de conflitos. Lições da Comunidade
Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO)". JANUS.NET e-journal of International
Relations, Vol. 10, N.º 2, Novembro 2019-Abril 2020. Consultado [online] em data da última
consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.2.2
Artigo recebido em 29 de Novembro de 2018 e aceite para publicação em 2 de Maio de 2019
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Oportunidades de prevenção de conflitos.
Lições da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (CEDEAO)
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OPORTUNIDADES DE PREVENÇÃO DE CONFLITOS. LIÇÕES DA COMUNIDADE
ECONÓMICA DOS ESTADOS DA ÁFRICA OCIDENTAL (CEDEAO)
1
2
Jara Cuadrado
1. Introdução
A dinâmica dos conflitos armados ocorridos desde a década de noventa forçou o
desenvolvimento de diferentes medidas capazes de enfrentar os desafios que surgem no
cenário internacional. Assim, os avanços na gestão de conflitos respondem às mudanças
na estrutura normativa e conceitual, marcadas pela necessidade de resolver uma série
de contextos cada vez mais complexos.
Nesse sentido, as políticas de prevenção são uma ferramenta indispensável para a gestão
de conflitos armados, pois podem ajudar a controlar a disseminação de ameaças à
segurança. Esse conjunto de medidas atua na prevenção de situações de violência e
insegurança que podem conduzir a um conflito armado, além de transformar as situações
em que existem fatores que ameaçam a segurança das pessoas em processos pacíficos
e estáveis (García Izquierdo, 2002).
Apesar das vantagens oferecidas por esse tipo de medidas, por ser a “opção mais
pragmática e económica” (Nações Unidas, 2015, p.4), não tem recebido muita atenção,
ofuscada por outras medidas que se concentram em ações mais diretas, como as missões
de manutenção da paz. No entanto, essa doutrina poderá suscitar mais interesse no
futuro da ONU, especialmente desde a chegada do novo Secretário-Geral, António
Guterres, em 1 de janeiro de 2017, que propõe um retorno às origens da organização,
fundada com o objetivo de tomar “medidas coletivas eficazes para a prevenção e remoção
de ameaças à paz” (Carta das Nações Unidas, 1945, artigo 1).
Nesse contexto, o artigo procura enfatizar, em primeiro lugar, a necessidade de avaliar
a prevenção como uma das prioridades no campo da segurança e da paz, pois oferece
importantes vantagens para a gestão de situações de violência e conflito. Em segundo
lugar, também procura destacar um aspecto considerado essencial para o avanço das
políticas de prevenção: a promoção da regionalização da segurança. Nos anos 90, com o
fim da Guerra Fria, começaram a surgir teorias sobre segurança regional, pois surgiram
1
A tradução deste artigo foi co-financiada pelo Instituto Camões no âmbito do projeto da Conferência
Internacional de Resolução de Conflitos e Estudos da Paz. Texto traduzido por Carolina Peralta.
2
Dossiê temático de artigos apresentados na Conferência Internacional de Resolução de Conflitos e
Estudos da Paz realizada na UAL a 29 e 30 de Novembro de 2018.
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novos atores no cenário internacional que representavam um “desafio à teoria das
relações internacionais (RI)” que “gira em torno da autonomia de um vel regional de
análise entre o estado e o mundo” (Kelly, 2007, p.197).
Assim, este artigo tenta responder à questão se os atores regionais podem desempenhar
um papel fundamental na prevenção de conflitos nos seus complexos regionais de
segurança (Buzan, Wæver & Wilde, 1998) e a forma como o fazem. Nesse sentido, o
caso da CEDEAO é analisado como sendo uma organização regional com experiência em
prevenção de conflitos.
O artigo está estruturado em quatro seções. Em primeiro lugar, define o conceito de
prevenção de conflitos e examina a sua evolução nas últimas três décadas. Em segundo
lugar, examina o fenómeno da regionalização da segurança, prestando especial atenção
ao continente africano. Em terceiro lugar, analisa o caso da CEDEAO e a sua experiência
na prevenção de conflitos. Finalmente, apresenta algumas das conclusões da
investigação sobre prevenção de conflitos.
2. O (re) aparecimento de uma cultura de prevenção?
O que é prevenção de conflitos?
Neste artigo, o conceito de prevenção de conflitos é entendido como o conjunto de
medidas destinadas a: evitar o desencadeamento da violência; evitar que um conflito
ativo se agrave; e que age sobre contextos antes que surjam tensões. Como objetivo
final, procura a transformação de “conflitos reais ou potencialmente violentos em
processos pacíficos de mudança política e social” (Ramsbotham, Miall & Woodhouse,
2011, p.113).
Embora a prevenção de conflitos se aplique especialmente no início do conflito, quando
as tensões e disputas estão a transformar-se em conflitos violentos (gráfico 1), deve
estar presente durante toda a crise. Os esforços devem concentrar-se não apenas na
tentativa de conter ou impedir uma situação de violência armada, mas também na
resolução dos fatores que conduzem a essa situação.
Gráfico 1. Fases de conflito na curva de conflito de Lund
Fonte: Lund (1993, p.38).
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As políticas preventivas são desenvolvidas a partir de diferentes áreas (da comunidade,
do vel local, dos governos nacionais ou das esferas internacionais), para que haja uma
ampla gama de possibilidades para usá-las. A partir de ferramentas como a diplomacia
preventiva, bons ofícios e mediação como instrumentos preventivos em situações de
guerra, evoluiu para outro tipo de ações mais completas, adaptadas à complexidade dos
contextos atuais.
Foi assim que foram classificadas
3
no Relatório Final da Comissão Carnegie sobre
Prevenção de Conflitos Mortais, intitulado Preventing Deadly Conflict (Carnegie
Corporation de Nova Iorque, 1997) um documento de referência , que distinguia:
- Medidas operacionais, lançadas em face de uma crise iminente, agem contra factores
de risco e consistem em medidas diretas e de curto prazo.
- Medidas estruturais, que abordam as fontes de conflitos, as causas subjacentes,
envolvendo processos de mudança amplos e de longo prazo. o medidas de
estabilidade económica, social e política.
Essa é a categorização usada na maioria dos estudos, mas o conceito de prevenção de
conflitos e a sua esfera de ação geraram um debate intenso e interessante - que não é
objeto de estudo deste artigo -, dando origem a diferentes interpretações sobre o que é
e não é a prevenção de conflitos (Menkhaus, 2004; Lund, 2009, p.289; Igaripé Institute,
2018).
As medidas preventivas, operacionais e estruturais, representam um campo de ação
interessante na gestão de contextos problemáticos e podem ser empregadas
simultaneamente durante todo o ciclo do conflito. É o caso da diplomacia preventiva, que
ocupou um lugar importante na agenda da ONU nos anos 90. Esse conceito está a
atualmente a reaparecer (Nações Unidas, 2017a). A diplomacia preventiva é muito útil
na primeira etapa do ciclo de conflitos, pois funciona antes que a violência se instale
mediante o uso de bons ofícios e negociações, quando uma terceira parte ajuda as partes
em conflito a resolver os seus problemas. Nesses casos, é fundamental o papel
desempenhado por personalidades altamente respeitadas na esfera política internacional.
Por exemplo, um dos principais órgãos da arquitetura de paz e segurança da CEDEAO é
o Conselho dos Sábios, composto por personalidades eminentes que atuam como
mediadores (El Abdellaoui, 2009). A diplomacia preventiva tem sido uma prática muito
comum em contextos eleitorais em conflito - com maior ou menor sucesso, como em
alguns casos na África Ocidental, Costa do Marfim (2011), Senegal (2012), Nigéria
(2015) ou Gâmbia (2017). A diplomacia preventiva também foi usada após golpes de
Estado, como no Mali em 2012.
Como uma espécie de medida diplomática coercitiva, as sanções económicas -
autorizadas pelo Artigo 41º da Carta das Nações Unidas - são usadas quando surgem
tensões e uma crise manifesta. São utilizadas quando a mediação não funciona e
antes de se considerar uma intervenção militar. Foram usadas em diferentes tipos de
conflitos, como na Libéria, Serra Leoa, Costa do Marfim, Guiné-Bissau e Mali. Quando o
conflito é iminente, o envio preventivo de militares é uma ferramenta útil como medida
dissuasiva. Tem havido muita discussão sobre a manutenção de uma força de
3
Essa classificação foi adotada por outras instituições como a ONU, a União Européia (UE) ou a União Africana
(UA).
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manutenção da paz de implantação rápida em diferentes organizações internacionais e
regionais (Darkwa, 2017; Lotze, 2015; Rappa, 2017). Na África Ocidental, existe a Força
de Reserva da CEDEAO, que faz parte da Força de Reserva da União Africana (ASF), que
é “uma força de manutenção da paz multidisciplinar continental composta por
componentes militares, policiais e civis, que estão de reserva nas suas regiões de origem
e prontos a atuar em nome da União Africana em alturas de crise” (Institute for Security
Studies, 2015). Esta opção foi usada na Gâmbia, por exemplo, através da Intervenção
Militar na Gâmbia da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental (ECOMIG)
para fazer valer os resultados das eleições em 2017, com um impacto positivo
(Hartmann, 2017).
Esse tipo de medidas, aplicada antes do início do conflito armado, é operacional e direto;
no entanto, é ainda mais importante desenvolver medidas estruturais aos primeiros
sinais de tensão, bem como ao longo de todo o ciclo do conflito. As ações focadas nos
fatores subjacentes às tensões o críticas em contextos de violência política. São
medidas que visam criar estabilidade económica, política e social, cujo desenvolvimento
envolve planos de longo prazo mais do que medidas operacionais, e que se concentram
em aspectos como governança, desenvolvimento e direitos humanos (De Carvalho,
2017). No entanto, neste artigo, o foco é as medidas operacionais.
Evolução e futuro
Até recentemente, as políticas preventivas eram relegadas para segundo lugar nas
agendas das organizações internacionais e regionais, onde a atenção era direcionada
predominantemente para os contextos de guerras civis ativas, bem como para as
atividades de reconstrução pós-conflito.
No entanto, desde o final da Guerra Fria, a prevenção de conflitos começou a ganhar um
papel maior nas políticas de gestão de conflitos das organizações internacionais e
regionais (Cuadrado, 2018; Ramsbotham, Miall & Woodhouse, 2011), como atestam as
referências que lhe são feitas nos documentos oficiais
4
. Assim, as organizações regionais,
como a CEDEAO, fizeram da prevenção de conflitos uma de suas prioridades.
Os estudos sobre a prevenção de conflitos armados proliferaram nas últimas três
décadas, marcados pelo fracasso da ONU nos anos 90 em antecipar e responder
efetivamente a contextos como a Somália, Bósnia ou Ruanda (Nações Unidas, 2014a).
Essas catástrofes humanitárias revelaram a importância da prevenção e a necessidade
de superar uma cultura de reação, onde as ações ocorrem após o início da violência, que
caracterizou a história da ONU (Dorn & Matloff, 2000).
Desde que o ex-secretário-geral da ONU, Kofi Annan, adotou o conceito de “cultura de
prevenção” no seu relatório intitulado Prevenção de Conflitos Armados, de junho de 2001,
onde ele falava sobre a necessidade de se passar de uma cultura de reação” e avançar
para uma “cultura de prevenção”, houve uma evolução. A prevenção de conflitos viveu
diferentes fases, altas e baixas.
4
Por exemplo, o Relatório do Secretário-Geral intitulado Prevenção Armada de 2001, onde é feita uma
classificação do tipo de medidas preventivas, Resolução 1366 do Conselho de Segurança, de 13 de agosto
de 2001, sobre o papel do Conselho na prevenção de conflitos armados, o Relatório da Assembleia Geral
(A/RES/57/337), de 18 de julho de 2003, sobre prevenção de conflitos armados, ou o Relatório do
Secretário-Geral sobre a implementação da resolução 1625 (2005) do Conselho de Segurança sobre
prevenção de conflitos, particularmente em África, de 2008.
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Atualmente, pode dizer-se que há um novo entusiasmo pela prevenção. Na agenda do
atual secretário-geral, António Guterres, a prevenção é uma prioridade elevada (Leone,
2017). Como ele próprio afirmou, “o mundo gasta muito mais energia e recursos a gerir
as crises do que a preveni-las. Assim, a ONU deve manter um compromisso estratégico
com uma ‘cultura de prevenção'” (Nações Unidas, 2016, p. 3).
Apesar deste novo entusiasmo que parece existir na ONU pela prevenção de conflitos,
existem barreiras importantes que podem prejudicar o seu sucesso e que devem ser
superadas no futuro. A realidade é que “a agenda do Conselho de Segurança está
sobrecarregada na gestão de conflitos em curso [o que] dificulta […] […] dedicar tempo
a crises que borbulham abaixo da superfície” (Roberts, 2017).
Tradicionalmente, tem-se prestado atenção à gestão de crises imediatas e conflitos de
larga escala (Nações Unidas, 2018). Os esforços que os conflitos ativos exigem em todos
os sentidos diminuem as possibilidades de se concentrar na prevenção, mesmo que esses
esforços pudessem ser reduzidos se fossem “capazes de se concentrar na prevenção
(Roberts, 2017).
A dinâmica pica das relações internacionais de poder também pode influenciar o sucesso
ou fracasso da prevenção. Assim, por exemplo, é importante levar em consideração a
relutância de alguns países em relação aos limites de soberania ou a ideia que o
“interesse do Conselho de Segurança em agir com capacidade preventiva [já] é limitado
nos casos em que um membro poderoso estava envolvido num conflito iminente”
(Roberts, 2017). Outros aspectos têm a ver com “a dificuldade em [...] demonstrar que
uma determinada ação resultou na não ocorrência de conflito” (Nações Unidas, 2018,
p.1).
Assim, como Stephanie Sugars (2017) chama a atenção, para que o entusiasmo
demonstrado por Guterres se traduza em sucesso, é necessário “uma ruptura
fundamental com a abordagem atual da ONU, sem mencionar reformas consideráveis
para lidar com o lento tempo de resposta a conflitos [ou] a sua crescente burocracia”.
Além disso, existe falta de vontade política para implantar medidas que respondam
precocemente aos alertas. Vários autores (Stanton, 2005; Wulf & Debiel, 2009; Evans,
2016) indicaram que a vontade política é a chave, seja para o tempo necessário para
desenvolver uma análise precisa, como para estar ciente do tipo de competências são
necessárias para lidar com o problema, ou para lidar com a falta de interesse em regiões
ou tópicos específicos.
Esses obstáculos, que dificultam a execução de medidas com efeito preventivo, podem
ser superados ou reduzidos, em certa medida, se a prevenção de conflitos for ainda mais
encorajada pelas organizações regionais.
3. A regionalização como oportunidade: tirar partido dos atores locais
para promover a prevenção
A regionalização da segurança, tendência que ganhou importância nas últimas três
décadas (Berman, 2002; Francis, 2006; Moller, 2009), poderia ajudar a incentivar a
prevenção de conflitos. É cada vez mais comum que os órgãos regionais, como a
CEDEAO, assumam a gestão dos seus problemas de paz e segurança através do
desenvolvimento de novas políticas e mecanismos (Tavares, 2009). A região da África
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Ocidental contém uma série de ameaças à segurança que podem ter um efeito de
desestabilização em toda a região - como ocorre com o terrorismo e o crime organizado,
ou com as mudanças climáticas e a violência relacionada com a escassez de recursos.
Isso produz uma interdependência de segurança, uma vez que as preocupações de
segurança nacional dos estados da África Ocidental são muito semelhantes e tão
próximas que não podem ser tratadas de forma independente (Persson, 2012). Assim,
os problemas regionais são geridos a partir de uma cooperação regional (Buzan, Waever
& Wilder, 2003) sob a arquitetura da CEDEAO.
O envolvimento de organizações regionais em questões de segurança tem vantagens
significativas, como um melhor conhecimento do contexto e das causas do conflito. São
atores que conhecem melhor o terreno para entenderem a situação de outra perspectiva
e têm interesse direto nas repercussões e soluções do conflito. Além disso, os atores
políticos regionais [...] têm maior legitimidade e uma participação política muito maior
em assumir uma liderança diplomática” (Gowan, 2017, p.6). Por consequência, os atores
regionais e locais, com o apoio da comunidade internacional, desempenham um papel de
liderança na prevenção de conflitos. Como Guterres destacou, as organizações regionais
são atores essenciais na prevenção e resolução de conflitos, nas operações de paz e na
promoção do desenvolvimento e dos direitos humanos (Nações Unidas, 2016, p.4).
No entanto, essa opção nem sempre é a melhor. Um dos problemas é a competição entre
alguns atores regionais que podem afetar o sucesso da prevenção. Por exemplo, a
rivalidade tradicional entre a Nigéria e a África do Sul "impediu o consenso dentro da UA
sobre os principais esforços de diplomacia preventiva" (Hara, 2011). O papel de liderança
desenvolvido pela Nigéria despertou a desconfiança noutros membros da CEDEAO em
diferentes situações de conflito, como as guerras civis da Libéria e Serra Leoa (Adebajo,
2002), o que dificultou a obtenção de um acordo dentro da organização regional.
Além disso, os laços pessoais entre líderes políticos determinam a posição que os
governos adotam diante de uma crise; portanto, não há imparcialidade. Isso ocorreu em
várias ocasiões na CEDEAO. Enquanto medidas fortíssimas foram tomadas após os golpes
de Estado na Guiné em 2008 ou no contexto da Gâmbia em 2017, houve uma atitude
mais fraca durante a recente crise no Togo (RFI Afrique, 2017)
5
.
As reações diferentes são explicadas pelos interesses individuais de cada Estado-
Membro, que têm visões estratégicas diversas que impedem uma tomada de decisão
comum e respostas efetivas. Assim, esse choque de interesses pode ser prejudicial ao
avanço do empoderamento das organizações regionais em questões delicadas, como a
segurança.
Além disso, atores regionais como a CEDEAO têm escassez de recursos materiais,
financeiros e humanos, mostrando uma dependência de atores externos que limita o
sucesso da regionalização da segurança. Nesse sentido, o continente africano é uma das
prioridades da ONU. A organização está ciente da necessidade de cooperar com as
organizações regionais de África para a promoção de medidas preventivas, que essa
cooperação é essencial para superar a falta de recursos. Nesse sentido, a ONU “reafirma
a sua intenção de considerar medidas adicionais para promover uma cooperação mais
estreita e operacional entre as Nações Unidas e organizações regionais e sub-regionais
nos campos de alerta precoce, prevenção de conflitos, manutenção da paz e construção
5
Estes casos serão abordados numa seção posterior.
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da paz” (Nações Unidas, 2014b). Em 2002, foi criado o Grupo de Trabalho Ad hoc sobre
Prevenção e Resolução de Conflitos em África (Nações Unidas, 2002). Mais recentemente,
definiu um Cluster de Prevenção de Conflitos e Gestão de Crises pelo Escritório das
Nações Unidas para a União Africana (UNOAU), que é uma parceria estratégica em
prevenção e mediação de conflitos, operando “em todas as fases do ciclo de conflitos”
entre A ONU e a UA (Escritório das Nações Unidas para a União Africana, sd).
A cooperação entre diferentes atores no campo da paz e segurança tem sido uma
tendência que evoluiu e cresceu. Isso implica, por vezes, uma “sobreposição institucional
de atores” que “operam e intervêm na mesma área geográfica […] na mesma crise e ao
mesmo tempo ou substituindo-se uns aos outros” (Sousa, 2017, p. 572). Assim, a falta
de alinhamento e a tendência para divergências, contradições e duplicidade de esforços
e recursos o frequentes. A África tem sido palco de disputas entre a ONU, a UA e as
organizações regionais (Nathan, 2017, p.151).
As operações iniciadas por organizações regionais precisam de autorização do Conselho
de Segurança antes da sua implantação (Carta das Nações Unidas, Capítulo VIII, Art.
53), causando em muitas ocasiões "desacordos [...] a rios níveis de tomada de
decisão" entre a ONU e a UA (Desmidt & Hauck, 2017, p.15), mas também com a
CEDEAO, que “não reconhece explicitamente a supremacia do CSNU [Conselho de
Segurança das Nações Unidas] em termos de paz e segurança” (Jetschke & Schlipphak,
2019, p. .4). Como Williams destacou (2017, p.129), é necessário que “a ONU
desenvolva mecanismos de apoio apropriados” para as organizações regionais em África,
especialmente devido à falta de “financiamento previsível, sustentável e flexívelque eles
têm (Williams, 2017, p.129).
Ao mesmo tempo, há divergência entre a UA e as organizações regionais, como a
CEDEAO, onde uma “falta de clareza sobre subsidiariedade e divisão do trabalho […]
muitas vezes conduz a soluções ad-hoc e pragmáticas” (Desmidt, 2019, p. 2), afetando
a implantação de medidas preventivas. A partir da UA, o conceito de primazia é levantado
(Desmidt, 2019, p.4), no entanto, o princípio da subsidiariedade “afirma que as respostas
ao conflito devem ser formuladas por organizações com maior proximidade” (Desmidt,
2019, p. 12). Assim, como destacou Nathan (2017, p.157), os documentos de política
“são ambíguos ou contraditórios” ao lidar com a gestão das crises.
No geral, embora a regionalização da segurança ofereça uma grande oportunidade para
incentivar políticas de prevenção de conflitos, ainda existe uma dependência em atores
externos. Este facto causa uma sobreposição e confusão entre todas as partes
interessadas que intervêm numa crise, dificultando a capacidade de ação de intervir ou
agir preventivamente.
4. A experiência da CEDEAO na prevenção de conflitos
A região da África Ocidental é um excelente exemplo para analisar essas questões, pois
passou por um processo interessante de regionalização da segurança e também passou
por intervenções de diferentes atores.
Esta região atraiu um grande interesse e preocupação, devido ao número de conflitos
que ocorreram na região. Por esse motivo, em 2000 foi estabelecido um gabinete regional
de resolução de conflitos no Senegal, atualmente o Escritório das Nações Unidas para a
África Ocidental e o Sahel (UNOWAS), cujos objetivos o desenvolver a diplomacia
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regional para gerir a instabilidade política na região (Gowan, 2017 p. 9). A UNOWAS
desenvolveu atividades coordenadas com a CEDEAO, especialmente no campo da
prevenção de conflitos. Este trabalho colaborativo obteve grandes resultados nos casos
da Guiné ou Burkina Faso, por exemplo.
A área da África Ocidental também foi selecionada porque podem retirar-se lições
interessantes das atividades relacionadas com a prevenção de conflitos da sua
organização regional. Sem dúvida, o modelo desenvolvido pela CEDEAO é o exemplo
mais interessante do continente (Wulf & Debiel, 2009).
No final de 1990, a organização adotou o Protocolo Relativo ao Mecanismo de Prevenção,
Gestão, Resolução, Manutenção da Paz e Segurança (O Mecanismo), acordado na Cimeira
de Lomé em 10 de dezembro de 1999, que é “o mais importante instrumento jurídico e
normativo para a CEDEAO em todas as questões relacionadas com a paz e a segurança”
(CEDEAO, 2018, p.16).
Esse instrumento jurídico demonstra que a prevenção de conflitos adquire uma grande
importância para a organização, pois entre os objetivos do Mecanismo estão a prevenção
de: conflitos internos e interestatais; violações graves e maciças dos direitos humanos;
ou uma derrubada ou tentativa de derrubada de um governo eleito democraticamente.
O passo seguinte foi a aprovação do Protocolo sobre Democracia e Boa Governança,
adotado em 21 de dezembro de 2001 e assinado em Dakar, com o objetivo de incorporar
disposições sobre temas como a prevenção de crises internas (Nações Unidas, s.d.).
O acordo mais recente sobre políticas preventivas foi o Quadro de Prevenção de Conflitos
da CEDEAO (ECPF), adotado pelo Conselho de Mediação e Segurança (o órgão central do
Mecanismo) em 16 de janeiro de 2008, em Ouagadougou. O ECPF procurou ser o impulso
definitivo para a prevenção de conflitos, atuando como uma estrutura estratégica para
prevenção de conflitos e segurança humana e diligenciando uma postura mais proativa
e operacional de prevenção de conflitos dos Estados-membros (CEDEAO, 2008, p.12).
Finalmente, como resultado dos acordos alcançados após o lançamento do ECPF, em
2015, a Divisão de Facilitação da Mediação (MFD) da CEDEAO foi criada sob a Direção de
Assuntos Políticos, com o objetivo de promover a diplomacia preventiva na região
(CEDEAO, 2018).
Este quadro jurídico coloca a CEDEAO como uma das organizações regionais mais
avançadas em África na prevenção de conflitos. No entanto, mais de uma década após a
adoção do ECPF, existem restrições importantes que limitam o seu potencial no terreno.
O ECPF é uma estrutura que ainda está a ser implementada e precisa de um longo
processo de operacionalização. Um dos principais desafios é a falta de financiamento,
que depende dos Estados-membros (“especialistas em construção da paz, outros, instam
a CEDEAO a estimular a implementação do seu Quadro de Prevenção de Conflitos” 2019).
Os recursos humanos e financeiros limitados afetam o desenvolvimento da estrutura e
obrigam a organização regional a escolher em que contextos ou em que situações
intervêm. Assim, numa região onde há desafios significativos para a paz e a segurança,
a falta de recursos faz com que alguns fatores de risco o recebam atenção suficiente
e as ações se concentrem nas ameaças mais imediatas (Yabi, 2010, p. 55).
Juntamente com as restrições de recursos, existem outros obstáculos que condicionam
a implementação da prevenção de conflitos na região, que serão analisados na próxima
seção.
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Prevenção no terreno
Sob este quadro normativo que evoluiu e se adaptou às mudanças e necessidades do
cenário de segurança da região, a CEDEAO desenvolveu uma atividade importante em
diplomacia preventiva e mediação em diferentes contextos. Com o objetivo de ilustrar as
políticas de prevenção de conflitos da CEDEAO, foram selecionados alguns casos de
estudo (Tabela 1), analisando fatores como os diferentes contextos em que as medidas
preventivas foram desenvolvidas, os atores que participaram com a CEDEAO ou o tipo
de ações que esses atores realizaram.
Tabela 1. Estudos de caso de medidas de prevenção de conflitos da CEDEAO
Casos
6
Tipo de conflito
Medidas de prevenção
Libéria (1989)
Escalada para a guerra civil
Esforços diplomáticos e de mediação
Intervenção militar
Guiné (2008)
Golpe de Estado
Incentivos institucionais
Imposição de sanções
Suspensão da Guiné como membro da
CEDEAO
Costa do Marfim (2010)
Violência eleitoral
Suspensão da Costa do Marfim como
membro da CEDEAO
Imposição de sanções
Envio de delegações diplomáticas
Ameaça de uso da força
Burkina Faso (2014)
Manifestações públicas
Imposição de sanções
Embargo de armas
Missão de alerta precoce
Gambia (2016)
Violência eleitoral
Esforços diplomáticos e de mediação
Envio preventivo de militares
Togo (2017)
Manifestações públicas
Esforços de mediação
Atividades de monitorização
Fonte: da autora
Devido ao quadro teórico estabelecido para analisar a evolução da doutrina de prevenção
de conflitos neste artigo, que começa no final da Guerra Fria, o primeiro caso de análise
selecionado é a Libéria (1989). Além disso, é a primeira guerra civil na região que testa
as capacidades de gestão de crises da CEDEAO.
A primeira guerra civil liberiana começou quando rebeldes liderados por Charles Taylor
cruzaram a fronteira da Costa do Marfim para lutar contra o governo de Samuel Doe.
Naquela época, os instrumentos
7
legais utilizados pela CEDEAO não contemplavam a
prevenção de conflitos internos, mas entre Estados. Alguns dos primeiros passos dados
pela organização regional foram as tentativas diplomáticas, criando o Comité Permanente
de Mediação em maio de 1990 (Suifon, s.d., p. 3). No entanto, esses esforços falharam
e a CEDEAO decidiu agir porque a crise era considerada um problema regional (Human
Rights Watch, 1993).
Apesar do facto de a intervenção da CEDEAO ter ocorrido após o início da guerra - é por
isso que a intervenção foi considerada “amplamente reativa” (CEDEAO, 2018, p.35) - foi
6
As datas incluídas entre parênteses refletem o ano em que a violência começou.
7
Naquela época, existiam apenas o Protocolo de Não Agressão de 1978 e o Protocolo de Assistência Mútua
de Defesa de 1981.
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o único ator que adotou uma atitude ativa no conflito e, como alguns autores apontaram,
a intervenção militar foi bem-sucedida “por um curto período de tempo, impedindo que
a situação degenerasse em proporções genocidas” como a do Ruanda (Draman &
Carment, 2003, p.17).
Outro exemplo é a crise aberta na Guicom a sucessão do Lansana Conté. Após sua
morte, em dezembro de 2008, o capitão Moussa Dadis Camara e outros oficiais militares
lideraram um golpe de estado. A situação começou a piorar quando ele decidiu
candidatar-se às eleições presidenciais seguintes, um anúncio que provocou fortes
protestos em setembro de 2009 e que culminou com o massacre ocorrido no Estádio
Nacional de Conacri, cometido por soldados sob o comando da junta militar (Human
Rights Watch, 2009). O governo recebeu “pressões e incentivos [da CEDEAO] para
permitir a realização de eleições e uma investigação internacional sobre o massacre (Day
& Pichler Fong, 2017, p.8).
Tanto a CEDEAO como a UA usaram ferramentas coercitivas, como a imposição de
sanções e a suspensão da Guicomo membro da organização regional. Além disso,
houve uma pressão externa importante e foram adotadas medidas preventivas, tais como
ameaças de processo pelo Tribunal Penal Internacional (Day & Pichler Fong, 2017, p.7),
o que teve um efeito efetivo em alguns companheiros de Camara, que sofreram uma
tentativa de assassinato que forçou a sua saída, facilitando a transição para o governo
civil.
A ONU também adotou uma atitude preventiva nessa crise através do seu escritório
regional, UNOWAS (então Escritório das Nações Unidas para a África Ocidental -
UNOWA), e do Coordenador Regional, que desenvolveu “esforços intensivos de
diplomacia preventiva” (Von Einsiedel et al., 2018, p. 15), atuando como mediador com
diferentes partes interessadas. Além disso, a UNOWA forneceu apoio logístico e técnico
à CEDEAO, que tinha a verdadeira liderança como mediadora e, particularmente, um dos
seus Estados Membros, Burkina Faso, cujo presidente convenceu o governo de transição
a organizar eleições. Assim, “o envolvimento da CEDEAO […] foi considerado um esforço
bem-sucedido para evitar mais violências ou escaladas para a guerra civil” (Hara, 2011).
Outra experiência interessante para a organização regional foi a guerra civil que estalou
na Costa do Marfim após as eleições presidenciais de 2010. Enquanto a Comissão
Eleitoral, assim como a comunidade internacional, declarou Alassane Ouattara o
vencedor, Laurent Gbagbo recusou-se a aceitar o resultado, pois o Conselho
Constitucional anunciou que ele era o verdadeiro vencedor porque obteve uma
porcentagem maior do que o seu rival (Cook, 2011). Dado este cenário, a CEDEAO pediu
às partes que respeitassem os resultados e fizessem uma reunião extraordinária, embora
mostrassem claramente o seu apoio a Ouattara.
Alguns dos primeiros passos dados pela organização regional foram a suspensão da Costa
do Marfim como membro no início de dezembro, além da UA, forçando Gbagbo a aceitar
os resultados (Cook, 2011) e a imposição de sanções, no âmbito do artigo 45 do Protocolo
sobre Democracia e Boa Governança. Ambas as organizações enviaram delegações
diplomáticas, como a liderada pelo ex-presidente da África do Sul, Thabo Mbeki, que
viajou ao país para fazer um pedido genérico de paz e democracia, mas sem emitir uma
declaração importante (Al Jazeera, 2010).
Na ausência de ação da ONU, que recebeu muitas críticas por parte de diferentes
organizações pela sua indiferença, a CEDEAO decidiu tomar medidas. No final de
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dezembro de 2010, a CEDEAO deu um ultimato a Gbagbo, usando a ameaça do uso da
força, que foi ignorada, pela qual a organização se viu sem opções, e teve que contemplar
outras medidas, incluindo o uso da força (Cook, 2011).
Em 31 de dezembro, um porta-voz da defesa nigeriano anunciou que os chefes militares
da CEDEAO de rios países membros haviam “preparado planos para 'tomar o poder
pelaforça' de Gbagbo usando um agrupamento de tropas chamado força de reserva da
CEDEAO […] se os esforços diplomáticos para o pressionar a ceder a presidência
falharem” (Cook, 2011, p.39). No entanto, a intervenção militar foi finalmente conduzida
"pelas forças francesas, a ONU e ‘forças republicanas' pró-Ouattara" (Yabi, 2012, p. 3).
Apesar da lentidão com que as medidas preventivas foram realizadas e da dependência
externa de ação, como referem alguns estudos, é interessante destacar que a segunda
guerra civil na Costa do Marfim foi um dos exemplos mais claros em que a CEDEAO fez
uso da diplomacia preventiva (Kwabena, 2015).
O exemplo que se segue é encontrado em Burkina Faso, que em 2014 experienciou uma
fase de oposição pública devido às intenções do presidente de alargar o seu limite de
mandatos, o que provocou manifestações em massa que levaram à renúncia do então
presidente Blaise Compaoré (Taoko, Cowell & Callimachi, 2014). Posteriormente, houve
uma tentativa de golpe de Estado contra as autoridades de transição.
Realizara-se importantes medidas preventivas, como a imposição de sanções solicitadas
pela CEDEAO à UA (“Chefe da UNOWA, Mohammed Ibn Chambas faz um resumo sobre
o Burkina Faso”, 2015), que também “decidiu suspender a participação do Burkina Faso
em todas as atividades da UA” (Desmidt, 2019, p. 12). Como alguns estudos afirmaram
(Day & Pichler Fong, 2017, p.7), essas pressões foram um dos fatores principais para
“evitar mais caos e elevado risco de violência”. A CEDEAO decidiu impor um embargo de
armas em setembro (“embargo de armas da CEDEAO à Guiné”, s.d.).
Além disso, as organizações da sociedade civil desempenharam um importante papel
preventivo na crise, pois organizaram várias workshops ao longo do ano anterior às
eleições sobre monitorização e prevenção da violência, nas quais os políticos e os órgãos
de comunicação social estiveram envolvidos.
Apesar dessas medidas preventivas, Compaoré recusou-se a deixar o poder, e a CEDEAO
decidiu intervir com a UNOWA e realizou uma missão conjunta de alerta precoce com o
objetivo de promover o diálogo nacional entre os atores políticos nacionais e a sociedade
civil. No entanto, o presidente manteve-se forte enquanto as tensões continuavam a
aumentar, o que provocou uma nova intervenção de ambos os atores, aos quais a UA
decidiu juntar-se.
Finalmente, os esforços conjuntos resultaram “numa nova Constituição e numa transição
liderada por civis de um ano que culminaria com eleições gerais em novembro de 2015”
(Nações Unidas, 2018, p. 6). O apoio da CEDEAO e os seus esforços de mediação durante
o período de transição foram fundamentais para o sucesso do diálogo nacional.
Igualmente importantes foram as colaborações com a UNOWA, que apoiaram a
organização regional e com a UA, uma vez que, apesar das divergências iniciais, no final
houve um trabalho colaborativo.
As mesmas circunstâncias ocorreram na Gâmbia no final de 2016, quando o presidente
Yahya Jammeh se recusou a aceitar a sua derrota nas eleições de dezembro, provocando
um clima de tensão no país que levou a CEDEAO a envolver-se através de trabalho
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diplomático e de mediação com o Presidente Jammeh para aceitar os resultados das
eleições (CEDEAO, 2017). Houve várias ocasiões em que os deres da região se reuniram
com Jammeh e o presidente eleito, Adama Barrow (Alfa Shaban, 2017).
Antes de considerar uma ação preventiva, os membros da CEDEAO envidaram esforços
de mediação através de visitas de delegações de alto nível em dezembro de 2016
(Desmidt, 2019, p.7). Finalmente, a CEDEAO decidiu intervir a 19 de janeiro de 2017,
de acordo com o Artigo 25 do Mecanismo da CEDEAO, com o apoio da ONU e da UA (Day
& Pichler Fong, 2017). A ação do ECOMIG seria aplaudida pela comunidade internacional
(Alfa Shaban, 2017). A boa coordenação entre a ONU e a CEDEAO refletiu-se no papel
desempenhado pela ONU, que realizou “reuniões com representantes do governo,
partidos da oposição, sociedade civil e organizações de mulheres e jovens” (“Eleições
pacíficas e credíveis: um caso da coordenação holística da UNOWAS”, 2017, p.7).
A Gâmbia tem sido um exemplo do sucesso das políticas preventivas da CEDEAO e pode
ser destacada como um paradigma para futuras crises na região. Essa ação preventiva
serviu para evitar um contexto de tensão pós-eleitoral, conduzindo a uma escalada da
violência.
Os protestos antigovernamentais também ecoaram noutro país da região, o Togo, onde,
no final de agosto de 2017, houve uma onda de manifestações exigindo reformas
constitucionais e a renúncia do presidente Faure Gnassingbé Eyadéma
8
, que foram
duramente reprimidas (RFI Afrique, 2017). A organização regional apelou então à paz “a
todos os interessados políticos e ao povo do Togo para exercitar a contenção e abster-
se da violência, e dialogar para preservar a paz” (RFI Afrique, 2017).
Os países da CEDEAO intervieram, iniciando um processo de diálogo entre o partido no
poder e a oposição, com os Presidentes do Gana e da Guiné como mediadores principais
(Nações Unidas, 2017b). Na CEDEAO, houve satisfação pelos esforços preventivos feitos
por esses dois líderes (“A CEDEAO saúda Akufo-Addo e Alpha Condé sobre a intervenção
no Togo”, 2018). A organização regional estabeleceu a data das eleições parlamentares
para dezembro de 2018. Nesse sentido, a organização instou o governo togolês a
prosseguir com a revisão completa da lista eleitoral antes dessas legislativas” (Gbenyedji,
2018). As eleições parlamentares finalmente realizaram-se em 20 de dezembro, com a
vitória do partido no poder, que ignorou as recomendações da organização regional.
5. Conclusões
Esses contextos de instabilidade política e social são alguns exemplos de como as
ferramentas preventivas da CEDEAO e a sua coordenação com outros atores foram
testadas e serviram para melhorar a gestão dos seus desafios de segurança. Através do
estudo desses casos, foi possível ver algumas das ferramentas que a organização pode
usar para evitar conflitos, como a diplomacia preventiva através da mediação e diálogo
entre as partes -, imposição de sanções, suspensão da filiação de um Estado-membro ou
a ameaça do uso da força como elemento dissuasor. A análise dessas experiências
mostrou que a CEDEAO teve uma atividade importante na prevenção de conflitos.
Mas essas experiências também expuseram os principais desafios que a organização
enfrenta em termos de prevenção. Crises como a que está ocorrendo atualmente no Togo
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A sua família é a mais longa num governo da África Ocidental.
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ou casos anteriores como a Costa do Marfim revelaram as vulnerabilidades das suas
políticas.
Alguns dos principais obstáculos detetados nas políticas de prevenção de conflitos da
CEDEAO podem ser resumidos da seguinte forma. Em primeiro lugar, um grupo de
fatores relacionados com aspectos como a luta pelo poder político, os relacionamentos
pessoais ou a dinâmica pica das estruturas de poder. Dentro deste grupo encontra-se
a divergência de interesses das partes interessadas. Como vimos, os agentes envolvidos
nesses cenários tiveram atitudes diferentes em relação às crises. Essa falta de
concordância ou entendimento entre os atores cruciais explica a lentidão com que as
medidas foram aplicadas depois dos primeiros alertas terem sido identificados.
O conflito de interesses entre os Estados-membros da CEDEAO esteve presente durante
a Primeira Guerra da Libéria. A Nigéria queria desempenhar um papel de liderança,
enquanto o governo de Burkina Faso tinha interesse pessoal na crise devido aos laços
que mantinha com dissidentes liberianos (Murison, 2004, 603), o que afetou a tomada
de decisão.
Também houve conflitos de interesses entre a organização regional e a organização
continental, a UA, que teve repercussões no terreno, dificultando a tomada de decisões
sobre a gestão de crises. Durante o contexto anterior da guerra civil liberiana, por
exemplo, os países da Organização da Unidade Africana (OUA), antecessora da UA,
mostraram uma posição diferente daquela que a CEDEAO tinha. A OUA opôs-se a uma
intervenção militar na Libéria, especialmente os países que apoiavam Charles Taylor, o
líder rebelde (Wippman, 1993, p.165). Esta ausência de ação comum entre as duas
organizações também esteve presente na crise eleitoral da Costa do Marfim em 2010,
uma vez que na UA houve disparidades de posições no apoio aos dois deres políticos,
Ouattara e Gbagbo, enquanto a CEDEAO manteve uma postura de unidade.
Além disso, a parcialidade esteve presente em alguns casos. Alguns dos Estados-
membros da CEDEAO tiveram influência significativa no contexto político da Costa do
Marfim, como o presidente do Burkina Faso, Blaise Compaoré, que poderia ter
pressionado mais as partes. O papel desempenhado pelo seu governo foi visto como não
neutro por outros Estados-membros da CEDEAO, uma vez que “foi fortemente
identificado como um aliado de Ouattara e acusado de ser um dos principais responsáveis
por trás da insurgência inicial na [Costa do Marfim] em setembro de 2002” (The
Guardian, 2011). Essa falta de imparcialidade também existia no Togo.
Um dos principais obstáculos para os especialistas em diálogos (RFI Afrique, 2017) foi
que o presidente do Togo tinha presidido à CEDEAO por um ano, até junho de 2018. Esse
é um fator importante a ser considerado, uma vez que a organização regional não estava
a revelar uma posição neutra nesta crise e havia uma certa falta de vontade política em
agir. Como algumas organizações descreveram, houve abuso de poder e medidas
ditatoriais durante os contextos eleitorais (Bailey, 2019), mas tanto a CEDEAO como a
UA classificaram as eleições como "livres e transparentes" ("O Partido do Presidente do
Togo vence a maioria no Parlamento", 2018).
Além disso, houve falta de vontade política para implantar medidas. Um exemplo claro é
a Guiné, pois, apesar do resultado final bem-sucedido, com um governo de transição
pacífico, é necessário destacar que a crise e especialmente as mortes de civis poderiam
ter sido evitadas se as partes interessadas, principalmente a CEDEAO, reagissem mais
imediatamente ao golpe de Estado. Assim, entre o golpe de Estado e o massacre de
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setembro de 2009, outras medidas poderiam ter sido adotadas, como a imposição de
sanções e o embargo de armas, que foram lançados imediatamente após a morte elevada
de civis.
Igualmente, muitas vezes existem contradições nas abordagens e funções a serem
desempenhadas na colaboração com a UA. Houve fortes desacordos entre as duas
organizações durante a crise no Burkina Faso. No entanto, existem alguns exemplos em
que a cooperação entre eles teve impactos positivos no terreno, como na Guiné ou na
Gâmbia (Kreß & Nußberger, 2017).
Em segundo lugar, é necessário ter em consideração um grupo de fatores relacionados
com aspectos mais operacionais ou logísticos presentes em organizações como a
CEDEAO, como a burocracia complexa, que dificulta a tomada de decisões e prolonga o
tempo decorrido entre a decisão de implementar uma medida preventiva até à aplicação
dessa medida. Além disso, este facto às vezes dificulta o desenho de uma abordagem
estratégica (Yabi, 2010, p.13), como ocorreu, por exemplo, na Costa do Marfim. No final
de 2010, quando a crise eleitoral estava a conduzir a uma escalada de violência, a
CEDEAO ameaçou usar a força, mas em janeiro a missão ainda não tinha sido iniciada.
Confirmou-se então a suspeita de que uma intervenção pela força seria difícil de
conseguir devido à falta de um plano, e exigiria recursos adicionais (Kwabena, 2015,
p.32).
Esse último aspecto é uma restrição muito importante que está presente em todos os
casos analisados neste artigo. A falta de recursos humanos e financeiros na CEDEAO faz
com que dependa dos atores externos para poder intervir preventivamente.
Finalmente, é importante destacar a necessidade de incorporar o trabalho das
organizações da sociedade civil (OSC), como foi sublinhado em reuniões políticas
recentes (“Especialistas em construção da paz, outros, instam a CEDEAO a estimular a
implementação da sua Estrutura de Prevenção de Conflitos”, 2019). A colaboração entre
a CEDEAO e as OSC provou ser muito útil em contextos como o Burkina Faso (Somé,
2014).
Em conclusão, a organização ainda tem um longo caminho a percorrer para se tornar um
ator eficaz, dada a complexidade dos desafios que enfrenta, muitos dos quais não têm
apenas um caráter interno, mas também se alimentam de fatores externos. Atualmente,
parece que os atores políticos regionais na África Ocidental têm o compromisso de
implementar a estrutura de ação da organização na prevenção de conflitos (Agência de
Média Africana, 2019; “Especialistas em construção da paz, outros, instam a CEDEAO a
estimular a implantação da sua Estrutura de Prevenção de Conflitos”, 2019).
Graças à gestão desenvolvida em casos como a Gâmbia, a CEDEAO recebeu os aplausos
da comunidade internacional. Esse ator regional desempenha, sem vida, um papel
fundamental na implementação da prevenção de conflitos e, entre as suas prioridades
inclui-se continuar a desenvolver e a melhor as políticas preventivas (“A CEDEAO lança
Planos de Ação para a sua Estrutura de Prevenção de Conflitos”, 2019). A história desta
organização regional oferece lições interessantes sobre a importância que a
regionalização da segurança tem para o continente africano, onde a prevenção de
conflitos pode tornar-se o principal desafio.
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A INFLUÊNCIA DAS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS NA ESCALADA DO CONFLITO
COMUNAL ENTRE PASTORES E AGRICULTORES:
O CASO DA ETNIA FULANI NA NIGÉRIA
Gustavo Furini
gustavofurini@gmail.com
Aluno de doutoramento em Relações Internacionais: Geopolítica e Geoeconomia, Universidade
Autónoma de Lisboa (Portugal). Mestre em Gestão de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local
na Amazônia pela UFPA (Brasil) e bacharelado em Geografia pela UFRGS (Brasil). Atua na área
de alterações climáticas desde 2005, com experiência no setor público e privado.
Resumo
As atuais evidências científicas permitem comprovar que as atividades humanas estão a
causar interferência, em diferentes níveis, no clima global e na disponibilidade dos recursos
naturais, sendo que muitos autores relacionam à escassez de água com o aumento do risco
de conflitos violentos, particularmente em sociedades rurais no continente africano. As
perturbações no clima causadas pelas alterações climáticas refletem-se em escala regional e
local, sendo que os maiores impactos estão a ser sentidos nas zonas mais pobres do
planeta. A Nigéria, país mais populoso da África, vem enfrentando problemas de ordem
ambiental em seu território que podem ser associados às mudanças climáticas, como por
exemplo, o aumento da temperatura, a diminuição das chuvas e o avanço da desertificação.
Considerando que todos estes fenômenos estão se intensificando desde o início do século XX
na Nigéria e, em função da escalada de conflitos violentos a partir do início do corrente século,
a presente proposta teve como objetivo analisar de que forma as alterações climáticas podem
interferir no conflito entre pastores e agricultores, bem como, o possível impacto da variação
sazonal do regime de chuvas na dinâmica destes conflitos comunais. O estudo concentrou-se
na revisão da literatura e o estudo de caso ocorreu em quatro estados nigerianos (Plateau,
Benue, Taraba e Nasarawa), para o período 2010-2017, tendo como foco o conflito comunal
envolvendo o grupo étnico Fulani. O método de abordagem adotado foi o indutivo em que se
comparou o comportamento da pluviosidade na área de estudo com o número de mortes
decorrentes do conflito, para mais, fez-se uso de software de geoprocessamento para
compreender a distribuição espacial e temporal das fatalidades. O quadro teórico utilizado foi
o proposto por Thomas Homer-Dixon (1994) e a recolha da informação deu-se a partir de
fontes primárias, com consulta de dados qualitativos e quantitativos, e a partir de fontes
secundárias mediante revisão em livros, publicações e periódicos em revistas científicas.
Embora não haja até o momento elementos suficientes para estabelecer uma relação direta
e linear entre alterações climáticas e conflitos violentos, a literatura revisada indica que as
mudanças climáticas têm impactado negativamente na disponibilidade de recursos naturais,
como no caso de água e pastagens, o que tem aumentado a competição pelo acesso dos
mesmos em determinadas porções da Nigéria. A análise dos dados aponta que na área de
estudo 46,4% mais mortes no período seco (Nov-Abr) do que no período chuvoso (Mai-
Out) em conflitos comunais envolvendo a etnia Fulani, o que pode sugerir maior competição
por água e pastagens.
Palavras-chave
Alterações climáticas; conflito comunal; Nigéria; Fulani; água
Como citar este artigo
Furini, Gustavo (2019). "A influência das alterações climáticas na escalada do conflito comunal
entre pastores e agricultores: o caso da etnia Fulani na Nigéria". JANUS.NET e-journal of
International Relations, Vol. 10, N.º 2, Novembro 2019-Abril 2020. Consultado [online] em
data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.2.3
Artigo recebido em 29 de Novembro de 2018 e aceite para publicação em 4 de Junho de 2019
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A INFLUÊNCIA DAS ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS NA ESCALADA DO CONFLITO
COMUNAL ENTRE PASTORES E AGRICULTORES:
O CASO DA ETNIA FULANI NA NIGÉRIA
1
Gustavo Furini
Introdução
Com o final da Guerra Fria a definição do conceito de segurança passou a ter um
entendimento mais alargado, sendo incorporadas novas dimensões que ultrapassaram o
viés exclusivamente estatal (Tomé, 2010). Para além das questões militares, fatores
sociais, econômicos, e ambientais passaram a incorporar o rol de elementos necessários
para garantir a paz e a segurança no mundo a partir da década de 1990 (Dannreuther,
2013; Sheehan, 2005; UNSC, 1992). Nesse contexto de ampliação sobre a compreensão
de segurança, os desafios impostos pela escassez de recursos naturais
2
também
passaram a ser considerados (Homer-Dixon, 1994), tendo em vista o reconhecimento
que as tensões geradas em torno do acesso e uso de recursos naturais têm a capacidade
de desencadear conflitos violentos
3
entre diferentes atores e grupos, sobretudo em escala
intraestatal (Conca & Wallace, 2012).
Os desafios gerados pelos riscos
4
ambientais decorrem, sobretudo, do mau uso que a
sociedade tem feito dos recursos naturais, o que acabou por gerar problemas como o
esgotamento dos solos agricultáveis, a irreversível perda de biodiversidade, a poluição
do solo, das águas e do ar (Dannreuther, 2013; Sheehan, 2005). Dentre os diversos
impactos negativos causados ao ambiente destacamos as alterações climáticas, que de
acordo com evidências científicas, resultam da constante e crescente emissão de gases
de efeito estufa para a atmosfera, especialmente em função da queima de combustíveis
fósseis (IPCC, 2013). As alterações climáticas têm a capacidade de incrementar as
1
Dossiê temático de artigos apresentados na Conferência Internacional de Resolução de Conflitos e
Estudos da Paz realizada na UAL a 29 e 30 de Novembro de 2018.
2
Os recursos naturais ou ambientais são estoques de materiais que existem no ambiente natural, renováveis
e não renováveis, que em função do uso podem ser considerados bens comuns ou possuir valor econômico
(WTO, 2010).
3
Aqui utiliza-se o entendimento de conflito violento fornecido pelo The African Centre for the Constructive
Resolution of Disputes (ACCORD, 2012), em que se faz uso da violência letal pelas partes envolvidas no
conflito a fim de se obter o recurso em disputa, como por exemplo, terras ou poder.
4
Os efeitos negativos das alterações climáticas são frequentemente referidos como “ameaça” à segurança,
entretanto, preferiu-se seguir o entendimento dado pelo SIPRI (2016) que considera as alterações
climáticas como “risco”, que a crise climática é consequência direta da ação antrópica. Ademais, os
desafios que se impõem à humanidade em função das transformações ambientais provocadas pelo Homem
ao longo do último par de séculos, como as alterações no clima, enquadram-se no entendimento de
“Sociedade de Risco” proposto por Ulrich Beck (2016). Segundo o autor, os processos de industrialização e
modernização da sociedade promoveram desequilíbrios ambientais, e as respostas criadas pelo ambiente
na busca por um novo momento de equilíbrio trouxeram consigo riscos para a dinâmica social em geral,
inclusive no que se refere a questões relacionadas à segurança (Beck, 2017).
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disparidades sociais por meio do agravamento da pobreza, da fome, da mobilidade
humana forçada e da maior dificuldade em aceder aos recursos naturais, sobretudo nos
países em desenvolvimento, historicamente responsáveis pelas menores contribuições
de gases estufa, mas que em contrapartida, são os que apresentam maior grau de
vulnerabilidade às nuances do clima (IPPC, 2014).
As análises de dados coletados na atmosfera, terra e oceano confirmam que fenômenos
decorrentes das alterações no clima estão a ocorrer, em maior ou menor grau, em
todo o planeta, sendo associado a tais mudanças uma elevada ameaça para a
estabilidade social e econômica de sociedades (IPCC, 2013). Observações e estudos
indicam que a banda ocidental do Sahel, região que inclui a porção setentrional da Nigéria
vem, ao longo das últimas décadas, apresentando diminuição nos níveis de chuva com
períodos de seca mais longos e aumento da temperatura (Assibong et al., 2017). Esta
variabilidade hídrica impacta negativamente a disponibilidade de recursos para pessoas
que utilizam a terra como meio de subsistência, cenário agravado em função da crescente
pressão exercida pelo crescimento populacional na Nigéria
5
(Eze, 2018).
É crescente o número de pesquisadores que examinam as possíveis relações entre
fatores climáticos e conflitos não estatais (FOI, 2010), pelo que uma convergência
que, em determinadas situações, a variação na disponibilidade de água em economias
dependentes do setor primário pode exercer influência em conflitos violentos,
particularmente em sociedades rurais e pastoris no continente africano (IPCC, 2013;
ACCORD, 2012). Diante disso, as alterações climáticas têm a capacidade de interferir,
mesmo que indiretamente, sobre a dinâmica de conflitos violentos, em especial os
intraestatais, vez que podem intensificar a pobreza e agravar crises econômicas, eventos
que estão bem documentados como fatores que influenciam diretamente os conflitos
(IPCC, 2014).
E é precisamente isto que está a ocorrer nas regiões centro-leste e norte da Nigéria,
locais em que é possível verificar uma redução gradual na disponibilidade de certos
recursos naturais, sobretudo água e terras agricultáveis, escassez que tem sido associada
aos registros de aumento da temperatura e menores índices de chuva (Idowu, 2017;
Okoli & Atelhe, 2014; CCASTR, 2011). Tal diminuição no acesso aos recursos naturais é
posto como uma das principais causas da escalada dos conflitos não estatais existentes
entre pastores e agricultores nas zonas centro-leste e norte do país (Uze, 2018; Freeman,
2017).
Neste quadro, o presente ensaio centrou-se em dois objetivos: i) inicialmente buscou-se
analisar, com base na teoria sobre o assunto, de que forma a crescente escassez de
recursos naturais, em especial a escassez de água, que segundo as observações
científicas tem sido agravada em função das alterações climáticas, se aplica aos conflitos
comunais envolvendo a etnia Fulani, sobretudo nas áreas rurais nas porções norte e
centro-leste da Nigéria; e num segundo momento ii) verificou-se de que forma a variação
sazonal na disponibilidade de água, analisada a partir de dados do índice pluviométrico
no período de chuva (Mai-Out) e no período de estiagem (Nov-Abr), de 2010 a 2017,
relaciona-se com a dinâmica de conflitos comunais envolvendo a etnia Fulani em quatro
5
De acordo com dados do Banco Mundial, a população total da Nigéria em 2018 estava estimada em cerca
de 196 milhões de habitantes. Disponível em: https://data.worldbank.org/country/nigeria. Acesso em
20/06/2019.
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estados nigerianos (Plateau, Benue, Taraba e Nasarawa) localizados na zona centro-leste
do país.
Após revisão da teoria, optou-se por realizar a abordagem proposta por Thomas Homer-
Dixon (1994), a qual associa a escassez ambiental com conflitos violentos, sobretudo os
de origem étnica em nível intraestatal. O trabalho foi realizado a partir da análise estudo
de caso com recolha da informação em fontes primárias (base de dados sobre conflitos
fornecidos pela UCDP
6
), e pela revisão de fontes secundárias (livros, publicações e
periódicos em revistas científicas).
À parte desta introdução, o ensaio conta com quatro secções. A primeira parte aborda a
inclusão dos fatores ambientais, especialmente as alterações climáticas, no
entendimento mais alargado de segurança no período pós-Guerra Fria. Na seção seguinte
é discutido o nexo entre alterações climáticas e conflitos violentos, pelo que se discute
como as alterações no clima podem afetar negativamente a disponibilidade de recursos
naturais, e estes, por sua vez, gerar ou agravar conflitos. Na terceira seção aborda-se o
conflito comunal na Nigéria entre agricultores e pastores da etnia Fulani, com vista a
identificar a influência das alterações climáticas neste conflito por meio da redução na
disponibilidade de recursos naturais, em especial a água. Na quarta parte deste trabalho
é apresentado o estudo de caso sobre a interferência do regime de chuvas nos ataques
violentos, com fatalidades, envolvendo a etnia Fulani em quatro estados nigerianos. No
final do documento, são apresentadas a conclusão e as referências utilizadas no ensaio.
1. A inclusão das alterações climáticas no entendimento de segurança
A temática ambiental está formalmente presente na agenda internacional desde finais
dos anos 1960 e início de 1970, período que culminou com a Conferência de Estocolmo
em 1972, contudo, naquela época as questões centrais sobre segurança eram
determinadas pela Guerra Fria (Sheehan, 2005). A noção de que a humanidade estava
a causar danos irreparáveis ao ambiente e o temor de uma catástrofe nuclear eram as
principais preocupações da agenda ambiental na altura (ibid.). Durante o período
compreendido pela Guerra Fria, as preocupações com segurança estavam diretamente
relacionadas à ação militar estatal e, deste modo, não havia espaço para discussão de
temas como a segurança ambiental (Dannreuther, 2013). Ademais, tal conceito clássico
de segurança voltado para a proteção do Estado perdurou por mais de três séculos, desde
a criação da noção de Estado Weberiano até o início da década de 1990 (FOI, 2010).
Contudo, as mudanças e os desafios de ordem global que emergiram no cenário
internacional no final do século passado trouxeram consigo a necessidade de incluir
temas como a economia, a demografia e o ambiente, para assim poder-se ter uma
melhor compreensão dos novos rumos de segurança (Mathews, 1989). O exclusivismo
do viés estadocêntrico que havia guiado as instituições de segurança até então não se
mostrava adequado para gerir os novos desafios que se apresentavam (ibid.). Assim, o
fim da Guerra Fria permitiu que interpretações para além daquelas que prezavam
somente a abordagem estatal pudessem despontar, o que possibilitou a elaboração de
um entendimento de segurança mais alargado (Tomé, 2010). Tal entendimento passou
a depender da interação entre diversos fatores e, neste rol de novas dimensões, insere-
6
Uppsala Conflict Data Program (UCDP).
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se a questão ambiental e seus temas correlatos, como é o caso das alterações climáticas
(ibid.). Como prova da alteração no cenário internacional em Janeiro de 1992, a
presidência do Conselho de Segurança das Nações Unidas emitiu nota enfatizando que o
fim de guerras e conflitos armados entre Estados, por si só, não eram suficientes para
garantira segurança internacional, admitindo que questões de ordem social, econômica,
humanitária e ecológica passaram a ser potenciais fontes de instabilidade para a
segurança e a paz (UNSC, 1992).
Diante deste cenário de transformação entre o final dos anos 1980 e o início da década
de 1990, a temática ambiental passou a compor os estudos sobre segurança, sendo
compreensível a necessidade de formular e desenvolver teorias e conceitos com vista à
delimitação do objeto de estudo (Sheehan, 2005). Nesta perspetiva é possível destacar
o conceito de segurança ambiental que, embora sua definição ainda renda acalorado
debate até os dias de hoje (Soromenho-Marques, 2015), vem sendo aplicado com o
objetivo de abordar os riscos de ordem ambiental que emergem dos sistemas naturais
em função da interferência humana (Dannreuther, 2013). Como exemplo, pode-se
destacar o mau uso dos recursos naturais, o desmatamento, a ocupação desordenada do
solo, a contaminação dos recursos hídricos e da atmosfera e as alterações climáticas
(Sheehan, 2005; Homer-Dixon, 1994). As atividades antrópicas passaram a interferir de
tal forma nos processos naturais ao ponto da “Sociedade de Risco” passar a sofrer das
consequências ditadas por ela própria (Beck, 2016), fortalecendo o entendimento que
estamos a viver no período do Antropoceno
7
. Abordar a temática da segurança ambiental
suscita que sejam concatenados preceitos metodológicos da esfera ambiental com
disciplinas que tradicionalmente abordam as questões de segurança, como a estratégia
e as relações internacionais (Soromenho-Marques, 2015).
Para mais, os discursos que contemplam as alterações climáticas tendem a adotar o
conceito de segurança humana” cuja origem é atribuída ao Relatório de
Desenvolvimento Humano, publicado pelo UNDP em 1994 (FOI, 2010). O documento
propõe um conceito de caráter integrativo e envolve sete diferentes dimensões de
segurança: econômica, pessoal, comunitária, política, alimentar, de saúde e do meio
ambiente (UNDP, 1994). Este conceito acolhe um amplo conjunto de fatores ao assentar-
se no entendimento que os conflitos passarão a ter maior intensidade dentro das nações,
e não mais entre elas, fundamentalmente por conta da privação de acesso aos recursos
e das disparidades socioeconômicas (ibid.). Ademais, em função da evolução e da
consolidação do conceito, o quinto relatório do Intergovernmental Panel on Climate
Change (IPCC) dedicou um capítulo exclusivo para a segurança humana, em que aborda
os riscos impostos pelas alterações climáticas, incluindo o aumento na probabilidade de
conflitos violentos em zonas com elevada vulnerabilidade econômica, social e ambiental
(IPCC, 2013).
Situações de insegurança aguda, como a fome, o conflito e a instabilidade sociopolítica,
quase sempre emergem da interação de múltiplos fatores (Burke et al., 2015). Contudo,
um crescente reconhecimento na ciência de que as alterações climáticas poderão
minar a segurança humana, visto que põem em causa os meios de subsistência de
populações, principalmente através da diminuição das reservas e do acesso aos recursos
7
O Antropoceno marca uma época em que a magnitude da interferência humana no ambiente é de tal ordem
que a sociedade pode ser caracterizada como uma força geofísica de influência global, capaz de trazer
impactos negativos em diversas áreas, inclusive em termos de segurança (Dalby, 2017).
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naturais, podendo desencadear conflitos violentos tanto em escala local, quanto regional
(Raimi & Jack, 2017). As consequências das alterações climáticas devem ser tratadas
como um elemento adicional de ordem ambiental para a segurança humana, desde o
ponto de vista do Estado até a escala do indivíduo (ibid.), embora sejam reduzidos os
casos na literatura que abordam explicitamente as relações entre mudanças climáticas e
segurança, estes estudos indicam a existência de nexo (IPCC, 2013). Entretanto, é
fundamental ressalvar que a academia aponta que a relação entre alterações climáticas
e segurança humana é, na maior parte das vezes, indireta, e consideram que mudanças
no clima possuem efeito catalisador em determinados contextos de conflitos violentos
(Penny, 2018; Raimi & Jack, 2017; Buhaug, 2016; Uexkull et al., 2016; Burke et al.,
2015; Salehyan, 2014; UNGA, 2009).
2. Alterações climáticas, escassez de recursos naturais e conflitos
violentos
Thomas Homer-Dixon durante a cada de 1990 foi um dos pioneiros a relacionar
problemas de acesso aos recursos naturais com segurança e conflitos violentos
(Dannreuther, 2013). O autor partiu da premissa que mudanças no ambiente provocadas
pelos seres humanos, as quais têm a capacidade de afetar diretamente não só a
qualidade como também a quantidade dos recursos naturais, em conjunto com o
crescimento populacional e a distribuição geográfica desigual dos recursos naturais,
constituem o tripé da escassez ambiental (Homer-Dixon, 1994). O autor defende que a
escassez ambiental pode, em determinadas circunstâncias, perturbar a segurança em
função da capacidade de interferir em processos sociais, políticos e econômicos e, em
Estados enfraquecidos, a elevação da tensão social provocada pela escassez de recursos
naturais poderá culminar na escalada dos níveis de violência intraestadual (ibid.).
Embora estudos de caso tenham sido capazes de documentar e estabelecer ligações entre
a degradação ou a indisponibilidade de recursos naturais com a ocorrência de conflitos
violentos, a teoria tem sido questionada em função das fragilidades para se estabelecer
uma relação de causalidade (Dannreuther, 2013). As muitas variáveis no contexto social,
sobretudo em termos econômicos e políticos, dificultam a identificação de nexo causal
entre variações na disponibilidade ambiental e conflitos violentos (SIDA, 2018; SIPRI,
2016; Conca & Wallace, 2012). Contudo, a falta de estudos quantitativos que sejam
estatisticamente robustos para confirmar o elo direto entre causas ambientais, como o
clima, e conflitos violentos, por si só, não pode ser tomada como parâmetro para
descartar completamente qualquer tipo de influência (Burke et al., 2015; UNGA, 2009).
Além do mais, é reconhecido por parte da comunidade científica que fatores ambientais
têm a capacidade de exacerbar a conflitualidade indiretamente através de ltiplas
formas, visto que agravam tensões sociais, políticas e econômicas já existentes (Penny,
2018; Freeman, 2017; IPCC, 2013; ACCORD, 2012; FOI, 2010; UNGA, 2009). Também
de se considerar que a dificuldade encontrada para demonstrar a existência de relação
direta e linear entre questões de ordem ambiental com conflitos violentos reforça a ideia
de que raramente a responsabilidade recai sob um único fator, mas sim a partir de uma
sucessão de acontecimentos interligados (Raimi & Jack, 2017; FOI, 2010). Em termos
de alterações climáticas, a dificuldade no estabelecimento desta relação direta -se,
sobretudo, pela baixa probabilidade de grupos decidirem entrar em conflito simplesmente
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porque o calor tem se intensificado ou, então, por conta da diminuição da quantidade de
chuva, porém, os impactos negativos decorrentes das mudanças do clima, como a seca
e a desertificação, podem conduzir ao conflito violento (Buhaug, 2016).
A vulnerabilidade social e ambiental de cada sociedade é quem determinará se os
impactos negativos das alterações climáticas conduzirão ao conflito (Buhaug, 2016;
Scheffran et al., 2012). Nesse sentido, comunidades altamente dependentes da
agricultura e pecuária, localizadas em países pobres com baixa capacidade de resposta
às alterações climáticas poderão entrar em conflito pelo uso de recursos naturais que se
tornaram escassos em função dos efeitos causados pelo aumento da temperatura ou pela
diminuição dos níveis de chuva (Buhaug, 2016; Theisen et al., 2011). Por outro lado,
uma sociedade localizada num país rico cuja resiliência assenta-se no desenvolvimento
tecnológico para adaptar-se a mudanças, bem como na capacidade de resposta de suas
instituições públicas e privadas, dificilmente teria que lidar com uma situação de conflito
violento por conta dos mesmos efeitos negativos decorrentes das alterações climáticas
(Salehyan, 2014; Theisen et al., 2011).
A questão que deve ser posta em causa não é “seas mudanças no clima influenciam
nos conflitos violentos, mas sim “quando” e “como” isso acontece (Salehyan, 2014). Para
poder estabelecer qualquer nculo a análise deverá ter em conta três dimensões, a
saber: i) a localização geográfica em que ocorre o impacto das alterações climáticas
(dimensão espacial); ii) o período em que este se desenrola (dimensão temporal) e; iii)
a capacidade de resposta da população e das instituições para enfrentarem a situação de
estresse ambiental (dimensão social) (ibid.). Todas estas dimensões se interrelacionam
e, para se ter uma interpretação concreta de uma situação específica em que estas
dimensões agem conjuntamente, a análise deve ser focada em um cenário
individualizado, evitando generalizações e busca de padrões, reforçando, mais uma vez,
a importância da análise de contexto (ibid.).
As mudanças no ambiente provocadas pela alteração no clima podem minar a segurança
humana vez que reduzem o acesso a determinados recursos naturais indispensáveis para
a subsistência de muitas sociedades, em especial, na África (Raimi & Jack, 2017; FOI,
2010; UNGA, 2009). A escassez de recursos naturais e a disputa por seu uso, como por
exemplo a água, poderá desencadear conflitos violentos (ACCORD, 2012), pelo que
variações nos índices pluviométricos, seja com o aumento ou com a diminuição das
chuvas, serão responsáveis por aumentar o risco de conflitos violentos em economias
altamente dependentes dos recursos naturais, em particular, nas sociedades rurais na
África (IPCC, 2014). O acesso à água é um grave problema para muitos países africanos,
tanto em quantidade como qualidade (IPCC, 2013), desta forma, um dos desafios nos
estudos das alterações climáticas é prever como se dará o comportamento dos padrões
de precipitação e do aumento da temperatura, visto que, consoante estes fatores, poder-
se-á gerar pressão adicional sobre os mananciais de água e as terras férteis (FOI, 2010).
Deve-se destacar que existe um debate entre os que argumentam que há um risco
potencial cada vez maior de surgirem conflitos em função da escassez de água, enquanto
que outros valem-se de dados estatísticos para mostrar que as tensões em torno da
disponibilidade deste recurso natural geralmente terminam pela via da negociação e
diplomacia, sobretudo em disputas transfronteiriças (ibid.). Contudo, boa parte dos
estudos enfatizam que este cenário de acordos poderá não ser a tônica no futuro,
nomeadamente em termos intraestatais, que a as alterações climáticas podem agravar
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A influência das alterações climáticas na escalada do conflito comunal entre pastores e agricultores:
o caso da etnia Fulani na Nigéria
Gustavo Furini
42
a escassez de água em regiões com governos frágeis e sem capacidade institucional para
gerir este tipo de disputa entre comunidades locais (SIPRI, 2016).
É projetado que o aumento da temperatura global induza e prolongue períodos de seca
em muitas regiões, particularmente aquelas vulneráveis à escassez de água, como é
o caso do continente africano, o que poderá influenciar na dinâmica de conflitos
intraestatais (Koubi, 2019; Penny, 2018). O estudo realizado por Koubi (2019) relacionou
os índices de seca no período de 2005 a 2014, obtidos através do método Palmer Drought
Severity Index (PDSI)
8
, com os dados de conflitos no continente africano de 1995 a 2015
disponibilizados pelo UCDP, conforme Figura 1. Por mais que os dados sobre os conflitos
tenham iniciado uma década antes dos valores cobertos pelo índice de seca (PSDI), é
possível perceber uma forte concentração de conflitos violentos em locais com
intensificação da escassez drica, sobretudo nos países da África Subsaariana, o que
também se aplica à Nigéria.
Figura 1. Relação entre seca (Palmer Drought Severity Index, de 2005 a 2014) e conflitos violentos
(UCDP, de 1995 a 2014) em parte do continente africano, com destaque para a Nigéria no círculo
vermelho.
Fonte: Adaptado a partir do original proposto por Koubi (2019)
certo consenso que a variabilidade climática no continente africano poderá conduzir
a maiores taxas de escassez de recursos naturais, os quais se configuram como principais
meios de subsistência para grande parcela da população (ACCORD, 2012). O aumento
da indisponibilidade de recursos naturais essenciais para a manutenção da subsistência
terá impacto negativo na segurança humana, sendo que os efeitos mais devastadores
são projetados para as economias menos capazes de se adaptar a tais mudanças, o que
8
O PDSI foi desenvolvido na década de 1960 e vem sendo utilizado para identificar ocorrência de secas a
partir de dados mensais de temperatura e precipitação, além de informações sobre a capacidade de
retenção de água no solo. Considera tanto a umidade recebida(precipitação), quanto a armazenada no solo,
representando assim a perda potencial de umidade devido a influência da temperatura (WMO & GWP, 2016).
Palmer Drought
Severity Index
Nigéria
Período do Conflito
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o caso da etnia Fulani na Nigéria
Gustavo Furini
43
ocorre essencialmente nos países em desenvolvimento (Uexkull et al., 2016).
Independentemente do andamento do debate do nexo causal entre mudanças climáticas
e conflitos violentos, diante da iminência dos riscos à segurança humana faria sentido
que o Conselho de Segurança das Nações Unidas assumisse uma postura mais pró-ativa
quanto ao tema (Scott & Ku, 2018; Penny, 2018).
Dada a responsabilidade primária do Conselho pela manutenção da paz e segurança em
nível global, não parece coerente que o órgão fique alheio à discussão ou assuma uma
postura de neutralidade, tendo em vista a dimensão que o fenômeno está a atingir (ibid.).
O Conselho de Segurança mostras que seu envolvimento tem caráter reativo e
protocolar quanto aos temas que envolvem as mudanças climáticas, muito
provavelmente em decorrência da resistência de alguns de seus principais membros
(Penny, 2018).
Mesmo diante deste cenário pouco participativo do Conselho de Segurança é importante
sublinhar o posicionamento que o órgão adotou com a Resolução S/RES/2349/2017, em
que reconheceu, de forma inédita, as alterações climáticas como fator de instabilidade
para a segurança, sobretudo em função da interferência na disponibilidade dos recursos
naturais na África (UNSC, 2017). A Resolução aborda a situação conflituosa existente na
área de influência da Bacia do Lago Chade, região na qual está inserida a zona nordeste
da Nigéria, e em seu subitem 26 reconhece que:
“… the adverse effects of climate change and ecological changes
among other factors on the stability of the Region, including through
water scarcity, drought, desertification, land degradation, and food
insecurity, and emphasises the need for adequate risk assessments
and risk management strategies by governments and the United
Nations relating to these factors… (UNSC, 2017:7).
Portanto, a ausência de elementos quantitativos e estatísticos que comprovem a relação
direta e linear da influência dos fatores ambientais em conflitos violentos, não pode
continuar servindo de pretexto para descaracterizar a potencial participação dos mesmos
(Salehyan, 2014). E tal apelo ganha ainda maior relevância tendo em vista os riscos à
segurança humana provocados pelas alterações climáticas nos países menos
desenvolvidos (IPCC, 2013). Diante do exposto, a próxima seção abordará o papel que
as alterações climáticas exercem na escassez ambiental na África, bem como, seu
contributo para o agravamento do conflito comunal, entre pastores e agricultores na
Nigéria, populações altamente dependentes do setor primário da economia.
3. Alterações climáticas, escassez ambiental e conflito comunal na
Nigéria: agricultores vs. pastores
A partir do conceito de escassez ambiental proposto por Homer-Dixon (Figura 2) utiliza-
se aqui a perspectiva que a diminuição na qualidade e quantidade dos recursos naturais,
agravada pelas alterações climáticas, participa da cadeia de eventos que podem
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A influência das alterações climáticas na escalada do conflito comunal entre pastores e agricultores:
o caso da etnia Fulani na Nigéria
Gustavo Furini
44
influenciar nos conflitos comunais
9
entre pastores e agricultores. Tais conflitos ocorrem
em diversos países da África Subsaariana, apresentando-se como um desafio em escala
nacional e regional (Gbaka, 2014), pelo que será analisado com maior detalhe o impacto
causado pela ação da etnia Fulani na Nigéria.
A África depara-se atualmente com uma série de problemas decorrentes da degradação
ambiental, sendo que nas regiões de influência do Sahel as maiores adversidades estão
relacionadas à disponibilidade de água, a qual se manifesta mais visivelmente em função
da seca e da desertificação, e como já mencionado, os efeitos negativos são acentuados
pelas alterações climáticas (IPCC, 2013). Ademais, os países do continente africano são
especialmente vulneráveis às alterações do clima por conta da baixa capacidade
adaptativa e dos impactos negativos projetados para lá ocorrerem (ibid.). A escassez de
recursos naturais tem provocado, por exemplo, uma série de disputas entre agricultores
e pastores, visto que a manutenção dos meios de subsistência das comunidades rurais
depende diretamente do acesso tais recursos (Ahmadu, 2018). É central nestes conflitos
comunais a busca pela defesa dos meios materiais, luta que fica mais evidente a partir
da escassez de água, a qual se reflete, dentre outras formas, através da desertificação
(ibid.).
Figura 2. Influência das alterações climáticas na escassez de recursos naturais e sua relação com
conflitos comunais.
Fonte: Adaptado a partir do esquema original proposto por Homer-Dixon (1994).
9
Conforme definição do UCDP (2016) os conflitos comunais são do tipo não estatais e ocorrem entre grupos
que compartilham linhas de identidade como religião, etnia ou que pertençam a um mesmo clã ou tribo.
Não são grupos permanentemente estruturados para o combate, mas às vezes se organizam para se
envolver em conflitos violentos, sendo que abrangência tende a ser intraestatal. Entretanto, afirmar que a
identidade comunal se refere apenas à identidade étnica ou religiosa pode dar ao termo um caráter pouco
flexível, pelo que a ACCORD (2012) sublinha que a principal identificação pode ser baseada por disputas
dos meios de subsistência, portanto, conflitos comunais também envolvem aqueles que ocorrem entre
pastores e agricultores.
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A insegurança dos meios naturais necessários à subsistência de populações rurais é
premente na Nigéria (CCASTR, 2011). Está comprovado que a temperatura média na
Nigéria aumentou, desde o ano 1900 até hoje, em 1.1 ºC, sendo que a temperatura
média mundial aumentou 0.74 ºC de 1860 até os dias de hoje (Akpodiogaga-a & Odjugo,
2010). Para além, estudos realizados na metade da década de 1980 já apontavam uma
tendência de seca para a Nigéria em decorrência da diminuição da incidência de chuva
na parte centro-leste e norte do país (Adefolalu, 1986). Atualmente, zonas localizadas
no norte da Nigéria m enfrentado um profundo processo de desertificação (Ahmadu,
2018; Nwokeoma & Chinedu, 2017; Assibong et al., 2017), e as populações dependentes
da agropecuária sofrem diretamente os efeitos, pelo que se verifica um aumento dos
fluxos populacionais, sobretudo para os que vivem da pecuária, em direção ao centro do
país (Freeman, 2017).
A África Ocidental, em particular a Nigéria, experimenta um aumento considerável de
conflitos intraestatais desde o início dos anos 90, em que se apresenta especialmente
preocupante a partir dos anos 2000 a intensificação de confrontos entre agricultores e
pastores por recursos naturais, cuja escassez tende a ser agravada em função das
nuances do clima (Okoli & Atelhe, 2014). Conflitos entre agricultores e pastores são
comuns em quase todas as partes da Nigéria e superá-los é um grande desafio para o
desenvolvimento econômico, para a segurança alimentar e para a sustentabilidade das
comunidades agrárias (Ukamana et al., 2017). Como apresentado ao longo deste
ensaio, a probabilidade dos efeitos do clima interferirem em conflitos violentos depende
do contexto, assim como, de aumentarem a probabilidade da ocorrência de conflitos
comunais em áreas de escassez de recursos naturais (Vestby, 2018). Esse quadro é
particularmente preocupante em regiões onde o governo não se faz presente, como nas
áreas onde se desencadeiam conflitos entre agricultores e pastores nas terras do centro
e norte da Nigéria (ibid.). Traçar linhas de causalidade entre mudanças climáticas e
conflitos requer cautela, visto que não se pode aferir indistintamente que os cidadãos
começam a brigar automaticamente por conta do simples aumento da temperatura
(Buhaug, 2016; Odoh & Chigozie, 2012).
A literatura aponta que o conflito entre agricultores e pastores é recorrente na Nigéria e
a interação entre ambos remonta a tempos antigos, com destaque para o grupo de
pastores Fulani, cuja entrada nas áreas que atualmente formam o território nigeriano
data do século XIV (Ahmadu & Ayuba, 2018). Tanto o viés religioso quanto étnico das
tensões entre pastores Fulani, maioritariamente muçulmanos, e os agricultores,
predominantemente cristãos, são importantes na determinação deste conflito comunal,
exacerbado pela escassez de recursos naturais e pela desertificação (IEP, 2017). A
Nigéria pode ser tido como um país dividido e os conflitos violentos intraestatais podem
rapidamente configurar o conflito comunal como de dimensão étnico-religiosa, visto que
os grupos étnicos usualmente apoiam sua “linhagem” na luta violenta, tendo como
premissa que devem prevalecer os direitos do grupo ao qual pertencem (Akov, 2017).
Os Fulani são um grupo étnico pastoril e nômade com cerca de 20 milhões de pessoas
que se encontram espalhados por diversos países da África Ocidental e Central
(Bamidele, 2018), porém, apenas uma reduzida parcela está envolvida em ataques
violentos na Nigéria (IEP, 2017). O grupo étnico Fulani detém 90% do rebanho do país,
sendo que a pecuária responde por um terço do PIB do setor primário (Bamidele, 2018;
Abbass, 2012). Problemas relacionados à escassez de água e da desertificação no Sahel
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o caso da etnia Fulani na Nigéria
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provocaram uma alteração no comportamento dos pastores nigerianos, que passaram a
buscar alternativas para manutenção do seu estilo de vida em zonas mais ao centro do
país (Abugu & Onuba, 2015). O quadro alarmante de desertificação que atravessa a
região do Sahel tem forçado os pastores Fulani à conduzirem seu gado para pastagens
localizadas nas porções centro e centro-leste do país, também conhecida como Middle
Belt (ibid.). Os pastores Fulani transformaram as regiões centrais do país em residência
permanente e não mais em morada temporária, como era comum durante os
deslocamentos entre os extremos norte e sul da Nigéria, conjuntura estaque contribui
para a exacerbar os conflitos com os agricultores (Akov, 2017; Abugu & Onuba, 2015;
Okoli & Atelhe, 2014).
Os conflitos entre estes dois grupos decorrem da competição e luta desesperada pela
sobrevivência e subsistência num ambiente marcado por insegurança e escassez de
recursos naturais, situação exacerbada pelas alterações climáticas (Okoli & Atelhe, 2014;
Odoh & Chigozie, 2012; Abbass, 2012). O estudo realizado por Okoli & Atelhe (2014)
identificou que as mudanças climáticas agravam os cenários de disponibilidade de água
(desertificação e seca), e em decorrência disso, aumentam o fluxo migratório de pastores
pelo território nigeriano. É de se destacar os elevados níveis de violência que envolvem
o grupo étnico Fulani desde o final da última década, e os dados do UCDP demonstram
que este grupo étnico esteve envolvido em centenas de conflitos na Nigéria de Janeiro
de 2010 até Dezembro de 2017, com 3.334 timas fatais. A maior parte dos ataques
ocorreram em vilas do interior do país, sobretudo em quatro estados localizado no centro-
leste do país (Benue, Plateau, Taraba e Nasarawa), em que se verificaram 3.085 mortes.
Especificamente nesses quatro estados, os Fulani entraram em conflito violento com
grupos de diferentes etnias, são elas: Birom, Tiv, Agatu, Eggon, Tarok, Jukun, Irigwe,
Mambila, Atakar, Bwatiye.
Contudo, é importante destacar que relativamente ao número expressivo de casos de
vítimas fatais por ataques violentos perpetrados pelos Fulani, estes atos podem ter
origem e natureza muito diversa, portanto, embora a disputa por recursos naturais tenha
grande importância na atualidade, esta não deve ser tomada como fator único
(Chinwokwu, 2017). As atividades criminosas são diversas e podem envolver assaltos a
mão armada, assassinatos, saques, sequestros, destruição de comunidades e igrejas
(ibid.). A maior parte dos episódios envolvendo atos criminosos realizados pelos Fulani,
em especial os hediondos, sequer o investigados pelas agências de segurança
governamentais da Nigéria (ibid.). Ademais, os pastores dificilmente solicitam permissão
para se deslocar ou permanecer em qualquer comunidade, o que na cultura local é visto
como afronta suficiente para gerar sérios conflitos (Bamidele, 2018). Setores da
sociedade nigeriana criticam a atuação do presidente, Muhammadu Buhari, que em
função de pertencer à etnia Fulani, parece agir de forma conivente com atos criminosos
realizados pelo grupo étnico do qual pertence (ibid.).
4. Influência do regime de chuvas na dinâmica do conflito comunal
envolvendo a etnia Fulani
Nesta seção é apresentado, a partir de estudo de caso, de que forma a disponibilidade
hídrica, fortemente marcada pelas estações do ano, relacionou-se aos eventos com
mortes no conflito comunal entre pastores e agricultores em quatro estados nigerianos
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o caso da etnia Fulani na Nigéria
Gustavo Furini
47
(Benue, Plateau, Taraba e Nasarawa), no período compreendido por Janeiro de 2010 a
Dezembro de 2017. Nestes estados, localizados na porção centro-leste do país, o regime
de chuvas é marcado pela presença de duas estações distintas e bem definidas, a de
chuvas ou úmida (Maio a Outubro) e a seca (Novembro a Março).
4.1. Metodologia utilizada
Como forma de abordagem do problema foi adotado o método hipotético-dedutivo a
partir de estudo de caso, tomando-se como premissa critérios temporais e espaciais para
a coleta, processamento e análise das informações. Recorreu-se à base de dados sobre
ataques violentos no continente africano disponibilizados pelo Uppsala Conflict Data
Program (UCDP), especificamente os dados do Georeferenced Event Dataset (GED)
Global Version 19.1
10
. Para fins de atendimento dos objetivos ora propostos foram
selecionadas apenas as informações de conflitos violentos com mortes ocorridos na
Nigéria envolvendo a etnia Fulani.
Relativamente ao recorte temporal determinou-se o período de Janeiro de 2010 a
Dezembro de 2017 em função da escalada de eventos com mortes a partir de 2010.
Contudo, é importante ressaltar que a base de dados do UCDP apresenta eventos
violentos esparsos na Nigéria envolvendo a etnia Fulani desde os anos 1990, com
aumento progressivo na frequência destes a partir dos primeiros anos do corrente século.
Sendo assim, os dados indicam que o conflito não apenas consolidou-se, pelo que
também alastrou-se geograficamente a partir de 2010. Quanto ao número de mortes
estas foram baseadas nas melhores estimativas (“best estimate”)
11
conforme
categorização do UCDP.
No que diz respeito ao recorte espacial foram analisados os eventos ocorridos em quatro
estados na região centro-leste da Nigéria (Plateau, Benue, Taraba e Nasarawa), a “área
de estudo” deste trabalho, escolha que se justifica tendo em conta que aí concentraram-
se 92,5% das vítimas fatais no período (Jan-2010 a Dez-2017), ou 3.085 mortes de um
total de 3.334 fatalidades (Figura 3). Para mais, a concentração dos ataques violentos
nessa porção do país corrobora com as informações coletadas na literatura, pelo que se
identifica uma tendência de migração do norte em direção ao centro-leste do país em
busca por locais com maior disponibilidade de água e de terras com pastagens. Os
eventos com fatalidades foram localizados no mapa a partir das informações de latitude
e longitude fornecidas pela base de dados do UCDP. Cabe referir que houve casos em
que eventos distintos envolvendo mortes ocorreram numa mesma localidade em datas
diferentes ao longo do período analisado, nesses casos, as localizações dos eventos se
sobrepuseram no mapa, mas que nesses casos acabaram por ser identificadas por um
único ponto.
10
Disponível para download em https://ucdp.uu.se/downloads/. Acesso em 20/05/2019.
11
Conforme UCDP Georeferenced Event Dataset Codebook Version 19.1, documento disponível para download
em https://ucdp.uu.se/downloads/ged/ged191.pdf. Acesso em 20/05/2019.
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48
Figura 3. Área de estudo e localização de conflitos com fatalidades
Fonte: Autor
Figura 4. Localização dos pontos de coleta de dados pluviométricos na Área de Estudo.
Fonte: Autor.
Com a finalidade de verificar a existência de relação entre fatalidades com a ocorrência
de chuvas, uma vez que a variação nos níveis de precipitação tem a capacidade de
contribuir para maior ou menor escassez de água, foram utilizados dados mensais do
acumulado de chuva, em milímetros, em 15 localidades
12
, conforme Figura 4. De posse
dos dados do acumulado de chuva por localidade foi feita a média pluviométrica mensal
para cada um dos quatro estados nigerianos de Janeiro de 2010 a Dezembro de 2017,
num total de 96 meses. Por fim, gerou-se um gráfico combinando as informações do
índice pluviométrico mensal com o mês da ocorrência das fatalidades, de acordo com as
Figuras 6 a 9.
12
Dados médios de precipitação pluviométrica disponíveis em https://www.worldweatheronline.com. Acesso
em 15/05/2019.
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49
Relativamente as ferramentas utilizadas para averiguar dados e gerar produtos, foi
utilizado software de análise e edição de planilhas, igualmente empregue para elaboração
de gráficos e tabelas. Também se fez uso software em plataforma SIG (Sistema de
informação Geográfica) para análise de dados espaciais e produção de mapas.
4.2. Resultados
Pela análise dos dados, pode-se verificar na área de estudo, a ocorrência de um número
46,4% superior de mortes nos conflitos comunais envolvendo a etnia Fulani no período
seco (Novembro a Abril) do que no período chuvoso (Maio a Outubro), conforme Figura
5.
Figura 5. Distribuição das mortes por época do ano na área de estudo
Fonte: Autor
Relativamente à distribuição das mortes ao longo dos meses do ano de Janeiro de 2010
a Dezembro de 2017, buscou-se verificar a existência de relação entre maior ou menor
índice de precipitação com maior ou menor número fatalidades. As Figuras 6 a 9
representam graficamente a distribuição de precipitação média mensal com mero de
mortes ao longo de todo período analisado em cada estado da área de estudo.
Figura 6. Relação entre fatalidades e índice pluviométrico (Plateau)
Fonte: Autor
1833
1252
0
200
400
600
800
1000
1200
1400
1600
1800
2000
NOV-ABR (SECO) MAI-OUT (CHUVOSO)
N.º M o r t e s
Fatalidades por período do ano
457
4
177
13
3
11
7
27
20
5
1
3
28
25
3
4
34
9
6
2
1
31
20
10
23
62
40 40
34
18
59
8
12
20
1
19
51
0
50
100
150
200
250
300
350
400
450
500
0
50
100
150
200
250
jan/10
mai/10
set/10
jan/11
mai/11
set/11
jan/12
mai/12
set/12
jan/13
mai/13
set/13
jan/14
mai/14
set/14
jan/15
mai/15
set/15
jan/16
mai/16
set/16
jan/17
mai/17
set/17
Nº M o r t e s
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Plateau
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Figura 7. Relação entre fatalidades e índice pluviométrico (Benue).
Fonte: Autor
Figura 8. Relação entre fatalidades e índice pluviométrico (Nasarawa)
Fonte: Autor
4
29
56
35
50
30
20
30
4
46
75
8
62
33
35
13
10
42
2
2
99
12
23
81
3
128
27
15
106
15 15
5
6
26
19
1
0
20
40
60
80
100
120
140
0
50
100
150
200
250
300
350
jan/10
mai/10
set/10
jan/11
mai/11
set/11
jan/12
mai/12
set/12
jan/13
mai/13
set/13
jan/14
mai/14
set/14
jan/15
mai/15
set/15
jan/16
mai/16
set/16
jan/17
mai/17
set/17
Nº M o r t e s
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Benue
5
2
4
11
6
2
2
2
34
1
20
70
73
59
2
1
33
0
10
20
30
40
50
60
70
80
0
50
100
150
200
250
jan/10
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set/10
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mai/11
set/11
jan/12
mai/12
set/12
jan/13
mai/13
set/13
jan/14
mai/14
set/14
jan/15
mai/15
set/15
jan/16
mai/16
set/16
jan/17
mai/17
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Nº M o r t e s
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Nasarawa
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Figura 9. Relação entre fatalidades e índice pluviométrico (Taraba)
Fonte: Autor
Embora seja evidenciada uma propensão maior (46,4%) de ocorrerem conflitos com
mortes durante a época seca (Novembro a Abril), não é possível estabelecer uma relação
de causa-efeito entre a menor ocorrência de chuvas com as fatalidades, bem como,
afirmar que estes ataques ocorreram exclusivamente em função de disputa por recursos
naturais. Entretanto, é importante destacar que a área de estudo está compreendida na
região da Nigéria que Adefolalu (1986) evidenciava uma menor tendência de
precipitação nos meses secos, em especial nas regiões centrais do país, compreendidas
pelos paralelos 7N a 9N. A análise dos dados de precipitação ao longo dos 8 anos da série
(Jan 2010/Dez 2017) demonstra que nos períodos de Dezembro a Fevereiro praticamente
não qualquer ocorrência de chuvas, além do que, a precipitação anual média esteve
sempre abaixo dos 1.000 mm de chuva, valor que era expectável para esta porção da
Nigéria.
5. Conclusões
Para explicar a razão por detrás dos conflitos comunais é necessário buscar conhecer da
forma mais ampla possível o contexto do objeto de estudo, para então, tirar conclusões,
mesmo que sucintas num primeiro momento, visto que os conflitos normalmente estão
envoltos por uma complexa rede de acontecimentos. No caso em tela, a revisão da
literatura permitiu identificar, a partir de diversos estudos em diferentes fontes, que
piora na disponibilidade dos recursos naturais, especialmente de água e terras para
agropecuária, em regiões da Nigéria. Estudos científicos têm demonstrado que as
alterações climáticas desempenhem um papel importante no agravamento da seca e da
desertificação, o que contribui para o deslocamento forçado de populações rurais, que
oriundas do norte vão em direção ao centro-leste na expectativa de ali encontrarem
recursos naturais que permitam a manutenção do seu estilo de vida. Portanto, embora
as alterações climáticas não possam ser consideradas, até o momento, como elemento
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Taraba
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A influência das alterações climáticas na escalada do conflito comunal entre pastores e agricultores:
o caso da etnia Fulani na Nigéria
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que atua de forma direta e linear na origem de conflitos, os seus impactos são relevantes
e sua interferência deve ser considerada nos conflitos comunais, como o que ocorre entre
pastores de etnia Fulani e agricultores na Nigéria. Portanto, ao fim do trabalho é possível
concluir que a abordagem teórica escolhida, de Homer-Dixon (1994), aplica-se adequada
e satisfatoriamente à realidade do contexto investigado.
Com base na análise realizada na área de estudo durante a última seção deste trabalho,
por mais que não se tenha conseguido traçar uma relação de dependência direta entre a
maior ocorrência ou ausência de chuva com mortes provocadas por conflitos violentos,
pelo que tampouco tinha-se esta pretensão, é possível inferir que há uma probabilidade
46,4% maior das fatalidades ocorrem no período do ano marcado pela seca (Novembro
a Maio). Portanto, as causas dessa maior propensão da ocorrência de vítimas fatais em
conflitos violentos envolvendo os Fulani nos meses com ausência ou menor incidência de
chuvas pode ser agravado com a diminuição na disponibilidade drica em função das
alterações no clima do planeta, o que é tema para futuras investigações.
Por fim, na tentativa em contribuir na resolução do conflito comunal aqui examinado,
propõe-se que, uma vez compreendido e internalizado que os impactos das alterações
climáticas são um risco para a segurança humana no país, os decisores políticos da
Nigéria devem considerar, vividamente, todas as alternativas de adaptação às mudanças
do clima que estejam ao alcance, para além do que está em curso. Isto é válido não
somente para iniciativas apoiadas financeiramente com fundos locais, mas sobretudo,
deve-se buscar mais apoio e recurso junto aos países mais desenvolvidos, para assim,
ampliar os investimentos em projetos de adaptação.
Não apenas a Nigéria, mas os demais países localizados na África Subsaariana devem
aumentar suas reivindicações durante as rodadas multilaterais sobre o clima, em especial
no âmbito da Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre a Mudança do Clima -
CQNUMC (ou UNFCCC em inglês). Isto porque o Fundo Verde para o Clima, aprovado por
todas as Partes da Convenção, deveria receber aportes financeiros anuais dos países
desenvolvidos de 100 bilhões de dólares para financiar projetos de adaptação e mitigação
em países pobres. Contudo, até o momento menos de 2% do total que deveria ter sido
depositado ao longo desta década chegou aos cofres do Fundo.
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UNIÃO EUROPEIA, RÚSSIA E O CASO DO MH17: UMA ANÁLISE DAS
NARRATIVAS ESTRATÉGICAS (2014-2019)
Paulo Ramos
paulocamoesramos@gmail.com
Mestrando em Relações Internacionais na Escola de Economia e Gestão-Universidade do Minho,
Braga, Portugal e Licenciado em Ciências de Comunicação pela Universidade do Porto. Os seus
interesses de investigação incluem as relações entre a UE e a NATO com os países do Leste
Europeu, incluindo a Rússia.
Alena Vieira
d4215@eeg.uminho.pt
Membro integrado do Centro de Investigação em Ciência Política (CICP) e Professora do
Departamento de Relações Internacionais e Administração Pública, Escola de Economia e Gestão,
Universidade do Minho, Portugal. É Doutorada em Ciência Política pela Universidade de Erlangen-
Nuremberga (Alemanha). Foi Visiting Researcher da Finnish Institute of International Affairs,
Instituto Estudos Estratégicos e Internacionais (Lisboa), e Universidade Católica de Leuven.
Recebeu bolsas e research grants das fundações Chair Inbev-Baillet Latour; Hanns-Seidel-
Stiftung; Haniel-Stiftung; Compania di San Paulo, Riksbanken Jubileumsfond e Volkswagen-
Stiftung, bem como da Fundação para Ciência e Tecnologia. O seu livro ‘Russland , Belarus und
die EU-Osterweiterung’ foi publicado pela editora Ibidem-Verlag, e os seus artigos em revistas
Europe-Asia Studies, Post-Soviet Affairs, EIOP Cambridge Review of International Affairs,
International Spectator, entre outras. Alena Vieira publicou também vários briefing papers e
relatórios para as instituições da UE e think-tanks (orcid: 0000-0002-5643-0398)
Resumo
O conflito armado que se instalou na Ucrânia, desde 2014, tem vindo a afetar a forma como
os Estados envolvidos interagem e como procuram implementar determinadas narrativas num
novo contexto político regional. Enquanto a Rússia tem assumido uma postura mais assertiva
na sua vizinhança, através de uma narrativa que procura contrariar os valores ocidentais
promovidos pela União Europeia (UE), esta última tem demonstrado alguma dificuldade em
apresentar uma narrativa coerente perante os desenvolvimentos dos últimos cinco anos.
Nesse sentido, este artigo propõe-se a analisar a interação UE-Rússia, utilizando como estudo
de caso o incidente que envolveu a queda do avião civil MH17 da Malaysia Airlines. A
perspetiva analítica combina elementos de Role Theory - que aqui se foca na interação dos
Estados em função de determinadas expectativas em relação ao seu papel a nível interno
(nacional) e externo (regional/internacional) - e das Narrativas Estratégicas. São exploradas
diferenças entre issue narratives (incluindo em relação à narrativa da Bellingcat Investigation
Team) system narratives e identity narratives. O argumento aqui apresentado é que a
externalização da issue narrative da UE tem surgido de duas formas distintas uma mais
moderada, na sua postura oficial enquanto instituição; outra mais assertiva, do ponto de vista
do trabalho desenvolvido pela East Stratcom Task Force (EATF). Isto acaba por criar algumas
dissonâncias na forma como a União Europeia projeta a sua narrativa, e desalinhamento com
a identity narrative da UE enquanto um role state.
Palavras-chave
MH-17, Role Theory; Narrativas Estratégicas; Ucrânia; União Europeia; Rússia
Como citar este artigo
Ramos, Paulo; Vieira, Alena (2019). "União Europeia, Rússia e o caso do MH17: uma análise
das narrativas estratégicas (2014-2019)". JANUS.NET e-journal of International Relations,
Vol. 10, N.º 2, Novembro 2019-Abril 2020. Consultado [online] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.2.4
Artigo recebido em 29 de Novembro de 2018 e aceite para publicação em 22 de Maio de 2019
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Vol. 10, Nº. 2 (Novembro 2019-Abril 2020), pp. 56-71
União Europeia, Rússia e o caso do MH17: uma análise das narrativas estratégicas (2014-2019)
Paulo Ramos, Alena Vieira
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UNIÃO EUROPEIA, RÚSSIA E O CASO DO MH17: UMA ANÁLISE DAS
NARRATIVAS ESTRATÉGICAS (2014-2019)
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Paulo Ramos
Alena Vieira
Introdução
O conflito armado que se vive na Ucrânia, na região de Donbass, ganhou um ímpeto
renovado com o abate do avião da Malaysia Airlines que fazia a rota entre Amesterdão e
Kuala Lumpur, a 17 de julho de 2014, quando este sobrevoava a zona de conflito no
Leste da Ucrânia. A morte de quase 300 pessoas, a grande maioria delas europeia, levou
a que os países da UE assumissem uma postura conjunta mais assertiva na busca por
uma resolução do conflito armado naquela região. A postura da UE destacou-se por uma
maior unidade, abrindo o caminho para sanções mais abrangentes contra a ssia,
direcionadas para setores-chave da economia russa, incluindo setor financeiro, de
armamento e de energia. No entanto, o Protocolo de Minsk, assinado em Setembro de
2014 sob o auspício da OSCE, falhou em alcançar o cessar-fogo proposto no documento.
O mesmo aconteceu com o Minsk II, assinado pela Ucrânia, Rússia, França e Alemanha
em Fevereiro de 2015, e que procurou, sem sucesso, resolver as falhas do primeiro
acordo.
Petro Poroshenko, que em 2014 se tornou novo Presidente da Ucrânia, desde cedo se
mostrou decidido a recuperar os laços institucionais com a UE, ao mesmo tempo que a
Rússia tem procurado implementar novas formas de destabilizar o país e fomentar a sua
própria narrativa sobre os acontecimentos na Ucrânia. O seu sucessor, Volodymyr
Zelensky, eleito em 2019, encontra-se na mesma posição, e mantém as mesmas
aspirações. Assim, o facto de ter às suas portas um conflito que, de acordo com a ONU,
levou à morte de 13 000 pessoas , mais de 3 000 delas civis (Escritório do Alto
Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos, 2019), faz com que a política
externa da UE se veja sob forte pressão mediática nos últimos anos, o que aumenta
ainda mais a sua responsabilidade neste processo.
Através da análise de várias fontes secundárias e primárias, este trabalho propõe-se,
assim, a analisar a evolução das narrativas da Rússia e da UE em relação à queda do
MH17, que serve como caso de estudo principal neste contexto.
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Dossiê temático de artigos apresentados na Conferência Internacional de Resolução de Conflitos e
Estudos da Paz realizada na UAL a 29 e 30 de Novembro de 2018.
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Enquadramento teórico
A estrutura teórica deste artigo terá como base o conceito de Role Theory. Desenvolvido
no âmbito da Sociologia e da Psicologia, este quadro teórico tem sido adaptado às
Relações Internacionais desde a década de 1970 (Harnisch, 2011, p.7; vf Walker 1987).
Os papéis desempenhados por determinados atores são definidos como “posições sociais”
influenciadas por expectativas internas e externas relativamente ao propósito desses
atores (Thies, 2010b, p.6336; Andrews, 1975, p.529; cit em Harnisch, 2011, p.8). De
acordo com Sebastian Harnisch, as expectativas (role expectations) e as perceções (role
conceptions) surgem como internas (ego) e externas (alter), e podem ser alvo de
contestação, que o papel de um determinado ator pode entrar em colisão com o de
outro. De acordo com Stephan Klose (2018, p.6), por exemplo, a “capacidade de um ator
internacional para concretizar as suas aspirações representativas na sociedade depende
tanto da sua criatividade e recursos, como das expectativas sociais de outros”. Nesse
sentido, os Estados do espaço pós-Soviético têm perceções distintas do papel da UE na
região, sendo que apenas alguns olham para a instituição como um poder normativo
(Nitoiu, 2018, p.704). Esta breve explicação assume relevância no contexto deste artigo,
já que a perceção e as expectativas do papel da UE enquanto ator internacional não são
uniformes, dentro da UE ou fora da instituição - nomeadamente na Rússia, com quem
entra frequentemente em rota de colisão, como é exemplo o conflito na Ucrânia
(Ademmer et al., 2016; Chaban e Holland, 2014; Delcour e Wolczuk, 2018; Lucarelli,
2014).
Dirk Nabers (2011, p.82) apresenta duas formas distintas através das quais os papéis
desempenhados por diferentes atores se relacionam com as suas identidades. Por um
lado, o papel de um determinado ator representa o limite das ações do mesmo, o que
por sua vez acaba por definir a sua identidade. Por outro lado, a representação do ator
também pode ser influenciada pela sua identidade, podendo o primeiro servir como uma
referência ou enquadramento para o segundo (Nabers, 2011, p.83). Isto é importante
no contexto da UE, particularmente no caso do conflito na Ucrânia, devido ao que vários
autores identificam como um desequilíbrio entre aquilo que é percecionado como
“identidade europeia” e o que é feito em matérias de política externa.
Para além do suporte fornecido pela Role Theory enquanto abordagem teórica, este
trabalho também irá utilizar as Narrativas Estratégicas, um conceito desenvolvido por
Alister Miskimmon, Ben O’Loughlin e Laura Roselle (2013). Esta escolha prende-se com
o facto de nos permitir compreender melhor como a comunicação (política e não só) afeta
as relações entre os Estados, algo que poderá também ajudar a perceber se essa
narrativa se encaixa na identidade e no papel assumido pela UE.
O conflito armado na Ucrânia ganha um destaque particular pelo confronto de interesses,
discursos e identidades entre os atores envolvidos, sejam eles mais próximos da
narrativa da UE ou da narrativa russa. Por esse motivo, é fundamental perceber como
essas dinâmicas evoluem e afetam os atores envolvidos, sobretudo numa altura em que
a Rússia procura afirmar-se como um verdadeiro ator global, e num contexto em que a
UE sofre as consequências de problemas relacionados com as migrações, o Brexit ou a
administração norte-americana liderada por Donald Trump.
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União Europeia, Rússia e o caso do MH17: uma análise das narrativas estratégicas (2014-2019)
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UE Ucrânia Rússia Um Triângulo Imperfeito
O conflito armado na Ucrânia tem atraído atenção académica nos últimos anos, em
virtude de se ter transformado num palco de combate, não apenas em termos militares,
mas sobretudo ao nível da comunicação política. Contudo, ainda não é frequente
encontrar aplicações empíricas do conceito de Narrativas Estratégicas neste contexto.
Para além disso, o trabalho que tem sido desenvolvido foca-se, sobretudo, no impacto
da narrativa russa, como o disso exemplo os contributos de Joanna Szostek (2017;
2018) ou Irina Khaldarova (2016). Por esse motivo, importa então perceber de que forma
essa dinâmica tem sido construída do lado da UE, e que influência tem tido na
consolidação do papel da organização enquanto ator internacional.
Alguns autores defendem que a UE se comportou como qualquer outro ator, perante as
circunstâncias, e notaram que a reação foi rápida a vários níveis (Karolewski e Cross,
2017: 138). Também Michal Natorski e Karolina Pomorska (2017: 66) concordam com
esta ideia, dizendo que o conflito armado na Ucrânia conduziu mesmo a um aumento da
confiança entre os membros da UE face a um crescente desconforto nas relações com a
Rússia. A clivagem entre a UE e a Rússia é, de resto, um dos aspetos mais importantes
deste conflito, pelas consequências que tem o na Ucrânia, mas também para os
dois primeiros. Relativamente a essa diferença, Svante Cornell argumenta o seguinte:
“(…) the Russian sphere of influence is incompatible not only with
the form of European integration envisaged by the EaP, but at a
more fundamental level with the type of countries that the EU’s
instruments would help to create. Where European leaders want a
stable neighbourhood, Russia seeks an unstable one; where Europe
seeks to develop accountability, Russia undermines it. Thus, the
competition between Russia and Europe is not only geopolitical; it is
fundamentally ideological. (Cornell, 2014: 119)
Allister Miskimmon (2017: 164) afirma que a incongruência da narrativa da UE em
relação à Ucrânia tem afetado a credibilidade internacional da instituição e dificultado o
processo de afirmação enquanto ator internacional ao nível da política externa. Embora
o argumento não se refira diretamente à questão do MH17, demonstra a dificuldade da
UE em criar uma narrativa que possa ter recetividade não junto da comunidade
ucraniana, mas também dentro da instituição; Ucrânia representa assim “um teste para
a sua narrativa identitária como pacificador regional e defensor de valores universais”
(Miskimmon (2017: 161).
A ideia de que a UE tem tido um papel limitado face ao conflito ucraniano é corroborada
por outros autores. Taras Kuzio, por exemplo, apresenta três fatores no sentido de
comprovar esse argumento: a incapacidade de exercer uma influência assertiva ao nível
das reformas internas na Ucrânia, face à ausência de uma perspetiva de integração do
país na UE; a dificuldade de compreender as motivações das elites ucranianas; e a
dificuldade em compreender as dinâmicas de política externa da Rússia, ao achar que o
alargamento aos países de Leste não teria repercussões (Kuzio, 2017: 116-117).
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As dificuldades sentidas na relação com a Ucrânia advêm, em parte, de uma relação com
vários altos e baixos ao longo das últimas duas décadas. Esta ligação entre as duas partes
é descrita como uma parceria ambígua, fundada num desenho legal e institucional
complexo” (Ferreira-Pereira e Vieira, 2014: 12). Para além dessa dificuldade institucional,
a aproximação da Ucrânia à UE tem sido igualmente afetada por problemas internos,
como a corrupção ou a falta instituições democráticas estáveis. Aliás, “a vontade das
elites em explorar a dependência energética para seu próprio proveito” é vista como um
dos principais motivos para a elevada dependência ucraniana vis-à-vis à Rússia
(Dragneva e Wolczuk, 2016, p.694). Este aspeto faz com que “os obstáculos que a
Ucrânia enfrenta no ‘caminho para a Europa’ sejam formidáveis” (Wolczuk, 2017: 287).
A mesma autora, noutro artigo, destaca a ironia de, “após décadas de marginalização, a
Ucrânia se ter tornado crucial para os debates sobre o futuro da Europa” (Wolczuk, 2016:
70).
Esta relação algo tumultuosa é exacerbada, como se percebe, pelo crescente
afastamento da ssia em relação à UE, e vice-versa. As relações dentro deste triângulo,
pelo menos até ao início do conflito, são descritas por Vsevolod Samokhvalov (2015:
1372) como “um complexo mais ou menos homogéneo de dinâmicas de soma-zero”. O
autor enumera quatro argumentos fundamentais no desenvolvimento desse processo, e
que importa observar com atenção: em primeiro lugar, cada um dos atores (UE e Rússia)
procura introduzir na Ucrânia práticas políticas coadunáveis com os seus próprios valores
e interesses; em segundo, ao nível económico, cada um dos atores tem procurado abrir
o mercado ucraniano aos seus próprios mercados no sentido de criar uma dinâmica
transnacional; em terceiro, ambos os lados têm procurado atrair a Ucrânia para os seus
projetos de segurança na região, um cenário em que a OTAN aparece também como ator
central; por último, cada um dos dois lados tem tentado introduzir uma ideologia e
perceção da história mais próxima dos seus interesses (Samokhvalov, 2015: 1372-
1373).
Tudo isto leva a crer que a UE tem tido, efetivamente, várias dificuldades em assumir
um papel coerente vis-à-vis à Rússia e à Ucrânia. Para além disso, o papel que
desempenha nem sempre é visto de forma positiva (por outros atores). Na opinião de
Bengtsson e Elgstrom (2011: 129), isto é consequência de uma performance incoerente
e de elementos contraditórios no desenvolvimento - e o resultado atual - da integração
europeia.
As Narrativas Estratégicas em Contexto de Conflito Armado na Ucrânia
Perante o cenário anteriormente descrito, torna-se importante explorar com maior
atenção o conceito de Narrativas Estratégicas. De acordo com Miskimmon, O’Loughlin e
Roselle, estas são “representações de uma sequência de eventos e identidades, uma
ferramenta comunicativa através da qual os atores políticos normalmente as elites
tentam atribuir um determinado significado ao passado, presente e futuro no sentido de
alcançar objetivos políticos” (Miskimmon et al., 2013: 5). O foco nestas narrativas
enquanto veículos de transmissão de ideias ou identidades é importante porque permite
“ligar o espaço entre os conceitos de hard e soft power” (Roselle et al., 2014: 75), isto
porque a narrativa de um determinado ator pode, por exemplo, incluir o uso de recursos
militares, pelo que o estudo da comunicação e das narrativas permite estabelecer uma
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ponte entre estes dois conceitos e perceber que nem sempre os limites são facilmente
percetíveis.
Um aspeto importante das Narrativas Estratégicas, sobretudo no contexto do trabalho
aqui desenvolvido, é a sua divisão em três formas distintas: issue narratives; identity
narratives; e system narratives (Miskimmon, 2017: 155). No caso das primeiras, o autor
explica que se referem à forma como uma determinada narrativa se adequa a uma
política, ação ou evento em particular. Identity narratives estão relacionadas com a
identidade que um determinado ator atribui a si mesmo, e que acaba por influenciar a
sua narrativa e forma de atuar no campo internacional. Por último, system narratives
referem-se ao modo como esses mesmos atores encaram o sistema internacional
moderno, o que por sua vez tem influência na forma como as narrativas o criadas e
projetadas.
Alguns autores aplicam o conceito de Narrativas Estratégicas no âmbito de uma análise
da propagação de fake news durante o conflito armado na Ucrânia (Khaldarova e Pantti,
2016). As autoras concluem que as notícias e reportagens fabricadas fazem parte de
uma estratégia pré-estabelecida no sentido de “provocar uma resposta afetiva por parte
do blico” (Khaldarova e Pantti, 2016: 899). Isto significa que as narrativas estratégicas
podem, em determinados contextos, assumir um papel desestabilizador, como se tem
verificado em relação à posição da Rússia no conflito com a Ucrânia.
Um dos principais catalisadores desta “anarquia” informativa característica dos conflitos
modernos foi o surgimento de novas ferramentas comunicativas, nomeadamente a social
media. Uma das grandes inovações desta tecnologia foi o facto de “providenciar os
utilizadores com a capacidade de pesquisar informação e partilhar o seu próprio conteúdo
dentro das suas próprias redes” (Zeitzoff, 2017: 1972). Isto acaba por criar um ambiente
mais caótico, em que a informação pode ser reproduzida e partilhada por qualquer pessoa
com acesso a estas ferramentas, aumentando assim a possibilidade de propagação de
fake news algo extremamente comum no contexto do incidente do MH17, como
veremos mais à frente. No caso do conflito entre a Rússia e a Ucrânia, isto pode ser visto
como um caso em que a Internet veio aumentar o poder dos atores envolvidos para
produzir desinformação (Mejias e Vokuev, 2017: 1027).
Este novo ambiente comunicativo é muitas vezes descrito como o regime da pós-
verdade, isto é, um mundo em que os factos são menos importantes para moldar a
opinião pública do que os apelos às emoções e crenças pessoais. Este aspeto ganha uma
importância crescente se tivermos em conta que a identidade das populações é um fator
central na perceção de determinadas narrativas. No caso da Ucrânia, por exemplo,
Joanna Szostek (2018: 129) refere que “não deve ser surpreendente que as pessoas
negoceiem o significado das notícias com referência aos seus valores e experiências”.
Esta ideia está presente noutro artigo da mesma autora:
“A state may spend any amount of money on disseminating
messages about itself and the world, but the results will ultimately
still hinge on factors that are largely beyond its control including
the attributes of (multiple, diverse) receiving audiences and the
discursive context.” (Szostek, 2017: 380).
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Se as narrativas são produzidas por atores de forma a atingir determinados objetivos,
essas mesmas narrativas estão suscetíveis a manipulação por parte dos atores
envolvidos. Nesse sentido, é importante enquadrar o conceito de disinformation, ou
desinformação. Este pode ser entendido como “mentiras intencionais difundidas como
notícias ou formatos de documentários simulados para atingir objetivos políticos”
(Bennett e Livingston, 2018: 124). A facilidade com que este tipo de informações, mal-
intencionadas, circulam entre os vários meios de comunicação, faz com que seja cada
vez mais difícil distinguir a informação verdadeira daquela que pretende apenas mentir
ou enganar.
Alguns autores colocam a responsabilidade deste processo no fortalecimento das redes
sociais como veículo de comunicação (Hannan, 2018). Isto faz com que seja fundamental
analisar a evolução deste procedimento nas redes sociais, onde a difusão de conteúdos
noticiosos falsos (fake news) é consideravelmente mais fácil e eficaz.
No caso da Ucrânia e do conflito que se desenvolveu a partir de 2014, um dos argumentos
existentes é de que “a utilização da social media enfraqueceu o poder da sociedade civil
ao permitir a difusão galopante da desinformação” (Mejias e Vokuev, 2017: 1028).
Associado ao que se considera ser uma “quebra de confiança nas instituições
democráticas de imprensa e política” (Bennett e Livingston, 2018: 127), a enorme
quantidade de fontes de informação no panorama comunicativo atual faz com que a
desinformação seja uma ferramenta cada vez mais viável. Olhemos para as palavras de
Bennett e Livingston para uma ideia deste quadro:
“Compared to the mass media era, the current age displays a
kaleidoscopic mediascape of television networks, newspapers and
magazines (both online and print), YouTube, WikiLeak, and LiveLeak
content, Astroturf think tanks, radical websites spreading
disinformation using journalistic formats, Twitter and Facebook
among other social media, troll factories, bots, and 4chan discussion
threads, among others.” (Bennett e Livingston, 2018: 129)
Isto ajuda a criar um ambiente informativo mais caótico, uma espécie de “velho-Oeste
da comunicação” (Hannan, 2018: 11). Por sua vez, esse fator aumenta a possibilidade
de ocorrerem “guerras de informação”, como se tem verificado na Ucrânia, onde posições
distintas procuram diluir a importância da narrativa do adversário. Num dos estudos que
desenvolveu junto da população ucraniana, Joanna Szostek demonstra como a maioria
das pessoas que participaram no mesmo olhavam para os meios de comunicação em
geral com um elevado nível de desconfiança (Szostek, 2018: 124).
Este tipo de métodos híbridos de combate (utilizando não apenas meios militares
tradicionais, mas também sistemas de information warfare) tem sido, de resto, uma
grande preocupação para a UE, sobretudo perante a atuação recente da Rússia em
termos de ação externa (Wagnsson e Hellman, 2018). Estes autores propõem uma
postura normativa que privilegie o apoio a atores secundários que possam contestar
atitudes que identificam como incorretas, isto sem procurar ridiculizar “o outro”
(Wagnsson e Hellman, 2018: 12). Esta dificuldade, dentro da UE, em encontrar uma
postura adequada perante o que é geralmente entendido como uma escalada em termos
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de hybrid warfare por parte da Rússia, demonstra a importância de aplicar o conceito de
Narrativas Estratégicas. Ao compreender como este processo é montado e propagado,
será no futuro mais fácil encontrar formas de lidar com o mesmo.
Por outro lado, a literatura existente sobre esta temática tem-se focado, como referido
anteriormente, no impacto das narrativas russas durante o conflito armado na Ucrânia
(Khaldarova e Pantii, 2016; Mejias e Vokuev, 2017; Szostek, 2017; Szostek, 2018). Uma
das lacunas que este artigo pretende preencher é precisamente explicar o papel da UE
nesse processo, e perceber de que forma a narrativa europeia foi evoluindo ao longo dos
últimos anos.
O MH-17 e o Choque de Narrativas
A queda do avião MH17 em julho de 2014 representou um momento crucial no que diz
respeito à evolução das narrativas dos atores envolvidos em relação ao conflito na
Ucrânia. Por um lado, a UE teve a oportunidade de reforçar o seu papel enquanto ator
relevante no terreno, já que dois dos seus membros (Holanda e Bélgica) foram afetados
diretamente, e tem sido envolvidos na Joint Investigation Team (JIT)
2
, equipa
responsável por analisar o caso do MH17. Por outro lado, a Rússia tem procurado utilizar
o incidente como prova de que o Ocidente continua a afastar o país do centro das
decisões, em particular devido à recusa da participação russa na JIT (vf Tabela 1).
Contudo, a postura assumida pela Rússia não foi orientada para cooperação; ao invés
disto, criou-se um contexto em que a JIT tenha sido constantemente confrontada com
novas versões dos acontecimentos que levaram à tragédia MH17. Nesta secção,
procuramos analisar alguns pontos de viragem importantes no desenvolvimento do
processo relacionado com o MH17.
No dia 18 de julho de 2014, um dia após a queda do avião MH17, autoridades ucranianas
revelaram várias gravações com conversas entre separatistas ucranianos e oficiais
militares russos sobre o acidente (BBC, 2014). Embora não fosse possível confirmar a
veracidade das mesmas, as suspeitas levantadas desde a primeira hora tinham como
ponto central a participação da Rússia na queda da aeronave. Esta situação provocou
uma rápida reação por parte do governo russo, que desde logo assumiu uma postura
acusatória em relação ao papel da Ucrânia no caso. Numa declaração oficial feita no
mesmo dia, o Ministério de Defesa Russo assegurava que os sistemas de defesa rea
russos não estariam a operar naquela área no dia do acidente, insinuando por sua vez
que existiriam na região forças ucranianas com acesso a unidades de defesa antiaérea
iguais à que teria sido utilizada para abater o avião, o BUK-TELAR (Ministério da Defesa
Russo, 2014).
No dia 21 de julho, o mesmo Ministério realizava uma conferência de imprensa onde
acusava diretamente a Ucrânia pelo desastre, nomeadamente através de um avião de
combate ucraniano, de modelo Su-25, que teria alegadamente sido avistado junto do
MH17 antes da queda. De acordo com o grupo Bellingcat, todas as hipóteses levantadas
por Moscovo “foram refutadas por múltiplas fontes, por vezes até mesmo pelas provas
providenciadas pelo próprio governo russo” (Toler, 2018). Durante vários meses após o
2
A Joint Investigation Team foi criada após a queda do MH17 em agosto de 2014, com o objetivo de liderar
a investigação criminal do caso. O grupo é composto por forças policiais e judiciais dos Países Baixos,
Ucrânia, Bélgica, Malásia e Austrália.
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desastre, a narrativa russa dos acontecimentos foi alternando, sobretudo, entre estas
duas versões: por um lado, a de que o avião teria sido abatido por um sistema BUK
controlado pelo exército ucraniano; por outro lado, a teoria de que teria sido um caça
ucraniano a provocar a queda do MH17.
em junho de 2015, uma análise da empresa estatal de armamento russa Almaz-Antey
alegava que o ssil 9M38M1, utilizado para abater o MH17, não era utilizado pelas forças
russas desde 1999 (Russia Today, 2015). Esta informação surge em linha com a teoria
de que o ssil teria sido operado por forças ucranianas, sem que militares russos
estivessem de alguma forma envolvidos no processo. Mais uma vez, o grupo de
investigação Bellingcat viria a contestar esta informação, reunindo um conjunto de
imagens que mostravam como as forças militares russas continuariam a utilizar o mesmo
tipo de ssil descrito (Higgins, 2015). Em outubro do mesmo ano, o relatório final do
Dutch Safety Board (DSB)
3
concluía que o MH17 teria mesmo sido abatido por um
sistema BUK fabricado na Rússia, ainda que não apresentasse conclusões definitivas
sobre quem teria sido o responsável pelo disparo do mesmo (Dutch Safety Board, 2015).
Estes resultados, ainda que não definitivos, voltavam a colocar o governo russo debaixo
de fogo. Mais uma vez, a narrativa de Moscovo era de negação, procurando passar a
mensagem de que o Ocidente estaria a tentar incriminar a Rússia sem provas suficientes
(vf. Tabela 1).
Neste contexto, os anos que se seguiram ao incidente ficaram marcados por uma batalha
narrativa em que os resultados levantados pelo DSB ou pela JIT eram rapidamente
desmentidos por responsáveis russos, que procuravam alimentar várias teorias acerca
da queda do avião, com particular destaque para as duas anteriormente referidas. Em
setembro de 2016, por exemplo, o Ministério de Defesa Russo apresentava imagens de
radar que mostravam a alegada presença de sistemas de defesa aérea ucranianos na
região onde o MH17 tinha caído, mas sem referência à presença de aviões militares
ucranianos perto do MH17, em contradição com o que havia sido dito dois anos antes,
na conferência de imprensa de 21 de julho de 2014 (Higgins, 2016).
Verifica-se, portanto, que a postura da Rússia ao longo de todo o processo tem variado,
demonstrando uma inconsistência grave na sua dimensão de issue narrative
nomeadamente no que diz respeito à sua preocupação com a questão do míssil BUK que
abateu o MH17 e os detalhes que envolveram o seu processo de produção e o transporte
para território ucraniano. Além disto, na dimensão de identity narrative, podemos
enquadrar a postura russa, no contexto da Role Theory, como um ego state sobretudo
no contexto da sua posição contestatória em relação ao trabalho do JIT, atribuição da
responsabilidade à Ucrânia, e a crítica da UE bem como do Ocidente pelo apoio
incondicional à Ucrânia (Telegraph 2014, vf Tabela 1).
Ainda que o caso tenha perdido alguma atenção mediática desde então, o relatório da
JIT, de maio de 2018, voltou a colocar as atenções sobre o alegado papel da Rússia.
Olhemos para uma das principais conclusões:
“Today, the JIT has concluded that the BUK-TELAR which was used
to shoot down flight MH17 originated from the 53rd Anti-Aircraft
3
O Dutch Safety Board foi convidado a participar na investigação criminal do caso MH17 pelo National Bureau
of Air Accidents Investigation of Ukraine.
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Missile Brigade of the Russian armed forces. This observation raises
questions, such as the question whether the Brigade itself was
actively involved in the downing of flight MH17 on 17 July 2014. An
important question, which the JIT is still investigating.” (Joint
Investigation Team, 2018)
De acordo com o argumento apresentado, as forças militares russas teriam tido um
envolvimento direto no transporte do sistema utilizado para abater o MH17, uma
narrativa corroborada pela equipa do Bellingcat. A narrativa russa, por outro lado,
continua a ser de negação em relação a qualquer tipo de envolvimento no caso,
reforçando (recentemente) a postura acusatória em relação à Ucrânia. Em Setembro de
2018, o exército russo anunciava que o míssil utilizado para abater o MH17 pertenceria
aos militares ucranianos, tendo saído de território russo em 1986 (Vasilyeva, 2018).
Em 19 de junho de 2019, a JIT anunciou que serão instaurados processos penais nos
Países Baixos contra quatro pessoas responsáveis pela tragédia do voo MH17.
A East Stratcom Task Force e a resposta da UE
A tradicional dificuldade da UE em agir a uma voz em relação à Ucrânia tem sido
aumentada, nos últimos anos, pelas crescentes campanhas de descredibilização e
desinformação, promovidas em larga escala no contexto do conflito por meios de
comunicação de influência russa ou pelo próprio Kremlin. Este aspeto ganha particular
relevância perante a incapacidade da UE em impedir que os seus membros tenham, por
vezes, posições distintas ou até contraditórias entre si (Karolewski e Cross, 2017: 148).
Apesar disso, a queda do MH17 veio impulsionar, inicialmente, uma maior coesão na
postura da UE perante a ssia, sobretudo através do endurecimento das sanções
impostas a Moscovo e da maior assertividade de alguns atores anteriormente reticentes
em hostilizar a Rússia, com particular destaque para o caso da Alemanha. Esta alteração,
provocada pela morte de cidadãos europeus, permitiu à UE atribuir-se uma narrativa
própria enquanto ator proeminente na região, cujo papel é fundamental para a resolução
do conflito, assumindo o seu papel enquanto role state perante o envolvimento russo. A
narrativa estratégica da UE destaca-se pelo reconhecimento que a Rússia esteja
envolvido no conflito armado na Ucrânia, e apelos à Rússia para assumir a sua
reponsabilidade em relação à tragédia do MH17 (e.g., Alta Representante, 2018, 2019).
No entanto, em particular no início, a UE procurou afastar-se da ‘guerra das narrativas’
relativamente ao curso dos acontecimentos que levaram à queda do MH17, sem
acompanhar as alterações na narrativa russa, ou destacar a incoerência grave desta
narrativa, no seu discurso oficial. Eventualmente, isto fez com que a narrativa estratégica
russa mantivesse a sua projeção, algo que foi adicionalmente reforçado pela
surpreendente posição de Mahathir Mohamad, Premier-Ministro de Malásia, que em
Junho 2019, contrariamente à posição do governo anterior, desafiou as conclusões da
JIT ao declarar que esta última não tem provas do envolvimento russo na tragédia. A
postura da EU - que se centrou no apoio ao trabalho da EIC/JIT, considerado “essencial
e conduzido ‘com independência, profissionalismo e isenção” (Alta Representante, 2018)
- não foi mais longe do que isso, acabando por enfraquecer a dimensão de issue narrative
da narrativa estratégica da UE, criando um desalinhamento com a sua identity narrative
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de um ator investido na promoção e defesa dos Direitos Humanos, valores, e capaz de
contribuir para resolução de um conflito armado, em linha com a atuação de um role
state (vf Tabela 1).
A principal forma que a UE encontrou para combater as campanhas de desinformação
russas foi a criação, em 2015, da East Stratcom Task Force (ESTF), uma equipa com o
objetivo de monitorizar e documentar as narrativas de desinformação que estejam de
alguma forma ligadas ao Estado russo ou a grupos de media ligados ao mesmo a atuar
na região do Leste Europeu. Nas suas conclusões de março de 2015, o Conselho Europeu
reiterava a “necessidade de enfrentar as contínuas campanhas de desinformação russas
(Conselho Europeu, 2015), o que levou à elaboração de um Plano de Ação, apresentado
em junho desse mesmo ano. A importância que a UE atribui à ESTF revela-se na
apreciação do seu trabalho, que consiste na sistematização de 4500 casos de
desinformação russa pelo Conselho em 2018, e a triplicação do orçamento da ESTF em
2019, em relação ao de 2018 (EEAS 2018). No entanto, a posição da ESTF “não pode ser
considerada a posição oficial da EU” (EEAS 2018).
Através de uma publicação semanal intitulada Disinformation Review e do seu website
EUvsDisinfo, a ESTF procura analisar notícias falsas ou enviesadas a favor da posição
oficial do Kremlin. Ao contrário da UE, a ESTF adota uma postura muito mais crítica em
relação ao papel da Rússia no conflito armado na Ucrânia. No caso do MH17, o trabalho
desenvolvido resultou na publicacão de vários artigos que, na generalidade, apontam a
Rússia como a responsável pelo encobrimento da verdadeira causa e dos culpados pela
queda do avião, com ‘nove ondas’ de desinformação russa direcionada para o caso de
MH17 a serem enunciadas num dos exemplos analisados (EUvsDisinfo 2017). Num outro
atigo referente a esta matéria, a equipa defende que “as autoridades russas têm
conduzido, em conjunto com os media, uma campanha de desinformação que controlam
de forma direta e indireta com o objetivo de encobrir a verdade sobre quem abateu o
voo MH17 da Malaysian Airlines no Leste da Ucrânia” (EUvsDisinfo, 2018). Um artigo
mais recente apresenta uma análise cronológica do que se define como “cinco anos de
campanhas de desinformação pró-Kremlin” (EuvsDisinfo2019). Isto demonstra que a
ESTF a Rússia não só como “inimiga” da investigação sobre o MH17, mas também
como um obstáculo aos próprios valores da UE.
Se compararmos esta posição com a de um certo afastamento oficial da EU em relação
a estas campanhas de desinformação, percebemos que existe uma dissonância na
narrativa estratégica da UE, com uma posição mais ponderada e que procura manter
uma linha de diálogo aberta com a Rússia; e outra mais assertiva, que identifica
claramente a Rússia como um ator antagónico posição da ESTF. Esta última apresenta
um melhor alinhamento entre a issue narrative e identity narrative da UE enquanto um
ator normativo na linha de um role state, mas não é aceite como narrativa estratégica
oficial da UE.
Conclusões
O conflito armado que despoletou na Ucrânia em 2014, tem-se revelado um obstáculo
difícil de ultrapassar para a UE em matéria de política externa e projeção internacional.
A tragédia do voo MH17 serve com o exemplo mais claro deste conflito como um palco
de combate, o apenas em termos militares, mas sobretudo ao vel da comunicação
política.
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No caso da Rússia, a resposta ao incidente tem variado entre um foco na issue narrative
nomeadamente no que diz respeito à sua preocupação com a questão do ssil BUK
que abateu o MH17 e os detalhes que envolveram o seu processo de produção e o
transporte para território ucraniano; e numa identity narrative que podemos enquadrar,
no contexto da Role Theory, como um ego state sobretudo no contexto da sua posição
constestatória em relação ao trabalho do JIT. As dimensões narrativas apresentadas
revelam-se pouco consistentes, e desalinhadas entre si, mas acabam por resultar na
criação de um desafio sério para a projeção da própria narrativa da UE, que inicialmente
procurou afastar-se dessa guerra de narrativas.
Após a análise aqui apresentada, verificamos que esse afastamento dificultou a projeção
de uma narrativa mais assertiva, de forma oficial, ocorrendo uma espécie de
“outsourcingda resposta para os Estados-membros e a JIT. A resposta mais clara surge
como resultado do trabalho desenvolvido pela ESTF e pela campanha “EU vs. Desinfo”,
ainda que esta raramente seja incorporada na posição da UE enquanto instituição. A
dissonância que resulta desta posição da EU acaba por enfraquecer a dimensão de issue
narrative, da sua narrativa estratégica, criando ainda incongruência com a sua identity
narrative de um ator investido na promoção e defesa dos Direitos Humanos, valores, e
capaz de contribuir para a paz na região. Podemos concluir que a UE, embora tenha
procurado manter a sua identity narrative enquanto role state na região, tem tido
dificuldade em combater as constantes campanhas de desinformação levadas a cabo pela
Rússia no contexto da queda do MH17. A aspiração de manter a sua identity narrative
acabou por não se traduzir na projeção de uma narrativa consistente e suficientemente
forte por parte da instituição, tendo servido como uma espécie de “campo de testes”
para a projeção de novas campanhas de desinformação.
Tabela 1. As narrativas estratégicas russas e UE em relação ao MH 17: identity, system, issue
Identity/identidade
System/Sistema
Issue/Questão (MH17)
Rússia
- Narrativa de um ego state
- Tentativas ocidentais de
representar a Rússia como
‘culpado’ e ‘inimigo’ –
exclusão da Rússia pelo
Ocidente/UE e não-aceitação
da Rússia enquanto Ator
Global;
- Confrontação entre a
Rússia e o Ocidente na
Europa
- UE/Ocidente deve
aceitar Rússia
enquanto ego state,
para o bem da
estabilidade regional
- Responsabilidade pela
tragédia: ucraniana;
- Crítica do apoio
incondicional ocidental à
Ucrânia, tanto em relação
MH17 como conflito
armado
UE
- Narrativa de um role state
- Ator com aspirações de
encontrar solução para
conflitos regionais
- Governação com base nos
princípios da democracia e
direitos humanos o poder do
exemplo da UE (apesar do
Brexit)
- Princípios da
democracia e Direitos
Humanos
- Pragmatismo aliado
aos princípios
(principled
pragmatism);
- Responsabilidade pela
tragédia: russa, deve ser
assumida pela Rússia
- Envolvimento da Rússia
no conflito armado na
Ucrânia: Rússia enquanto
Problema e não Parceiro
Estratégico
***- STRATCOM: Rússia
enquanto ator responsável
pela desinformação
propositada e que desafia
os valores da UE
Fonte: Tabela elaborada pelos autores, com base no contributo de Miskimmon (2017).
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em nome da UE, por ocasião do terceiro aniversário do abate do voo MH17 da Malaysian
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ASSEMBLAGES GLOBAIS DE SEGURANÇA: MAPEANDO O CAMPO
Jovana Jezdimirovic Ranito
jovanaranito@gmail.com
Investigadora Pós-Doutoramento na Universidade do Porto e Examinadora Externa do Programa
Diploma em Política Global da International Baccalaureate Organization. É doutorada em política
internacional e resolução de conflitos pela Universidade de Coimbra. A sua área de especialização
inclui governança da segurança privada, regulamentação de empresas de segurança privada e
dinâmica entre forças militares e de segurança pública e privada. A sua publicação mais recente
é Regulating US Private Security Contractors, publicada em 2019 pela Palgrave Macmillan
Resumo
O conceito de assemblages globais de segurança (os conjuntos de segurança global, com uma
década de existência, têm sido uma ferramenta útil para explicar grande parte da colaboração
securitária atípica entre entidades públicas e privadas, melhorando bastante a nossa
compreensão da colaboração entre forças de segurança públicas e privadas, que até então
eram vistas principalmente através do paradigma civil-militar. Através da expansão de
cenários onde se observaram as forças de segurança privadas (de forma a incluir ambientes
não considerados em guerra ou em paz, mas num plano intermédio), as assemblages globais
de segurança demonstraram, em inúmeras ocasiões, ser exemplos em que a cooperação entre
forças públicas e privadas pode contribuir para a melhoria do ambiente de segurança global.
Assim, até onde podemos alargar esse conceito? As entidades privadas operam em vários
locais e contextos, e o conceito pode ser uma ferramenta limitada para entender o seu
contributo para alcançar um ambiente mais estável. Foi definido para ser usado em ambientes
pacíficos, mas será possível alarga-lo a ambientes instáveis, em cenários de segurança
imprevisíveis? Este artigo analisa a forma como o conceito foi usado e aplicado até o
momento, o contexto em que pode ser e foi aplicado e traça as limitações à sua utilização.
Palavras-chave
Assemblages globais de segurança; segurança privada; conflito; relações civis-militares;
relações público-privadas.
Como citar este artigo
Ranito, Jovana Jezdimirovic (2019). "Assemblages globais de segurança: mapeando o
campo". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 10, N.º 2, Novembro 2019-Abril
2020. Consultado [online] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-
7251.10.2.5
Artigo recebido em 29 de Novembro de 2018 e aceite para publicação em 17 de Maio de 2019
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Assemblages globais de segurança: mapeando o campo
Jovana Jezdimirovic Ranito
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ASSEMBLAGES GLOBAIS DE SEGURANÇA: MAPEANDO O CAMPO
1
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Jovana Jezdimirovic Ranito
O conceito de assemblages globais de segurança surgiu como uma resposta à longa
busca por uma estrutura adequada sob a qual a cooperação e a dinâmica entre atores
públicos e privados que prestam serviços de segurança possam ser estudadas. A forte
reintrodução do uso da segurança privada nas principais políticas dos estados desde o
início do século, além da sua crescente utilização pelo setor privado, causou sérias
dificuldades no estudo da dinâmica entre os novos atores e respetivas interações com
forças e/ou instituições estatais. A primeira vaga da literatura procurou referências
históricas sobre como abordar esses novos atores e encontrou terreno fértil na
comparação com mercenários após alguns dos incidentes mais graves causados por
essas forças com contratos governamentais (Fidler, 2007; Pelton, 2007; Singer, 2004).
A forma predominantemente desconhecida (para o blico em geral) como são utilizadas,
as regras do seu envolvimento e as estruturas legais e institucionais limitadas sob as
quais esses novos atores seriam categorizados causaram problemas na nossa
compreensão (Silverstein, 1997; Brooks, 2000; Singer, 2003; Kinsey, 2005; Krahmann,
2005a). O mal-entendido da evolução do setor da segurança privada - e a perceção do
público em geral de que são mercenários - foi o principal desafio enfrentado nos primeiros
anos. Por um lado, Silverstein (1997), Brooks (2000) e Singer (2003) contribuíram ao
esclarecer a indústria e os novos contextos nos quais são utilizados. Por outro lado,
Kinsey (2005) e Krahmann (2005a) destacaram o quadro jurídico inadequado para lidar
com o setor da segurança privada, em vez de com mercenários.
A literatura sobre governança de segurança abordou aspetos da inclusão de atores não
estatais (e particularmente empresas de segurança privadas) na estrutura institucional
(Bryden & Caparini, 2006; Bures & Carrapico, 2017; Krahmann, 2010). No entanto,
poucas opções estavam disponíveis para observar a dinâmica cotidiana entre os agentes
de segurança estatais e privados. Certamente, a questão mais problemática para os
académicos foi a abordagem usada para realizá-la após o alargamento do uso da
segurança privada a operações de estabilidade em situações de pós-conflito. Avant
(2004, 2005) abordou a questão do intercâmbio de poder ao analisar, em termos de
1
A tradução deste artigo foi co-financiada pelo Instituto Camões no âmbito do projeto da Conferência
Internacional de Resolução de Conflitos e Estudos da Paz. Texto traduzido por Carolina Peralta.
2
Dossiê temático de artigos apresentados na Conferência Internacional de Resolução de Conflitos e
Estudos da Paz realizada na UAL a 29 e 30 de Novembro de 2018.
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Assemblages globais de segurança: mapeando o campo
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eficácia no terreno e no processo de tomada de decisão, como o poder relacionado com
decisões de segurança previamente monopolizadas pelos estados foi influenciado pelas
empresas de segurança privadas que para eles trabalham. A autora reconheceu
dificuldades no recurso a qualquer abordagem de RI em questões associadas a empresas
de segurança privada, uma vez que esses atores e interações representam novas
realidades que nunca vimos antes (Avant, 2006). Outra abordagem frequentemente
usada para analisar a cooperação entre forças de segurança privadas e instituições
estatais é através das relações/cooperação civis-militares. Desde a análise da forma
como trabalham juntas no terreno e os problemas que enfrentam devido às diversas
culturas de onde provêm (Bruneau, 2011; Herbst, 2007; Holmqvist, 2005), até
encarando-a como uma questão de governança ou procurando respostas dentro das
teorias das redes (Avant, 2016; Krahmann, 2016), os estudiosos têm sentido dificuldade
em aplicar o conhecimento do terreno às estruturas existentes.
Nesses contextos, havia a necessidade de outra abordagem que facilitasse o estudo da
segurança militar terceirizada (por alguns estados), e que também alargasse a análise
dos serviços de segurança comerciais prestados globalmente que vinculavam instituições
estatais e atores privados. Em 2009, Abrahamsen e Williams propuseram uma nova
ferramenta para estudar o impacto e as relações entre empresas privadas de segurança
e atores estatais, relacionado com a utilização comercial da segurança. As assemblages
globais de segurança propuseram examinar como, na prática, as empresas de segurança
privadas podem afetar os cenários de segurança no terreno. A maior inovação foi a
possibilidade de observar de perto a dinâmica entre atores públicos e privados e a
concentração nos dados empíricos.
Dez anos decorridos desde a sua introdução, aqui o foco é sobre a utilidade desse
conceito até agora. A contribuição que procuro fazer é apresentar uma visão equilibrada
da última década, examinando esse conceito através de uma revisão da literatura,
destacando a forma como as realidades se tornaram cada vez mais complexas e não são
explicáveis mediante outras abordagens, como a governança de segurança das teorias
atores-redes. Tentarei demonstrar que ganhou terreno por rito próprio, embora tenha
servido de inspiração para outros conceitos que dele derivaram. Por fim, este artigo
explorará os desafios que o conceito de assemblages globais de segurança atualmente
enfrenta com a crescente complexidade dos ambientes de segurança, nomeadamente a
análise da inclusão de novos atores, tais como terroristas, rebeldes e rios grupos
criminosos.
De forma a consegui-lo, examino onde esse conceito tem sido aplicado e com que
finalidade. Depois, uso as limitações que lhe foram reconhecidas e questiono a sua
relevância uma década após a sua introdução. Faço uma análise crítica da literatura mais
importante publicada nesses dez anos e procuro incluir a ampla gama de questões que
foram abordadas.
O artigo está dividido em quatro partes, a saber: primeiro, abordo o próprio conceito e
explico as suas principais características e objetivos. De seguida, examino onde
geograficamente, tematicamente e por que disciplinas tem sido usado até ao presente.
Depois, defino as limitações do conceito. Finalmente, concluo que, embora haja muitos
benefícios no uso dessa abordagem, também existem certas restrições, e recomendo
novas áreas de investigação.
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Conceito de Assemblages globais de segurança o que é e por que o
utilizamos?
O conceito de assemblages o é novo e tem sido usado em várias disciplinas nas
décadas anteriores. Originalmente, o conceito e a teoria das assemblages foram
introduzidos pelos filósofos franceses Deleuze e Guattari (1987) e, depois deles, foram
amplamente utilizados e desenvolvidos na sociologia e na ciência política.
O contributo de Deleuze para o pensamento da assemblage foi amplamente aceite, mas
sobretudo as suas ideias rudimentares e dispersas, e o tanto a teoria articulada
(DeLanda, 2006: 3). Deleuze e Guattari estabeleceram o conceito de assemblages, ainda
primordiais na articulação, mas contendo três elementos essenciais: máquina abstrata,
elemento concreto e personae. Tal como Nail (2017: 2324) sublinhou, para Deleuze e
Guattari, as assemblages são como máquinas abstratas, pois a) o existem como
coisa/objeto no mundo, sendo antes um conjunto de relações externas que circundam
elementos e agências e b) são redes de relações externas específicas definidas pela
composição, mistura e agregação. As assemblages também precisam de ter um elemento
concreto, uma modalidade existente de assemblages, como uma estrutura esquelética
ou um arquipélago (Nail, 2017: 26). Por fim, as personae das assemblages são agentes
que não podem ser observados e estudados independentemente, pois são operadores
móveis que ligam elementos concretos de acordo com as suas relações abstratas.
Deleuze e Guattari dão exemplos de um corredor ou intercessor, afirmando que “A
persona é necessária para relacionar conceitos no avião, assim como o próprio avião
precisa de ser definido” (Deleuze & Guattari, 1996: 7376).
Em 2006, DeLanda apresentou o que achava ser uma versão melhorada da teoria da
assemblage, que ele considerou ser a versão 2.0 da Deleuze ou, como a designou, "teoria
da neo-assemblage" (DeLanda, 2006: 4). O seu objetivo era libertar a teoria das
Assemblages da divisão micro-macro e permitir uma análise cruzada de entidades e
processos sociológicos. A diferença dos conceitos isolados mencionados por Deleuze está
na recolha de certos elementos do pensamento da assemblage e fazer com que façam
sentido do ponto de vista analítico. Por exemplo, partiu da ontologia social de Deleuze e
Guattari (indivíduos, grupos e campo social), que considerava primitiva, e alargou-a a
organizações internacionais e redes interpessoais. Além disso, vai mais longe, mostrando
que as assemblages devem ser totalmente "independentes das nossas mentes", pedindo-
lhes que sejam agentes autónomos e independentes da mente. DeLanda reconhece que
a exterioridade das relações é uma suposição importante das assemblages. Isso implica
que as assemblages não o uma formação firme e estática; podem ser separadas em
partes funcionais que interagem com os outros atores, mas ainda assim, quando
interagem entre si, as suas interações podem resultar em síntese (DeLanda, 2006: 11).
Além disso, analisa as relações binomiais entre territorialização e desterritorialização e
usa a codificação para analisar cada elemento da interação entre as partes que formam
a assemblage.
DeLanda dedicou cada capítulo a um tipo diferente de assemblage, para expressar a
variedade de formas que podem assumir: social (capítulo 1), linguística (capítulo 2),
marcial (capítulo 3), práticas científicas (capítulo 4), uma diagramação do real e do
virtual (capítulo 5), atómicas, genéticas e químicas (capítulo 6) e soluções científicas e
matemáticas (capítulo 7).
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Ao longo do tempo, os académicos deixaram a sua própria marca no conceito de
assemblages, ampliando o seu uso e propondo novas direções. O principal avanço da
teorização de DeLanda é a suposição de que as assemblages não se devem limitar à
teoria, mas sim consideradas como uma forma de pensar. Como Acuto e Curtis (2014:
3) explicaram, aplicar uma ferramenta de pensamento a assemblages é “um recurso que
torna essa abordagem menos uma teoria e mais um repositório de todos e posições
ontológicas em relação ao social”.
Outros começaram a introduzir novos aspetos e teorias para complementar o
pensamento sobre as assemblages: Legg (2011) em conjunto com Foucault, Haraway
com uma abordagem feminista (Feigenbaum, 2015) e McCann e Ward (2012) com uma
aplicação para estudar políticas. Embora cada aplicação tenha as suas próprias
idiossincrasias, o pensamento das assemblages teria algumas características centrais,
como o acolhimento da multiplicidade, o foco em práticas de relação e ordenação, uma
mistura de expressividade material e simbólica e simultaneidade de territorialização e
desterritorialização (Bureš, 2015a: 1718). Outras características comuns de todo
pensamento sobre a assemblage são os métodos utilizados para alcançá-lo: etnografia,
entrevistas, observação participante e análise de discurso (Lisle, 2014: 70).
Assemblages globais de segurança é um conceito proposto por Rita Abrahamsen e
Michael Williams (2009b) com o objetivo de fornecer uma estrutura para conhecer com
as práticas o impacto que as empresas de segurança privada têm no contexto de
segurança em que operam.
Estes autores partiram da noção de desmontagem do estado de Sassen (2008), que
assumiu a reconfiguração do estado como o conhecíamos antes nas democracias de estilo
ocidental, e a integração de atores não estatais como participantes ativos. A contribuição
de Sassen não é apenas um reconhecimento da existência de atores não estatais, como
havia sido feito décadas atrás; contudo, ela é a primeira a explicar que o sistema assente
nos agentes tradicionais precisa de ser desmontado e voltado a montar para atrair atores
não estatais como participantes iguais e ativos nas estruturas de governança. A partir
daí, Abrahamsen e Williams propuseram voltar a montar a forma como a prestação de
segurança é intendida atualmente, incluindo prestadores de segurança privados como
parte integrante da mesma.
Essa abordagem trouxe para o centro da análise, quando se trata de segurança privada,
um elemento importante que antes tinha sido deixado de lado: a etnografia. Não
limitando a natureza descritiva do método etnográfico, mas usando-o como ponto de
partida da análise, o conceito de assemblages de segurança global concentra-se na
integração de dados recolhidas nas práticas e interpretação dos mesmos através de dois
paradigmas importantes - e até então separados: privado/público e local/global. Usando
o conceito de campo
3
de Bourdieu, Abrahamsen e Williams (Abrahamsen & Williams,
2010) trabalham na remontagem das nossas perceções de onde termina a esfera pública
e onde começa a privada. Estes autores usaram o conceito como uma libertação analítica
3
O campo representa um espaço social que vai além da localização de objetos de análise no contexto
histórico, espacial (local, nacional, internacional) e relacional, e inclui a compreensão de como o
conhecimento anterior foi gerado, por quem e que interesses foram servidos por essas práticas (Bourdieu,
2000a, 2000b). Às vezes, a analogia é com um determinado campo de jogos desportivos: são modelados
de acordo com o jogo que é jogado; possui regras próprias, protagonistas, histórias, lendas e tradição
(Thompson, 2014: 67). Os agentes partilham mais de um campo simultaneamente, variando em
generalidade e alcance, e incluem esferas da vida profissional e privada.
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das fortes restrições teóricas, assumindo que o conceito é construtivo e profundamente
interconectado com descobertas empíricas (2014a: 27), partindo do entendimento linear
do lugar e do papel dos atores envolvidos na governança informal da segurança
(organização) em certos lugares, como em África, onde o conceito ocidental de como as
coisas ocorrem não é aplicável (Abrahamsen, 2017). Os autores deram um grande passo,
deixando de lado as até então teorias de rede para explicar como os atores de segurança
cooperam e trabalham no mesmo local. A sua estrutura conceptual apoia-se nos
conceitos de capital e poder de Bourdieu, permitindo a solidificação do terreno teórico e
o estabelecimento de algumas fronteiras conceptuais, e ao mesmo tempo abertura para
adaptá-lo de forma a ser aplicável nas realidades que o o democracias ocidentais.
Embora admitam derrapagens entre a teoria de campo de Bourdieu e as assemblages, é
claro que a teoria de campo de Bourdieu não é aqui aplicável na sua totalidade
(Abrahamsen & Williams, 2014: 27). O conceito de campo simplesmente não é extensível
a uma escala global e, portanto, foi necessário fazer ajustes significativos. No entanto,
permitiu a liberdade de definir conjuntos de atores não lineares e fora da rede, e admitir
natureza e características transformacionais quando se trata do poder e do capital que
possuem.
A remontagem da nossa perceção de segurança estende-se a uma distinção entre local
e global, e público e privado, e o ponto crucial é que a definição tradicional centralizada
no estado ocidental e nas instituições por ele administradas tem uma versão muito
diferente no mundo não-ocidental; e esses conceitos não farão justiça à análise que é
feita, simplesmente porque não estão a refletir os requisitos que esses conceitos têm na
tradição ocidental (Abrahamsen, 2017). Os exemplos em África revelam linhas esbatidas
entre os benefícios em segurança na ação de empresas privadas e forças “públicas”
(Abrahamsen & Williams, 2010). Da mesma forma, essas entidades públicas são
consideradas locais, mas com as contribuições e cooperação com empresas globais de
segurança, os resultados da segurança não podem ser restritos à ação de nenhuma delas
separadamente (Williams, 2016).
Onde e como foi usado até agora?
Esta abordagem foi adotada pela comunidade académica globalmente, pois abriu um
espaço para um estudo das empresas comerciais de segurança privada para além das
zonas de conflito, ainda num contexto de provisão de segurança público-privada e usada
como apoio militar. As empresas privadas e as ONGs globalmente têm usado empresas
de segurança privada para proteger as suas operações e ativos em ambientes remotos
e difíceis (Avant, 2007: 457; Omeje, 2017). As empresas de mineração e exploração de
gás usam abundantemente esses agentes desde o início dos anos 90 e o seu uso cresceu
exponencialmente (Börzel & Hönke, 2010; Ferguson, 2005; Kirshner & Power, 2015). O
resultado mais notável foi o reconhecimento de que os fornecedores de segurança
privados causaram algum impacto positivo nas comunidades onde operam, introduzindo
padrões operacionais mais altos, aproximando o respeito pelos direitos humanos nas
comunidades locais e, em geral, aumentando a perceção da população local de um
ambiente mais seguro (Abrahamsen & Williams, 2007; Campbell, 2006). Isto foi
realizado, por exemplo, treinando grupos de segurança locais (formais ou informais),
transcendendo os esforços de segurança para a comunidade local (unicamente por
motivos da empresa contratante) ou oferecendo workshops à população local sobre
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técnicas de resolução de conflitos. O principal benefício tem sido a capacidade de
observar as práticas e dinâmicas cotidianas que ocorrem entre os prestadores de
segurança privada e as forças do estado. Esse benefício pode ser observado na
investigação, tanto em países em desenvolvimento como em países desenvolvidos,
embora o conceito tenha sido definido tendo em mente países onde os conceitos
ocidentais não eram totalmente aplicáveis. Como Abrahamsen e Williams (2014)
explicaram, os conceitos ocidentais e as tentativas de aplicá-los a configurações
subdesenvolvidas falharam severamente. As assemblages globais de segurança
permitiram perceber como o setor de segurança está estabelecido e a funcionar em
África. Em certo sentido, abriram o vocabulário e ofereceram ferramentas para a
sociedade ocidental investigar e entender o funcionamento do setor da segurança em
África.
Para seguir o foco geográfico em África usado por Abrahamsen e Williams, o conceito
também foi usado para demonstrar práticas na Tanzânia (Abrahamsen & Williams, 2017),
Libéria (Abrahamsen e Williams, 2009a; Mohlin, 2017), Somália (Cunha, 2017; Reno,
2017; Sandor, 2016), República Democrática do Congo (Schouten, 2011, 2017), Nigéria
e África do Sul (Abrahamsen & Williams, 2010). Esses trabalhos investigaram
profundamente como essas interações entre empresas de segurança privadas e agentes
locais não estatais servem como substituto/complemento do serviço blico e como
contribuem efetivamente para a melhoria do ambiente de segurança local.
Além de África, o conceito também foi usado para estudar o Médio Oriente e a Europa.
Por exemplo, Tholens (2017) examinou a forma como as assemblages globais de
segurança foram constituídas no pós-2011 no Médio Oriente. E, Hazbun (2016) analisou
a realidade libanesa e usou-a para contextualizar o estado do setor de segurança neste
país. Na Europa, Bures (2015a) usou-o para desmontar e voltar a montar as operações
do setor de segurança privada na República Checa, analisando várias assemblages -
privadas e públicas, e todas as outras - e clarificando o mundo complexo do setor de
segurança privada num contexto social dentro do país. Mais recentemente, Borrajo Valiña
(2018) explorou o aparecimento da abordagem abrangente da União Europeia, baseada
em assemblages globais de segurança de, para resolver conflitos e crises externas
recentes.
Antes deles, Berndtsson e Stern (2011) aplicaram-no na análise das operações de
segurança aeroportuária de Estocolmo. Van Steden e De Waard (2013) usaram-no no
que denominaram McDonaldização da indústria de segurança privada em toda a Europa,
onde a segurança privada comercial com doutrina neoliberal se expandiu para abranger
as áreas que o Estado não cobria.
No que diz respeito à abordagem setorial, além de ser usada como foi originalmente
planeada e imaginada dentro da audiência 'Paz' e 'Conflito' - para explicar a dinâmica
entre atores privados-públicos e locais-globais não tradicionais no mundo em
desenvolvimento - várias outras abordagens e disciplinas também acharam esse conceito
útil, como a perspetiva feminista, a sociologia e a criminologia. Por exemplo, na
perspetiva feminista, a investigação analisou como as assemblages globais de segurança
afetam as famílias dos contratados (Chisholm & Eichler, 2018) e como o género é afetado
pela segurança privada na política global (Eichler, 2015). Dentro da abordagem
sociológica, Bongiovi (2016) usou assemblages globais de segurança para demonstrar a
organização e as operações dos Jogos Olímpicos de 2012 em Londres. Na criminologia,
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tem sido usado para explorar vários aspetos do policiamento (Abrahamsen & Williams,
2007; Albrecht, 2017; Diphoorn, 2015).
O conjunto de questões exploradas por essa abordagem é ampla: observação do controlo
de fronteiras e proteção do narcotráfico (Sandor, 2016), aplicação nas indústrias
extrativas (Abrahamsen & Williams, 2017), importância e maior governança da
segurança em todo o mundo (Bureš, 2015b; Cunha, 2017; Hazbun, 2016; Hönke &
Müller, 2012) ou policiamento (Abrahamsen & Williams, 2007; Albrecht, 2017; Diphoorn,
2015), e certamente será ainda mais alargado.
Além disso, o conceito de Abrahamsen e Williams serviu de inspiração para outros que o
adaptaram e o usaram nas suas próprias investigações na área da governança de
segurança e outras. Na investigação sobre a governança de segurança - enquanto
Abrahamsen e Williams estabeleceram o conceito de segurança global como uma
ferramenta para se distanciar das teorias de rede de agentes - é interessante observar
como Schouten (2014) parte dela para examinar os impactos mais amplos das
Assemblages globais de segurança na governança da segurança e sugere que a teoria da
rede de agentes amplia a esfera do que são assemblages de segurança. Nos estudos
sobre segurança, Collier (2018) afastou-se da filosofia por trás do conceito e ajustou-o
para abordar a realidade da segurança cibernética. Mary Kaldor (2018) deu uma guinada
mais sociológica e usou-a como ponto de partida para estabelecer o conceito de cultura
global de segurança.
Como pudemos ver, esse conceito é transversal do ponto de vista das disciplinas, áreas
geográficas e tópicos em que foi útil e aplicado. Em RI, Sociologia e Criminologia; em
África, Médio Oriente e Europa; na governança da segurança, policiamento, controlo de
fronteiras e indústria extrativa, o âmbito do conceito é amplo. Também vimos que
inspirou outras pessoas a adaptá-lo e aplicar a mesma filosofia a outras áreas, como no
caso das culturas de cibersegurança e segurança.
No entanto, ao trabalhar com esse conceito, os académicos reconheceram-lhe algumas
restrições e limitações na sua aplicação, principalmente na tentativa de expandi-lo a
áreas que não são estáveis em termos de segurança.
Limitações e restrições do conceito
A última década demonstrou que havia uma necessidade extrema de um conceito que
permita observar a dinâmica entre forças públicas e privadas, além de considerar as
relações de poder, e a forma como impactam os ambientes de segurança no terreno.
Trouxe dados empíricos significativos para a superfície e produziu conhecimento prático
sobre como essas assemblages funcionam em vários pontos do globo. No entanto,
algumas das restrições do conceito, propostas por Abrahamsen e Williams, estão a
tornar-se mais visíveis. O uso do conceito foi ampliado para acomodar diversos cenários
em todo o mundo, como vimos anteriormente. O facto é que o mundo é mais complexo
do que era uma década atrás, quando o conceito foi introduzido. Essas complexidades,
devido aos conceitos de assemblages globais de segurança, agora são mais visíveis do
que costumavam ser. Embora antes houvesse mais ênfase nas divisões público-privada
e global-local, esse conceito permitia observar práticas cotidianas que revelam linhas
esbatidas entre si. Isso permitiu ver mais detalhadamente atores envolvidos na garantia
da segurança nas comunidades locais, como, por exemplo, o grupo de segurança privada
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local Sungusungu, na Serra Leoa, que assumiu a responsabilidade pela resolução de mais
de 90% das disputas locais, porque a cobertura das áreas locais é muito maior do que o
das forças públicas (Albrecht, 2017).
Além disso, expôs uma gama crescente de atores a serem considerados nessas
assemblages, bem como circunstâncias complexas em que existem atores no mesmo
espaço a fornecer dinâmicas diferentes em momentos diferentes, como foi o caso do
grupo rebelde no Quénia que originalmente contribuiu para tornar o ambiente mais
volátil, mas depois transformou-se numa força política legítima que acabou por contribuir
para a estabilização e expansão da situação de segurança (Rasmussen, 2017).
Atualmente, existem muitos cenários em que não podemos fazer uma distinção simples
entre o uso comercial da segurança privada e o uso militar, como acontecia uma
década. Nesse sentido, embora Abrahamsen e Williams (2014: 26) afirmem que o
conceito é mais um termo descritivo do que uma bagagem teórica, enfrenta muitos
desafios quando se trata de aplicá-lo em ambientes mais complexos, nos quais a
segurança pode ser avaliada como estando situada entre a guerra e a paz.
O pressuposto do conceito parte da ideia que os atores locais e globais, públicos e
privados, trabalhem juntos (intencionalmente e coordenados, ou não), com o objetivo de
obter um ambiente de segurança mais estável, particularmente num local que coloque
desafios, como muitos exemplos em África. Portanto, existem outros atores (globais,
locais, públicos e privados) que podem não funcionar de uma forma tão linear, e que
podem ganhar mais com a desestabilização da região do que contribuir para a sua
estabilização.
Essa é a situação que Didier Bigo (2014: 208) identificou como “confusão do mundo”,
alertando para a impossibilidade de estabelecer limites claros e absolutos. Este autor
insiste que divisões como guerra e crime, violência e segurança não são úteis para a
compreensão das práticas atuais que ocorrem em todo o mundo, sendo, de facto,
prejudiciais. A divisão dos agentes e do seu papel num determinado cenário, por
exemplo, quando a polícia lida com assuntos internos versus o exército, que lida com
ameaças fora das fronteiras, são refutadas pela prática como sendo inválidas. Além disso,
os ganhos e riscos que certos agentes representam no entendimento mais amplo da
segurança em certas regiões podem ser enganosos se a avaliação de riscos não incluir
também crime e corrupção. Enquanto Abrahamsen e Williams procuraram precisamente
superar algumas divisões (público-privada e global-local), o seu foco centrava-se em
entender como essas dinâmicas funcionam com o objetivo final de obter benefícios para
um contexto de segurança local.
Em linha com as preocupações de Bigo, Doucet (2016) reconhece os méritos do conceito
de segurança global, mas demonstra que esse conceito é limitado na análise de
realidades mais complexas, como as intervenções atuais. Devido à multiplicação dos
agentes (uso comercial e militar) envolvidos e à tentativa de usar o conceito nas áreas
em que a estabilidade ainda é volátil (como operações pós-conflito ou de estabilidade),
o conceito foi levado ao limite. Não foi desenhado para abranger essas circunstâncias,
mas a sua filosofia central seria adequada para pensar como essas Assemblages
funcionam.
Mesmo considerando ambientes mais estáveis, existem novas formas bridas de
assemblages que vão além de empresas privadas e instituições públicas e defendem a
importância de deres tradicionais ou grupos de segurança organizados localmente,
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considerados atores não estatais, como fazendo parte crucial da dinâmica da segurança
local no mundo em desenvolvimento.
Peter Albrecht (2017) demonstrou o peso que esses atores não estatais exerceram na
Serra Leoa, onde o ator de segurança privada Sungusungu assumiu a responsabilidade
informal pela resolução de conflitos comunitários onde havia ausência de forças blicas.
Esses atores, ao envolverem-se em tais assemblages bridas, podem obter o significado
político que anteriormente não possuíam, como aconteceu no Quénia, onde o grupo
rebelde evoluiu para uma força política legítima (Rasmussen, 2017).
uma literatura crescente sobre outros atores - como terroristas, rebeldes, senhores
da guerra e outros grupos criminosos - que tornam a análise da segurança ainda mais
complexa (Varin & Abubakar, 2017). A exclusão do nexo terror-crime ao analisar
assemblages de segurança em determinados locais pode causar alterações significativas
nos resultados e limitar a compreensão de dinâmicas e atores relevantes em
determinados contextos de segurança. Por exemplo, Frowd e Sandor (2018)
demonstraram que este aspeto é relevante no caso do Sahel, mas isto é certamente
aplicável em muitos outros.
Como mencionado acima, a expansão do que é considerado um ator privado relevante
(ou seja, empresa comercial privada de segurança) há uma década, é muito mais ampla
agora quando existem, além de grupos locais e líderes tradicionais, outros grupos que
contribuem - positivamente e/ou negativamente - para o ambiente de segurança
localmente. Existem atores globais, como grupos radicalizados e extremistas, que
contribuem para alterações na dinâmica da segurança em certas regiões que não
podem/não devem ser descartados. A dificuldade de incluir esses grupos nas análises
fornecidas pelas assemblages globais de segurança já foi identificada (Ismail, 2013).
Por fim, a dificuldade do conceito de assemblages globais de segurança reside em
considerar toda essa dinâmica e reconhecer a complexidade do contributo dos vários
atores envolvidos. Alguns desses atores podem contribuir positivamente uma vez, e
negativamente noutras. Além disso, pode haver várias ações positivas e negativas ao
mesmo tempo que não resultariam necessariamente num ambiente de segurança local
estável.
Conclusões
Este artigo apresentou uma revisão de literatura de um conceito global de segurança.
Depois de explicar as suas origens e objetivos, explorou o espaço que ocupa emrias
disciplinas, como a Ciência Política, a Sociologia e a Criminologia. O uso do conceito tem-
se diversificado, tanto a nível dos tópicos como geograficamente. Tem sido empregue
para abordar questões tão distintas como policiamento, controlo de fronteiras, indústria
extrativa, papéis de género, e governança da segurança. Geograficamente, abrangeu a
África, a Europa e o Médio Oriente.
Apresentamos as vantagens do uso desta abordagem como uma alternativa às teorias
de ator-rede e abordagens de governança da segurança que dominaram a literatura
académica sobre a análise dos atores de segurança privada. Permitiu abertura para o
estudo da dinâmica dos atores blicos e privados e das suas práticas, para aprender
com dados empíricos e para ir além da análise das relações de poder e separar as divisões
público-privada e global-local, entre outras. Numa década de uso, é uma ferramenta
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valiosa que os académicos usam para pensar as relações de segurança privada em locais
que desafiam conceitos e dicotomias previamente estabelecidos.
O conceito como ferramenta de pensamento foi útil como inspiração para outras pessoas
definirem as suas próprias adaptações, como as culturas de segurança global de Kaldor
ou as assemblages globais de segurança cibernética de Collier.
O conceito enfrentou alguns desafios, como a complexidade crescente de atores,
dinâmicas e configurações em que podemos observar assemblages de segurança de
formas mais bridas, que incluem outros atores não estatais, a mudança de dinâmica
dentro e entre eles, ou configurações mais voláteis. Esses desafios representam uma
janela de oportunidade para explorar outras opções, e uma inspiração para que outros o
considerem uma ferramenta de pensamento de partida para formar talvez a possibilidade
de estudar essas complexidades acrescidas no futuro.
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Jovana Jezdimirovic Ranito
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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PORQUE É IMPORTANTE UMA PERSPETIVA REGIONAL QUANDO ANALISAMOS
CONFLITOS CIVIS NO MÉDIO ORIENTE E NO NORTE DE ÁFRICA?
Samer Hamati
Samer_hamati@yahoo.com
Doutorado em Economia, Faculdade de Economia e Gestão, Universidade do Minho (Portugal).
Foi Investigador Visitante no Departamento de Estudos Políticos e Económicos da Universidade
de Helsínquia. É especialista em reconstrução de capital social na Síria, Training and Research
Institute da Roménia. Investigador Sénior de Pobreza e Desigualdade num projeto do Programa
de Desenvolvimento das Nações Unidas de Estabelecimento do Fundo Nacional de Assistência
Social na Síria, Projetos do Programa de Desenvolvimento das Nações Unidas, Damasco, Síria.
Consultor externo da definição da Estratégia de Segurança Alimentar da Síria, National
Agricultural Policy Center, Síria. Recebeu os parabéns aprovados por unanimidade do Parlamento
Português por ser o primeiro aluno sírio a obter o doutoramento em Portugal.
Tem experiência de trabalho voluntário
Resumo
Investigar as diferentes variáveis políticas e sociais no Médio Oriente e Norte da África
(MENA) está a ser alvo de mais atenção por parte dos cientistas sociais, particularmente nos
institutos de paz e conflito. Isto deve-se à singularidade da região e aos violentos conflitos
que testemunhou nas últimas décadas. Esses conflitos tornam-se interestatais, mas
transitórios, daí a sua transferência para conflitos civis internacionais com grandes
externalidades que extravasam as fronteiras da região. Esses conflitos mostram a elevada
ligação entre os países MENA e, recentemente, a Primavera Árabe demonstrou o 'efeito
contágio' das revoltas na região. Seguindo uma abordagem multidisciplinar, esta nota de
investigação é uma tentativa de explicar a importância do estudo dos conflitos MENA a partir
de uma perspetiva regional e apresentar os fatores que comprovam os efeitos do contágio.
Esperamos que, ao ler esta nota, o leitor entenda suficientemente os aspetos regionais dos
conflitos MENA.
Palavras-chave
MENA; efeito de contágio; conflitos civis
Como citar este artigo
Hamati, Samer (2019). "Porque é importante uma perspetiva regional quando analisamos
conflitos civis no Médio Oriente e no Norte de África?". JANUS.NET e-journal of International
Relations, Vol. 10, N.º 2, Novembro 2019-Abril 2020. Consultado [online] em data da última
consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.2.6
Artigo recebido em 2 de Junho de 2019 e aceite para publicação em 18 de Setembro de 2019
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Porque é importante uma perspetiva regional quando analisamos conflitos civis
no Médio Oriente e no Norte de África?
Samer Hamati
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PORQUE É IMPORTANTE UMA PERSPETIVA REGIONAL QUANDO ANALISAMOS
CONFLITOS CIVIS NO MÉDIO ORIENTE E NO NORTE DE ÁFRICA?
1
Samer Hamati
Introdução
Durante décadas, a região MENA em geral experienciou violência e conflitos civis, o que
conduziu a um ambiente de permanente instabilidade. Essa violência tornou-se uma
forma normal de governar e de transferência de poder desde a fundação política moderna
do MENA até ao final da Primeira Guerra Mundial. Analisando a história moderna do
MENA, notamos facilmente as características históricas partilhadas, nas quais as
trajetórias de conflito foram semelhantes nos rios países. Estas características
partilhadas estendem-se à vida política, social e económica, estabelecendo regimes
autoritários e paternalistas na região e colocando desafios particulares às transições e ao
processo de desenvolvimento. Acima de tudo, essas características fortalecem os vínculos
nessa região e conduzem a grandes intervenções entre os estados recém-estabelecidos.
A compreensão dessas intervenções é essencial no estudo da paz e dos conflitos na região
MENA.
Semelhante às tendências globais, o número de conflitos no MENA diminuiu
significativamente no início dos anos 90 e a região ficou estável após o Processo de
Libertação do Kuwait em 1991, como se constata ao analisar o Banco de Dados de
Conflitos Armados da UCDP/PRIO (Universidade de Uppsala, 2015). No entanto, o
número de conflitos aumentou no novo milénio, principalmente devido à ocorrência de
conflitos civis. Mais especificamente, os conflitos anticoloniais e interestatais quase
desapareceram e quase todas as guerras de hoje são interestatais mas com grandes
intervenções internacionais, tornando-as 'guerras civis internacionalizadas'. Além disso,
esses conflitos têm sido guerras por procuração (Marshall, 2016). Os conflitos anteriores
a 1990 faziam parte da Guerra Fria, em que as fações recebiam apoio dos seus aliados
em Moscovo ou Washington. A partir do final dos anos 90, os concorrentes tornaram-se
regionais e surgiu um ciclo de guerra por procuração regional, especialmente entre a
Arábia Saudita e o Irão, (Nerguizian e Kasting, 2013). Os conflitos na ria, Iraque,
men, Bahrein e Líbano são exemplos claros desse fenómeno.
1
A tradução deste artigo foi financiada por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e
a Tecnologia no âmbito do projeto do OBSERVARE com a referência UID/CPO/04155/2019, e tem como
objetivo a publicação no JANUS.NET. Texto traduzido por Carolina Peralta.
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As novas ondas de violência pós-primavera árabe aumentam a conscientização sobre os
conflitos civis que explodem na região MENA. Torna-se claro que esses conflitos não são
puramente "civis". Além disso, as suas consequências extravasam as fronteiras do MENA.
Ross et al. (2011) argumentam que a Primavera Árabe atesta o 'efeito de contágio' das
revoltas na região. Com base na revisão da literatura, a presente nota examina os fatores
que comprovam esse contágio e enfatiza a perspetiva regional na investigação dos
conflitos civis no MENA. Primeiro discutimos brevemente o termo MENA, e depois
explicamos algumas características dos conflitos civis do MENA que tornam o seu estudo
essencial para apoiar a paz e a prosperidade globais. Posteriormente, esclarecemos por
que é melhor analisar esses conflitos a partir de uma janela regional. Para o efeito,
adotamos uma abordagem multidisciplinar de análise usando breves evidências sociais,
económicas, culturais, familiares e históricas. A nota termina com dois avisos
importantes.
O que queremos dizer com MENA?
O termo Médio Oriente surgiu séculos depois do aumento da preocupação ocidental com
essa região. Desde as Cruzadas, o Oriente foi identificado com o Islão e o Ocidente
tornou-se idêntico ao Cristianismo. As regiões foram assim divididas simbolicamente de
acordo com dois sistemas de crenças. Mais tarde, no último quartel do século XVIII, os
europeus começaram a referir-se aos territórios controlados pelo Império Otomano
Islâmico como o Próximo Oriente, enquanto Mahan e Chirol usaram o termo Médio
Oriente para apelidar o Golfo de Áden e a Índia em artigos separados publicados em
1902 (Davison, 1960). Devido às mudanças políticas após a Primeira Guerra Mundial,
surgiu a necessidade de alterar a definição da área geográfica conhecida como Médio
Oriente e, em março de 1921, Winston Churchill, com a ajuda da Royal Geographic
Society, remapeou o Médio Oriente do Bósforo às fronteiras ocidentais da Índia (Özalp,
2011). Mais tarde, esse termo começou a aparecer com frequência na literatura
internacional.
No entanto, apesar da adoção do termo Médio Oriente na literatura internacional, não
acordo sobre a extensão das áreas geográficas e dos países do Médio Oriente (Johannsen,
2009). Os estudiosos incluíram países diferentes, embora sobrepostos, ao usarem esta
frase. Muitos consideram que são os países antes ocupados pelo Império Otomano
(Tunçdilek, 1971; Brown, 1984; Tibi, 1989), outros referem-se-lhe como países islâmicos
(Steinbach, 1979), alguns consideram-no limitado aos países árabes (Hudson, 1976), e
outros incluíram países africanos, como a Etiópia (Davison, 1960). A maior parte da
literatura recente define a região MENA como sendo composta pelos países árabes, ou
seja, os vinte e dois países membros da Liga Árabe, além de três países não árabes cujas
ações contribuem para as situações políticas e de segurança na região MENA: Turquia,
Irão e Israel, embora esses estados tenham seguido uma trajetória histórica um pouco
diferente da dos estados árabes e possuam estruturas económicas diferentes das dos
países árabes (Owen, 2013).
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O que torna os conflitos civis no MENA globalmente importantes?
Não é apenas um fator que cria conflitos civis no MENA e que atrai atenção global. Os
conflitos na região são duradouros e as suas consequências são grandes e trágicas. No
entanto, a posição do MENA é a principal razão para essa atenção global. Devido à sua
posição geográfica estratégica, a região assistiu a muitos eventos cujas causas e
consequências ultrapassaram as suas fronteiras. Barakat (1993: 31) afirmou que “a
centralidade do mundo árabe nos tempos antigos e modernos qualificou-o para servir
como um importante ponto nodal na história da humanidade. Atuou como uma passagem
que liga a Ásia, África e a Europa. Produziu algumas das mais importantes contribuições
intelectuais, culturais e religiosas da história. É essa posição na encruzilhada humana e
geográfica, e não apenas o petróleo e outros recursos, que tornam o mundo árabe o
estrategicamente significativo”. Como consequência dessa posição geográfica central, os
conflitos têm sido frequentes e caracterizados por atributos que os diferenciam dos que
ocorrem noutras regiões: sustentabilidade, derrame de sangue, consequências trágicas
e externalidades.
Os conflitos civis são sustentáveis na região MENA. Paralelamente à ocorrência de
conflitos internos, um fenómeno chamado "armadilha de conflitos" tornou-se mais
dominante. Essa armadilha refere-se a uma situação em que um país pós-conflito civil
cai novamente noutra guerra civil. Walter (2015) encontra fortes evidências de 'armadilha
de conflito'; 57% de todos os países que sofreram uma guerra civil durante o período de
1945-2009 sofreram pelo menos um conflito depois disso. Além disso, ela ressalta que,
na década de 2000, 90% de todas as guerras civis foram repetidas. Collier (2007) mostra
que o risco de novos conflitos nos países emergentes da guerra civil é quase duas vezes
maior do que na véspera desse conflito. Cevik e Rahmati (2015) afirmam que essa
armadilha é mais apertada na região MENA, pois os países do Médio Oriente parecem
sofrer um risco elevado de recorrência de conflitos sem grande declínio nos anos
subsequentes, o que conduz a um sentimento sustentável de violência e insegurança. lá.
Esta sustentabilidade é uma das razões que faz aumentar os custos dos conflitos MENA.
Os conflitos civis no MENA são caros tanto em termos de sangue como de dinheiro. A
crise síria, considerada o "pior desastre causado pelo homem que o mundo viu desde
a Segunda Guerra Mundial", de acordo com um funcionário da ONU (Al-Hussein, 2017),
é a principal evidência recente desses custos; cerca de 11,5% da população foi morta ou
ferida em menos de cinco anos de conflito (SCPR, 2016). Além disso, a região representa
40% do total global estimado de mortes em batalhas desde 1946, de acordo com o
Programa de Dados de Conflitos de Uppsala. Em relação aos altos custos económicos,
Rother et al. (2016) argumentam que três anos de conflitos após a Primavera Árabe
traduziram-se em perdas de 6 a 15 pontos percentuais do PIB nos países MENA em
conflito, em comparação com 4 a 9 pontos percentuais no mundo.
Além disso, esses custos não se limitam à região, e existem outros custos internacionais.
De fato, os conflitos MENA geram grandes externalidades representadas por saídas de
refugiados e flutuações no preço da energia. Cerca de dois terços dos atuais refugiados
em todo o mundo vêm do MENA
2
. Os refugiados não o simplesmente os subprodutos
infelizes da guerra, mas podem causar conflitos interestatais (Posen, 1996). Salehyan
2
UNHCR. (25 de maio de 2018). Figures at a Glance. Disponível em http://www.unhcr.org/figures-at-a-
glance.html
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(2008) afirma que os fluxos de refugiados entre estados aumentam a probabilidade de
disputas interestatais militarizadas (MIDs) através de dois canais: os estados recetores
de refugiados têm mais probabilidade de iniciar MIDs quando intervêm para impedir
outras externalidades, e estados emissores de refugiados iniciam MIDs ao violarem
fronteiras em busca de dissidentes.
Acima de tudo, as instabilidades no preço da energia ainda são a externalidade mais clara
causada pelos conflitos que ocorrem no MENA. Essa região possui 55% das reservas
globais de petróleo (Guidolin e La Ferrara, 2010), portanto, qualquer tipo de tensão afeta
os preços, produtos, emprego e crescimento económico em todo o mundo. dois
choques anormais nos gráficos económicos globais que são fortemente distintos: um
apareceu em 1973-1974 e o outro em 1979-1980. Esses choques surgiram na sequência
de dois eventos que ocorreram na região MENA: a Guerra de Outubro (Yom Kippur) de
1973 e a Revolução Iraniana de 1979. Guidolin e La Ferrara (2010), usando a
metodologia de estudo de eventos para analisar o impacto do conflito num mercado de
ativos selecionado, afirmam que o Médio Oriente é muito importante para os índices de
commodities, incluindo os preços do petróleo, pois 73% dos conflitos que ocorrem nessa
região têm impacto nos futuros de petróleo, e esse impacto é distinguível do zero.
Por que é importante estudar conflitos civis através do contexto
regional?
Os países MENA estão conectados geograficamente, economicamente e culturalmente,
mostrando uma forte tendência para conexão e contágio. As palavras de Elias Hrawi, ex-
presidente do bano, ao descrever os conflitos civis no seu país são famosas: "não era
o nosso conflito, mas o dos outros na nossa terra", e atestam isso mesmo (Atallah, 2008:
217). Portanto, não se pode investigar nenhum conflito civil isoladamente do contexto
regional. Essa interferência política e de segurança não se deve apenas às fronteiras
comuns, mas também às fortes ligações entre os seus povos, onde a maioria mantém
crenças, cultura e religião semelhantes e partilha a mesma história.
As raízes históricas e culturais desta conexão são muito profundas e longas. Durante os
treze séculos anteriores à Primeira Guerra Mundial, a maioria dos territórios da região foi
controlada por diferentes poderes que governavam mediante uma ideologia, o Islão. O
Império Otomano foi o último grande estado que controlou a região. A sua queda
terminou com o Califado e abriu caminho para a construção de países artificiais modernos
que acolhem pessoas que partilham uma história, cultura, alfabeto, sentimentos e
ligações demográficas comuns, incluindo relações tribais. Heydemann, conforme citado
em Yousef (2004: 95), destaca que “a excecionalidade da região é um fenómeno recente
e não cultural derivado de crenças, valores e normas intrínsecas nas sociedades árabe-
muçulmanas”. Estes valores e sentidos partilhados impedem a criação de identidades
diferentes nas sociedades recém-criadas, e, portanto, validam a teoria de Anderson de
'comunidades imaginadas' (Anderson, 2006). As comunidades no Médio Oriente são
produzidas de maneira semelhante e projetam hierarquias de poder semelhantes entre
elas, levando a uma forte imaginação coletiva.
O estabelecimento dos estados modernos MENA no final da Primeira Guerra Mundial
explica a parte principal dessa conexão. Os Aliados, que venceram a Primeira Guerra
Mundial, incluindo a Grã-Bretanha e a França, dividiram os territórios árabes
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anteriormente ocupados pelo Império Otomano. Mais tarde, esses poderes coloniais
criariam as principais estruturas e a administração pública dos novos estados. Owen
(2013: 9) examina esse desenvolvimento:
No que diz respeito ao Médio Oriente, geralmente era o poder
colonial dominante que primeiro criou as características essenciais
de um estado moderno, dando-lhe uma administração centralizada,
um sistema legal, uma bandeira e fronteiras internacionalmente
reconhecidas. Em alguns casos, isso foi feito com base em alguma
entidade administrativa preexistente, como na Argélia; noutros,
envolvia desanexar uma parte de uma antiga província otomana
(por exemplo, Transjordânia) ou, mais frequentemente, juntar
várias províncias (por exemplo, Síria e Iraque). Isso deu a muitos
dos novos estados uma aparência um tanto artificial, com os seus
novos nomes, novas capitais, a sua falta de homogeneidade étnica
e as suas fronteiras totalmente retas que eram tão obviamente obra
de um oficial colonial britânico ou francês a usar uma régua.”
Esses novos estados, com uma natureza mal definida (Milton-Edwards e Hinchcliffe,
2007), acolhem pessoas que pertencem a diferentes grupos étnicos, linguísticos e
religiosos. Barakat disse que “certas comunidades foram impostas a outras pessoas
dentro do mesmo país” (1993: 6). Um ano após o início do conflito civil no Líbano, Anne
Sinai e Chaim Waxman escreveram na introdução da Middle East Review (1976: 5):
[A] atual guerra civil no Líbano é apenas a mais recente e mais
divulgada numa ampla gama de eventos e situações que
desmentem a afirmação de que o Médio Oriente é um mundo
unitário de árabes com origem, cultura, idioma e identidade
comuns. O Médio Oriente na verdade consiste num intrincado
mosaico de diferentes povos… Existem xiitas, alauítas, drusos,
yazidis, ismaelianos e seguidores de várias outras denominações
muçulmanas, que se apegam com determinação ao seu próprio
estilo de e ao seu conjunto próprio de crenças. Eles nem são
necessariamente etnicamente ‘árabes’, sendo descendentes de
muitos povos diferentes conquistados e convertidos pelos exércitos
islâmicos... A primeira das três grandes religiões monoteístas, o
judaísmo e as pessoas com quem se identifica, fizeram parte do
mosaico do Médio Oriente desde o início.... Existem, além disso...
outros pequenos grupos religiosos, cada um agarrado à sua própria
identidade distinta. Nenhum estado árabe pode, portanto,
reivindicar homogeneidade social e todos são grupos religiosos,
linguísticos e étnicos maiores ou menores.
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Esta heterogeneidade criou entidades social e culturalmente incompletas, onde os grupos
étnicos e religiosos, assim como tribos e famílias, foram divididos entre países
adjacentes. A heterogeneidade religiosa domina os outros tipos de heterogeneidade na
região. Essa heterogeneidade foi associada a procedimentos discriminatórios em relação
às minorias. Fox (2013) considera que quase todas as minorias religiosas em 17 estados
maioritariamente muçulmanos do Médio Oriente sofrem discriminação religiosa. A
literatura mostra que essa discriminação, assim como outros tipos de perseguições, pode
provocar países vizinhos a intervir noutros países para proteger os seus parentes étnicos
(Saideman, 2001; Trumbore, 2003; Woodwell, 2004). Svensson (2013) identifica uma
grande mudança de conflito não religioso para religioso na região MENA, tornando-a a
região mundial onde o conflito armado religioso é mais proeminente.
Além disso, os vínculos económicos atuais, especialmente o emprego, apoiam as raízes
sociais e culturais e tornam as pessoas de diferentes países MENA mais conectadas.
Milhões da força de trabalho migrante da região MENA trabalham nos países ricos do
Golfo e as suas remessas apoiam as suas famílias e governos nos seus países. Essas
remessas não o apenas financeiras, mas também sociais, o que significa que os
migrantes transferem novas ideias, valores e comportamentos para os seus países de
origem (Levitt, 1998), influenciando as atitudes e o comportamento político das famílias
que residem na terra natal. Ao investigar a difusão do salafismo político entre egípcios
que trabalham na Arábia Saudita, Karaket al. (2017) descobriu que o apoio mais forte
ao partido salafista Nour veio de indivíduos cujos membros da família haviam imigrado
para a Arábia Saudita.
3
Os fluxos intra-comerciais e de investimento são outros laços económicos que sustentam
a conexão árabe. Segundo relatos publicados pelo Fundo Monetário Árabe (2017), muitos
países árabes dependem fortemente do comércio com outros países árabes. A Somália,
Djibuti, Jordânia, Líbano, ria, Egito e Sudão exportam 91%, 85%, 50%, 45%, 40%,
32% e 30% de suas exportações totais, respetivamente, para outros países árabes,
enquanto os investimentos intra-árabes subiram de 3% para 15% do PIB árabe total
entre 2000 e 2008, devido à subida dos preços do petróleo.
A evidências histórica confirma que os vínculos entre os países MENA, em particular o
Levante, são muito fortes. Exemplos dessas fortes conexões o os dois assassinatos
ocorridos no verão de 1951. Em 17 de julho, Riad Al-Solh, o primeiro primeiro ministro
do Líbano após a independência, foi assassinado em Amã, capital da Jordânia, por Micheal
El-Deek, um rio. Três dias depois, o rei Abdullah I, o primeiro rei da Jordânia, foi
assassinado em Jerusalém por um alfaiate palestino. O rei Abdullah poderia não ter sido
morto se se tivesse tornado rei do Iraque, como era suposto. Este ponto leva-nos a outro
exemplo importante que confirma os fortes vínculos regionais no MENA, que o as
linhagens entre as famílias de elite.
A genealogia é importante entre as tribos árabes. Assim, é fundamental entender o
parentesco entre as famílias reais da região. Hussein bin Ali, Xerife de Meca e líder dos
haxemitas, aliou-se aos britânicos e rebelou-se contra os otomanos. Dois dos seus filhos
tornaram-se reis: Faisal, da Síria, e posteriormente do Iraque, e Abdullah, da Jordânia.
3
O partido salafista Nour, que significa Partido da Luz, é um dos partidos políticos criados no Egito após a
Revolta Egípcia de 2011. Possui uma ideologia islâmica ultraconservadora, que acredita na implementação
da rigorosa lei da Sharia.
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Outro filho, Ali, foi o último rei de Hejaz antes de ser derrotado por Ibn Saud, o fundador
do Reino da Arábia Saudita.
Encontramos um parentesco semelhante, mas entre partidos políticos árabes. Os partidos
do nacionalismo pan-árabe surgiram durante o século passado, e muitos deles acreditam
na unidade dos países árabes. Tomemos, por exemplo, o Partido Ba'ath na Síria e no
Iraque; a União Socialista Árabe no Egito; o Partido Popular da Conferência na Líbia; e o
Partido Socialista no Iémen do Sul. Todos esses partidos estiveram no poder nos seus
países durante anos. Alguns tinham uma relação amigável com os outros e outros eram
inimigos. O Ba'ath era o partido no poder na ria e no Iraque, mas as duas fações
estavam em forte conflito décadas.
Combinadas com restrições orçamentárias leves nos países exportadores de petróleo,
essas fortes interconexões facilitam as intervenções entre países. Acima de tudo, o
regime militar, comum na maioria dos países MENA, intensifica essa tendência. O domínio
militar sobre o sistema político nacional na região pode ser comprovado pelo grande
número de golpes e revoluções militares. Milton-Edwards e Hinchcliffe (2007: 4) notam
que essa “natureza militarista do estado na região tem uma relação direta de causa e
efeito nos processos políticos dos países”, e Picard (1993) argumenta que as preferências
estatistas, a política de massas e as lutas anticoloniais que existiam no Médio Oriente
pós-otomano, conduziram a um forte envolvimento dos militares na política. Esses
governos militares parecem operar de acordo com uma lógica de expansão e, portanto,
intervêm na vida política dos estados vizinhos.
Considerações finais
Ao assistir às notícias diárias, o observador ocidental apercebe-se da violência na região
MENA. De facto, a declaração de Karl Remarks: "e então Deus criou o Médio Oriente e
disse: que haja notícias de última hora e análises", que se tornou o título do seu recente
livro publicado em 2018, atesta isso. No entanto, o observador ocidental pode ser
confundido com o alto grau de conectividade entre esses eventos violentos. A presente
nota tenta expor as razões desta ligação, recorrendo a uma abordagem multidisciplinar
para explicar por que o efeito dominó apareceu na região e por que deveríamos
considerar os conflitos que se travam, incluindo guerras civis, sob uma perspetiva
regional.
É importante, antes de terminar, mencionar dois pontos importantes. Primeiro, embora
seja única, a região MENA faz parte do Terceiro Mundo, e, como tal, está sujeita ao
mesmo processo universal de subdesenvolvimento dos restantes países do Terceiro
Mundo, e esse aspeto deve ser considerado na investigação de conflitos nesse local. No
prefácio do seu livro, Owen adverte os investigadores a não explicarem tudo o que
acontece no MENA “pelo facto de a maioria do seu povo ser árabe ou muçulmano que,
até ficar rico por causa do petróleo, viveu em tribos nos desertos” (2013: xii).
Observando com atenção outros conflitos noutras regiões do mundo, como, por
exemplo, na África Subsaariana, Sul da Ásia, Balcãs e América Latina, encontramos
muitas semelhanças nas razões e consequências dos conflitos civis.
Em segundo lugar, os estudiosos não devem ignorar as características específicas de
cada país MENA. Esses países o heterogéneos em termos de desenvolvimento
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económico e institucional. Pode-se notar isso facilmente vendo os números económicos
e, mais importante, o índice de desenvolvimento humano (PNUD, 2018). Embora todos
os países do CCG sejam classificados como altamente desenvolvidos, a ria, Sudão,
Iémen, Djibuti, Somália e Mauritânia têm a classificação mais baixa.
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LA COOPERACIÓN DE CHINA EN ÁFRICA EN EL ÁREA DE INFRAESTRUCTURA
DE CONECTIVIDAD FÍSICA.
EL CASO DE LA VÍA FERROVIARIA MOMBASA-NAIROBI
María Noel Dussort
maria.dussort@fcpolit.unr.edu.ar
Doctora en Relaciones Internacionales de la Universidad Nacional de Rosario (UNR). Becaria
posdoctoral del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET, Argentina).
Docente de la Facultad de Ciencia Política y Relaciones Internacionales de la UNR y Coordinadora
del Grupo de Estudios sobre India y el Sudeste Asiático de Rosario (GEIRSA). Investigadora del
Programa de Estudios sobre Relaciones y Cooperación Sur-Sur (PRECSUR) de la UNR. Línea de
investigación: La seguridad energética potencias emergentes, Brasil, India y China - países
productores de petróleo de África Subsahariana.
Agustina Marchetti
agustina.marchetti@fcpolit.unr.edu.ar
Doctoranda en Relaciones Internacionales de la Universidad Nacional de Rosario (UNR). Becaria
doctoral del Consejo Nacional de Investigaciones Científicas y Técnicas (CONICET, Argentina).
Docente de la Facultad de Ciencia Política y Relaciones Internacionales de la UNR y Coordinadora
del Grupo de Estudios sobre América Latina y África (PEALA). Investigadora del Programa de
Estudios sobre Relaciones y Cooperación Sur-Sur (PRECSUR) de la UNR. Línea de investigación:
China África - Cooperación sur-sur.
Resumen
En el siglo XXI, China plantea un esquema de cooperación con características propias. En
relación a los proyectos de cooperación que China viene ejecutando en el continente africano,
se observó un crecimiento exponencial de obras de infraestructura que han contribuido a la
mejora de las condiciones socio-económicas de África. En este contexto cabe preguntarse,
¿qué características distintivas posee la cooperación china en materia de infraestructura que
la hace tan atractiva para los países africanos?
A los efectos de responder dicho interrogante, nos proponemos analizar el vínculo que Beijing
ha establecido con los países africanos, particularizando en las características que presenta
su esquema de cooperación. Asimismo, se indagan las áreas prioritarias en torno a las cuales
se dirigen los proyectos de cooperación y la modalidad de financiamiento de los mismos. En
un segundo momento, consideramos la construcción de uno de los tramos de la vía férrea en
Kenia (proyecto Mombasa-Nairobi) en el marco de la Belt and Road Initiative (BRI) como un
caso típico de cooperación en infraestructura de China en un país africano.
Palabras claves
China - cooperación - infraestructura - BRI - Kenia
Cómo citar este artículo
Dussort, María Noel; Marchetti, Agustina (2019). "La cooperación de China en África en el
área de infraestructura de conectividad física. El caso de la vía ferroviaria Mombasa-Nairobi".
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 10, N.º 2, Noviembre 2019-Abril 2020.
Consultado [en línea] en la fecha de la última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-
7251.10.2.7
Artículo recibido el 4 de abril de 2019 y aceptado para su publicación el 20 de septiembre de 2019
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El caso de la vía ferroviaria Mombasa-Nairobi
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LA COOPERACIÓN DE CHINA EN ÁFRICA EN EL ÁREA DE INFRAESTRUCTURA
DE CONECTIVIDAD FÍSICA.
EL CASO DE LA VÍA FERROVIARIA MOMBASA-NAIROBI
María Noel Dussort
Agustina Marchetti
Introducción
Desde fines de la década del noventa, se ha podido observar que China ha desplegado
un gran activismo internacional en todas las regiones del mundo y en la mayoría de las
áreas temáticas, que le han permitido ganar mayor protagonismo en el sistema
internacional. En este sentido, si bien los países de África no son cruciales en su estrategia
de expansión ‘fronteras afuera’, lo cierto es que han ganado prioridad en el diseño de su
política exterior.
En simultáneo a su proceso de modernización interna, desde 1999 el sector de la
construcción en China ha crecido un 20% anual, haciendo de este país el mayor mercado
de infraestructura en la economía global. Mientras África muestra una demanda
insatisfecha en este aspecto así como de financiamiento para emprender las obras
necesarias, Beijing no sólo ha acumulado reservas financieras sustanciales sino que se
ha convertido en un líder global en servicios de la construcción, con gran experiencia en
el desarrollo de infraestructura civil (Johnston, 2016). En otras palabras, la
complementariedad es evidente.
Por otra parte, se debe considerar que la cooperación en infraestructura de China en
África se presenta como alternativa a la Ayuda Oficial al Desarrollo (ODA) brindada por
las potencias tradicionales, rigiéndose discursivamente bajo los Principios de Coexistencia
Pacífica
1
. Sin embargo, en la práctica los “beneficios mutuosno son lo suficientemente
tangibles. Se vuelve cuestionable que el país asiático, al ser la segunda economía más
importante a nivel mundial, afirma cooperar en paridad de condiciones” con los países
africanos al reconocerse como país en desarrollo.
En el nuevo siglo comenzó a haber un contundente avance de las empresas estatales
chinas en diferentes proyectos de construcción de infraestructura en el continente
africano. En cierta medida, este involucramiento de China en proyectos de cooperación
ha contribuido a la mejora de las condiciones económicas y sociales de los países
africanos. Ante este panorama, cabe interrogarse: ¿Q características distintivas posee
1
Se analizan en las páginas siguientes.
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la cooperación china que la hace tan atractiva para los países africanos? ¿Cuáles son las
áreas prioritarias hacia dónde se dirigen los fondos de cooperación? ¿Qué intereses se
vislumbran en los proyectos de cooperación en infraestructura destinados a los países de
África, particularmente de África Subsahariana? Y finalmente, las obras de infraestructura
¿a quién beneficia realmente?
A los efectos de responder dichos cuestionamientos, nos proponemos analizar en un
primer momento, las características que presenta la cooperación entre China y África,
indagando las áreas prioritarias en torno a las cuales se dirigen los proyectos de
cooperación y la modalidad de financiamiento de dichos proyectos. En un segundo
momento, consideramos la construcción de uno de los tramos de la vía férrea en Kenia
(proyecto Mombasa-Nairobi
2
) en el marco de la Belt and Road Initiative (en adelante BRI)
como un caso típico de cooperación en infraestructura de China en un país africano.
Es importante remarcar que la academia se encuentra dividida entre aquellos que
consideran a China como una potencia emergente (Stuenkel, 2018; Ikenberry y Lim,
2017; Xing y Shaw, 2016; Zeng y Breslin, 2016; etc.) y quienes aseguran que ya se ha
convertido en un emergido en el orden internacional actual (Oviedo, 2019; Muñoz, 2019;
Borella, 2019). En consecuencia, se parte de la presunción de que a medida que China
se convierte de “emergente en emergido”, sus proyectos de infraestructura concebidos
como parte del paraguas conceptual de Cooperación Sur-Sur (CSS) están perdiendo el
carácter solidario, para conformar una estrategia global que guarda similitudes con la
Pax Británica
3
. En este sentido, la cooperación que China realiza en los países de África
ha cambiado en función de la evolución y profundización del modelo de desarrollo que se
encuentra atravesando su economía, caracterizándose por ser una cooperación
fundamentalmente financiera –expresada en préstamos (concesionales y no
concesionales), inversión extranjera directa, subsidios, etc.
Por otra parte, dichos proyectos de infraestructura han sido enmarcados en la BRI, al
erigirse como un megaproyecto de conectividad interestatal que pretende, por un lado,
estimular el comercio y, por otro lado, impulsar la capacidad productiva china hacia el
exterior del país; objetivos respaldados por un voluminoso capital financiero.
Cabe resaltar que, para el desarrollo del presente trabajo, se apliuna metodología
cualitativa recurriendo a la técnica de triangulación de datos estadísticos emanados por
distintos organismos internacionales (Banco Mundial, OCDE, Consorcio de Infraestructura
para África) y por los gobiernos nacionales aquí trabajados (Kenia, Exim Bank de China,
White Papers de China, African Policy Paper de China). El recorte temporal se centra en
el período que se extiende desde 2000 a 2017, focalizando en la llegada al poder de Xi
Jinping y con ella, una acción más asertiva en la política exterior china. Al respecto, vale
remarcar dos acontecimientos que así lo ilustran, como el lanzamiento de la BRI en 2013
y la realización del “Foro una Franja y una Ruta para la cooperación internacional” en
2017.
2
Es importante aclarar en el presente trabajo optamos por la definición de Mombasa-Nairobi como forma de
designar al proyecto ferroviario, la cual coincide con aquella adoptada por Kenia. Dicha decisión se debe a
la orientación geográfica, al dirigirse desde la costa del océano índico al interior del continente.
3
La Pax Británica se refiere al período histórico en que el Imperio Británico extendió su dominio a nivel
mundial, caracterizado por el control del comercio marítimo y la extensión de redes ferroviarias en sus
territorios coloniales y socios comerciales prioritarios (como Argentina).
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1. África en la política exterior de China: una mirada a las dimensiones
política y económica
Desde mediados de los noventa la República Popular China inició un proceso de
intensificación de los lazos mantenidos con los países africanos, guiado por intereses
fundamentalmente económicos. En este sentido, la atención dada a la presencia china
en los países africanos a partir del inicio del siglo XXI está directamente relacionada al
salto cualitativo de dicha relación en la economía mundial, convirtiéndose en un motivo
de preocupación (y crítica) para los intereses de las potencias tradicionales (Visentini,
2013). Sin embargo, no se debe perder de vista que la extensión de sus relaciones
diplomáticas en el continente le es funcional a su objetivo de aislar internacionalmente a
Taiwán, al imponer su política deuna sola China”
4
.
Bajo este repertorio, la política exterior de la República Popular adopel principio de
“hacia todas las direcciones”, el cual teóricamente no implica diferenciación entre
regiones geográficas o continentes. Asimismo, se intensificó el discurso de China como
país en desarrollo, base fundacional de su política externa. Si bien en la práctica las
grandes potencias y su entorno regional son cruciales en el diseño de la agenda exterior
5
,
África ha guardado cierta prioridad (Yun, 2014: 13).
En el nuevo siglo, la actividad diplomática del gobierno chino hacia África ha sido intensa
y de alto nivel, tanto bilateral como multilateralmente. En términos cronológicos es
preciso mencionar como primera medida el lanzamiento del Foro de Cooperación China-
África (FOCAC) en octubre del año 2000
6
, marco inicial que encauzó y dio impulso al
accionar de la República Popular China. De aquella primera reunión multilateral emanaron
dos instrumentos jurídicos, la Declaración de Beijing y el Programa para la Cooperación
Sino-Africana para el Desarrollo Económico y Social, los cuales se convirtieron en los ejes
políticos que guiaron la intencionalidad china (Li et al, 2012).
En la Declaración de Beijing (2000) se afirmó que el foro era un encuadre al diálogo
colectivo sobre los pilares de la igualdad y el beneficio mutuo, reconociéndose como
países en desarrollo. Además, se mencionaron los Cinco Principios de Coexistencia
Pacífica así como los principios de la carta de la ONU y de la UA. En el programa adjunto
se detallaron las áreas de cooperación, entre ellas: comercio e inversión; proyectos de
infraestructura; cooperación financiera; alivio de deuda; turismo; migración; cooperación
agrícola; exploración y utilización de los recursos naturales y energía; cooperación
cultural; científica y tecnológica, salud pública, educación y desarrollo de recursos
humanos; manejo medioambiental y de biodiversidad y control de armas.
Posteriormente, en la segunda reunión ministerial de la FOCAC en 2003
7
en Addis Abeba
4
Dicho principio de la política exterior china implica que aquellos países que reconocen a Taiwán deben
romper relaciones diplomáticas para poder establecerlas con la República Popular China.
5
A modo de ilustración, los principales socios comerciales de China en el mundo son Estados Unidos, la Unión
Europea, la Asociación de Naciones del Sudeste Asiático (ASEAN), Japón y Hong Kong (Información extraída
de https://oec.world/en/profile/country/chn/ - Consultado el 27-09-2019).
6
La primera cumbre ministerial se llevó a cabo en Beijing y contó con la participación de 44 ministerios de
países africanos (ministerios de relaciones exteriores y de comercio) y funcionarios de 80 ministerios chinos.
Además asistieron los primeros mandatarios de Togo, Argelia, Zambia, Tanzania y el Secretario General de
la Unión Africana. Información extraída del Ministry of Foreign Affairs, China
https://www.fmprc.gov.cn/zflt/eng/gylt/dyjbzhy/t157577.htm [Consultado el 05-09-2018].
7
En esta oportunidad, nuevamente participaron 44 países africanos.
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(Etiopía) se adoptó un nuevo Plan de Acción para el período 2004-2006, el cual, pretendió
mejorar la implementación de los documentos anteriores.
Las acciones mencionadas en el párrafo anterior son importantes ya que fueron la guía
del accionar chino hacia los países africanos hasta el 2006, año en que se publiel
primer policy paper sobre África. Dicho informe y la celebración de la tercera conferencia
ministerial del FOCAC
8
llevaron a catalogarlo como el “Año de África” para China. Con
ello, se puede observar la continuidad otorgada al tratamiento del tema africano.
Asimismo, en el año 2010 se dio a conocer un White paper titulado “Cooperación
Económica y Comercial China-África”, que fue seguido de una segunda edición en 2013,
ya bajo el cambio de administración en manos de Xi Jinping. Por otra parte, entre 2003
y 2014, se emitieron otros dos White papers sobre la ayuda externa china” en 2011 y
2014 respectivamente, en donde fue explicitado el lugar privilegiado de los países
africanos en la política de cooperación Sur-Sur de Beijing (detallado a continuación).
El traspaso del gobierno de Hu Jintao a Xi Jinping mantuvo inalterada la política china
para África. Para Xi la consolidación de la amistad con los países africanos refuerza la
identidad china de país en desarrollo y su meta en alcanzar la democratización de las
relaciones internacionales y un nuevo orden internacional (Yun, 2014: 13). En 2015 salió
a la luz el segundo policy paper sobre la posición China en África, repitiéndose los
principios y las áreas de cooperación establecidos en el año 2000. Solamente innovó al
impulsar la categoría de asociación estratégica comprensiva entre los actores
involucrados (The People’s Republic of China, China's second Africa policy paper, 2015).
Al respecto, Beijing posee una gradación jerárquica
9
por la cual, a medida que los lazos
se van intensificando, se hace escalar a la relación a una posición mayor. En este sentido,
los nculos comienzan desde la gradación más baja hasta ascender a la más alta. La
asociación estratégica comprensiva, entonces, es la condición más alta que una relación
puede lograr (Malena, 2015). De todas formas, el país asiático también ha profundizado
elnculo con determinados países africanos de forma oficial
10
.
En cuanto al intercambio comercial, China avanzó a paso firme desde 2000 en adelante,
consolidándose como primer socio comercial del continente en 2009 (The People’s
Republic of China, 2013). Más específicamente, en el año 2013 China se convirtió en el
primer destino de las exportaciones de la región de África Subsahariana, sobrepasando
a la Unión Europea y a Estados Unidos -socios tradicionales de los países africanos-
quienes pasaron a ocupar el segundo y tercer lugar (Pigato y Tang, 2015: 6). En 2017,
el total del volumen comercial China-África alcanzó los 139 billones de dólares (World
Integrated Trade Solution, World Bank online). Los principales destinos para los bienes
chinos fueron Sudáfrica y Nigeria, mientras que los mayores exportadores fueron Angola,
8
A partir de la tercera conferencia ministerial del FOCAC, los planes de acción incluyeron acciones en concreto
más que un punteo de intenciones. Es por ello, que desde el año 2006 en adelante serán trabajados en el
capítulo VI, correspondiente a cooperación.
9
“Hay una serie de términos a partir de los cuales la diplomacia china define los distintos status de asociación
que caracterizan su política exterior. Cuatro de ellos son centrales: “socio”, “cooperativo”, “estratégico” e
“integral”, existiendo otros siete que son secundarios” (Malena, 2015: 2).
10
Beijing ha firmado, entonces, Comprehensive strategic cooperative partnership con la República del
Congo; “Comprehensive strategic partnership” con Sudáfrica, Argelia y Egipto; “Strategic partnership” con
Nigeria, Angola, Sudán y la Unión Africana; Comprehensive cooperative partnership”, con Etiopía, Gabón
y Tanzania y finalmente, “Long term friendship and cooperative partnership”, con Senegal (Li y Ye, 2019).
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Sudáfrica y Sudán (China Africa Research Initiative online; MOFCOM, The People’s
Republic of China online).
Al analizar la composición del comercio, se observa que está basado en la importación
de materias primas de los países africanos y la exportación de productos de alto valor
agregado. Las importaciones de China provenientes de la región de África Subsahariana
están concentradas en recursos extractivos, tales como el petróleo crudo que encabeza
la lista. Simultáneamente, la República Popular exportó a dicha región una producción de
lo más diversificada. El mayor porcentaje lo reunieron los bienes de capital (maquinaria,
equipos de transporte), seguidos por los textiles. La transición hacia la compra de este
tipo de productos -los cuales anteriormente provenían de Estados Unidos o la Unión
Europea- se debe a que son más accesibles en cuanto a costos, haciéndolos s
atractivos.
Las Inversiones Extranjeras Directas (IED) de China en África se han incrementado
sustancialmente desde 2003, alcanzando un pico en 2008, para luego descender como
consecuencia de la crisis financiera internacional. La IED se distribuye en todos los
sectores de la economía, dentro de los cuales la infraestructura ha ido aumentando
exponencialmente. En lo que respecta a la distribución sectorial, si bien los capitales
chinos tienen destinos variados, las industrias extractivas fueron las preponderantes en
un primer momento, superando el 30% del total, siguiéndoles la construcción y los
sectores financiero y manufacturero (The People’s Republic of China, 2010 y 2013; Pigato
y Tang, 2015: 11).
La IED del país asiático ha crecido de 1.000 millones de dólares desde 2004 a 35.000
millones en 2015, lo que representa una tasa de crecimiento anual promedio del 40%
(Sun et al., 2017: 20). En la región, los principales países receptores han sido: Angola,
Kenia, Congo (RDC), Sudáfrica y Zambia. En el o 2017, la inversión China en África
alcanzó los 4.100 millones de dólares, lo que significó un aumento interanual del 70,8%,
pero que representa sólo el 2,6% de los flujos totales de IED de China en el mundo.
Dicho esto y considerando que Asia representó el 69,5%, Europa el 11,7% y América
Latina el 8,9%, no se debe caer en una sobrevaloración del lugar que ocupa África en la
distribución de las IED de China a nivel global (Ministry of Commerce, The People’s
Republic of China, 2017: 96).
Beijing tiene una batería de herramientas gubernamentales para desplegar sus intereses
económicos en los países de África, muchas de las cuales se concretaron o propusieron
en el marco del Foro de Cooperación China-África (FOCAC). Entre ellos, tratados
bilaterales de inversión con 32 países africanos, acuerdos de arancel cero en algunas
exportaciones con los Países Menos Desarrollados y alivio de deuda. En segundo lugar,
en 2006 y como parte de uno de los compromisos establecidos en el FOCAC se inauguró
el Fondo de Desarrollo China-África, creado por las organizaciones financieras chinas para
brindar apoyo especial a las empresas nacionales con interés en invertir en África. Por
último, interesa dar a conocer que China ha promovido la instalación de “zonas
económicas especiales” en territorio africano -emulando la experiencia en su propio país-
en las cuales las empresas chinas se hacen cargo de la infraestructura. Finalmente,
importa mencionar las instituciones financieras chinas de las que emanan la mayoría de
los préstamos: China Development Bank, Export-Import Bank of China, Industrial and
Commercial Bank of China, Bank of China and China Construction Bank (The People’s
Republic of China, 2010 y 2013).
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La cooperación de China en África en el área de infraestructura de conectividad física.
El caso de la vía ferroviaria Mombasa-Nairobi
María Noel Dussort; Agustina Marchetti
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En otras palabras, China viene desplegando una estrategia multidimensional en África en
el siglo XXI. A continuación se observa en particular el tipo de cooperación que Beijing
dirige a los países africanos, con el objeto de demostrar el interés crucial que ha tenido
el desarrollo de obras de infraestructura.
2. La cooperación de China en África: las grandes obras de
infraestructura en el centro de la escena
El carácter de la CSS china evolucionó a la par que su propia dinámica interna y en
función de sus necesidades de inserción externa. El objetivo político de reforzar y
desarrollar cooperación amistosa con todos los países en desarrollo, incluyendo
especialmente a los países africanos, ha sido desde hace tiempo un importante
componente de la política exterior de China (Shelton, 2006). Para comprender la CSS de
China en el siglo XXI, se vuelve necesario realizar un breve recorrido del pasado reciente
del vínculo establecido con África.
Concretamente, en los albores de la República Popular, el accionar solidario respondió a
la necesidad de obtener el reconocimiento de la comunidad internacional como el
gobierno legítimo de toda China, y a su vez, fue una herramienta ideológica para
internacionalizar el comunismo en el mundo. Tal es así que este país comenzó a transferir
granos, algodón o materiales industriales a los países de la órbita socialista (Corea del
Norte y Vietnam del Norte) ya en 1950. Es por ello que la concepción de cooperación
china surgió íntimamente ligada a la relación que el país asiático entablaba con los países
del Tercer Mundo, principalmente con los africanos.
La Conferencia de Bandung de 1955 - acontecimiento que marcó la emergencia de los
países del Sur en un orden bipolar rígido - y los Principios de Coexistencia Pacífica
11
que
emanaron de ella, ayudaron a fundamentar y dar confianza a las relaciones que Beijing
intentaba entablar con aquellas naciones afroasiáticas. Aprovechando el espíritu de
Bandung que dio impulso a los primeros vínculos de la China comunista con los países
africanos, el primer ministro Zhou Enlai en 1963 enunció en África Subsahariana “Los
Ocho Principios para la Ayuda Económica y la Cooperación Técnica para otros países”, los
cuales han guiado la cooperación china hasta la actualidad. En otras palabras, la filosofía
de la ayuda china” puede ser resumida en cuatro palabras claves: autosuficiencia, no
interferencia, obras de infraestructura y beneficio mutuo (Shimomura y Ohashi, 2013:
220). El ejemplo más contundente y que ha trascendido las relaciones entre China y los
países africanos fue la construcción del ferrocarril entre Tanzania y Zambia (TAZARA)
durante 1967 y 1975
12
.
Dado el período de introspección que comen a atravesar China en la década de los
ochenta debido al proceso de reformas económicas implementado por Deng Xiaoping,
disminuyeron las motivaciones para mantener o incrementar la CSS. La década siguiente
11
Los cinco principios de “respeto mutuo por la soberanía y la integridad territorial, la no agresión mutua, la
no interferencia en los asuntos internos de otros países, la igualdad y beneficio mutuo y la coexistencia
pacífica” fueron llevados a la conferencia por China e India. Cabe mencionar que si bien de la Conferencia
de Bandung emanó una propuesta de diez principios, los Cinco Principios de Coexistencia Pacífica son los
reconocidos por China como la piedra angular de su política exterior. Información extraída de la página web
de la Embajada de la República Popular China en Costa Rica
http://cr.chineseembassy.org/esp/xwdt/t1173044.htm [Consultado el 31-03-2019].
12
En las páginas siguientes se aborda el caso del TAZARA con mayor detalle.
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El caso de la vía ferroviaria Mombasa-Nairobi
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se conoce como el retorno de China a los países del Sur Global como parte de su
estrategia de reinserción internacional post masacre de Tiananmen, regreso entronizado
por la visita de Jiang Zemin en 1996 a seis países africanos
13
donde nuevamente se
remarcaron los principios de la cooperación sino-africana, lineamientos que sentarían las
bases del Foro de Cooperación China-África (FOCAC) establecido en el año 2000, tal como
se mencionó anteriormente.
Durante la primera década del siglo XXI, hubo un resurgimiento de la CSS que se debió
al nuevo impulso otorgado por potencias emergentes como China. De acuerdo al análisis
de los dos White papers sobre la ayuda externa china, de 2011 y 2014 respectivamente,
emergen una serie de cuestiones vinculadas a nuestra temática de análisis.
En términos semánticos, el documento de 2011 enfatiza la categoría de “ayuda externa
chinacomo concepto que sintetiza las diferentes formas de cooperación realizada por el
país asiático; razón por la cual se puede considerar que ya no hay un rechazo tan rotundo
a la palabra “ayuda” (aid) en los rculos de gobierno (Grimm et al, 2011: 4). Dicho
rechazo se debía al hecho de que los países desarrollados se habían apropiado del
concepto Ayuda Oficial al Desarrollo (AOD). Según el extracto: As development remains
an arduous and long-standing task, China’s foreign aid falls into the category of South-
South cooperation and is mutual help between developing countries” (The People’s
Republic of China, 2011: 3). A partir de entonces, la ayuda externa provista por Beijing
ingresó dentro de la categoría de CSS, como un concepto paraguas y genérico que
contemplaría diversas formas de cooperación entre los países en desarrollo. Asimismo,
se vislumbró una diferencia crucial entre el primer y el segundo White Paper: mientras
que el primero hacía referencia a la “ayuda externa” (foreign aid), el segundo se posiciona
en el término “asistencia externa” (foreign assistance), restringiendo el término “ayuda”
solamente cuando está vinculada a la “ayuda humanitaria” (emergency humanitarian
aid) (Lechini y Dussort, 2016).
Respecto a las modalidades que adquiere la cooperación ofrecida
14
, desde los 2000, la
más utilizada ha sido los denominados “proyectos completos”, destinados principalmente
a los sectores de infraestructura económica (transporte, energía eléctrica y
telecomunicaciones), industrial y energía (industria petrolera, metalúrgica y de
producción de carbón). A propósito de ello, el segundo White paper clarifique mientras
que el 72,4% de los fondos entre 2010 y 2013 fueron absorbidos por proyectos de
infraestructura, el 5,8% estuvo dirigido a cooperación técnica y cooperación para el
desarrollo de recursos humanos (The People’s Republic of China, 2011 y 2014).
En lo referente a la arquitectura institucional encargada de la cooperación internacional,
históricamente la dirección general de política de asistencia al desarrollo dependía del
Grupo para Asuntos Extranjeros del Partido Comunista [Chinese Communist Party
Leading Grouping for Foreign Affairs]. Este último y el Consejo de Estado [State Council
Leading Group for Foreign Affairs] son los cuerpos administrativos de más alto nivel que
13
Kenia, Egipto, Etiopía, Mali, Namibia y Zimbabue. Información extraída de la página web del Ministerio de
Asuntos Exteriores de la República Popular China
http://www.fmprc.gov.cn/mfa_eng/ziliao_665539/3602_665543/3604_665547/t18001.shtml [Consultado
el 24-03-2019].
14
Desde sus inicios, se clasificaron en cooperación técnica, entrenamiento de recursos humanos, ayuda para
emergencias humanitarias, proyectos completos, materiales y bienes, equipos médicos, programas de
voluntariado y condonación de deuda. Las tres primeras están sustentadas con subsidios, es decir, no se
espera pago alguno en retorno por parte de los países receptores (Mthembu, 2018).
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El caso de la vía ferroviaria Mombasa-Nairobi
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regularon a los organismos encargados de administrar los proyectos de cooperación: el
MOFCOM (que poseía un departamento de Ayuda para países extranjeros); el ministerio
de Asuntos Externos (MFA); una serie de ministerios especializados (ministerio de Ciencia
y Tecnología, ministerio de Agricultura, ministerio de Educación, ministerio de Salud y
ministerio de Comunicaciones) y la oficina de Enlace Internacional del ComiCentral del
Partido Comunista (Chin y Frolic, 2007).
De acuerdo a Huang y Wei (2015) el ministerio de Asuntos Externos y el ministerio de
Finanzas ejercían la mayor influencia en la política de asistencia externa. Pero el
ministerio de Comercio fue la agencia gubernamental más importante en la ejecución de
la asistencia china desde 2003. Mientras que el ministerio de Finanzas establecía los
fondos presupuestarios destinados a los programas de ayuda, el ministerio de Comercio
se encargó de analizar su viabilidad, coordinar el proceso de su implementación a través
de los ministerios y llevar a cabo su revisión. Desde el inicio, el ministerio de Comercio
nucleaba la administración total de los fondos financieros. Con la creación del EXIM Bank
en 1994, esta institución comenzó a gestionar los préstamos blandos y el ministerio de
Comercio a manejar las subvenciones y los créditos libre de intereses. El Banco de
Desarrollo Chino, también fundado en 1994, proveía de respaldo financiero a las
inversiones de las empresas chinas en países en desarrollo. Al posicionar la ayuda externa
dentro del MOFCOM, queda demostrada la fuerte motivación económica que existía
detrás de cada proyecto otorgado.
Recientemente, hubo un intenso debate académico en China con el fin de proporcionar
alternativas institucionales que nucleen los programas de cooperación. Finalmente, en el
año 2018 el gobierno de Xi Jinping inauguró la Agencia China de Cooperación para el
Desarrollo Internacional (CIDCA, por sus siglas en inglés) (Huang y Wei, 2015).
Debido a lo anteriormente expuesto, se puede comprender que históricamente los
recursos financieros que han sostenido la CSS china se han dividido en tres tipos:
subsidios (extensión financiera sin acuerdo de devolución por parte del beneficiario),
préstamos a tasa cero interés (con un plazo de 20 os) y créditos blandos (con un plazo
de 15-20 años y una tasa de interés de 2-3% anual). El hecho que desde 2000 en
adelante hayan aumentado los créditos blandos y disminuido los subsidios, vislumbra
también la intencionalidad de la cooperación china.
En términos geográficos, los mayores receptores de ayuda externa han sido los países
de África y Asia, y en menor medida, América Latina y el Caribe, Oceanía y Europa del
Este. No obstante, desde 2010 África ha contabilizado el 50% de la totalidad de la ayuda
(The People’s Republic of China, 2011 y 2014).
Simultáneamente, es interesante comparar lo antedicho con los análisis realizados sobre
el estado de situación de la infraestructura en África de otros organismos internacionales
y think tanks (Foster et al, 2009; Gutman et al, 2015; The Infrastructure Consortium for
Africa
15
-ICA-, 2017). De acuerdo al informe del Banco Mundial de 2009 (Foster et al,
2009), se dio a conocer que entre 2000-2007 los dos sectores mayormente beneficiados
por los capitales chinos fueron el de energía, reuniendo 33,4% (particularmente energía
15
El ICA está constituido por bancos multilaterales de desarrollo y bancos regionales de desarrollo como el
Banco de Desarrollo Africano (AfDB), el Banco de Desarrollo de África del Sur (DBSA), la Comisión Europea,
el Banco de Inversión Europeo (EIB), los países que conforman el G8, la República de Sudáfrica y el Grupo
Banco Mundial.
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hidroeléctrica) y el de transporte, con el 33,2% (especialmente as férreas). Los
compromisos de financiamiento de Beijing se mantuvieron en un promedio de 5.000
millones de dólares entre esos años, concentrándose en un 70% en Nigeria, Angola,
Etiopía y Sudán. No obstante, desde 2007 a 2012 se demostró cierto cambio en el destino
de la financiación china, desde los países ricos en recursos naturales estratégicos-como
los cuatro anteriormente indicados- a los países que no lo son. Tal es así que Ghana y
Etiopía fueron los mayores receptores, seguidos por Camerún, Zambia y Nigeria (Gutman
et al., 2015).
En base al último informe del ICA (2017: 16) los compromisos chinos de inversión en
obras de infraestructura en África alcanzaron su pico máximo en 2013, demostrando que
el país asiático reunió el mayor porcentaje de la financiación para el continente (66% del
total), superando a los organismos financieros internacionales y a las potencias
tradicionales. En este marco, estuvieron incluidos los casi 4.000 millones de dólares
destinados al tramo ferroviario Mombasa-Nairobi en Kenia, el caso de estudio que se
abordará a continuación. Cabe mencionar además que los montos para el sector
analizado continuaron in crescendo, hasta alcanzar un valor cercano a los 20.000 millones
de dólares en 2017.
En definitiva, de lo expuesto en las páginas anteriores, podemos afirmar que la
cooperación china nació y se desarrolen simultáneo a las relaciones que la República
Popular mantuvo con los países en desarrollo, principalmente los africanos. Si bien en un
principio dicho accionar tenía como objetivo extender la revolución maoísta en el Tercer
Mundo, fue transformándose al paso de los cambios domésticos ocurridos en ese país.
De esta manera, Beijing (y sus empresas estatales como brazos ejecutores), se ha
convertido en promotor, financiador y ejecutor de muchos de los proyectos de
infraestructura que los países africanos necesitan en la actualidad.
A partir de la asunción de Xi Jinping en 2012, se vienen dando signos de una política
exterior de alcance mundial, a raíz del lanzamiento de iniciativas como la BRI, la cual
otorgó un rol central a la interconectividad y con ella, la extensión de las obras para tal
fin. En las páginas siguientes se particulariza sobre la inclusión del continente africano
en la iniciativa y, en este marco, la intensificación del rol de China como Estado proveedor
de bienes públicos. Asimismo, se avanza sobre el proyecto Mombasa-Nairobi, en el
intento de ahondar sobre el binomio costos/beneficios de la cooperación al desarrollo
china en Kenia.
3. La interconectividad, foco de la Belt and Road Initiative
En 2013, el presidente chino Xi Jinping en su visita a Kazajstán, anunció el cinturón
económico de la Ruta de la Seda (“The One Belt”). El mismo o y en circunstancias
similares en Indonesia anunció la Ruta de la Seda Marítima (“One Road”). Ambos forman
lo que se inicialmente se conoció como la iniciativa "One Belt, One Road" (OBOR), que
en la actualidad es definida como “Belt and Road Initiative”. El cinturón económico de la
Ruta de la Seda pretende vincular a China con Europa a través de Asia Central y Rusia;
con el Medio Oriente a través de Asia Central y unir a China y el Sudeste Asiático, el sur
de Asia y el Océano Índico. Por otro lado, la Ruta de la Seda Marítima se centra en el uso
de los puertos costeros chinos para unir a China con Europa a través del Mar del Sur de
China y el Océano Índico. África entra en escena dentro de la ruta marítima. Si bien, en
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La cooperación de China en África en el área de infraestructura de conectividad física.
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un primer momento, su participación en términos oficiales no estuvo del todo clara, en
los hechos algunos países africanos forman parte de la iniciativa. No obstante, “sólo los
países africanos considerados estratégicos para la OBOR, especialmente aquellos vitales
para establecer y asegurar enlaces comerciales, serían priorizados por el gobierno chino”
(Bagwandeen, 2017: 2).
La BRI se erige como uno de los programas más ambiciosos e importantes del siglo XXI,
que apunta a lograr una arquitectura económica integrada (Concatti, 2017). Por lo cual,
para el gobierno chino es clave mejorar la conectividad física entre los países involucrados
como primer paso. En consecuencia, ya se han puesto en marcha una sucesión de
proyectos encaminados a achicar la “brecha de infraestructura”.
Teniendo presente la estrategia global de China, numerosos proyectos enfocados en la
infraestructura de transporte se iniciaron en varios estados africanos con el respaldo de
Beijing. En el año 2009, se publicó el East Africa Railway Master Plan Study (EARMP), en
el cual se realiun informe acerca del estado de situación de los ferrocarriles en África
del Este. Del EARMP emanó una propuesta para optimizar el uso de los mismos y
aumentar el volumen de toneladas transportadas proyectando un incremento de 3.700
millones en 2007 a 16 millones en 2030 (CPCS, 2009). En la versión actualizada de dicho
informe, publicada por la East Africa Community (EAC) en 2017, el país asiático apareció
como el actor clave en la concreción del proyecto maestro ferroviario.
Beijing se comprometió a liderar la formación del Chinese group for Sino-Africa
cooperation in railway and high-speed railway
16
en esa región de África, que integraría
recursos de instituciones de financiamiento, empresas de construcción de ferrocarriles y
empresas de gestión de operaciones ferroviarias. De esta manera, se puede constatar
que el gigante asiático viene avanzando a paso firme en el sector ferroviario de la
región
17
.
Luego de cuatro años de lanzada la iniciativa, China convocó al primer Foro del Cinturón
y la Ruta para la cooperación internacional -Belt and Road Forum (BRF) - en mayo de
2017 en Beijing, bajo el lema Work Together to Build the Silk Road Economic Belt and
The 21st Century Maritime Silk Road”, al cual participaron representantes
gubernamentales de más de cien países. En el discurso de apertura, el presidente Xi
Jinping hizo hincapié en que la iniciativa se basa en los principios de cooperación pacífica,
apertura e inclusión, aprendizaje y beneficios mutuos. Destaademás que hay cuatro
grandes áreas prioritarias de cooperación, todas atravesadas por el principio de la
“interconectividad”: infraestructura, comercio, finanzas y contacto entre personas
(people to people connectivity). En este sentido, se destaca que la iniciativa se esfuerza
16
Para mayor información ver informe de prensa de la Unión Africana. Disponible en:
https://au.int/en/pressreleases/20161010-2
17
A nivel continental, se avanen materia de cooperación en infraestructura a través del Memorando de
Entendimiento entre China y la Unión Africana firmado el 25 de enero de 2015, que consolidó los planes de
China para África con el objetivo de promover la cooperación en ferrocarriles, carreteras, redes regionales
de aviación y campos de industrialización. El 5 de octubre de 2016, se firun Plan de Acción Quinquenal
en la sede de la UA, entre la Comisión de la Unión Africana (AUC por sus siglas en inglés) cuya presidencia
estaba a cargo de la Dra. Nkosazana Dlamini Zuma y el representante del gobierno de la República Popular
de China, el Sr. Xu Shaoshi, ministro de Desarrollo Nacional y Comisión de Reforma (NDRC). En el marco
del Plan de Acción se propusieron varios hitos a desarrollar durante el período en cuestión, tales como: el
acuerdo en materia de leyes y regulaciones relevantes sobre cooperación ferroviaria; el establecimiento de
una Unidad de Implementación de Proyectos (UEP) por parte de las AUC; la colaboración y facilitación entre
empresas africanas y chinas; la transferencia de tecnología, la educación y creación de capacidades para
fabricación de bienes de contenido local (Unión Africana, 2016).
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por aumentar la cooperación y el intercambio en campos como la tecnología, los recursos
naturales, el turismo, la protección del medio ambiente y las ONGs. Dentro de la
cooperación en materia de infraestructura se hizo hincapié en los ferrocarriles, carreteras,
rutas aéreas, telecomunicaciones, oleoductos y gasoductos y puertos (XinhuaNet, 2017).
Del continente africano, cuatro países participaron del evento, a saber: Egipto, nez,
Etiopía y Kenia (The Diplomat, 2017). No es casual que dos de ellos formen parte de la
región del Este de África, con sus costas en el Océano Índico, constituyéndose en espacios
claves en la iniciativa china. De hecho, el puerto de Nairobi aparece marcado en los
mapas que muestran el trazado de la ruta marítima
18
.
Como se mencionó en párrafos anteriores, inicialmente la participación africana en la BRI
aparecía con un signo de pregunta. Sin embargo, al presente se puede afirmar el interés
e impulso de los países africanos por extenderla hasta sus territorios. Tal es así, que
algunos autores ya lo catalogan como un segundo cinturón” (Breuer, 2017). Lo cierto es
que en el marco de la cumbre de la FOCAC de 2018 en Johannesburgo, China incluyó a
la BRI al concluir la firma de memorandos de entendimiento (MoUs) de forma bilateral
con treinta y siete países africanos y la Unión Africana
19
, donde manifestaron la voluntad
política para el desarrollo conjunto de la iniciativa (Xinhuanet, 2018). Cabe destacar que
Kenia se encuentra entre los países signatarios (Mbogo, 2018), reafirmando la relevancia
geoestratégica que posee por su ubicación espacial.
3.1. Kenia, otra puerta de entrada a África: la vía ferroviaria Mombasa-
Nairobi
Como se dio a conocer, la participación de China en los proyectos de infraestructura
ferroviaria en África data del siglo pasado. Es necesario recordar que ya en la década del
sesenta Beijing fue el actor clave en la construcción del TAZARA
20
, ferrocarril binacional
de propiedad conjunta de los gobiernos de la República Unida de Tanzania y la República
de Zambia. En términos de interconectividad, el TAZARA enlazaba Zambia con el puerto
marítimo de Dar es Salaam en Tanzania y proporcionaba, además, carreteras y as
férreas. En esencia, se trataba de una red troncal de comunicación para la Comunidad
de África Oriental. Dicho proyecto se ha convertido en un símbolo de la cooperación
18
Ver mapas de los siguientes sitios: Xinhua; World Economic Forum; The Economist, Kenyan Wall street.
19
De acuerdo al Belt and Road Investment Index Report 2018, elaborado por el Shangai Municipal Commission
of Commerce, los países parte de la iniciativa son Sudáfrica, Kenia, Marruecos, Ghana, Tanzania, Nigeria,
Etiopía, Egipto, Madagascar, Argelia, Túnez, Sudán, Congo y Angola. De todos modos, es importante
considerar que todos los proyectos acordados previamente entre un gobierno africano y China -luego de la
firma de los MoUs por los cuales han sido denominados “BRI countries” - han quedado incorporados a la
iniciativa.
20
En la década de los sesenta, los gobiernos de Tanzania y Zambia venían trabajando en el diseño pero sabían
que este gigantesco proyecto requería de grandes cantidades de fondos para poder despegar. En primera
instancia, se contactaron con los países occidentales para obtener ayuda para construir la línea, pero éstos
rechazaron la idea e insistieron en que "el proyecto no era económicamente viable". Fue allí cuando el
gobierno de la República Popular de China, bajo la dirección de Mao aceptó rápidamente y se ofreció a
financiarlo como un proyecto llave en mano. Fue entonces que el 5 de septiembre de 1967, se concluyó un
acuerdo para la construcción de TAZARA en Beijing, entre los gobiernos de China, Tanzania y Zambia. Los
chinos financiaron el proyecto, proporcionaron ayuda para la construcción, la experiencia y el equipo,
incluidos edificios, talleres, escuelas de capacitación e infraestructura relacionada. La idea inicial era que la
línea férrea comenzara desde Kidatu en Tanzania hasta Kampoyo en Zambia. En 1970, China acordó
conceder a Tanzania y Zambia un préstamo sin intereses reembolsable en treinta años -por un total de 988
millones de yuanes- para cubrir los costos de construcción de la línea y la infraestructura de apoyo de las
estaciones y la escuela de capacitación, así como el suministro de energía motriz y material rodante.
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La cooperación de China en África en el área de infraestructura de conectividad física.
El caso de la vía ferroviaria Mombasa-Nairobi
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110
solidaria de China en África, que persiste hasta el presente. Da cuenta de ello que en
julio del 2018, se concretó un encuentro entre el Ministro del Comi Central del
Departamento Internacional del Partido Comunista de China (PCCh), el Sr. Song Tao, y
las autoridades del TAZARA, a quienes ha pedido el avance del "Espíritu de TAZARA"
como mbolo de amistad comprometiéndose en la modernización del mismo (TAZARA,
2018)
21
.
En este contexto, China y la Unión Africana firmaron en 2015 un MoU con el objetivo de
conectar sus capitales y ciudades importantes con una red ferroviaria de alta velocidad
integrada, un proyecto emblemático de la Agenda continental de África 2063. En tanto,
el proyecto chino de modernización y construcción ferroviaria del tramo Mombasa-Nairobi
en Kenia también es parte del Plan Maestro Ferroviario de África Oriental -que pretende
extenderse a lo largo de Tanzania, Kenia, Uganda, Ruanda, Burundi, Sudán del Sur y
Etiopía.
El caso del tramo ferroviario Mombasa-Nairobi (o Madaraka Express) es de particular
interés ya que corre paralelo al Uganda Railway (conocido como Lunatic Express”),
construido por Gran Bretaña a finales del siglo XIX, cuando estos territorios se
encontraban bajo dominio británico (Duell, 2017). La falta de mantenimiento de dichas
vías de comunicación generó un significativo deterioro en la capacidad de transporte
22
.
En consecuencia, el proyecto SGR, financiado mayormente por China, fue diseñado en
dos grandes corredores Northern corridor y Lapsset corridor
23
, los cuales abarcan
diferentes tramos del ferrocarril. El Northern Corridor consta de dos fases: la primera de
472 km desde Mombasa hasta Nairobi, la cual está concluida y fue inaugurada el 31 de
mayo de 2017. La segunda fase, de 490 km totales completando el recorrido Nairobi
Kisumu Malaba, está a su vez conformada por 3 subfases
24
de las cuales solo la primera
está en marcha.
Los principales actores involucrados en el diseño, construcción y ejecución del tramo
Mombasa-Nairobi fueron principalmente dos grandes empresas chinas. Por un lado, la
China Road and Bridge Corporation (CRBC)
25
que fue contratada por Kenya Railways (KR)
para llevar a cabo la primera fase del Northern Corridor y además se firmaron dos
contratos comerciales, a saber: uno relativo a la construcción de la obra civil bajo la
modalidad llave en mano y otro para el suministro, compra e instalación de locomotoras
y material rodante. Por otro lado, KR y China Communications Construction Company
(CCCC) han firmado cuatro contratos comerciales para el desarrollo y ejecución de la
segunda fase del tramo Nairobi-Malaba del proyecto. Con respecto a la supervisión de la
construcción, la misma está a cargo de la China Railway Development Company, Apec
21
Para mayor información acerca de este proyecto se puede leer: “Freedom Railway. The unexpected
successes of a Cold War development Project”. Disponible: http://bostonreview.net/jamie-monson-
freedom-railway-tazara-tanzania
22
El Uganda Railway se trata de una vía férrea que conecta el Lago Victoria al puerto de Mombasa. En la
década del ochenta su capacidad de transporte era de 4.8 millones de toneladas y en 2012 de 1.5 millones
(Mugwe, 2018).
23
Para mayor información sobre este corredor visitar: http://www.lapsset.go.ke/projects/railway/. El mismo
está formado por dos grandes tramos: el primero Lamu Isiolo Nakdok que recorrerá 1,350 km; y el
segundo Nairobi – Isiolo – Moyale a lo largo de 700km.
24
Las 3 subfases del segundo tramo son: la fase 2A con un trayecto de 120 km desde Nairobi hasta Naivasha
(fase en ejecución). La fase 2B de 262 km Naivasha Narok Bomet Nyamira Kisumu que a su vez
incluye el New Kisumu Port y por último la fase 2C de 107 km desde Kisumu pasando por Yala, Mumias y
finalizando en Malaba.
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Es subsidiaria de la China Communications Construction Company (CCCC).
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El caso de la vía ferroviaria Mombasa-Nairobi
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Consortium Limited y Edon Consultants International (CRDC/APEC/EDON Consortium)
quienes se ocupan de la revisión y supervisión del diseño y la construcción para garantizar
que se cumplan los estándares de calidad.
El costo de la primera fase Mombasa-Nairobi ascendió a 3.223 millones de dólares, lo
que la convirtió en la infraestructura más cara proyectada en Kenia desde su
independencia y que equivale a un 20% de su presupuesto nacional (Changfeng &
ZiroMwatela, 2016). El financiamiento estuvo a cargo en un 90% del Exim Bank de China
a través del otorgamiento de un préstamo al gobierno de Kenia. El 10% restante fue
financiado por el país africano quien lo hizo a través de un Fondo de Desarrollo
Ferroviario, anclado en un gravamen del 1,5% sobre el costo de las importaciones en el
extranjero que se transporten en el Madaraka Express (Kenya Railways, 2019; Railway
Gazzette, 2017).
A modo de síntesis podemos observar que de acuerdo a lo anteriormente detallado, China
se ocupa no solo de la financiación, la construcción y la ejecución, sino también de la
provisión de materiales y la supervisión del proyecto. Lo que se puede constatar es que
el Madaraka Express significó avances y mejoras reflejadas, por un lado, en el incremento
de los volúmenes transportados desde y hacia el puerto; y por otro lado, la reducción de
los costos y los tiempo de viaje, el fomento de las inversiones y una mejora en la
competitividad de los mercados.
Para dar cuenta de ello, la Oficina Nacional de Estadísticas de Kenia (KNBS) informó que
el servicio de ferrocarril transportó 699.055 pasajeros entre junio y diciembre de 2017,
número que aumentó a poco más de 1 millón y medio en 2018. Asimismo, el servicio de
carga de SGR transportó 5 millones de toneladas de mercancías en 2018, con un ingreso
total de 863.177 dólares (Xinhua News Agency, 2019). Con respecto a la reducción del
tiempo de transporte, mientras que el “Lunatic Express” demora alrededor de 12 horas
en hacer Mombasa-Nairobi, el Madaraka Express completa el tramo entre 4 y 5 hs. En
lo que al empleo se refiere, proyecto ha creado al menos 19.400 empleos directos y
6.000 empleados por subcontratistas (Breuer, 2017).
Una vez finalizado el proyecto en su totalidad se espera además una mayor descongestión
en el Puerto de Mombasa y un aumento exponencial en los volúmenes de carga
transportados hacia y desde el puerto. Otra de las ventajas se verá reflejada en la
disminución aun mayor de los costos de producción, convirtiendo a la región en un
destino competitivo y atractivo para las inversiones extranjeras que ayudarán en la
exportación de diversos recursos varados en la región. Por último, se sostiene que se
reducirá el desgaste de las carreteras, por lo que se reducirán también los costos de
mantenimiento de las mismas (Kenya Railways, 2019).
Ahora bien, a pesar del gran aporte que ha logrado el proyecto ferroviario, también se
presentan dos grandes desafíos que el gobierno de Kenia debe enfrentar como efecto
colateral su realización. En primer lugar, a partir de 2013 se profundiel déficit de la
balanza comercial entre Kenia y el país asiático, ascendiendo a 3.681 millones de dólares
en 2017. Ello se debe al incremento sustantivo de las importaciones de Kenia
provenientes de China equivalente a 5.000 millones de dólares mayoritariamente de
bienes de consumo, capital e intermedios (World Integrated Trade solution, World Bank,
2019).
En segundo lugar, la cuestión medioambiental es otro de los ejes problemáticos del
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proyecto. Si bien en el primer tramo construido se atraviesa el “Tsavo National Park”, se
construyeron puentes, pasos subterráneos y corrales para poder brindar a los animales
alternativas de paso. Sin embargo, la segunda fase estuvo detenida porque el proyecto
implicaba que atraviese el “Nairobi National Park”, a lo cual se opusieron sectores de la
sociedad autoproclamados conservacionistas (Breuer, 2017). Con el fin de superar este
obstáculo, el gobierno se comprometió a disminuir la huella de carbono de los trenes
involucrados en el proyecto a modo de reducir la degradación ambiental de su territorio
(Kenya Railways, 2019).
En resumen, de lo anteriormente expuesto, podemos afirmar que si bien el proyecto
ferroviario es una obra que contribuye en el corto y el mediano plazo al crecimiento de
Kenia, su gobierno debe afrontar una deuda externa cada vez más profunda, siendo
China el principal acreedor contabilizando un 66% (Anzetse Were, 2018). De la misma
forma, no se puede observar en un futuro cercano un camino viable para hacer frente a
la deuda con la República Popular. Tal es así, que Kenia debió endeudarse con terceros
países (como Japón, Francia, Alemania, etc.) para poder sustentarla. En otras palabras,
el país africano queda entrampado en un círculo vicioso que se asimila a una nueva
dependencia, pero con características chinas, conocido como ‘debt trap’.
Conclusiones
Luego de haber abordado la cooperación en infraestructura en África, particularmente el
caso del proyecto Mombasa-Nairobi, nos ha permitido realizar las siguientes reflexiones
finales. En primer lugar, es importante resaltar que la CSS siempre estuvo presente como
herramienta de política exterior de China en la estrategia de acercamiento a los países
en desarrollo. Más aún, la cooperación en materia de infraestructura se ha erigido como
un símbolo de la cooperación al desarrollo, principalmente hacia los países africanos. Es
cierto que el primer ejemplo que ilustra tal compromiso fue el TAZARA, en un momento
histórico en que el país asiático no era la potencia económica que se ha convertido en la
actualidad. Por lo tanto, más allá de los intereses políticos e ideológicos que atravesaron
la concreción de tal proyecto en el Este africano, se trató de un accionar solidario per se.
Sin embargo, a medida que China viene consolidando su modelo de desarrollo interno,
sus intereses de política exterior se han modificado al son de su ascenso en el orden
internacional. En este sentido, los proyectos de cooperación en materia de infraestructura
no solamente son de vital importancia para estimular el desarrollo en los países africanos,
como afirma el gigante asiático, sino principalmente para fomentar el intercambio
comercial y expandir las actividades de sus empresas estatales. Justamente, el
lanzamiento de la BRI en 2013 responde a la estrategia global de Beijing y no es menor
que su centro neurálgico sea la construcción de obras de infraestructura de tipo civil.
En el marco de la BRI, cabe destacar los esfuerzos de los países africanos para la
incorporación de su continente en dicha iniciativa. El hecho de formar parte de una
estrategia que involucra a la mitad del globo terráqueo y que tiene perspectivas de
volverse mundial, le brinda a África una posición de relevancia geopolítica inobjetable.
Ahora bien, los países africanos también compiten entre ellos por obtener s beneficios
en sus relaciones con China. En este aspecto, Kenia es percibido y se autopercibe como
otro punto de entrada (o salida, dependiendo del punto de vista) a África Subsahariana,
además de los estados agrupados bajo esta característica, a saber, Sudáfrica o Nigeria.
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El proyecto ferroviario Mombasa-Nairobi le ha otorgado a Kenia una posición de privilegio,
debido a que postula a Mombasa a convertirse en el principal puerto de África Oriental,
además de transformarse en unaa de tránsito moderna desde el océano Índico hasta
el centro de África.
Por último, interesa evaluar si efectivamente el proyecto de cooperación en materia de
infraestructura antedicho permite una relación de beneficio mutuo. En cuanto a China,
tal como se expuso, las ganancias son evidentes. Por el contrario, para Kenia, desde una
primera aproximación, el proyecto resultaría muy beneficioso, aunque, es preciso
examinar algunos efectos en el corto y mediano plazo. Respecto de los “pros”, este tipo
de obras disminuyen los costos de producción de forma indirecta, al reducirse el costo
del flete. Consecuentemente, aumentaría la competitividad de las exportaciones kenianas
(y las de los países vecinos) así como Nairobi mejoraría la recaudación fiscal al explotar
esta nueva vía de comunicación.
Sin embargo, como se pudo observar, la forma que tiene Kenia de pagar el préstamo del
Exim Bank chino es a través de un gravamen en el uso del ferrocarril. Además, mientras
el proyecto se está llevando a cabo, China es quien decide sobre todas las fases de
implementación. Es decir, el país africano no posee en ningún aspecto autonomía sobre
la materia. Al mismo tiempo, la balanza de pagos de Kenia se ha deteriorado desde la
implementación del proyecto, volviéndose altamente deficitaria. Ello se debe a que China
importa las maquinarias, los bienes y los servicios que necesita para la ejecución del
proyecto. Lo cual nos lleva a afirmar que en un corto lapso de cuatro años (2013-2017)
la economía de Nairobi se volvió muy dependiente de las relaciones con Beijing.
Es claro que China le da la posibilidad a países como los africanos de acceder a
inversiones tangibles, necesarias, rápidas y sin la burocracia características de los
organismos financieros internacionales. No obstante, los proyectos que son enmarcados
como CSS tienen muchas similitudes con la ayuda atada (más conocida como “tied aid”)
practicada por las potencias tradicionales, al establecerse ciertas condicionalidades que
terminan volviendo borroso el horizonte solidario propugnado.
Todo lo anterior, conduce a reforzar la idea de que China está intensificando su rol como
Estado proveedor de bienes públicos mundiales. De manera que este “aspirante a
hegemón” parece estar emulando ciertas características de la Pax Británica en el tránsito
hacia la instauración de su propia Pax China.
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A INICIATIVA DOS 3 MARES: GEOPOLÍTICA E INFRAESTRUTURAS
Bernardo Calheiros
bernardo.calheiros@gmail.com
Mestre em estratégia e licenciado em relações internacionais. Curso de Defesa Nacional e Curso
de Estudos Avançados de Geopolítica. Foi Diretor de Serviços das Relações Bilaterais no
Ministério da Defesa Nacional (Portugal). Consultor das empresas Gaporsul e Kyron Consultores.
Atualmente, é técnico superior da Direção de Serviços de Relações Internacionais da Direção-
Geral de Política de Defesa Nacional
Resumo
A Iniciativa dos Três Mares (I3M) é um ambicioso projeto geopolítico que engloba doze
Estados-membros da UE situados entre o Mar Báltico, o Mar Negro e o Mar Adriático: de Norte
a Sul, uma vasta faixa englobando a Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia, República Checa,
Eslováquia, Hungria, Áustria, Roménia, Bulgária, Eslovénia e Croácia. Trata-se de uma região
com mais de 25% do território da UE e com cerca de 22% da sua população, mas que tem
uma representatividade económica muito inferior. A I3M visa promover o desenvolvimento
das infraestruturas centro-europeias, com vista a aproximar esta região dos níveis de
desenvolvimento económico dos restantes países europeus.
A I3M destina-se ao desenvolvimento de grandes projetos de infraestruturas regionais em
três grandes áreas: a energia, os transportes (rodoviários e ferroviários) e a área digital
(comunicações).
A importância geopolítica deste projeto é desde logo evidente pelo facto de muitos destes
países serem Estados-encravados, sem acesso ao mar. Estas infraestruturas vão agora dar-
lhes acesso a três mares e, dessa forma, contribuir para uma maior independência e espaço
de manobra das suas políticas. Esta região, situada no centro do continente europeu, um dos
principais mercados energéticos do futuro, é também palco de uma luta comercial muito forte
entre a Rússia, com os seus fornecimentos de gás natural, e os EUA, com a sua crescente
produção de gás de xisto.
Os projetos lançados pela I3M são, portanto, da maior relevância económica e geopolítica,
embora tenham ainda que assegurar o respetivo financiamento. Muito embora tenha sido
criado o Three Seas Fund (TSF), com uma duração de trinta anos e que pretende assegurar
um financiamento na ordem dos 100 biliões de euros (a partir de um investimento inicial dos
Estados-membros no valor de 5 biliões de euros), a verdade é que muito dependerá do apoio
que lhe for dado pela UE e pelos países interessados nesses projetos, como é o caso dos EUA
e da China (ligação à rota da seda).
Alguns países europeus m visto o nascimento desta Iniciativa com alguma desconfiança,
como é o caso da Alemanha, que tem vindo a apostar crescentemente no Nordstream II, e
da Rússia, que acusam os seus promotores de estar a representar os interesses norte-
americanos no continente europeu.
Independentemente das controvérsias levantadas, certo é que a I3M parece ser uma forma
de cooperação regional que faz todo o sentido e que se integra plenamente no espírito da
construção europeia, procurando para os seus povos o mesmo desenvolvimento dos restantes
Estados-membros.
Palavras-chave
Iniciativa Três Mares, Europa Central, Energia, Infraestruturas
Como citar este artigo
Calheiros, Bernardo (2019). "A iniciativa dos 3 Mares: geopolítica e infraestruturas".
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 10, N.º 2, Novembro 2019-Abril 2020.
Consultado [em linha] data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.2.8
Artigo recibido em 17 de Setembro de 2019 e aceite para publicação em 1 de Outubro de 2019
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A iniciativa dos 3 Mares: geopolítica e infraestruturas
Bernardo Calheiros
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A INICIATIVA DOS 3 MARES: GEOPOLÍTICA E INFRAESTRUTURAS
Bernardo Calheiros
Introdução
Gradualmente, a União Europeia tem vindo a expandir-se, sendo cada vez maior o
número dos seus Estados membros. Conseguiu também, em paralelo, lançar a moeda
única o euro e aprofundar o seu grau de integração, mesmo num período de crise.
Não foi capaz, contudo, de evitar a existência de uma Europa a várias velocidades,
geradora de clivagens ideológicas e de diferentes perceções sobre o modelo da União.
Nem de lograr manter o acquis communautaire intacto... e até porventura ver a sua
integridade como grande território, com questões como a do Brexit...
Neste processo, há aspetos que são cruciais para o futuro da Europa e, nela, sobretudo
da Europa comunitária. Desde logo, a definição dos seus limites geográficos. A União não
tem parado de se expandir, incluindo nela qualquer Estado que cumpra os critérios de
adesão, sem que tenha o cuidado de definir de forma clara os seus limites. Surgem,
assim, problemas como os suscitados por questões como a da deriva da Turquia, e os
processos de fragmentação induzida pela Federação Russa na Ucrânia e na Geórgia. Uma
entidade geopolítica como é a União Europeia tem necessariamente de explicar o seu
projeto, a sua ideia fundadora e qual é o espaço a que diz respeito. Um processo que,
para dizer o mínimo, parece estar hoje em crise.
O alargamento tem sido rápido, mas não isento de tensões, pois vão surgindo divisões e
a formação de blocos regionais entre Estados-membros que partilham interesses comuns
e que não se reveem no eixo Paris-Berlim. Estas divisões estão também a assumir uma
característica ideológica, com o surgimento de propostas alternativas, que têm até levado
a tentativas de marginalização dos países que as propõem. Mais grave ainda, alguns
países discutem o abandono do euro, ou mesmo da União como é o caso paradigmático
do Reino Unido.
O presente trabalho centra-se concretamente na região da Europa Central um conceito
alargado de Europa Central, como veremos e, mais especificamente, na recente
Iniciativa dos Três Mares (I3M), que se refere ao espaço compreendido entre os mares
Báltico, Adriático e Negro e que se tem visto envolta nalguma polémica. A Europa Central
parece estar de volta, sendo uma região que apresenta características e problemas
comuns entre os Estados que a compõem, alguma identificação no plano político, um
passado partilhado e a perceção de ameaças comuns.
O alargamento das Comunidades Europeias e depois da União Europeia foi feito, até
um determinado momento, integrando países que tinham em comum o facto de
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A iniciativa dos 3 Mares: geopolítica e infraestruturas
Bernardo Calheiros
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pertencerem à comunidade das democracias da Europa ocidental. Tratava-se de um
conjunto de Estados que, embora com desenvolvimentos económicos diferentes,
apresentavam uma grande homogeneidade em termos políticos e até de experiência
histórica recente, marcada pelas garantias de segurança dadas pela Aliança Atlântica,
o que lhes permitiu um desenvolvimento económico grande apoiado numa crescente
segurança jurídica que, embora de forma marcadamente desigual, se tem vindo a
estabelecer.
Com a queda do Muro e a libertação dos países da “Europa do Leste”, estes desde logo
aspiraram a aderir, por um lado, à União Europeia, em busca do desenvolvimento com
que tinham sonhado, e por outro lado à NATO, a organização que lhes proporcionava
essas garantias de segurança e de respeito pela sua soberania recém-adquirida.
Porém, se é verdade que a maior parte destes países aderiu à União Europeia e à Aliança
Atlântica nos primeiros anos logo a seguir à queda do Muro, é também certo que
continuavam muito desconfiados em relação ao seu vizinho a Leste agora a Federação
da Rússia e também algo reticentes em aderir a projetos federalistas que implicavam
cedências importantes em termos de soberania nacional. Não é, assim, de estranhar que,
paralelamente ao processo de integração europeia, se fossem desenhando formas de
cooperação regional de que é exemplo mais visível o Pacto de Visegrado um ponto a
que voltaremos. Estas não punham em causa a integração europeia longe disso mas
enfatizavam as especificidades regionais, que abarcavam não apenas as questões
económicas (em termos de desenvolvimento, necessidades infraestruturais, dependência
energética, etc.), mas também políticas e de segurança (receio do intervencionismo
russo, defesa da soberania, etc.). As suas perceções de segurança muitas vezes não
eram partilhadas pelos outros países, que não conheciam a experiência do que era viver
sob um regime totalitário de cariz comunista durante quase meio século.
A União Europeia não se opôs a estas formas de integração regionais, tendo até
considerado que apresentavam diversos aspetos positivos. Assim, estas foram crescendo
em número e em importância, tornando-se particularmente ativas precisamente no
momento em que na Rússia surge um Presidente Vladimir Putin que vem contestar
as políticas dos seus antecessores e dar guarida a algumas teorias revisionistas que
criticavam o desmembramento da União Soviética, a perda de territórios e o avanço
estratégico da NATO para junto das suas fronteiras. Assim, organizações como o Pacto
de Visegrado (os chamados Visegrad 4, que começou por uma série de reuniões informais
para concertar posições no âmbito da entrada deles para a União Europeia, e que depois
se tem vindo a formalizar, recriando-se como um Visegrad Plus, uma entidade mais
alargada e menos formal gizada de forma a englobar “sem perdas identitárias” outros
Estados adjacentes, como por exemplo a Geórgia) que agrupa a Polónia, a República
Checa, a Eslováquia e a Hungria , que tinham uma atividade até bastante residual,
reforçaram a sua cooperação e o até suscitar o interesse de outros países da região,
como é o caso dos Bálticos e da Roménia.
Este conjunto de países, ao mesmo tempo que afirmava a sua fidelidade à União Europeia
e ao projeto europeu, via com crescente desconfiança as propostas mais federalistas que
iam sendo apresentadas por França e por outros Estados-membros. A sua segurança
é essa a sua convicção é garantida essencialmente pela NATO e pelos Estados Unidos,
havendo problemas que afetavam sobremaneira os países da região e que tinham
implicações económicas e de segurança, sendo um dos principais a dependência
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energética em relação à Rússia. Problema tão importante quanto estava provado que o
Kremlin o usava como arma geopolítica, como se tornou evidente no caso da Ucrânia.
Refira-se, contudo, que esta região da Europa Central tinha uma tradição longa no que
se refere a tentativas de integração regional, havendo portanto uma marcada identidade
centro-europeia, embora este conceito não tivesse uma base geográfica e científica e
fosse variando ao longo da história, ao sabor do interesse das potências. As propostas
de criação de uma Mitteleuropa, “o território onde a cultura germânica constitui o
denominador comum” (Joseph Platsch, Mitteleuropa, 1904), somavam-se, numa
perspetiva mais favorável ao interesse das pequenas potências que a compunham, a
outras mais centradas nos Estados eslavos e na Hungria, como é o caso do Intermarium
(proposta do Marechal Pilsudski, Presidente da Polónia no período entre guerras), um
construto que tinha a vantagem de constituir um verdadeiro glacis de segurança face à
Rússia. Outras visões, de historiadores e analistas recentes, vieram alargar este conceito
à Roménia (Elena Zamfirescu, no seu Mapping Central Europe) ou até aos países
balcânicos segundo uma definição de Europa Central como o espaço de influência de
quatro grandes impérios: o germânico, o austro-húngaro, o russo e o turco (Frédèric
Mitterrand, Les Aigles Foudroyées). Este alargamento do conceito faz sentido face ao
passado recente.
Na verdade, independentemente de lhe chamarmos Europa Central ou Europa Central e
Oriental (como alguns defendem), facto é que existe uma faixa de países que, pela sua
experiência histórica recente e as implicações da mesma a diversos níveis, sentem que
têm problemas e desafios comuns que terão a ganhar em ser tratados por todos em
conjunto. Mesmo sem pôr em causa outros compromissos geopolíticos decorrentes da
sua aposta na construção europeia.
Fruto das características acima referidas, não será estranho constatar que, entre estes
países, há uma percentagem relativamente alta de governos “populistas” conservadores
que contestam o modelo federal para a Europa, as políticas de imigração (suscetíveis de
colocar desafios à sua identidade recém-adquirida) e até algumas das prioridades
económicas definidas para a União Europeia.
1. O espaço Europa Central e contexto histórico
Embora este trabalho não seja sobre o conceito de Europa Central, considera-se que,
dada a complexidade da região e as numerosas propostas de integração apresentadas
ao longo do tempo, toda a conveniência em que nos debrucemos, ainda que muito
brevemente, sobre estas últimas, antes de estudarmos a mais recente: a Iniciativa dos
Três Mares.
A complexidade da região assenta em diversos fatores, desde logo a multiplicidade de
pequenas potências que a compõem, resultantes na maior parte do desmembramento
de grandes impérios, e a particularidade de incluírem todas elas diversas nguas, culturas
e etnias, sendo que estas raramente se encontram circunscritas a apenas um Estado.
Têm ainda fronteiras recentes e, nalguns casos, muito discutidas, sendo assim natural
que se tenham multiplicado os conflitos, as reivindicações e também as tentativas de
integração em espaços mais vastos, seja sob o conceito abrangente de Império ou de
Federação.
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Estas iniciativas de integração assumiram formas diversas, desde meras uniões
aduaneiras até projetos geopolíticos de maior envergadura, de natureza federal e
envolvendo um número maior ou menor de países. Desde conceções mais homogéneas,
abarcando apenas os dois impérios o alemão e o austro-húngaro até se virar para
conceitos mais abrangentes que se estendem aos Bálticos, aos Balcãs e mesmo a Itália
e países vizinhos, como é o caso da Bélgica ou da Holanda. Algumas chegam mesmo a
propor modelos que evoluam para a integração de todo o continente.
Para este trabalho adotaremos uma visão mais abrangente de Europa Central. É esse,
aliás, o espírito da I3M, que vai do mar Báltico até aos Balcãs, englobando ainda os
Estados ribeirinhos do Danúbio, o principal rio centro-europeu, que nasce na Alemanha
e desagua na costa do mar Negro da Roménia.
Este espaço é delimitado, a norte, pelo mar Báltico e pela grande planície europeia, que
vai do rio Elba ao golfo da Finlândia e que é um dos grandes motivos de preocupação
para a segurança da Polónia. No centro destacam-se os terrenos montanhosos checos,
mas também a célebre Porta da Morávia, que passagem para diversos países e
constitui um ponto importante para os projetos da I3M. Seguem-se os Cárpatos, mais a
sul, entrando por diversos países e cercando a grande planície da Panónia. A ocidente,
os Alpes abarcam a Áustria e a Eslovénia e a sul os Balcãs delimitam a península com o
mesmo nome. Por último, a Transilvânia, uma região planáltica e que constituiu o ponto
de entrada e estabelecimento histórico das minorias de ngua alemã, ainda
residualmente presentes no território da atual Roménia.
Trata-se de um conceito que, deliberadamente, deixa a Alemanha de fora, até por se
considerar que foi precisamente este país que, desde Bismarck, mas sobretudo desde
Guilherme II, foi inviabilizando a integração de toda esta região correspondente aos
territórios do Império Alemão e da Monarquia Austro-Húngara. Além disso, no caso
concreto da Iniciativa dos Três Mares, a Alemanha, embora tendo o estatuto de
observadora, acaba por estar “do outro lado”, na medida em que, com a construção do
Nordstream II e o fornecimento direto do gás russo à Europa através do seu território,
situa-se no centro da ameaça de dependência energética para toda a Europa Central.
A opção de Bismarck pela criação do Império alemão e, portanto, pondo de lado o ideal
da Grossdeutschland (a união da Alemanha e da Áustria), vai ter um grande impacto na
esperança de constituição de um Reich (Império) capaz de se assumir como uma
plataforma para o enquadramento de todas estas pequenas nações maioritariamente
eslavas e que não se reveem na monarquia dual austro-húngara. “Aquilo que admiram
no Reich os partidários da Mitteleuropa, é o de ser, não um Estado no sentido moderno
do termo, mas um princípio de organização, uma noção supranacional, um centro de
atração para os novos Estados, que o federalismo adaptável das instituições permitiria
integrar”
1
.
Este ideal federal para a organização do espaço da Europa Central foi particularmente
vivo no seio dos autores eslavos como refere Jacques Droz: “numerosos foram entre os
Eslavos aqueles que reconheceram que não haveria outra solução para a organização da
Europa Central senão a autonomia nacional no quadro de uma federação de Estados”
2
.
1
Droz, Jacques, 1960. L’Europe Centrale. Évolution Historique de l’Idée de «Mitteleuropa», Paris, Payot, pág.
26 [Trad. do autor].
2
Idem, p. 27.
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Outras propostas de integração centraram-se essencialmente no domínio económico,
como a defendida por Frédéric List, em 1840, através da criação de “um grande espaço
económico”, “um vasto Estado federal, constituindo uma unidade comercial, englobando
as pequenas nações vizinhas Dinamarca, Holanda, Bélgica, Suiça que veriam aberta,
por intermédio dos Estados dos Habsburgos, a rota do Danúbio e do Mediterrâneo”
3
.
Várias outras propostas como a de Gustave Höfken (1842), do Chanceler
Schwarzenberg ou do Barão Karl von Bruck (1848) defenderam a criação de um vasto
Zollverein, uma união aduaneira continental estendendo-se do Mar do Norte ao Adriático.
Estas iniciativas, que irão ganhar numerosos adeptos, vão ter um primeiro revés com a
criação do II Reich por Bismarck, que vai inviabilizar a união com a Áustria, derrotada
em Sadowa. Como refere Jacques Droz, “a ideologia da Mitteleuropa, ou seja o
sentimento dos interesses solidários dos grandes Estados da Europa Central, conhece
entre 1871 e 1914 um eclipse quase completo”
4
. Mas, entretanto, as nações eslavas da
Dupla Monarquia vão-se agitando sob a bandeira do princípio das nacionalidades.
Em 1917, aproveitando as desgraças causadas pela guerra, o alemão Friedrich Naumann
vai apresentar uma das mais interessantes propostas de integração da Europa Central
com o seu livro “Mitteleuropa”, que se torna de imediato num sucesso de vendas
5
. A sua
proposta era a de que o Império Alemão e o Império Austro-Húngaro deveriam aproveitar
a assinatura da paz para criarem uma união, uma Mitteleuropa, que constituiria um
grande espaço capaz de rivalizar com as outras grandes potências como a Rússia e os
EUA. Numa segunda fase, seria possível então aceitar as candidaturas de outros países
europeus. A liderança seria alemã, mas seriam respeitadas todas as nacionalidades.
Contudo, durante a I Guerra Mundial, no período entre guerras e sobretudo sob o III
Reich vencem as ideias pangermanistas e as teorias do espaço vital que vão fazer com
que as elites virem as costas à ideia de Mitteleuropa e comecem a pensar mais em termos
de Osteuropa (Europa de Leste) e nos vastos espaços a leste, o célebre Lebensraum (ou
“espaço vital”) que Hitler visou como objetivo.
Uma importante tentativa de integração regional da Europa Central, e com o mérito de
nascer num país não-germânico, surge com o projeto de 1919 do Intermarium, proposto
pelo primeiro Presidente da República de uma Polónia então renascida, Marechal Józef
Pilsudski. Este pretendia a criação de uma federação dos Estados situados entre o Mar
Báltico e o Mar Negro, a saber, a Polónia, os três Estados bálticos (Estónia, Letónia e
Lituânia), a Finlândia, Bielorrússia, Ucrânia, Hungria, Roménia, Jugoslávia e
Checoslováquia
6
. É uma tentativa importante mas que não se vai concretizar, pelo que
um dos seus seguidores, o Ministro dos Negócios Estrangeiros polaco, Józef Beck, vai por
sua vez propor a criação de uma União Centro-europeia incluindo a Polónia, a
Checoslováquia, a Hungria, Escandinávia, os três Países Bálticos, Itália, Roménia,
Bulgária, Jugoslávia e Grécia. Mais um projeto que não passa disso mesmo.
Winston Churchill ainda tenta, no final da II Guerra Mundial, a criação de uma federação
das pequenas nações da Europa Central
7
, o que constituiria um glacis de segurança em
3
Idem, p. 54.
4
Idem, p. 155.
5
Naumann, Friedrich, 1917. Central Europe, [translation by Christabel M. Meredith], New York, Alfred A.
Knopf, (Classical Reprint Series, Forgotten Books, 2012).
6
Chodakiewicz, Marek Jan, 2016. Intermarium: The Land Between the Black and Baltic Seas”, Routledge,
1
st
. ed.
7
Droz, Jacques, op. Cit, pág. 264.
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relação à União Soviética. Mas Moscovo opõe-se liminarmente. E o se volta a falar
destes projetos praticamente até à queda do muro.
Algumas exceções existiram, propostas de intelectuais que divulgavam os seus ideais em
samizdat, mas que não tiveram grande expressão. Em 1953, o Tenente-Coronel F.O.
Miksche, um oficial da Checoslováquia comunista exilado em Londres, defendeu com
vigor a criação de federações regionais na Europa, agrupando países com interesses
idênticos, uma mesma cultura e interdependência económica. Considerava que a Bacia
do Danúbio podia constituir “o núcleo de um desenvolvimento futuro destinado a toda a
Europa Central e de Leste no caso de um colapso ou diminuição da pressão russa”
8
. Na
sua obra, o autor especifica um pouco melhor esta ideia quando refere que “o problema
da criação de uma Federação da Europa Central pode ser ultrapassado de uma forma,
através de uma federação limitada numa área com condições favoráveis, e que
constituiria um núcleo ao qual as nações vizinhas poderiam mais tarde aderir. As regiões
habitadas pelos austríacos, checos, ngaros e eslovacos, que são geograficamente,
culturalmente, psicologicamente e economicamente complementares, têm condições
favoráveis para a federação inicial”
9
. Trata-se de uma região bastante limitada, que deixa
de fora os Bálticos, mas também a Polónia, a Roménia ou os Balcãs.
no final do século XX, houve também algumas propostas de cooperação regional, de
que se destacam aqui algumas:
Em 1989, quatro países lançaram o projeto Quadragonal a Itália, Áustria, Hungria e
Jugoslávia. Foi uma iniciativa do Presidente italiano, Gianni De Michelis e procurava
contrabalançar a crescente influência alemã na região. A iniciativa depressa se alargou a
18 países, assumindo a designação de Iniciativa Centro Europeia, mas a variedade de
agendas e a guerra da Jugoslávia acabou por a privar de qualquer sucesso.
Mais importante foi a criação do Grupo de Visegrado com a participação da Polónia,
Checoslováquia (mais tarde República Checa e Eslováquia) e Hungria que, após uma
fase inicial pouco dinâmica, começou a ganhar importância depois da subida ao poder na
Rússia do Presidente Putin.
2. A iniciativa dos Três Mares
A Iniciativa dos Três Mares (I3M), um ambicioso projeto geopolítico lançado pela Polónia,
foi criada em agosto de 2016 em Dubrovnik, na costa adriática da Croácia, naquela que
foi a I Cimeira da I3M contando com doze Estados-membros: de Norte a Sul, uma vasta
faixa englobando a Estónia, Letónia, Lituânia, Polónia, República Checa, Eslováquia,
Hungria, Áustria, Roménia, Bulgária, Eslovénia e Croácia. Uma faixa que, se bem que
seja geográfica e demograficamente significativa da UE, o não é em termos económicos.
Estamos a falar de “uma região que representa 28% do território da União Europeia e
22% da sua população, mas apenas 10% do seu PIB.”
10
Tratava-se de promover o
desenvolvimento das infraestruturas centro-europeias, o que permitiria um maior
8
Miksche, F.O., 1953. Danubian Federation. A Study of Past Mistakes and Future Possibilities, England,
Kenion Press Ltd., Bucks (introduction by Philip Dunant, viii+38 págs.), pág. 4. [trad. do autor].
9
Op. Cit., pág. 33.
10
PWC & Atlantic Council, 2017. The Road Ahead CEE Transport Infrastructure Dynamics
(https://www.pwc.pl/pl/pdf/the-roa-ahead-raport-pwc-atlantic-council.pdf).
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desenvolvimento económico e, dessa forma, aproximar essa região dos veis dos
restantes países europeus.
Mapa nº1 - Países participantes na Iniciativa dos 3 Mares
Fonte: https://es.wikipedia.org/wiki/Iniciativa_Tres_Mares
Em julho de 2017 teve lugar a II Cimeira, em Varsóvia, que contou com a participação
do Presidente norte-americano, Donald Trump, que fez grandes elogios a esta iniciativa,
ao mesmo tempo que lançou duros ataques ao gasoduto Nordstream II e à própria
Alemanha por se lançar neste projeto com a Rússia ao mesmo tempo que apoia a potica
de sanções a propósito do conflito com a Ucrânia.
A III Cimeira teve lugar em Bucareste, em Setembro de 2018, e teve como objetivo
principal a identificação dos projetos prioritários a desenvolver. O encontro revelou-se
um sucesso, tendo sido criado o Forum Empresarial
11
e estabelecida uma Rede de
Câmaras de Comércio da I3M. Foi ainda assinada uma Declaração de Intenções para a
criação do Fundo de Investimento dos Três Mares. Mas a Cimeira teve também um
impacto internacional grande ao contar com a presença de “parceiros estratégicos”,
nomeadamente os EUA, a UE e a Alemanha, esta última com o estatuto de “observador”
e convidada pela Polónia
12
.
11
Para além de se destinar a criar um ambiente favorável à implementação dos projetos prioritários da I3M,
o Forum Empresarial terá também uma função de monitorização da evolução dos projetos em fase de
implementação.
12
A questão de uma eventual futura inclusão da Alemanha na I3M, como Estado-membro, tem sido debatida
nas margens das suas reuniões, dado constituir um grande desafio. Se, por um lado, são evidentes a
potencialidade daí resultante, nomeadamente em termos de financiamento, também é evidente que
problemas poderão surgir, sobretudo no sector energético. A Alemanha, contudo, solicitou apenas o
estatuto de observadora, pois quer estar presente e influenciar uma iniciativa que agrupa a vizinha
Europa Central e que é terreno da competição global entre os EUA, a Europa, a China e até a Turquia (vide
Korybko, Andrew, 2018. Germany’s Request to Partner with the Three Seas Initiative Is a Win for Poland”,
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A IV Cimeira, realizada em 5 e 6 de junho de 2019 na Eslovénia, pretendia-se que fosse
o momento de fazer um primeiro ponto de situação sobre o desenvolvimento dos
projetos identificados em Bucareste. Contudo, os seus resultados acabaram por saber a
pouco na medida em que o grande desenvolvimento acabou por ser a criação efetiva do
Fundo dos Três Mares, que fica sob a administração da Polónia, da Roménia e da
República Checa e que conta com 500 milhões de euros, uma verba ainda muito
reduzida para as necessidades globais deste projeto. Foi consensual a ideia de que está
na altura de se passar das declarações políticas para os atos. No entanto, é justo realçar
que se começa a ver uma mudança nas perceções da Alemanha e da União Europeia em
relação à I3M, com a primeira a discutir internamente a possibilidade de uma adesão e
com Bruxelas a considerar que esta Iniciativa se enquadra plenamente no espírito da
construção europeia e que, portanto, estará disponível para apoiar vários dos seus
projetos.
Sobre o carácter e objetivos da I3M muito se tem falado. Os responsáveis pela sua
criação, que recusam qualquer referência à geopolítica, defendem que se trata apenas
de uma iniciativa destinada ao desenvolvimento das infraestruturas regionais e dessa
forma favorecendo a integração europeia, através da convergência das suas economias
com as da Europa Ocidental
13
. Trata-se de um projeto que permitirá a esta região tirar
todo o proveito da sua posição central na Europa e do facto de ter uma boa rede de
contactos com o Ocidente e com o Leste. Permite, assim, aproximar o norte do sul e o
Leste do Oeste, ao mesmo tempo que põe fim às limitações de alguns Estados que não
tinham acesso ao mar.
Os seus inimigos, porém, veem nela tão-somente uma forma de interferência norte-
americana destinada a vender o seu gás de xisto (shale gas) a um continente que, tudo
o indica, será o maior consumidor de gás do mundo. Outros, finalmente, consideram que
há aqui também uma tentativa de criar uma região com um modelo político e económico
diferente do de Bruxelas (embora perfeitamente enquadrado na UE). A realidade será
porventura diferente de todas estas interpretações e terá talvez um pouco de todas elas.
A I3M foi criada oficialmente como uma forma de se conseguirem concretizar grandes
projetos de infraestruturas regionais em três grandes áreas: a energia, os transportes
(rodoviários e ferroviários) e a área digital (comunicações), de maneira a ser
ultrapassado o atraso relativo que estes países têm ainda nestes domínios. Tal como
sintetizado por Alexandr Vondra
14
, ao nível energético estão em cima da mesa quatro
grandes projetos:
“Uma ligação por pipeline a dois grandes terminais GNL (gás natural liquefeito):
Swinoujsce, na costa báltica [da Polónia], operacional; e Krk, uma ilha croata do
Mar Adriático”;
A Gas Interconnection Poland-Lithuania (GIPL), que integrará mercados de gás
isolados dos países do Báltico na rede da UE”;
Global Research, disponível em https://www.globalresearch.ca/germanys-request-to-partner-with-the-
three-seas-initiative-is-a-win-for-poland/5652168.
13
“Um cidadão da velha Europa tem, em média, o dobro de quilómetros de auto-estrada que um da Europa
Central”, in Patricio de Antonio, 2017. La iniciativa de los Tres Mares que conectará la Vieja y la Nueva
Europa, disponível em https://ideas.pwc.es/archivos/20171013/iniciativa-de-los-tres-mares-conectara-
vieja-y-nueva-europa/.
14
Vondra, Alexandr, 2018. Regional Integration at the Three Seas Summit, disponível em https://emerging-
europe.com/voices/regional-integration-at-the-three-seas-summit/.
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“O Corredor Gasífero Norte-Sul (BRUA), um sistema de pipelines bidirecionais. No Sul
ligará às explorações offshore nos mares Negro e Cáspio (via pipeline TANAP na
Turquia). No Oeste, integrará os Balcãs na rede da UE, via Baumgarten na Áustria”;
O pipeline Eastring, que ligará os pipelines já existentes na Bulgária, Roménia, Hungria
e Eslováquia.”
No que se refere aos grandes projetos de infraestruturas na área dos transportes a
referir, segundo o mesmo autor, os seguintes:
“Via Carpathia, uma auto-estrada que ligará um porto báltico (Klaipeda, Lituânia) a
um hub comercial Egeu (Tessalónica, Grécia);
Modernização da auto-estrada Norte-Sul, ao longo da estrada E65, que ligará o Báltico
(de Szczecin, Polónia) ao Mar Adriático (Rijeka, Croácia);
Rail Baltica, que ligará Varsóvia, Kaunas (Lituânia), Riga, Tallinn e Helsínquia;
Rail 2 Sea, que ligará Gdansk, na Polónia, a Constância, um porto romeno do Mar
Negro”
15
.
As infraestruturas digitais previstas e apoiadas pela UE são as seguintes
16
:
Projeto RuNe (Rural Networks), uma rede de fibra de banda larga que ligará áreas
da Eslovénia, a Região Autónoma de Friuli-Venezia Giulia (Itália) e as regiões de
Primorsko-Goranska e Istarska (Croácia);
RO-NET Broadband Project, criação de infraestruturas de banda larga em zonas mais
desfavorecidas da Roménia.
Contudo, a I3M lancou também uma “Digital 3 Seas Initiative” (D3SI), que prevê
várias áreas de cooperação
17
:
Cibersegurança;
3 Seas Digital Highway, visando preencher as lacunas em termos de infraestruturas
de comunicações, incluindo fibra óptica e tecnologia 5G;
Lançamento de iniciativas tecnológicas conjuntas;
Implementação do programa Industry 4.0;
Fortalecer as redes de e-commerce
18
.
Trata-se de um conjunto de iniciativas muito ambicioso e que terá um impacto muito
grande nestes países e em toda a Europa. Não esqueçamos que muitos destes países
15
Op. Cit.
16
European Commission, 2018. The Three Seas Initiative Summit: European Commission Investments in
Connectivity Projects Bucharest, Romania.
17
The Kosciuszko Institute, 2018. The Digital 3 Seas Initiative: a call for a cyber upgrade of Regional
Cooperation, Livro Branco, Polónia, disponível em https://ik.org.pl/wp-
content/uploads/white_paper_the_digital_3_seas_initiative-1.pdf.
18
Aqui apresentou-se apenas uma seleção dos projetos mais emblemáticos. Para uma lista completa destes
projetos, ver “Priority Interconnection Projects” da Presidência Eslovena.
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são Estados-encravados, sem acesso ao mar. Estas infraestruturas vão agora dar-lhes
acesso a três mares e, dessa forma, muito contribuirão para uma maior independência e
espaço de manobra das suas políticas. Contudo, para a implementação destes projetos
necessidade de assegurar um importante financiamento que não poderá ser garantido
apenas pelos Estados-membros. Assim, para além de apelos à União Europeia, foram já
assegurados investimentos norte-americanos (sobretudo no domínio da energia) e
chineses (embora estes ainda se o tenham concretizado). Foi também decidida a
criação do Three Seas Fund (TSF), com uma duração de trinta anos e que pretende
assegurar um financiamento na ordem dos 100 biliões de euros (a partir de um
investimento inicial dos Estados-membros no valor de 5 biliões de euros). Uma escala
não-despicienda.
Dado o acima referido, é fácil ver as implicações geopolíticas desta Iniciativa. Antes de
mais, a região encontra-se no centro de uma luta de titãs pelo fornecimento de s
natural à Europa, sendo conhecido que este será um dos maiores mercados a vel
mundial. Por outro lado, uma preocupação crescente em assegurar uma
independência energética para a região que evite a excessiva dependência atual dos
fornecimentos oriundos da Rússia e que serão canalizados através da Alemanha (o
referido Nordstream II). Os Estados-membros
19
na sua maioria sentem, aliás, uma
grande desconfiança em relação a este projeto germano-russo, e consideram necessária
a promoção da sua independência energética através da diversificação dos
fornecimentos.
Os EUA têm-se manifestado abertamente contra o Nordstream II, tendo o Presidente
Donald Trump, na conferência da I3M, em Varsóvia, atacado duramente esta política
energética da Alemanha, apontando a contradição entre, por um lado, o apoio à política
de sanções contra a Rússia por causa do conflito na Ucrânia e, por outro, o pagamento
de somas milionárias pelos hidrocarbonetos russos, que constitui uma ajuda significativa
à sua economia.
Mas as implicações desta Iniciativa são mais vastas e incluem, de facto, os interesses
norte-americanos no fornecimento de gás de xisto à Europa (um mercado em
crescimento), o que faz de Washington um dos seus principais aliados. Mas, para que os
fornecimentos norte-americanos se venham a concretizar na escala pretendida,
questões complexas que têm antes de ser resolvidas, como é o caso de saber se os países
da região vão optar por esta solução, sendo os preços do gás de xisto consideravelmente
mais elevados que o s russo, mas constituindo um instrumento para a diversificação
das fontes energéticas
20
. Um primeiro passo foi dado pela Polónia, em 2017, ao fazer as
suas primeiras importações de gás de xisto a partir dos EUA
21
. O Presidente polaco,
Andrzej Duda, chegou mesmo a afirmar durante a Cimeira de Varsóvia a intenção do seu
país de celebrar com os EUA contratos de longa duração para estes fornecimentos,
19
Com particular destaque para a Polónia que, com o Nordstream II, perderá a maior parte dos direitos de
passagem do gás russo pelo seu território.
20
Embora a questão do preço seja naturalmente importante,também a considerar a crescente influência
da geopolítica no mercado da energia na União Europeia.
21
Refira-se, contudo, que a Polónia pretende tornar-se um hub energético regional que, eventualmente, possa
vir a substituir a Rússia no fornecimento de gás natural à Ucrânia e à Moldávia. Está também a fazer grandes
prospecções para a produção local de gás de xisto, tendo já aberto vários furos.
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embora tenham ainda de se realizar negociações complicadas a respeito dos preços, que
o Presidente americano afirmou já poderem vir a aumentar
22
.
Em contraste com as escolhas da Polónia, vimos que a visita do Vice-Presidente norte-
americano, Mike Pence, à Hungria no mês de fevereiro de 2019 não foi o sucesso que
alguns esperavam. As conversações foram tensas e, quando Mike Pence tentou
convencer a Hungria a não apoiar as propostas russas de alargamento do Turkish Stream
até à Europa Central e, em vez disso, optar pelos fornecimentos com origem nos EUA, a
resposta recebida foi, no nimo, fria. Embora a verdade seja que estas ambições norte-
americanas, por enquanto, não passam disso mesmo, os russos podem garantir um
fornecimento contínuo imediato e a preços muito mais baixos.
Por sua vez, a China vê também com grande interesse a I3M, suscetível de lhe permitir
utilizar essa enorme rede infraestrutural (sobretudo em matéria de portos, auto-estradas
e caminhos-de-ferro) no âmbito do seu projeto One Belt, One Road. Embora a cooperação
entre a China e os países da região tenha por base a iniciativa “16+1”
23
, Pequim
acompanha com crescente interesse os desenvolvimentos desta Iniciativa
24
.
Noutro plano mais controverso , é também importante referir que entre estes países
estão alguns dos Estados mais conservadores da Europa, como a Hungria, a Polónia, a
Áustria ou a Eslováquia, que têm vindo a contestar algumas das políticas de Bruxelas,
nomeadamente em termos de cedências de soberania (a via federal), o euro, a imigração
e a defesa
25
. Assim, têm sido levantadas suspeições de que estes poderiam estar a tentar
criar, dentro da União Europeia, um modelo de integração alternativo ao do eixo Paris-
Berlim (hoje cada vez mais Berlim-Paris), o que foi sempre desmentido pelos promotores
da I3M, que não se têm cansado de afirmar que a mesma se integra na UE e se limita à
cooperação no âmbito das infraestruturas. Contudo, ninguém ignora que líderes como
Viktor Órban, ou o italiano Matteo Salvini, agora numa travessia do deserto depois da
quebra da aliança que o mantinha no poder, têm vindo a patrocinar a ideia duma
reformulação da União Europeia num projeto mais igualitário, ou homogéneo na
distribuição nela do poder dos seus Estados-membros, e com uma diferente visão de
futuro.
Têm sido visíveis crescentes desconfianças destes países em relação à Alemanha
(sobretudo depois do anunciado Nordstream II, que acusam de ser no fundo e
essencialmente antieuropeu”, pois visa tornear a Polónia ao passar ostensivamente
pelos fundos do Mar Báltico, marginalizando-a no seu percurso) e aos projetos franceses
sobre a defesa europeia e um aprofundamento da integração (com as consequentes
cedências ao nível da soberania recentemente adquirida). Estes países têm também, na
sua maioria, vindo a contestar as políticas migratórias de Bruxelas, que consideram
22
Engdahl, William, 2017. Initiative polonaise des Trois Mers. Quel en est l’enjeu géopolitique?, New Eastern
Outlook, disponível em http://lesakerfrancophone.fr/linitiative-polonaise-des-trois-mers-quel-en-est-
lenjeu-geopolitique.
23
Iniciativa chinesa para o aprofundamento da cooperação com diversos Estados europeus: Albânia, Bósnia-
Herzegovina, Bulgária, Croácia, República Checa, Estónia, Hungria, Letónia, Lituânia, Macedónia do Norte,
Montenegro, Polónia, Roménia, Sérvia, Eslováquia e Eslovénia. A cooperação centra-se nas áreas das
infraestruturas, educação e cultura, tendo três áreas prioritárias: infraestruturas, tecnologias de ponta e
tecnologias verdes.
24
A Polónia tem vindo a manifestar alguma desconfiança em relação à iniciativa “16+1” por considerar que
esta não tem levado a grandes concretizações práticas. Também tem vindo a evidenciar algum desconforto
face ao desequilíbrio da balança comercial a favor da China.
25
A maior parte destes Estados continua a considerar que a NATO constitui o garante da sua independência
e segurança e têm uma cooperação bilateral muito forte com os EUA.
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contrárias aos interesses europeus, tendo manifestado de forma clara a recusa de
acolhimento nos seus países das quotas de imigrantes que lhes foram atribuídas.
Por sua vez, na 55ª edição da Conferência de Segurança de Munique, em janeiro de
2019, a Chanceler Angela Merkel defendeu que a questão da dependência do gás russo
não se pode reduzir a uma discussão sobre se este vem pelo gasoduto ucraniano ou pelo
Nordstream II, tendo-se mostrado disponível para uma discussão aberta que também
inclua o fornecimento de GNL americano à Europa. Em contraponto, na mesma
conferência, o Vice-Presidente dos Estados Unidos, Mike Pence, manifestou o desconforto
do seu país sobre esta questão, referindo que os EUA não poderão garantir a defesa do
Ocidente se os seus aliados continuarem a depender do Leste, tendo-se manifestado
ainda como “vigorosamente contra o Nordstream II”.
Por aqui se vê, com alguma nitidez e clareza, a dimensão das questões que estão em
jogo e que, contrariamente ao afirmado pelos seus responsáveis, a I3M é claramente
uma Iniciativa com a maior das relevâncias ao nível geopolítico.
Conclusões
Esta iniciativa, com uma importância geopolítica evidente, apresenta, contudo, vários
desafios importantes. Desde logo, o montante de investimento necessário à
concretização dos seus diferentes projetos, sobretudo os relativos à energia e às
infraestruturas rodoviárias e ferroviárias, que poderá ser garantido com recurso ao
investimento externo. A União Europeia deu já o seu apoio a alguns deles (a maior parte
dos quais se inscreve, aliás, em projetos mais vastos da União Europeia destinados a
todos os Estados-membros). A China, por sua vez, não concretizou ainda nada de muito
significativo, havendo já países que a acusam de não passar das declarações de intenções
e os EUA têm apoiado apenas projetos nos quais têm um interesse direto, como é o
caso dos relativos ao sector energético. Falta, assim, assegurar a maior parte deste
investimento milionário e isto num tempo que, tudo o leva a crer, será de arrefecimento
da economia. O Fórum Empresarial, sendo aberto à participação de países terceiros,
poderá ter um papel importante neste domínio; esperemos que assim seja.
Um desafio importante para os EUA será o de convencer os Estados-membros, mais uma
vez num clima de alguma incerteza económica, a comprar gás de xisto proveniente do
outro lado do Atlântico, mais caro e mais difícil de manipular, com o argumento da
necessidade de diversificação dos abastecimentos. Ao mesmo tempo, estes países terão
de enfrentar a pressão russa e também alemã. Facto é que as necessidades de
abastecimento de gás natural são grandes e com tendência para crescerem
consideravelmente no futuro, pelo que a tentação será grande de recorrer aos
fornecedores com melhores preços, apesar de que os Estados Unidos tudo farão para
que o seu shale gas seja parte desta equação.
Também o será fácil manter a coesão deste conjunto, sobretudo se a I3M não puder
contar com o apoio da União Europeia (é, assim, importante não hostilizar demasiado a
Alemanha). A dificultar a situação, a referir a existência de perceções de segurança
diferentes, níveis muito desiguais de desenvolvimento económico e diferenças ao nível
político.
Finalmente, e embora os méritos desta Iniciativa sejam evidentes, não parece que a
mesma, do ponto de vista político, venha a ganhar uma dinâmica suscetível de a
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constituir como uma alternativa ao atual modelo de integração europeia. várias razões
para tal, mas a dependência da região em relação aos fundos da União Europeia para o
desenvolvimento destes projetos, leva a que seja perigoso optar por lançar desafios de
ordem política às orientações de Bruxelas ou antagonizar as principais potências da UE.
do ponto de vista económico, parece que todos terão a ganhar (e não apenas os
Estados-membros) no desenvolvimento das referidas infraestruturas, capazes de virem
a criar uma maior dinâmica de contactos e de negócios na região.
Tudo leva, assim, a crer que a I3M poderá vir a ter sucesso se mantiver a orientação
atual de se apresentar apenas como uma iniciativa regional destinada a desenvolver as
infraestruturas da região no quadro da UE, mas sem ter de estar excessivamente
dependente dos mecanismos da União, sempre lentos e exigindo consensos alargados
difíceis de conseguir. Já do ponto de vista da segurança, os seus promotores têm sempre
realçado a importância da relação transatlântica, expressamente por forma a servir de
um contrapeso ao eixo franco-alemão ou germano-francês, se se preferir.
Espera-se que a próxima cimeira na Eslovénia seja dedicada à implementação dos
projetos definidos em Bucareste, sendo este um teste decisivo para avaliar da capacidade
de captação dos investimentos necessários e da vontade política dos Estados para
resistirem às já referidas pressões a que se têm visto sujeitos.
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e-ISSN: 1647-7251
Vol. 10, Nº. 2 (Noviembre 2019-Abril 2020), pp. 133-150
DERECHOS DE LOS MIGRANTES: APUNTES A LA JURISPRUDENCIA DE LA
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS
María Teresa Palacios Sanabria
maria.palacios@urosario.edu.co
Doctora en Derecho y Magister en Derecho Constitucional de la Universidad de Sevilla-España,
Profesora Asociada de la Universidad del Rosario (Colombia) y abogada da la Universidad del
Rosario. Directora del Grupo de Investigación en Derechos Humanos de la Facultad de
Jurisprudencia de la Universidad del Rosario.
Resumen
Los derechos de los migrantes representan un reto para los Estados, debido a que su garantía
evidencia la permanente tensión entre la soberanía de los Estados y la protección de derechos
humanos en el contexto internacional. En este artículo se analizará si en realidad es posible
afirmar la existencia de un verdadero desarrollo evolutivo de la jurisprudencia de la Corte
Interamericana de Derechos Humanos en sede contenciosa y consultiva en dicha materia y
que, por tanto, pueda constituir un aporte para el mejoramiento de los derechos de los
migrantes en el DIDH. Para ello, el texto abordará los siguientes partes: I) Marco normativo
orientado a la soberanía de los Estados; II) La progresiva jurisprudencia contenciosa de la
Corte IDH III) Las opiniones consultivas: elementos integradores de los derechos y; IV)
Conclusiones.
Palabras clave
Derechos humanos, Corte Interamericana de Derechos Humanos, desarrollo progresivo,
jurisprudencia interamericana, migración internacional.
Como citar este artículo
Sanabria, Maria Teresa Palacios (2019). "Derechos de los migrantes: apuntes a la
jurisprudencia de la Corte Interamericana de Derechos Humanos". JANUS.NET e-journal of
International Relations, Vol. 10, N.º 2, Noviembre 2019-Abril 2020. Consultado [en linea] en
fecha de la ultima consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.2.9
Artículo recibido el 6 de febrero de 2018 y aceptado para su publicación el 15 de septiembre de
2019.
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e-ISSN: 1647-7251
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Derechos de los migrantes: apuntes a la jurisprudência de la corte interamericana de derechos humanos
Maria Teresa Palacios Sanabria
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DERECHOS DE LOS MIGRANTES: APUNTES A LA JURISPRUDENCIA DE LA
CORTE INTERAMERICANA DE DERECHOS HUMANOS
María Teresa Palacios Sanabria
Introducción
Los derechos humanos reconocidos en los tratados internacionales se predican de todas
las personas y el Derecho Internacional de los Derechos Humanos (DIDH), bajo la
pretensión de universalidad
1
(ONU, 1993:19), ha establecido los motivos por los cuales
no se pueden generar tratos discriminatorios
2
. El Sistema Interamericano de Protección
de Derechos Humanos (SIDH) no ha sido la excepción y a través de la evolución que ha
tenido en cuanto al surgimiento de sus órganos, normatividad y jurisprudencia, se ha
preocupado por establecer unos parámetros para la protección de los derechos humanos
en la región americana, aplicables a toda persona sometida a la jurisdicción de los
Estados miembros. Así, es puesto de manifiesto por el tratado constitutivo de la
Organización de Estados Americanos (OEA), al señalar en el artículo 3.i que: “Los Estados
americanos proclaman los derechos fundamentales de la persona humana sin hacer
distinción de raza, nacionalidad, credo o sexo” (OEA, 1948).
Con la creación de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos (CIDH) en 1959 y
posteriormente la Corte IDH (1969), acomo con la adopción de tratados regionales
generales, y sectoriales temáticos, se impulsó un proceso de desarrollo evolutivo de la
jurisprudencia regional, la cual, determina el alcance de las obligaciones de los Estados
que son parte de estos y aceptan la competencia del órgano jurisdiccional, para la
vigilancia del cumplimiento de tales compromisos.
Corresponde, entonces, a la Corte IDH como suprema autoridad autónoma y judicial del
SIDH, aplicar e interpretar las disposiciones contenidas en la CADH. Tanto los fallos
contenciosos como las opiniones consultivas de la Corte han versado sobre gran
diversidad de asuntos y derechos y han sido calificadas por algunos doctrinantes como
progresivas, valientes y comprometidas con la aplicación del principio pro persona”, lo
que ha implicado la ampliación del catálogo de derechos contenidos no solo en la CADH,
sino en los demás tratados que hacen parte del este contexto regional. (Quispe, 2016:
229) (Núñez, 2017: 80) (Ovalle, 2012: 601).
Si bien un importante número de derechos se reconocen a toda persona, para el caso de
los extranjeros, los países pueden establecer de manera legítima las distinciones que no
1
Ver Declaración y Programa de Acción de Viena, (artículo 5, 1993).
2
Declaración Universal de Derechos Humanos, (art. 2, 1948) y los pactos de 1966. Ver definición de
discriminación en la Convención Internacional sobre la Eliminación de todas las formas de Discriminación
Racial (art. 1.1, 1965).
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se consideran prohibidas, las cuales cuestionan el principio de igualdad (Lucas, 2015:
90). En consecuencia, es frecuente que su ejercicio se vea restringido a un marco muy
limitado, que está puesto de presente en las políticas migratorias. Paralelamente, la
realidad migratoria va en aumento y según la OEA entre 2012 y 2016, 7,2 millones de
personas dejaron su país en las américas (OEA, 2017: 4). Bajo ese contexto, resulta de
interés analizar ¿cómo se ha comportado la jurisprudencia contenciosa y consultiva de la
Corte IDH en esta temática, e identificar cuáles son los principales aportes de la misma?,
con el objeto de evidenciar el inicio de la construcción de un emergente corpus normativo
en materia de derechos de los extranjeros y de los migrantes, que redunde en la creación
de parámetros interpretativos para los Estados miembros de la OEA, pero que a nivel
comparado pueda servir para inspirar los desarrollos de otros contextos regionales.
El documento es resultado de investigación de un proyecto denominado “El derecho a la
vida digna en el contexto de la inmigración”
3
, el cual acude a una metodología dogmática
de análisis documental de fuentes primarias normativas, jurisprudenciales y doctrinales
del SIDH, pero que en este caso se enfocará en la actividad de la Corte IDH, pese a que
se pueda hacer alusión somera a los informes de la CIDH, así como de otros instrumentos
que hacen parte del corpus del DIDH.
1. Un marco normativo orientado a la soberanía de los Estados
1.1. Declaración Americana de 1948
Para referirse a los pronunciamientos emitidos por la Corte IDH es necesario revisar
algunas normas regionales como la Declaración Americana de Derechos y Deberes del
Hombre de 1948
4
(DADH) pues dispone que los (…) los Estados americanos han
reconocido que los derechos esenciales del hombre no nacen del hecho de ser nacional
de determinado Estado sino que tienen como fundamento los atributos de la persona
humana”.(OEA, 1948 A: 1).
Lo anterior conduce a la reflexión sobre la verdadera noción de igualdad entre las
personas, en la que prevalece el valor de los individuos despojados de consideraciones
jurídico-políticas con los territorios para la asignación de los derechos. No obstante, este
ideal se diluye pues en la parte dispositiva de la DADH, art. II, solamente se reconoce a
los nacionales de los Estados el derecho a seleccionar su residencia y a circular por el
territorio de manera libre, y se omite hacer alusión al derecho de entrada. Por su parte,
la Declaración Universal de Derechos Humanos
5
(DUDH) sí reconoce en el artículo 13 de
manera expresa el derecho de entrada, sin que ello se replique en desarrollos normativos
posteriores
6
. Esto puede obedecer al arraigado concepto de soberanía de los Estados que
3
El mencionado proyecto hace parte del trabajo doctoral desarrollado en la Universidad de Sevilla, proceso
que finalizó en el año 2012, pero que sigue generando productos dado el interés de la autora en la temática
propuesta.
4
Suscrita en Bogotá en 1948 y reformada por el Protocolo de Buenos Aires en 1967, por el Protocolo de
Cartagena de Indias en 1985, por el Protocolo de Washington en 1992, y por el Protocolo de Managua en
1993.
5
Adoptada por la Asamblea General de las Naciones Unidas el 10 de diciembre de 1948, mediante resolución
217 A (III).
6
El derecho de entrada no es posible hallarlo reconocido en el PIDCP ni en los tratados regionales.
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se traduce en el diseño de la política migratoria a través de visados, controles de ingreso
y permanencia de extranjeros
7
.
1.2. Algunos tratados aplicables
La omisión normativa al derecho de entrada se evidencia en la Convención Americana
sobre derechos humanos (CADH)
8
en el artículo 22 al enunciar que: Toda persona que
se halle legalmente en el territorio de un Estado tiene derecho a circular por el mismo y,
a residir en él con sujeción a las disposiciones legales”(OEA, 1969: 8). Esto es una
reproducción de lo dispuesto en el contexto universal, pues el PIDCP de 1966
9
, en el
artículo 12 condiciona el derecho de entrada, la libertad de circulación y residencia, a las
personas que se hallen legalmente dentro del territorio del Estado.(ONU, 1966)
10
. De
acuerdo con lo anterior, es claro que para el DIDH vigente, el derecho de entrada es
inexistente y que a partir de allí, los Estados conservan un alto margen de
discrecionalidad que se materializa en el ejercicio restrictivo de los derechos de los
extranjeros.
Además de ello, la Convención Internacional sobre la Eliminación de Todas las Formas
de Discriminación Racial (ONU, 1965) al definir la discriminación, excluye las distinciones
que proceden por a de aplicación del concepto de ciudadanía y no ciudadanía (art.1.2
CERD), facultando a los países a otorgar tratos diferenciados no constitutivos de
discriminación (Palacios, 2012).
2. La progresiva jurisprudencia contenciosa de la Corte IDH en favor de
los derechos de los migrantes.
En el apartado anterior se enunciaron algunas normas básicas a partir de las cuales los
Estados limitan el ejercicio de los derechos de los extranjeros, teniendo como
presupuesto su seguridad nacional, orden blico o interés general. Por ello, es oportuno
realizar un análisis en torno a las características que ha tenido la jurisprudencia de la
Corte IDH en esta materia, pues el tribunal acude a diversos métodos de interpretación
previstos en la Convención de Viena sobre el Derechos de los Tratados (Olmos, 2017:3)
y ello nos permitirá identificar elementos que evidencien la existencia de un verdadero
desarrollo evolutivo que establezca algunos límites a la soberanía de los Estados, con
respecto al tratamiento de los extranjeros. En esta reflexión se entenderá por desarrollo
progresivo de los derechos humanos, la evolución normativa y jurisprudencial que
redunda en la mayor protección de los derechos de los extranjeros como camino hacia la
equiparación restringida (Gomez, 2003). Por otra parte, resulta valioso analizar en qué
medida la Corte IDH hace uso de sus dos funciones para complementar el marco de los
derechos de los extranjeros, esto es, si las consideraciones a las que llega en el ejercicio
de la función contenciosa son replicadas en la jurisprudencia de orden consultivo.
7
Artículo 13 de la DUDH: “Toda persona tiene derecho a circular libremente y a elegir su residencia en el
territorio de un Estado. Toda persona tiene derecho a salir de cualquier país, incluso del propio, y a regresar
a su país”.
8
Adoptada en San José de Costa Rica, el 22 de noviembre de 1969, en vigor el 18 de julio de 1978.
9
Adoptado y abierto a la firma, ratificación y adhesión por la Asamblea General en su resolución 2200 A
(XXI), de 16 de diciembre de 1966, en vigor el 22 de marzo de 1976.
10
Artículo 12.1. Toda persona que se halle legalmente en el territorio de un Estado tendrá derecho a circular
libremente por él y a escoger libremente en él su residencia.
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Derechos de los migrantes: apuntes a la jurisprudência de la corte interamericana de derechos humanos
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2.1. Una jurisprudencia puntual y garantista
La función contenciosa de la Corte IDH está prevista en los artículos 61, 62 y 63 de la
CADH y está regulada en varias normas del Reglamento de la misma corporación (OEA,
2009). Esta competencia tiene como propósito fundamental que se realice un proceso de
aplicación normativa a hechos concretos para determinar si existieron o no vulneraciones
a la luz de la CADH y derivar de allí, responsabilidad internacional en contra del presunto
Estado infractor. Por tanto, la Corte IDH deberá emitir una sentencia en la que tendrá
que disponer medidas de reparación, satisfacción o garantías de no repetición. (Roa,
2015:64). Es así, como le compete comprobar la veracidad de los hechos denunciados y
decidir si los mismos pueden ser considerados como infracción a la CADH. (Ventura y
Zovato, 1989: 165)
Si bien los casos fallados por la Corte IDH relativos a los derechos de los extranjeros no
son muy numerosos
11
, pueden identificarse algunos temas, entre ellos, el derecho a la
nacionalidad, expulsión de extranjeros y respeto al principio de no devolución, igualdad
y no discriminación, garantías judiciales y debido proceso.
2.1.1. El derecho a la nacionalidad guarda relación con otras
garantías
El caso Ivcher Bronstein vs. Perú
12
(Corte IDH, 2001), fija un parámetro para la protección
del derecho a la nacionalidad por adopción de un ciudadano israelí naturalizado en Perú
que previamente había renunciado a su nacionalidad de origen y por una decisión de una
autoridad sin competencia estuvo en riesgo de apatridia. La Corte IDH califica el derecho
a la nacionalidad, como un estado natural e inherente del ser humano (Corte IDH,
2001:párr 86 ). Reconoce que los Estados dentro de sus competencias regulan la
adquisición y pérdida de esta facultad, pero dicha potestad soberana encuentra una
limitación en “(...) las exigencias de la protección integral de los derechos humanos”
(Corte IDH, 2001: 88)
,.
El fallo refiere opiniones consultivas anteriores
13
(Corte IDH, 1984) en las que se
reconoce la importancia de la nacionalidad para el ejercicio de otros derechos, como los
derivados de la condición de apátrida (Corte IDH, 2001: párr 91 y ss). Así mismo,
evidencia la tensión existente entre el principio de soberanía de los Estados y el respeto
a los derechos humanos por vía del desarrollo de la normativa interna,
14
(Carrillo, 2001:
32) para decidir este tipo de asuntos.
11
Si se le compara con la que ha producido el TEDH.
12
Corte IDH, caso Ivcher Bronstein vs. Perú, Serie C, No. 74, de 6 de febrero de 2001.
13
Ver Opinión Consultiva emitida por la Corte Interamericana de Derechos Humanos, OC-4 de 1984,
Propuesta de modificación a la Constitución Política de Costa Rica relacionada con la naturalización, Serie
A, No. 4, párr. 32.
14
Ver Carrillo, J., Soberanía de los Estados y Derechos Humanos en Derecho Internacional Contemporáneo,
segunda edición, Tecnos, Madrid, 2001, p. 32.
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138
En el caso de las niñas Yean y Bosico vs. República Dominicana
15
(Corte IDH, 2005)
16
se
reitera la importancia de la nacionalidad y la Corte IDH configura el desconocimiento de
este derecho en los sistemas jurídicos, como una lesión a la dignidad de la persona (Corte
IDH, 2005: párr 179), toda vez que la denegación por parte del Estado dominicano del
registro de nacimiento, deriva en la anulación de la condición de sujeto de derechos y
ubica a las afectadas en circunstancias de vulnerabilidad extrema (Corte IDH, 2005: párr
180). Para el SIDH el derecho a la nacionalidad supone de una parte, el derecho a tener
una nacionalidad para que el individuo goce de amparo judicial por la relación que se
establece con el Estado y de la otra, la protección contra la privación arbitraria de esta.
(Corte IDH, 2017:11). Además, que los Estados se encuentran en el deber de abstenerse
de implementar prácticas que puedan favorecer el aumento de los casos de apatridia.
(Corte IDH, 2017: 12)
Para la Corte, este derecho tiene una estrecha relación con los derechos de los niños y
la protección de la familia, pues, la negación arbitraria del otorgamiento del registro de
nacimiento y su dilación, constituyen una violación al derecho a la igualdad que
desconoce la aplicación de criterios objetivos y razonables (Arlettaz, 2015: 431) y
acentúa la condición de vulnerabilidad de los menores de edad, como sucedió en el caso
de las niñas Yean y Bosico vs. República Dominicana
17
(Corte IDH, 2005).
Para la Corte IDH, los Estados deben abstenerse de obstaculizar el acceso al registro y
al reconocimiento de la nacionalidad suprimiendo requisitos innecesarios, máxime
cuando se trata de menores de edad (Corte IDH, 2005: párr 171). La omisión ocasionó
que las niñas estuvieran en condición de apatridia, lo que derivó en revictimización, pues
estableció barreras para el ejercicio de una serie de derechos esenciales como; desarrollo
de su personalidad, acceso a la educación, desarrollo de su proyecto de vida, acceso al
derecho a la personalidad jurídica, derecho al nombre, vida digna, nivel de vida adecuado
y vida familiar.
El caso de Personas dominicanas y haitianas expulsadas vs. República
Dominicana
18
(Corte IDH, 2014a) reitera argumentos de fallos anteriores sobre el
tratamiento que reciben las personas haitianas o de origen haitiano en dicho país. Al
estudiar el derecho a la nacionalidad y a la vida familiar, aborda el interés superior del
niño desde un enfoque diferencial.
19
El caso determina que la condición de irregularidad
es una situación administrativa personal que no puede ser transferible o heredable,
significa que los hijos de personas que se encuentren indocumentadas no pueden verse
afectadas por esta situación y se les tendrá que reconocer el derecho a la nacionalidad
(Corte IDH, 2014ª: párr 318). Se determina que los Estados soberanamente podrán
establecer la forma de adquisición de la nacionalidad, sin embargo, tendrán que fijar de
manera razonable su restricción, de tal modo que una persona que establezca vínculos
15
Corte IDH, caso de las niñas Yean y Bosico vs. República Dominicana, Serie C, No. 130, de 8 de septiembre
de 2005.
16
Las Resoluciones de medidas provisionales de 7 de agosto de 2000, 14 de septiembre de 2000, 12 de
noviembre de 2000, 26 de mayo de 2001, 2 de febrero de 2006, 1 de diciembre de 2011, 29 de febrero de
2012 y 7 de septiembre de 2012 revisten gran importancia en el tema.
17
Corte IDH, caso de las niñas Yean y Bosico vs. República Dominicana, Serie C, No. 130, de 8 de septiembre
de 2005.
18
Corte IDH, Personas dominicanas y haitianas expulsadas vs. República Dominicana Serie C, No. 282, de 28
de agosto de 2014.
19
Párrs. 82 -106, 212-140
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con el Estado de acogida, no podrá ser considerada como transeúnte en cualquier caso,
pues esto debe obedecer a un mite temporal y razonable (Corte IDH, 2014ª : párr 295).
De las consideraciones efectuadas se identifica un desarrollo evolutivo del alcance del
derecho a la nacionalidad y personalidad jurídica, pues resulta ser elemento esencial para
el ejercicio del derecho al nombre y para la efectividad de la nacionalidad, que deriva en
el reconocimiento de garantías que no sólo impactan los derechos civiles y políticos, sino
también los económicos, sociales y culturales.
2.1.2. Garantías procesales: un derecho humano de todas las
personas
El caso Vélez Loor Vs. Panamá
20
(Corte IDH, 2010) aborda la protección de los derechos
a la integridad y libertad personales y garantías judiciales a partir de la dignidad
humana
21
, señalando que si bien los Estados tienen en ejercicio de su soberanía, la
potestad de regular el tema de entrada de nacionales de otros Estados, esto tiene algunas
limitaciones impuestas por los derechos humanos.
El respeto por tales principios no implica que el Estado no pueda iniciar acción alguna
para contrarrestar la inmigración irregular, sino que al adoptar dichas medidas deberán
respetarse los derechos humanos
22
. Los extranjeros detenidos en un medio social y
jurídico diferente del suyo con barreras lingüísticas, los expone a una condición de
particular debilidad
23
(Corte IDH, 2010), aspecto que resulta ser incompatible en un
Estado democrático.
Las condiciones indignas de detención han sido una preocupación para la Corte IDH, pues
“(…) puede resultar en una violación de la prohibición absoluta de aplicar tratos o penas
crueles, inhumanos o degradantes
24
. En este sentido, los Estados no pueden invocar
privaciones económicas para justificar condiciones de detención que no cumplan con los
estándares mínimos internacionales en esta área y no respeten la dignidad del ser
humano” (Corte IDH, 2010: párr 198). Así mismo, éstas derivan de una errónea
concepción de que las faltas administrativas migratorias suponen delitos, lo que
criminaliza la migración
25
. Debe tenerse presente, que las condiciones dignas de
detención deben constituir una buena práctica, aplicable en los centros de detención
exclusivos para migrantes y en los establecimientos carcelarios (CorteIDH, 2015: párr
81) y dar cumplimiento a circunstancias mínimas como la legalidad, proporcionalidad,
20
Corte IDH, Caso Velez Loor Vs. Panamá, Serie C, No. 218, de 23 de noviembre de 2010.
21
Este caso versa sobre la detención del señor Jesús Tranquilino Velez Loor, nacional ecuatoriano que es
detenido en la zona de frontera del Darién (panamá) por autoridades policiales de esta país por no contar
con documentación que acreditara su permanencia en este país. (pár. 94).
22
Estas apreciaciones ya las había puesto de manifiesto en la Opinión Consultiva, OC-18 de 2003 que será
analizada con posterioridad en este escrito.
23
Ver Corte IDH, caso Vélez Loor vs. Panamá, párr. 146-160
24
Comité contra la Tortura, Observación General No. 2, Aplicación del artículo 2 por los Estados Partes, 39
periodos de sesiones, 2007, Doc. HRI/GEN/Rev.9 (Vol. II), de 27 de mayo de 2008. Cabe señalar que para
el DIDH la prohibición de tortura, tratos o penas crueles, inhumanas o degradantes es absoluta, y en lo que
se relaciona concretamente con los inmigrantes, incluso aquellos que se encuentran en situación jurídica
de irregularidad, esta norma ha significado un fuerte límite a las expulsiones individuales o deportaciones
de personas cuando en su estado de origen esté en riesgo la vida del extranjero o pueda ser víctima de
tortura, tratos o penas crueles, inhumanos o degradantes.
25
Es ilustrativo el Informe del Relator Especial sobre los derechos humanos de los migrantes, marzo de 2011,
párr. 13 y 15, ver Informe de la Comisión Interamericana de Derechos Humanos, CIDH, Situación de
derechos humanos de familias, niños, niñas y adolescentes no acompañados, refugiados, y migrantes en
los Estados Unidos de América, 2015.
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razonabilidad y prohibición de arbitrariedad, como se expone en el caso Nadege Dorzema
vs. República Dominicana. (Corte IDH, 2012:133). De lo anterior que resulten
incompatibles con la CADH las políticas migratorias punitivas que tengan como propósito
detener a los migrantes en situación irregular (Corte IDH, 2014ª: 359).
En las causas migratorias el debido proceso es un derecho fundamental de toda persona
migrante sin importar su estatus migratorio, que tiene reconocimiento en la CADH en el
artículo 8. Es así como todo órgano administrativo y judicial de un Estado parte deberá
respetarlo (Corte IDH, 2017:44) y es deber de los funcionarios ser imparciales e
independientes (Corte IDH, 2010: 108).
Otra de las garantías procesales en las causas migratorias, consiste en la obligación del
Estado para que la persona sea presentada ante la autoridad competente y una vez esto
haya sucedido, velar por el cumplimiento de la presunción de inocencia en caso en que
haya procedido una detención (Corte IDH, 2014ª: 371), permitir que la medida o sanción
sea revisada, garantizar que al interior del Estado existan recursos judiciales efectivos
(Corte IDH, 2010: 139), acceder a la justicia y contar con asistencia letrada (Corte IDH,
2010: 254) o consular en caso de requerirse, tal como sucedió en el caso Acosta Calderón
vs. Ecuador (Corte IDH, 2005 ª:125) o establecer comunicación con una persona de su
elección o agente consular, en caso de que haya procedido legítimamente su detención
como se expresó en el caso Tibi vs. Ecuador (Corte IDH, 2004:112).
2.1.3. Igualdad y no discriminación como eje para todos los
derechos
Esta prescripción normativa tiene gran relevancia, pues opera como principio irradiador
para la interpretación de los derechos, pero también se dibuja como garantía
instrumental para la aplicación de otros derechos e incluso como derecho autónomo. En
el DIDH se encuentra en casi la totalidad de los instrumentos internacionales. Su
aplicación en los asuntos migratorios es vital, pues si bien se predica el derecho a la
igualdad ante la Ley y está prohibida la discriminación por motivos prohibidos, como
ocurre con el origen nacional, también está permitido a los Estados hacer distinciones
legítimas entre nacionales y extranjeros, aspecto que es frecuente en las políticas
migratorias.
La Corte IDH ha indicado que la igualdad ha ingresado al dominio del ius cogens (Corte
IDH, 2010: 248), lo que traduce que los países no podrán tolerar la realización de
conductas constitutivas de discriminación. Varios análisis de los derechos de los
migrantes surgen desde el respeto al principio de igualdad y no discriminación, como el
otorgamiento de la nacionalidad, las garantías judiciales, la aplicación del principio de no
devolución. Pese a ello, en el caso de Personas dominicanas y haitianas expulsadas vs.
República Dominicana
26
(Corte IDH, 2014a), se afirma que los Estados pueden efectuar
tratos diferenciados entre nacionales y extranjeros, a como también entre
documentados e indocumentados, siempre y cuando obedezcan a motivos objetivos,
razonables y compatibles con los derechos humanos. (Corte IDH, 2014ª : párr 403). Esto
es frecuente en la construcción de la política migratoria y propone la tensión entre la
soberanía para establecer limitaciones a los derechos de los extranjeros y la emergente
26
Corte IDH, Personas dominicanas y haitianas expulsadas vs. República Dominicana Serie C, No. 282, de 28
de agosto de 2014.
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discusión sobre la igualdad como una norma superior integrante del ius cogens, para ello,
se ha invitado a los Estados a combatir las prácticas discriminatorias en todos los niveles
y a adoptar medidas afirmativas para garantizar la igualdad ante la Ley de todas las
personas (Corte IDH, 2005:155) sometidas a su jurisdicción, lo que incluye a todos los
migrantes sin importar su condición jurídica, pues busca garantizar que no se
proporcionen tratos discriminatorios contra ciertas categorías de personas y se avance
hacia un esquema de igualación entre nacionales y extranjeros. (Bosniak, 1991: 737)
2.1.4. Expulsión de extranjeros y principio de no devolución:
limitaciones a la soberanía
La prohibición de expulsión o devolución de extranjeros es una garantía construida en el
marco del DIDH, tanto en el contexto universal
27
como en los regionales
28
y que se ha
influenciado en el principio de “non refoulment” propio del Derecho Internacional de los
Refugiados
29
. Tiene desarrollo a partir de la aplicación del derecho a la libertad de
circulación de los extranjeros al interior de un Estado y se reconoce en los artículos 22.8
y 22.9 de la CADH.
Sobre las expulsiones de extranjeros,
30
la Corte IDH recalca, que los Estados tienen
libertad para fijar requisitos de entrada y permanencia y que las expulsiones autorizadas
por el DIDH, son aquellas en las que existe un análisis individual de cada caso, media un
debido proceso y no se produce la elaboración de perfiles raciales
31
. Para su procedencia
se deberá consultar la historia migratoria de la persona, realizar una consideración sobre
la nacionalidad, el alcance de afectación a la ruptura familiar derivada de la expulsión, el
impacto o perturbación en la vida del niño o de la niña y se deberán evitar las expulsiones
colectivas, expeditas sin garantías
32
.(Corte IDH, 2014a) Por otra parte, en los
procedimientos migratorios se tendrán que distinguir estrictamente los fines de las
medidas y la privación de la libertad, sólo se deberá emplear en caso de ser necesario,
de allí, que se consideran arbitrarias las políticas migratorias que suponen detención
obligatoria, máxime si estas recaen sobre menores de edad e implican expulsión. (Corte
IDH, 2014ª : párr 360)
El caso de la Familia Pacheco Tineo vs. Estado Plurinacional de Bolivia, amplía los alcances
de la prohibición al señalar que la persona no podrá ser expulsada o devuelta a su Estado
de origen o a un tercer Estado, en caso de que su derecho a la vida o a la libertad se
encuentren en peligro por causa de raza, nacionalidad, religión, condición social o de sus
opiniones políticas (Corte IDH, 2013:134), sin que pueda mediar consideración sobre su
condición migratoria, por lo que muestra una garantía universal para toda persona. Este
pronunciamiento toma elementos de lo que ha desarrollado el TEDH en esta materia
27
Ver por ejemplo el artículo 13 del Pacto de Derechos Civiles y Políticos y el artículo 22 de la Convención
Internacional para la Protección de los Derechos de todos los trabajadores migrantes y sus familias.
28
En el caso del Sistema Europeo de Protección a Derechos Humanos, se reconoce en el artículo 4 del Protocolo
no. 4 y Protocolo no. 7, Facultativos al Convenio de Roma de 1950.
29
Esta garantía surge originalmente en el artículo 33 de la Convención de Ginebra sobre el Estatuto de los
Refugiados de 1951.
30
Tener en consideración jurisprudencia de medidas provisionales de personas haitianas y dominicanas de
origen haitiano, en la OC- No. 18 de 2003, entre otros.
31
Se aplica lo dispuesto por el artículo 12 del PIDCP y lo establecido en la OG No. 15 del Comité de DDHH.
32
Corte IDH, Caso personas dominicanas y haitianas expulsadas vs. República Dominicana, párr. 379, también
Corte IDH, Caso Vélez Loor Vs. Panamá, párr. 146.
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(Salado, 2009:107), que constituye una limitación a la discrecionalidad de los Estados y
que ha sido un aspecto poco desarrollado en el SIDH.
Las expulsiones individuales pueden proceder en los casos en los que se adelanta un
proceso individual con las características ya señaladas, pero constituye una prohibición
la realización de estas de manera colectiva, pues en el sentir de la Corte IDH, tales
decisiones carecen de un análisis objetivo y son arbitrarias. (Corte IDH, 2012:171).
3. Las Opiniones Consultivas: elementos integradores de los derechos
La función consultiva de la Corte IDH es catalogada como amplia y única en el DIDH, si
se realiza una comparación con los sistemas universal y europeo (Salvioli, 2006:5). El
artículo 64 de la CADH fija su alcance respecto a legitimación, materias de interpretación
y limitaciones (Nikken,1999:162). Todos los Estados americanos miembros de la OEA,
sin que deban ser parte de la CADH, tienen posibilidad de formular consultas, así como
también los organismos especializados de la OEA, que ostenten competencias en materia
de DDHH. En cuanto a las materias sobre las que puede pronunciarse, ha determinado
que no solo están dentro de su competencia las normas emanadas del SIDH, sino que
puede producirse sobre toda disposición relativa a la protección de los derechos
humanos, de cualquier tratado aplicable a los Estados americanos, de naturaleza bilateral
o multilateral y que puedan ser partes del mismo los Estados de la OEA, incluidas las
reservas formuladas y otros instrumentos como la DADH, e incluso sobre la
compatibilidad de proyectos legislativos de los Estados con la CADH. (Nikken,1999:166).
El valor de las Opiniones Consultivas (OC) ha sido objeto de debate en la doctrina, pues
algún sector sostiene que carecen de valor jurisdiccional (Faúndez,1996:450), sin
embargo, hay quienes afirman que la Corte IDH es una institución judicial autónoma cuyo
objeto es la aplicación e interpretación de la CADH, por lo que su naturaleza y decisiones
son de carácter jurisdiccional, lo que implica que es jurisprudencia auxiliar del DIDH y
que ha sido invocada en una gran cantidad de casos contenciosos (Nikken, 1999, 171),
como sucede en el tema migratorio.
A la fecha han sido tres las OC que refieren temas migratorios o de extranjería y han
marcado un punto de evolución para la jurisprudencia interamericana, pues establecen
un estándar mínimo de tratamiento en materia de respeto de derechos.
3.1. La asistencia consular como núcleo para el ejercicio de los
derechos
La OC-16, evidencia el vínculo entre el derecho a la información en el marco de la
asistencia consular y el disfrute de los derechos inherentes a la persona según la CADH
33
(Corte IDH, 1999). Analiza garantías asociadas al debido proceso y acceso en igualdad
de condiciones a la justicia, además que, señala que los Estados deberán eliminar la
mayor cantidad de barreras posibles para facilitar el derecho a la defensa eficaz, a través
de medidas de compensación en favor de personas vulnerables, como ocurre con los
33
Ver: Corte IDH, Derecho a la Información sobre la asistencia consular en el marco de las garantías del
debido proceso legal, párr. 110 y ss.
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extranjeros
34
. Conviene tener presente que tal omisión deriva responsabilidad
internacional del Estado y origina la necesidad de iniciar un nuevo proceso con debida
notificación ante la autoridad consular (Ortiz, 2013: 127). Estas consideraciones han sido
objeto de pronunciamiento en casos contenciosos como los ya analizados, en los que
indica que es necesario que las personas migrantes cuenten con una efectiva atención
consular de parte de sus Estados. Acosta Calderón vs. Ecuador (Corte IDH, 2005 ª:125)
y Tibi vs. Ecuador (Corte IDH, 2004:112).
3.2. El derecho a la igualdad una garantía instrumental
La OC- 18 de 2003 aborda tres grandes temas; consideración del principio de igualdad y
no discriminación como norma de ius cogens”, reconocimiento de algunos derechos
laborales de las personas indocumentadas y garantías de expulsión.
Sobre el primero, la Corte IDH concluye que el principio de igualdad y no discriminación
es una norma de ius cogens” sobre la cual descansa todo el andamiaje jurídico del orden
público nacional e internacional (Hennebel, 2004: 747). Al punto, señala: “Hoy día no se
admite ningún acto jurídico que entre en conflicto con dicho principio fundamental, no se
admiten tratos discriminatorios en perjuicio de ninguna persona, por motivos de género,
raza, color, idioma, religión o convicción, opinión política o de otra índole, origen
nacional, étnico o social, nacionalidad, edad, situación económica, patrimonio, estado
civil, nacimiento o cualquier otra condición” (Corte IDH, 2003: 109). Los migrantes
indocumentados deben tener un trato digno bajo el respeto de ciertas garantías mínimas,
puesla situación regular de una persona en un Estado no es condición necesaria para
que dicho Estado respete y garantice el principio de la igualdad y no discriminación,
puesto que, como ya se mencionó, dicho principio tiene carácter fundamental y todos los
Estados deben garantizarlo a sus ciudadanos y a toda persona extranjera que se
encuentre en su territorio(Corte IDH, 2003: 113). Lo dicho por la Corte no implica que
se a libre a una política de puertas abiertas (Chueca, 2005: 124), pues los países
podrán iniciar acciones contra las personas migrantes que no cumplan con el
ordenamiento jurídico estatal, siendo legítimo impartir un trato distinto a los migrantes
documentados e indocumentados. Lo anterior, siempre y cuando este trato diferencial
sea razonable, objetivo, proporcional, y no lesione los derechos humanos (Corte IDH,
2003: párr 118 y 119).
Las valoraciones sobre la importancia de la igualdad y la prohibición de discriminación
han sido un tema recurrente, que junto con la vulnerabilidad han caracterizado las
decisiones de los casos contenciosos referidos a los migrantes (Corte IDH, 2010: 248),
(Corte IDH, 2014a),(Corte IDH, 2005:155) y que evidencian la importancia de que se
evolucione hacia un camino de equiparación de derechos en favor del reconocimiento de
la dignidad de la persona, sin que los Estados pierdan del todo la potestad discresional
para determinar los contornos de su política migratoria.
Sobre los derechos derivados de la relación laboral, la Corte IDH menciona de nuevo a
la dignidad humana y su importancia para los derechos de los trabajadores migratorios.
34
Ibíd., párr. 119. La Corte señaló que: “(…) ha de tomarse en cuenta la situación real que guardan los
extranjeros que se ven sujetos a un procedimiento penal, del que dependen sus bienes jurídicos más
valiosos y, eventualmente, su vida misma (…) (…) la notificación del derecho a comunicarse con el
representante consular de su país, contribuirá a mejorar considerablemente sus posibilidades de defensa
(…)” (párr. 120).
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Afirma, que el disfrute de los derechos laborales fundamentales garantiza al trabajador
y a sus familiares una vida digna. Los trabajadores tienen derecho a desempeñar una
actividad laboral en condiciones adecuadas y justas y recibir como contraprestación de
su trabajo remuneración que permita a ellos y sus familiares gozar de un estándar de
vida adecuado y compatible con la dignidad (Corte IDH, 2003: párr 157). Esto permite
sostener que el SIDH ha realizado contribuciones significativas en la difícil ruta de la
igualdad entre nacionales y extranjeros, y han sido merecedoras del calificativo de ser
el certificado de calidad en materia de derechos humanos(Chueca, 2005b: 61).
Debe señalarse que en esta OC-18, la Corte IDH interpreta disposiciones contenidas en
la Declaración Universal de Derechos Humanos, (DUDH) (ONU, 1948) y PIDCP,
solicitadas en la consulta y declara su competencia al señalar que se trata de
instrumentos internacionales sobre derechos humanos y vinculan al Estado consultante
(Corte IDH, 2003: párr. 55). Pese a que en la consulta no se pregunta sobre aspectos
relativos a la Convención Internacional sobre la protección de los derechos de todos los
trabajadores migratorios y de sus familiares (CTMF) (ONU, 1990), la Corte invoca este
tratado por considerarlo de vital importancia para el desarrollo de esta. (Corte IDH, 2003:
párrs. 69, 70, 75, 86, 128, 131)
3.3. Buenas prácticas para la protección de los niños migrantes
La OC No. 21 de 2014 aborda los derechos de los niños y su principal aporte consiste en
recomendar a los Estados buenas prácticas durante todo el proceso migratorio. Para tal
fin la Corte, refiere la importancia de interpretar la DADH, así como su propia
jurisprudencia
35
, la Convención sobre Derechos del Niño (CDN) (ONU,1989) y las OG del
CCR
36
(ONU, 2005), por considerarlas opinio iuris comunis”, en materia de protección
de derechos de los niños y contribuir de manera decisiva en la interpretación de la CADH.
(Corte IDH, 2014ª: 57). Por demás, en esta OC también acude a la interpretación de las
normas aplicables a las personas migrantes, para así completar el marco necesario que
brinda protección a estas personas con ltiples factores de vulnerabilidad y fijar el
alcance de las obligaciones de los Estados.
Advierte que el campo de aplicación de la protección derivada de la CADH y otros tratados
será extensivo a todo niño, independiente de la situación migratoria, incluidos los
refugiados, migrantes, solicitantes de asilo y apátridas (Corte IDH, 2014b: párr 95 ).
Dentro de las principales obligaciones definidas, los Estados deben adecuar su normativa
a partir de la aplicación del principio de efecto útil (Sagüés, 2010: 118) para el disfrute
de los derechos en el contexto de la migración, de allí la importancia de los
procedimientos que deben tener en cuenta los Estados frente a los riesgos que pueden
sufrir los menores no acompañados o separados de sus familias (víctimas de trata,
explotación sexual, participación en actividades delictivas o explotación laboral) para ello,
es necesario tener mecanismos de detección temprana de niños en situación de
vulnerabilidad migratoria (Corte IDH, 2014b: párr 90 y 93).
La OC-21 señala los procedimientos para identificar las necesidades de protección
internacional de niñas y niños migrantes como el otorgamiento de asilo y refugio, no
35
Caso Personas dominicanas de origen haitiano y haitianas vs. República Dominicana.
36
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privación de la libertad de los niños independiente de su situación migratoria, diseño de
medidas prioritarias para protección de menores, condiciones especiales de alojamiento
(Corte IDH, 2014b: párr 106), respeto al principio de no devolución (Corte IDH, 2014b:
párr 207) respeto por la vida familiar (Corte IDH, 2014b: párr 263). Bajo este enfoque
el Consejo de Derechos Humanos de Naciones Unidas, emit un informe sobre el
problema mundial de los niños y adolescentes migrantes no acompañados y los derechos
humanos, en el que resalta las buenas prácticas propuestas en el SIDH en esta materia
(Asamblea General Naciones Unidas, 2017).
Lo anterior permite sostener que la Corte IDH no busca desconocer la soberanía de los
Estados, pero estos deben adaptar su legislación a los tratados internacionales y
desarrollar una serie de buenas prácticas en materia migratoria, entre tales medidas
deberá: privilegiar el enfoque de derechos humanos, realizar pronta identificación de los
menores en riesgo, respetar el debido proceso, el derecho a la libertad personal del niño
y los procedimientos de devolución no podrán en ningún momento poner en peligro la
vida o la integridad de los menores de edad.
En este pronunciamiento la Corte IDH ha retomado las consideraciones ya realizadas en
los casos contenciosos que ha fallado en los que los derechos de los niños, la doble
vulnerabilidad de los menores y la protección de la familia son los ejes orientadores de
la decisión, como ocurrió en los casos ya analizados en la jurisprudencia contenciosa.
(Corte IDH, 2014a), (Corte IDH, 2005). Conforme a la jurisprudencia interamericana en
esta materia se podría llegar a considerar el inicio de una nueva etapa en la protección
integral de los derechos de los niños (Beloff, 2009:17), pues agrega el interés de velar
por los menores en situación migratoria como objetivo de especial protección dentro del
DIDH.
4. Conclusiones
La jurisprudencia referenciada evidencia que para la Corte IDH el tema de los derechos
de los extranjeros y de los inmigrantes ha sido de reciente tratamiento como quiera que
en sus decisiones no han sido un tema trasversal y abordado a lo largo de los años. Pese
a esto, es posible identificar algunos aportes al DIDH que han sido producidos gracias al
diálogo permanente entre los fallos contenciosos y el ejercicio de la función consultiva,
pues en esta última, la Corte IDH ha podido integrar al marco de los derechos de los
extranjeros, parámetros de interpretación provenientes del sistema universal que
refuerzan el cumplimiento de las obligaciones emanadas del marco interamericano. Este
es el caso de la aplicación de los estándares fijados por la CDN que ha sido inspiradora
para brindar una mejor protección de los derechos de los menores migrantes y personas
en necesidad de protección internacional.
De otra parte, vale señalar que los pronunciamientos de la jurisprudencia relativa a los
trabajadores migrantes han llegado a elevar a un rango de norma superior, el principio
de igualdad y no discriminación, que resulta de vital importancia para que los países
puedan avanzar hacia el reconocimiento de los derechos de estas personas bajo
parámetros óptimos de dignidad. Si bien aún no se han producido fallos contenciosos
respecto de los derechos de los trabajadores migrantes, es posible que el impacto de la
OC-18 pueda favorecer el marco de protección en esta materia.
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Los fallos existentes, en buena medida, han abordado la protección de los derechos a la
personalidad jurídica, nombre, nacionalidad, prohibición de expulsión y requisitos para
esta, así como la aplicación del principio de igualdad y no discriminación, derechos
laborales, y prestaciones derivadas del contrato de trabajo, al margen de la situación
jurídica del inmigrante. Así mismo, ha estudiado temas como garantías en condiciones
de detención, derechos de los niños y, más recientemente, ha recomendado unos
estrictos protocolos de atención para los migrantes menores de edad no acompañados o
separados de sus familias. De esta manera, los derechos de los trabajadores migratorios
y de los niños migrantes han marcado las pautas para lo que puede ser considerado un
desarrollo evolutivo de la jurisprudencia en esta materia, dando origen a lo que con
posterioridad puede ser un corpus iuris en materia de derechos de los migrantes.
La protección de estos derechos por vía de la interpretación de la Corte IDH, constituye
una limitación a la potestad soberana de los Estados, pues en los casos contenciosos ha
impuesto sanciones y medidas de reparación que deben ser acogidas por los Estados;
por su parte, en el caso de las opiniones consultivas, han fijado parámetros de
interpretación de las normas que bien pueden ser asumidas por los Estados en aras de
producir un acatamiento de las obligaciones derivadas de los tratados sin que ello
implique una condena, es decir, una construcción de un marco jurídico favorable para las
personas migrantes con un sentido altamente constructivo.
De esta manera, resulta necesario que se den pronunciamientos con enfoques
diferenciales en favor de las mujeres y niñas migrantes, así como de adultos mayores,
personas con discapacidad, población LGBTI y demás grupos diferenciados, dado que
tales temas aún no han sido abordados. A mismo, teniendo en cuenta que la
legitimación para la formulación de las consultas, permite que algunos órganos del SIDH
acudan a la interpretación, sería apropiado que por ejemplo la Comisión Interamericana
de Mujeres, el Instituto Indigenista Americano y el Instituto Interamericano del Niño,
pudieran activar la competencia a efectos de lograr otros pronunciamientos en tales
sentidos y se dieran mayores avances en la protección de los derechos.
Por último, en los pronunciamientos analizados de la Corte IDH se hallan elementos de
la jurisprudencia consultiva que han sido empleados para la resolución de asuntos en
sede contenciosa, así como también existen algunos ejes para la toma de las decisiones
en favor de los derechos de los migrantes, entre ellos, el concepto de vulnerabilidad, la
dignidad humana y la igualdad y no discriminación.
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Vol. 10, Nº. 2 (Novembro 2019-Abril 2020), pp. 151-161
ENTRE A LIBERDADE DE CONTRATO E O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ: UMA VISÃO
INTERNA DA REFORMA DO DIREITO PRIVADO DO CAZAQUISTÃO
Kamal K. Sabirov
sabirov.k@gmail.com
Doutorando em Ciências Jurídicas na L.N. Gumilyov Eurasian National University e investigador
sénior do Institute of Legislation da República do Cazaquistão. É autor de mais de 40 artigos
científicos nas línguas cazaque e russa no campo das questões de direito privado e participante
ativo do processo de elaboração de leis no Cazaquistão.
Venera T. Konussova
konussova@mail.ru
Diretora Adjunta do Institute of Legislation da República do Cazaquistão; Doutorada em Ciências
Jurídicas. É uma das promotoras do Código Empresarial da República do Cazaquistão e uma das
autoras da lei de advocacia do Cazaquistão.
Marat A. Alenov
lscc@mail.ru
Doutor em Direito, Professor na L.N. Gumilyov Eurasian National University. É um dos principais
especialistas em Processo Civil no Cazaquistão. É autor de um grande número de obras no campo
do direito privado e do processo civil.
Resumo
Ao longo dos anos, desde que o Cazaquistão conquistou a independência, houve mudanças
importantes na economia do país associadas ao influxo de investimentos estrangeiros. Essas
mudanças exigem a implementação de experiência estrangeira na regulação das relações
económicas e, em particular, instituições contratuais estrangeiras. O Centro Financeiro
Internacional "Astana" começou a funcionar no Cazaquistão desde 2018. Os atos do Centro
Financeiro Internacional são baseados nos princípios e normas de direito da Inglaterra e do
País de Gales. Nesse sentido, foi lançada uma reforma em larga escala do direito privado da
República do Cazaquistão, com o objetivo de identificar uma série de ideias e projetos de
direito civil que podem ser medidos na legislação cazaque a partir da lei inglesa. Os autores
desta pesquisa são participantes diretos da reforma. Este estudo tem como objetivo destacar
uma das questões consideradas no âmbito da reforma do direito privado: o reforço do papel
do princípio da liberdade contratual e do princípio da boa-fé no direito contratual da República
do Cazaquistão.
Palavras-chave
Princípio da boa-fé; liberdade contratual; comprador de boa-fé; legislação do Cazaquistão;
direito privado do Cazaquistão.
Como citar este artigo
Sabirov, Kamal K.;Konussova, Venera T.; Alenov, Marat A. (2019). "Entre a liberdade de
contrato e o princípio da boa-fé: uma visão interna da reforça do Direito Privado do
Cazaquistão". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 10, N.º 2, Novembro 2019-
Abril 2020. Consultado [em linha] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.2.10
Artigo recibido em 5 de Março de 2019 e aceite para publicação em 25 de Setembro de 2019.
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Entre a liberdade de contrato e o princípio da boa-fé:
uma visão interna da reforma do Direito Privado do Cazaquistão
Kamal K. Sabirov, Venera T. Konussova, Marat A. Alenov
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ENTRE A LIBERDADE DE CONTRATO E O PRINCÍPIO DA BOA-FÉ: UMA VISÃO
INTERNA DA REFORMA DO DIREITO PRIVADO DO CAZAQUISTÃO
1
Kamal K. Sabirov
Venera T. Konussova
Marat A. Alenov
Introdução
Apesar do sistema legal da República do Cazaquistão fazer parte do direito civil, foi
formado sob a influência do sistema jurídico soviético do qual herdou muitos elementos.
O direito privado da República do Cazaquistão é muito parecido com o direito privado
russo. Isso não é surpreendente, porque os dois sistemas de direito privado baseiam-se
no código modelo dos países da CEI e também tinham uma história comum de formação
no âmbito do direito civil soviético. No entanto, mais de 27 anos se passaram desde o
colapso da União Soviética e o direito privado dos países da CEI mudou
consideravelmente (Akyn e Rakhymbai, 2017).
A reforma da legislação civil está em andamento há vários anos na Federação Russa.
Vários atos legislativos foram adotados para alterar o Código Civil da Federação Russa;
em particular, a lei das obrigações foi reformada. No decorrer desta reforma, algumas
instituições legais de direito comum foram implementadas.
O International Financial Center “Astana” começou a funcionar na República do
Cazaquistão desde 2018. O tribunal do International Financial Center baseia-se no direito
contratual inglês; nesse sentido, pode-se afirmar que o processo de implementação de
elementos da lei comum no sistema jurídico da República do Cazaquistão é objetivo.
Em conexão com o início da atividade do International Financial Center, está em
andamento uma reforma em larga escala da legislação sobre a implementação de certas
disposições do direito inglês e europeu. Os participantes desta reforma são os autores
deste artigo. Atualmente, o Ministério da Justiça desenvolveu um esboço de Conceito
para o projeto de lei futuro, que despertou imediatamente muitas discussões na
comunidade científica e jurídica (Konussova e Nesterova, 2016).
1
A tradução deste artigo foi financiada por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e
a Tecnologia no âmbito do projeto do OBSERVARE com a referência UID/CPO/04155/2019, e tem como
objetivo a publicação no JANUS.NET. Texto traduzido por Cláudia Tavares.
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Entre a liberdade de contrato e o princípio da boa-fé:
uma visão interna da reforma do Direito Privado do Cazaquistão
Kamal K. Sabirov, Venera T. Konussova, Marat A. Alenov
153
O objetivo da reforma da legislação civil na República do Cazaquistão é a modernização
e o desenvolvimento do direito privado. Nesse sentido, foi necessário comparar
abordagens à regulamentação de instituições similares, entender a lógica jurídica e
identificar pontos de contato com ela. E apenas nessa base negar ou aceitar inovações
que o direito comum traz para o desenvolvimento do direito continental.
Devido ao facto de a legislação civil da República do Cazaquistão e da Federação Russa
serem amplamente similares, foi dada considerável atenção à experiência russa. Mas, de
acordo com os respetivos cientistas jurídicos cazaques, nem todas as ideias incorporadas
no decorrer da reforma do direito privado russo podem ser consideradas bem-sucedidas
(Sulejmenov, 2016).
A reforma do direito privado na Federação Russa foi confrontada com opiniões
conflitantes entre os defensores do direito contratual inglês e os adeptos da escola de
direito clássico alemã. Por fim, durante a reforma, uma tentativa de encontrar um
compromisso e as emendas de ambos os lados foram levados em consideração.
Durante a preparação do projeto de lei, várias questões foram levantadas, incluindo o
fortalecimento do papel da prática judicial, o desenvolvimento do princípio da boa-fé e o
princípio da liberdade contratual, a introdução do conceito de "corporação" e a
regulamentação legislativa das relações corporativas, o desenvolvimento da legislação
societária, a implementação de instituições individuais do direito contratual
(impedimento, indemnizações, representações e garantias liquidadas, cláusula de
indemnização, etc.). Assim, a reforma previa mudanças bastante revolucionárias na
legislação atual, que logicamente provocaram resistência por parte dos advogados
conservadores. No final, algumas das inovações propostas do projeto tiveram que ser
abandonadas.
No âmbito deste artigo, propõe-se discutir um dos elementos da reforma do direito
privado na República do Cazaquistão, a saber, a expansão da liberdade de contrato e,
como contrapeso, o fortalecimento do princípio da boa-fé.
Geralmente, no direito contratual, existem dois princípios fundamentais que coexistem:
o princípio da liberdade contratual e o princípio da boa-fé na execução do contrato. E se
a lei inglesa presta mais atenção ao princípio da liberdade de contrato, na lei continental
o princípio da boa-fé pode ser considerado como um princípio fundamental.
A doutrina da liberdade de contrato implica que as partes do contrato tenham exatamente
as mesmas obrigações que as previstas no seu contrato. O princípio da boa-sugere
que as partes do contrato tenham frente a frente uma série de outras obrigações que
não surgem do contrato, mas do requisito de agir de boa-fé, como é entendido por esta
lei e ordem. O princípio da boa-fé também pode isentar uma parte do cumprimento de
suas obrigações contratuais, se este estado de direito o considerar justo nessa situação.
Além disso, baseando-se no princípio em questão, o tribunal pode atribuir as
responsabilidades à parte que não foi prescrita no contrato. Tudo isso contradiz o
princípio da liberdade do contrato.
Como parte da reforma em curso do direito privado no Cazaquistão, houve uma tentativa
de encontrar um compromisso entre o princípio da boa-fé e a liberdade de contrato.
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uma visão interna da reforma do Direito Privado do Cazaquistão
Kamal K. Sabirov, Venera T. Konussova, Marat A. Alenov
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Métodos de investigação
Realizámos uma análise das normas legais existentes, assim como do conteúdo de
materiais de investigação de especialistas cazaques, russos, ingleses, americanos e
alemães no campo do direito privado, com o objetivo de analisar, de maneira
abrangente, algumas questões da reforma do direito privado de República do
Cazaquistão. Durante a investigação foram utilizados os trabalhos de autores cazaques
e estrangeiros - representantes das faculdades de direito alemã e inglesa. A base
metodológica do estudo inclui: análise do sistema, comparação, previsão teórica e
legal.
Principais resultados e discussão
Expandindo os Limites da Liberdade Contratual
As raízes históricas do princípio da liberdade contratual remontam ao direito romano, que
deu grande prioridade à livre expressão da vontade das pessoas e negou qualquer
pressão externa. O princípio da liberdade contratual atingiu o seu auge em meados do
século XIX, depois de se começar a restringir cada vez mais a várias ordens legais.
Nos Estados Unidos, a liberdade contratual é reconhecida como um dos direitos
constitucionais de um cidadão. O Supremo Tribunal confirmou o fortalecimento desse
direito no caso Frisbie v. Estados Unidos, 157 U.S. 160 [1895] (Bernstein, D., 2008).
Em geral, podemos distinguir três elementos básicos da liberdade contratual: a liberdade
de concluir um contrato, a liberdade de escolher um contrato e a liberdade de determinar
o conteúdo do contrato.
Esses elementos são descritos nos comentários ao Código Civil da República do
Cazaquistão da seguinte forma: " Qualquer pessoa, a seu critério e sem coerção externa,
tem o direito de: a) decidir se deve entrar ou não num contrato; b) eleger um parceiro
que deseje concluir um contrato; c) determinar os termos do contrato ".
Polémicos o os contratos que, embora o sejam explicitamente proibidos por lei,
podem ser considerados antiéticos ou imorais. Por exemplo, os contratos de transplante
de órgãos humanos, que causam polémica entre os seus apoiantes e oponentes
(Trebilcock, 1993). É também necessário abordar a questão da limitação do princípio da
liberdade contratual. Existem casos separados de restrição de liberdade contratual,
mesmo na lei inglesa. Para tal, Craswell inclui regras contra danos liquidados e regras
que proíbem a execução de promessas não suportadas pela consideração (Craswell,
1995).
A legislação civil da República do Cazaquistão, no parágrafo 4 do artigo 8 do Código Civil
da República do Cazaquistão, estabelece requisitos gerais para o comportamento dos
cidadãos e entidades jurídicas. Esses conceitos avaliativos possibilitam estabelecer
limites gerais do contrato, protegendo as partes de abusos.
Além disso, o funcionamento do princípio da liberdade contratual tem certas exceções,
atribuídas nas normas legislativas. O artigo 380 do Código Civil da República do
Cazaquistão proíbe a obrigação de celebrar um contrato, esclarecendo que isso não se
aplica aos casos em que a obrigação de celebrar um contrato está prevista na legislação
ou numa obrigação voluntariamente aceite.
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uma visão interna da reforma do Direito Privado do Cazaquistão
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O princípio da liberdade contratual desempenha um papel fundamental no
desenvolvimento das relações económicas e de mercado. Na opinião de A. Didenko, o
contrato serve como instrumento de “democratização” da economia e, por meio dela, da
sociedade (Didenko, 2000). O princípio da liberdade contratual é uma continuação lógica
dos direitos e liberdades garantidos pela Constituição da República do Cazaquistão deste
ponto de vista.
Como decorre das disposições constitucionais relativas à realização dos direitos e
liberdades dos cidadãos, é utilizado um método discricionário de regulamentação da
legislação, permitindo o que não é diretamente proibido pelas leis. O princípio da discrição
em relação à realização pelo homem de seus direitos e liberdades é estabelecido no artigo
29.2 da Declaração Universal dos Direitos e Liberdades Humanos e Civis, que declara
que "todos devem estar sujeitos apenas às limitações que são determinadas por lei
exclusivamente com a finalidade de garantir o devido reconhecimento e respeito pelos
direitos e liberdades de terceiros".
No entanto, apesar dessas regras, a legislação civil da República do Cazaquistão
pressupõe a natureza obrigatória das regras do direito contratual. Presume-se a discrição
das normas apenas se houver uma cláusula especial "salvo disposição em contrário por
acordo entre as partes". As regras que não possuem essa cláusula são consideradas
obrigatórias.
Por outro lado, notamos que existem normas obrigatórias que sublinham a sua natureza
imperativa com uma cláusula especial no direito civil. Atualmente, a prática judicial
mostra que, em questões contestáveis, a questão de determinar a natureza da norma é
decidida pelo tribunal.
Nesse sentido, parece natural expandir o princípio da liberdade contratual para melhorar
o ambiente dos negócios. Ao mesmo tempo, é necessário desenvolver as limitações
naturais do princípio da liberdade de contrato através do princípio da boa-fé.
Basin observou que os princípios estabelecidos na legislação civil da República do
Cazaquistão se opõem diretamente aos princípios básicos sobre os quais o Código Civil
anterior da RSS do Cazaquistão foi construído (Basin, 2003). A lei soviética decorreu do
facto de que é possível fazer apenas o que é permitido pela lei. Tudo isso sugere que as
normas discricionárias do direito contratual devem ser apresentadas no direito civil em
maior extensão do que as normas obrigatórias. No entanto, como apontado por Klimkin,
o direito contratual, onde o princípio da liberdade contratual deve “funcionar”
plenamente, consiste em normas obrigatórias para quase 90% (Klimkin, 2014).
Assim, a legislação civil da República do Cazaquistão procede de uma abordagem que
pressupõe as normas obrigatórias se a norma não estabelecer diretamente o seu caráter
obrigatório. Em outras palavras, "tudo o que não é permitido por lei é proibido". Essa
restrição não cumpre os princípios básicos do direito civil; direitos e liberdades garantidos
pela Constituição, assim como pela prática mundial e requer mudanças.
Para encontrar a melhor opção para expandir os limites da liberdade contratual, é
necessário considerar as formas existentes de limitar esse princípio. Na opinião de S. V.
Scriabin, existem duas tendências principais na restrição da liberdade contratual. O
primeiro implica a inclusão em cláusulas especiais do direito civil, por exemplo, indicando
a necessidade de exercer os direitos civis de boa-fé, de maneira razoável e justa
(Cláusula 4, do artigo 8 do Código Civil da República do Cazaquistão). O segundo implica
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o fortalecimento na lei de regras obrigatórias relativas às condições de certos tipos de
contratos (Scriabin, 2003).
A análise da legislação civil da República do Cazaquistão mostra a aplicação de ambas as
formas de restrição da liberdade contratual. A restrição da liberdade de contrato por meio
de reservas gerais é pica para as normas sobre transações contestáveis e a restrição
da liberdade de contrato por restrições diretas para as regras sobre transações nulas.
Com base no exposto, acreditamos que a extensão do princípio da liberdade contratual
não deve advir da ideia de eliminar as limitações existentes do princípio da liberdade
contratual, mas do fortalecimento de princípios permissivos na legislação.
Resumindo, o princípio da liberdade contratual é atualmente um princípio fundamental
da legislação civil. No entanto, para garantir a proteção integral desse princípio nas
transações comerciais, é necessário esclarecer significativamente as normas da
legislação civil para fortalecer a liberdade contratual.
Em primeiro lugar, é necessário acrescentar ao artigo 2 do Código Civil da República do
Cazaquistão o esclarecimento de que a liberdade contratual é de facto o princípio do
direito civil. Em segundo lugar, a proteção do princípio da liberdade contratual pode ser
alcançada mediante o fortalecimento da natureza discricionária do direito civil.
A introdução de mudanças apropriadas melhorará significativamente a legislação civil da
República do Cazaquistão torná-la-á mais amigável para o ambiente dos negócios.
Fortalecendo o Princípio da Boa-
Uma indicação dos requisitos de boa-fé, justiça e razoabilidade apareceu no direito
continental sob a influência da revolução francesa, que levou as ideias de liberdade
individual, igualdade perante a lei e justiça. Estes princípios contribuíram para o
desenvolvimento das relações sociais, ideias sobre a livre expressão da vontade do
indivíduo com base em contratos celebrados com outras pessoas. Quase todos os
sistemas de direito dos países que se identificam com o direito civil contêm uma ou mais
disposições sobre boa-fé (Mackaay, 2011).
O princípio da boa-fé também desempenha um papel central na lei do tipo misto (baseada
na lei comum e na lei civil). Por exemplo, no estado da Louisiana, o princípio da boa-fé
é aplicado na lei sobre obrigações gerais e convencionais, direito comercial, direito da
família, direito da propriedade, etc. (Lovett, 2018).
Não praticamente nenhuma definição do conceito de boa-fé na lei. Mas, no entanto,
esse princípio desempenha um papel importante, especialmente no direito contratual
(Podshivalov, 2018).
Na lei comum, cada contrato implica a existência de boa-fé na sua interpretação e
execução. Ao mesmo tempo, a boa-fé é percebida como a ausência de má fé. No direito
continental, a boa-fé é observada como uma categoria de moralidade e como um
requisito que segue a linha no comportamento.
O princípio da boa-fé tem um papel fundamental na lei alemã. Os tribunais alemães
sentem-se autorizados e até obrigados a interferir nas relações contratuais quando essas
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relações são injustas com uma das partes. Quanto à França, o princípio da boa-fé nas
relações contratuais estava presente desde o Código de Napoleão.
Na nossa opinião, a importância do princípio da boa-fé é comprovada pela experiência
do Reino Unido, onde ele não foi reconhecido por um longo período de tempo. Como
observa Mackaay, foram os advogados ingleses que mais resistiram a essa doutrina. Ao
contrário da lei dos EUA, onde a boa-fé é reconhecida nas relações jurídicas pré-
contratuais, a lei inglesa tratou essa instituição criticamente (Mackaay, 2011). Por
exemplo, o direito do tribunal de contestar os termos do contrato de consumo ex post
sob a égide da luta contra cláusulas abusivas de contrato foi reconhecido em Inglaterra
apenas no início dos anos 90 e depois apenas sob a pressão das obrigações para com a
UE. Seguiu-se uma animada discussão entre advogados europeus e britânicos sobre
quanta integridade económica deve prevalecer sobre a identidade cultural e nacional
(Collins, 1994).
Vamos citar algumas posições dos tribunais ingleses do início dos anos 90 que regulam
a questão da aplicação ao princípio da boa-fé:
Não existe uma doutrina geral de boa-na lei de contratos inglesa.
As partes lesadas são livres para agir como desejarem, desde que
não violem o termo do contrato(James Spencer &Co Ltd. v. Tame
Valley Padding Co Ltd. [1998]).
O dever de negociar de boa-fé é inviável na prática (Walford v.
Miles [1992]).
Nestes casos, o tribunal preferiu a aplicação do princípio da liberdade contratual e da
concorrência judicial. Esta foi a posição principal do direito inglês, que elevou a liberdade
de contrato ao princípio fundamental do direito contratual durante muito tempo.
Enquanto isso, é óbvio para os advogados da tradição do direito civil que a liberdade
absoluta do contrato contradiz a consideração justa do caso.
No entanto, a posição dos tribunais ingleses nos últimos anos mudou bastante. No caso
de Yam Seng PTE Ltd v International Trade Corporation (ITC) Ltd. [2013], o tribunal falou
sobre o princípio da boa-fé, reconhecendo que as posições tradicionais da lei inglesa em
relação à boa-fé não são razoáveis (Poole, 2012).
A "boa-fé" na lei dos EUA foi finalmente definida normativamente na codificação no
Uniform Commercial Code (U.C.C.). Neste documento, uma abordagem objetiva para
determinar a honestidade foi aplicada à definição desse conceito. Portanto, é um conceito
geral que pode ser comparado não apenas ao princípio da boa-fé no direito romano-
alemão, mas também aos conceitos avaliativos de racionalidade, justiça e ética nos
negócios.
Tudo isso aponta para a importância do princípio da boa-fé.
O princípio da boa-fé resume os contratos comerciais, tanto no direito continental como
no direito comum. Por exemplo, o parágrafo 4 do artigo 8 do Código Civil da República
do Cazaquistão afirma que " pressupõe-se boa-fé, razoabilidade e justiça nas ações dos
participantes de relações jurídicas". Assim, está implícita a boa-fé em cada contrato
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celebrado, bem como as ões da entidade empresarial. O princípio da boa-fé visa a
formação de um comportamento modelo, baseado nas ideias predominantes na
sociedade sobre a imagem honesta dos pensamentos, o respeito pelos interesses justos
dos outros, o grau permitido de egoísmo no comportamento legal (Mikryukov, 2013). Se
analisarmos o princípio da boa-fé a partir dessa perspetiva, fica claro que a boa-está
subjacente a quase todo o direito privado e é um princípio geral do direito privado.
Na legislação civil da República do Cazaquistão, a boa-fé é usada em dois significados:
objetivo e subjetivo. É uma posição tradicional da doutrina jurídica alemã que salienta a
boa-fé no significado subjetivo guter Glauben e no significado objetivo Treu und
Glauben” (Wieacker, 1956).
Num sentido objetivo, a boa-fé é entendida como uma "boa consciência", isto é, uma
categoria moral e ética e um princípio do direito civil baseado em princípios éticos e
morais. No significado subjetivo, a boa-fé é entendida como um estado concreto e
subjetivo de uma pessoa e sua conformidade com certos critérios baseados no princípio
ético moral da boa-fé.
Além disso, a razoabilidade e a equidade das ações dos participantes de relações jurídicas
civis devem ser assumidas de acordo com o parágrafo 4 do artigo 8 do Código Civil da
República do Cazaquistão de boa-fé. Esta norma marca a boa-fé como uma presunção.
Também deve ser levado em consideração que a categoria de boa-fé tem um conteúdo
moral e ético. Portanto, na legislação civil da República do Cazaquistão não há definição
do conceito de "boa-fé", pois, no caso de tal definição, a boa-fé não poderia ser usada
como uma avaliação moral da questão da proteção dos direitos civis.
No entanto, permanece por resolver a questão de se é possível considerar os requisitos
de boa-fé mencionados no parágrafo 4 do artigo 8 do Código Civil do Cazaquistão como
um princípio da lei. Ao mesmo tempo, a boa-fé na legislação civil da República do
Cazaquistão não foi elevada à categoria dos princípios básicos de direito civil
mencionados no artigo 2 do Código Civil da República do Cazaquistão. Isto provoca vários
problemas na prática da aplicação da lei.
No entanto, a especificação do termo “princípio” no texto do Código Civil da República do
Cazaquistão em relação aos requisitos de boa-fé poderia remover a maioria das questões
relacionadas ao conteúdo dos princípios básicos do direito civil.
Tendo em conta a controvérsia sobre a questão da relação entre os conceitos de
“princípios” e “princípios básicos”, parece necessário esclarecer no texto do Código Civil
que a boa-fé é um princípio geral do direito privado. Isto fortaleceria o princípio de boa-
na legislação civil da República do Cazaquistão e teria um impacto positivo na
circulação civil, fortalecendo significativamente a proteção dos direitos dos seus
participantes.
Além disso, a consolidação da boa-fé como princípio do direito privado ampliará
significativamente o âmbito da aplicação desta instituição, estendendo o seu efeito a
todas as relações jurídicas civis, incluindo relações sobre criação, mudança e cessação
de direitos e obrigações civis, proteção de direitos e interesses.
O possível risco dessa abordagem é que os tribunais obtenham uma ferramenta forte
para regular as relações na forma de boa-fé. Este risco pode ser compensado através do
controlo sobre a prática judicial que pode ser realizada pelo Supremo Tribunal da
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República do Cazaquistão. Atualmente, o Supremo Tribunal da República do Cazaquistão
tem experiência em generalização e explicação da prática judicial. Essa experiência pode
ser estendida à aplicação do princípio da boa-fé pelos tribunais.
Na República do Cazaquistão, as explicações legislativas do Supremo Tribunal são
atribuídas à lei em vigor e o adotadas na forma de decisões regulatórias, ou seja, como
atos que contêm as normas da lei, embora a doutrina científica não tenha desenvolvido
um consenso sobre a natureza legal de tais atos jurídicos do Supremo Tribunal da
República do Cazaquistão.
Além das explicações legislativas, o Supremo Tribunal da República do Cazaquistão
também publica coleções com explicações sobre a prática jurídica - Ylgi, que no
Cazaquistão significa “amostra”. Apesar de essas coleções não serem atos legais
regulamentares oficiais, eles têm uma opinião respetiva para os tribunais. Alguns
cientistas do Cazaquistão apresentaram a ideia de dar a essas coleções uma certa força
legal.
Como parte da reforma em andamento do direito privado, tentamos dar a essas coleções
um caráter recomendatório, uma espécie de análogo da jurisprudência (Konussova e
Nesterova, 2016).
Infelizmente, essa ideia não teve o apoio de advogados académicos do Cazaquistão e,
de momento, já não faz parte do projeto de reforma do direito privado.
No entanto, o Supremo Tribunal da República do Cazaquistão pode adotar decisões
regulatórias que esclareçam os tribunais inferiores da prática de aplicar certas normas.
É necessário delinear os limites do princípio da boa-fé por meio dessas resoluções, que,
em última instância, protegem contra o abuso desse princípio pelos tribunais.
Em consideração ao exposto, é necessário incluir a boa-fé no artigo 2 do Código Civil da
República do Cazaquistão, bem como esclarecê-lo como um princípio de direito. Deve-se
ter em mente que o atual artigo 8 do Código Civil da República do Cazaquistão limita a
aplicação do princípio da boa-fé. Assim, parece necessário estender esse princípio a todas
as relações civis, inclusive as relativas à criação, mudança e rescisão de direitos e
obrigações civis.
Conclusões
No decurso da reforma do direito privado da República do Cazaquistão, tornou-se
necessário expandir o princípio da liberdade contratual. Nesse sentido, os promotores do
projeto de lei futura vieram com a opção de uma possível solução para o problema.
Inicialmente, o mais lógico era a opção de rever as normas obrigatórias da legislação
civil da República do Cazaquistão para expandir o início padrão da legislação.
No entanto, essa opção exigia muito trabalho para ir além do projeto para implementar
certas disposições da lei inglesa e não podia cobrir todas as normas da lei civil. Além
disso, no âmbito de um projeto, é impossível determinar todas as opções possíveis para
abusar do princípio da liberdade contratual ou as exceções a este princípio.
Nesse sentido, decidiu-se manter duas opções possíveis para expandir o princípio da
liberdade contratual.
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Assim, uma maneira possível de expandir o princípio da liberdade contratual é transferir
para os tribunais o direito de interpretar regras controversas da lei que não contenham
indicações de natureza obrigatória ou por decreto. Esta opção é usada na Rússia e em
vários outros estados.
Se a norma não proibir a aprovação de outras disposições, nem uma referência direta ao
direito das partes em concordar com outras disposições, a norma será determinada pela
interpretação do tribunal.
Como alternativa, foi possível aceitar uma abordagem que pressupõe a natureza
discricionária da lei, se ela não tiver uma prescrição obrigatória. No entanto, essa
abordagem pode acarretar casos de abuso do princípio da liberdade contratual. No
entanto, essa abordagem pode acarretar casos de abuso do princípio da liberdade
contratual, pois exigirá, tal como na primeira versão, a revisão de um grande número de
normas que permitam às partes abster-se. No fim, decidiram-se por esta opção.
A fim de amenizar possíveis efeitos negativos da expansão da liberdade contratual, o
princípio da boa-fé também foi significativamente fortalecido. A expansão do princípio
da liberdade contratual implicará a inevitabilidade de melhorar o sistema de controlo do
comportamento injusto dos participantes na rotatividade civil. Nesse sentido, o princípio
da boa-fé pode ser uma maneira de limitar o princípio da liberdade contratual.
Uma dificuldade significativa foi causada pela exclusão da reforma do direito privado do
fortalecimento da prática judicial. No entanto, mesmo os atuais mecanismos legislativos
na República do Cazaquistão podem resolver o problema de aplicar o princípio da “boa-
fé”. Além das mudanças regulatórias, é necessário melhorar sistematicamente a cultura
de aplicação. O país adquiriu experiência em generalizar e esclarecer a prática judicial
sob a liderança do Supremo Tribunal da República do Cazaquistão. Essa experiência pode
ser estendida aplicando o princípio da boa-fé.
Atualmente, o projeto de implementação das normas e disposições do direito contratual
inglês no direito civil da República do Cazaquistão está quase concluído.
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Vol. 10, Nº. 2 (Novembro 2019-Abril 2020), pp. 162-175
A OBSERVÂNCIA DO DIREITO HUMANO À LIBERDADE CONTRA A TORTURA NA
ATIVIDADE PROFISSIONAL DA POLÍCIA NACIONAL DA UCRÂNIA (Artigo 3 da
Convenção Para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais)
Andrii Voitsikhovskyi
voitsihovsky@gmail.com
Professor Associado do Departamento de Direito Constitucional e Internacional da Faculty 4 da
Kharkiv National University of Internal Affairs (Ucrânia). Doutorado em Direito.
Oleksandr Bakumov
bakumov.aleks@gmail.com
Professor Associado do Departamento de Direito Constitucional e Internacional da Faculty 4 da
Kharkiv National University of Internal Affairs (Ucrânia). Doutorado em Direito.
Olena Ustymenko
ustimenko2312@gmail.com
Professora Associada do Departamento de Direito Constitucional e Internacional da Faculty 4 da
Kharkiv National University of Internal Affairs (Ucrânia). Doutorada em Direito.
Vadym Seliukov
vadim.selyukov@gmail.com
Professor Associado do Departamento de Atividade Administrativa da Polícia da Kharkiv National
University of Internal Affairs (Ucrânia). Doutorado em Direito.
Resumo
O artigo considera a questão da observância pelos órgãos da Polícia Nacional da Ucrânia do
direito humano à liberdade contra a tortura ou tratamento ou punição desumana. A prática
do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos testemunha que os ucranianos procuram cada vez
mais o Tribunal por violações da proibição de tortura ou tratamento desumano pela polícia.
Os autores observaram que a responsabilidade dos órgãos da Polícia Nacional da Ucrânia de
impedir violações dos direitos humanos à liberdade contra a tortura ou tratamento desumano
foi consagrada na legislação nacional e em documentos legais internacionais, especialmente
na Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais de 1950. A
aplicação das disposições da Convenção, bem como das decisões do Tribunal Europeu dos
Direitos Humanos, como parte integrante da sua prática policial, contribuirá para o
desenvolvimento da proteção dos direitos humanos na Ucrânia. Resumindo a prática do
Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em relação à Ucrânia a respeito das violações do
artigo 3 da Convenção, os autores da pesquisa destacaram certos requisitos vinculativos para
os órgãos da Polícia Nacional da Ucrânia. A observância da legislação nacional, a aplicação
das disposições da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades
Fundamentais e a prática do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos contribuirão para
aumentar a confiança do público e o respeito pelas agências de aplicação da lei, incluindo a
Polícia Nacional da Ucrânia e melhorarão a eficiência do sistema judiciário ucraniano.
Palavras-chave
Tortura ou tratamento desumano ou punição; Tribunal Europeu dos Direitos Humanos;
Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais; Polícia
Nacional da Ucrânia.
Como citar este artigo
Voitsikhovskyi, Andrii; Bakumov, Oleksandr; Ustymenko, Olena; Seliukov, Vadym (2019). "A
Observância do Direito Humano à Liberdade contra a Tortura na Atividade Profissional da
Polícia Nacional da Ucrânia (Artigo 3 da Convenção Para a Proteção dos Direitos Humanos e
das Liberdades Fundamentais)". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 10, N.º
2, Novembro 2019-Abril 2020. Consultado [em linha] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.2.11
Artigo recibido em 3 de Março de 2019 e aceite para publicação em 28 de Agosto de 2019.
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Vol. 10, Nº. 2 (Noviembre 2019-Abril 2020), pp. 162-175
A observância do Direito Humano à liberdade contra a tortura na atividade profissional da Plícia Nacional da
Ucrânia (Artigo 3 da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais)
Andrii Voitsikhovskyi, Oleksandr Bakumov, Olena Ustymenko, Vadym Seliukov
163
A OBSERVÂNCIA DO DIREITO HUMANO À LIBERDADE CONTRA A TORTURA NA
ATIVIDADE PROFISSIONAL DA POLÍCIA NACIONAL DA UCRÂNIA (Artigo 3 da
Convenção Para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais)
1
Andrii Voitsikhovskyi
Oleksandr Bakumov
Olena Ustymenko
Vadym Seliukov
Introdução
Uma das tarefas mais importantes do Estado é cumprir o Artigo 3 da Constituição da
Ucrânia sobre a proteção da vida e saúde humanas, honra e dignidade, inviolabilidade e
segurança. A fim de proteger esses direitos e liberdades dos cidadãos da Ucrânia, a Lei
Fundamental (Artigo 28) declara que ninguém será submetido a tortura ou a tratamentos
ou penas desumanos ou degradantes [1].
O cumprimento dos requisitos constitucionais especificados é o principal dever dos órgãos
policiais da Ucrânia, em particular os órgãos da Polícia Nacional da Ucrânia, que tomam
medidas para eliminar as ameaças à vida e à saúde das pessoas e à segurança pública
resultantes de uma ofensa criminal (Artigo 23 da Lei da Ucrânia “Sobre a Polícia
Nacional”) [2].
A adesão ao Conselho da Europa e a ratificação da Convenção para a Proteção dos
Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais de 1950, em 17 de julho de 1997,
incorporou a Ucrânia no sistema europeu de proteção dos direitos humanos, o que inclui
não apenas a obrigação de proteger e observar os direitos e liberdades consagrados na
Convenção, mas também o reconhecimento da jurisdição do Tribunal Europeu dos
Direitos Humanos. Ao mesmo tempo, isso significa que as atividades de todas as
autoridades públicas da Ucrânia, em particular as agências judiciais e de aplicação da lei,
as suas decisões e procedimentos utilizados, não devem entrar em conflito com as
disposições da Convenção.
1
A tradução deste artigo foi financiada por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e
a Tecnologia no âmbito do projeto do OBSERVARE com a referência UID/CPO/04155/2019, e tem como
objetivo a publicação no JANUS.NET. Texto traduzido por Cláudia Tavares.
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164
A observância dos direitos humanos pela Polícia Nacional da Ucrânia está a tornar-se
cada vez mais objeto de discussão nos media, na comunidade académica e é o foco de
um debate político contencioso. Certos casos de tortura, maus-tratos, uso de provas
obtidas por meio de tratamentos desumanos, falta de investigação eficaz de solicitações
e comunicações sobre esta questão provocam uma resposta pública séria e afetam
adversamente a credibilidade das autoridades policiais e de todo o sistema nacional de
aplicação da lei.
De acordo com a Cláusula 4 do Artigo 7 da Lei da Ucrânia “Sobre a Polícia Nacional da
Ucrânia”: “A polícia, sob quaisquer circunstâncias, está proibida de promover, executar,
incitar ou tratar com tolerância qualquer forma de tortura, tratamento ou punição cruel,
brutal ou degradante. No caso de identificação de tais ações, cada polícia deve tomar
imediatamente todas as medidas possíveis para a sua repressão e é obrigatório relatar à
administração direta os factos das torturas e as suas intenções de aplicação.” [2]. No
entanto, a prática do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos testemunha que os
ucranianos recorrem cada vez mais ao Tribunal porque foram submetidos a tortura ou
tratamento desumano por agentes da lei, incluindo a Polícia Nacional da Ucrânia. O
Tribunaladotou muitas decisões sobre a violação da Ucrânia do Artigo 3 "Proibição da
Tortura" da Convenção sobre Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais (182 casos
no período de 2007 a 2014) [3].
O estudo das decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos relativas à violação da
proibição de tortura ou tratamento ou punição desumana promove a interação do direito
europeu com o direito nacional dos estados nas convenções especificadas, permitindo
que cumpram devidamente as suas obrigações legais internacionais. Além disso, em
2006, foi adotada a Lei da Ucrânia “Sobre a Implementação de Decisões e Aplicação da
Prática do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos”. De acordo com o artigo 17, a prática
deste tribunal é uma fonte da lei ucraniana, ou seja, as decisões judiciais devem ser
aplicadas juntamente com as leis e estatutos da Ucrânia [4], no entanto, a prática mostra
que a polícia, na realidade, ignora os requisitos das decisões acima mencionadas.
Estes fatores determinam a necessidade de identificar o nível e a natureza das violações
dos direitos humanos à liberdade contra a tortura ou tratamento desumano pela Polícia
Nacional da Ucrânia, analisar a prática do Tribunal Europeu de Direitos Humanos em
relação à violação do Artigo хъ da Ucrânia da Convenção para a Proteção dos Direitos
Humanos e das Liberdades Fundamentais para fins de generalização científica e
desenvolvimento de requisitos e normas de conduta, claros e compreensíveis para os
oficiais da polícia, que devem cumprir estritamente no curso das atividades profissionais,
o que indica a atualidade do objeto desta investigação.
A novidade académica dos resultados obtidos é que a análise abrangente deu a
possibilidade de formular uma afirmação cientificamente fundamentada, de natureza
teórica e aplicada, totalmente direcionada e que pode ser utilizada na prática para
abordar questões relacionadas à observância adequada dos direitos humanos à liberdade
contra a tortura ou tratamento desumano pelos órgãos da Polícia Nacional da Ucrânia.
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Estimativa da observância do direito humano à liberdade contra a tortura
na atividade profissional da Polícia Nacional da Ucrânia
Os autores do manuscrito destacaram a consolidação legislativa do direito humano à
liberdade contra a tortura ou tratamento desumano e, mais uma vez, provaram o seu
caráter absoluto, do qual não se pode retroceder em nenhuma circunstância. A polícia é
uma das instituições estatais cujas atividades visam respeitar os direitos e liberdades
humanos, incluindo a inadmissibilidade de tortura ou tratamento desumano.
Infelizmente, a prática do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos testemunha violações
sistemáticas pelos órgãos da Polícia Nacional da Ucrânia do artigo 3 da Convenção sobre
Direitos Humanos e Liberdades Fundamentais. Afirma-se que o resultado de tais
violações dos direitos humanos foi a perda da confiança do público na polícia e no sistema
nacional de aplicação da lei em geral.
Note-se que os mecanismos nacionais atribuídos à polícia incluem um papel importante
no respeito e na garantia do direito humano à liberdade contra a tortura ou de
tratamentos ou penas desumanos ou degradantes. Resumindo a prática do Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos em relação às violações do artigo 3 da Convenção sobre
a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, os autores
desenvolveram os requisitos para as autoridades ucranianas e a Polícia Nacional da
Ucrânia para promover a proteção efetiva dos direitos humanos e, é claro, aumentar a
confiança do público e o respeito pela polícia e por todo o sistema nacional de aplicação
da lei.
Um dos valores fundamentais de uma sociedade democrática, consagrado no artigo 3 da
Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, é a
proteção da integridade sica de uma pessoa, incluindo de causar dor, que leva a um
intenso sofrimento físico. Por um lado, o artigo 3 desta Convenção estabelece que
“ninguém será submetido a tortura nem a tratamentos ou penas desumanos ou
degradantes” [5]. rios outros instrumentos legais internacionais também proíbem
tortura e tratamento desumano: O Artigo 5 da Declaração Universal dos Direitos
Humanos, de 1948, o Artigo 7 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, de
1966, a Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou Penas
Cruéis, Desumanos ou Degradantes, de 1984, a Convenção Europeia para a Prevenção
da Tortura e dos Tratamentos ou Castigos Desumanos ou Degradantes, de 1987, as
Regras Padrão Mínimas para o Tratamento de Prisioneiros, de 1955, o Código de Conduta
para Funcionários Responsáveis pela Aplicação da Lei, de 1979 e muitos outros.
Tortura e tratamento desumano o uma das violações dos direitos humanos que causam
a maior preocupação da comunidade global hoje. Durante muito tempo, a tortura e o
tratamento desumano foram os principais meios de obtenção de provas e foram
amplamente aplicados durante as investigações pelas agências policiais, incluindo os
órgãos da Polícia Nacional da Ucrânia (no passado, as milícias). Ao mesmo tempo, o
fenómeno da tortura e do tratamento desumano nas agências policiais permanece
escassamente explorado. Isto deve-se à longa natureza fechada deste assunto, que
existe muitos anos, um demonstrativo não reconhecimento pelos funcionários do
caráter e da escala desse fenómeno.
Como regra, a tortura e o tratamento desumano quase não existem separadamente de
outros tipos de conduta oficial. Na maioria dos casos, tortura e tratamento desumano
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são os meios pelos quais um agente da polícia tenta obter informações de uma pessoa
sobre a prática de um crime por ele ou outra pessoa, a fim de alcançar o resultado
pretendido nas atividades oficiais.
A negação da verdadeira escala e o sistema de tortura e tratamento desumano na Polícia
Nacional da Ucrânia, a atenção apenas a casos específicos, a busca de vários culpados e
uma queixa sobre financiamento insuficiente - esta é a abordagem do Ministério da
Administração Interna da Ucrânia para a solução desse problema. Embora a liderança do
estado e do ministério tenha mudado, em muitos aspetos as abordagens permaneceram
as mesmas: a reforma desses aspetos do impacto da escala de violência policial ilegal é
insuficiente; as estatísticas sobre violações cometidas por funcionários da Polícia Nacional
da Ucrânia não refletem o verdadeiro estado das coisas; o procedimento para receber
reclamações sobre violação e o procedimento para a sua investigação ainda não são
transparentes e eficazes.
As estatísticas mostram que, na estrutura dos crimes contra a vida e a saúde de uma
pessoa, a tortura na Ucrânia equivale a: em 2013 - 51 crimes; 2014 - 54; 2015 - 73;
2016 - 62; 2017 82, 2018 163 [6]. Além disso, os agentes da polícia usam
ilegalmente a força física e meios especiais.
Os processos criminais por golpes corporais deliberados, tortura ou outros atos violentos
cometidos por agentes da polícia em relação a suspeitos ou acusados, geralmente, são
limitados a uma investigação oficial interna, e apenas 3% dos processos o levados a
tribunal (na maioria dos casos, esses processos têm graves consequências ou a chamada
resposta pública, causando indignação pública em larga escala).
Um tal sistema de resposta a violações dos direitos humanos à liberdade contra a tortura
ou tratamento desumano por agentes da Polícia Nacional da Ucrânia dificilmente pode
ser considerado eficaz. É por isso que o vel de confiança nos meros dados para
avaliar o alcance da violência ilegal na polícia ainda é baixo. Além disso, o sistema ainda
tem um impacto no número desses relatórios: toda a tima de tortura ou tratamento
desumano deve denunciá-lo à polícia ou ao gabinete do promotor (que geralmente delega
o caso à polícia para investigação). Não faz sentido recorrer à mesma agência cujo oficial
violou os direitos humanos. É por isso que a maioria das vítimas não o denuncia em lugar
nenhum, deixando o real alcance da violência escondido das estatísticas. Assim, os
métodos de recolha e avaliação de estatísticas sobre violações dos direitos humanos à
liberdade contra a tortura ou tratamento desumano pela polícia permaneceram na
realidade os mesmos de antes.
Para estudar os problemas de violência ilegal pelos órgãos da Polícia Nacional da Ucrânia,
o Instituto de Pesquisa Social de Kharkiv e o Grupo de Proteção dos Direitos Humanos
de Kharkiv conduziram um estudo sociológico de monitorização, durante o qual foram
obtidas as seguintes estimativas:
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Tabela 1 - Número estimado de vítimas de violência física ilegal cometidas pela polícia entre 2004-
2017
Ano
Número de
vítimas (%)
Número estimado de
feridos
2004
2,73
1,026,616
2004-09
3,50
1,319,500
2010
2,10
791,700
2011
2,6
980,200
2015
1,30
409,080
2017
2,0
641,326
Fonte: Monitorynh nezakonnoho nasylstva v militsii (2004-2017 rr.) / Kol. avt. Kharkiv,
Kharkivskyi instytut sotsiolohichnykh doslidzhen, 2017. 17 p.
Estes resultados do estudo sociológico de monitorização diferem significativamente das
estatísticas oficiais. Estes não são resultados finais, mas possibilitam avaliar o nível real
da violação do direito humano à liberdade contra a tortura ou tratamento desumano
cometida pelos órgãos da Polícia Nacional da Ucrânia.
Tabela 2 - Número estimado de vítimas de tortura cometida pela polícia durante investigações
entre 2004-2017
Ano
Número de
vítimas (%)
Número estimado de
feridos
2004
0,25
93,498
2004-09
0,3
113,331
2010
0,2
75,400
2011
0,3
113,331
2015
0,2
62,935
2017
0,3
96,195
Fonte: Monitorynh nezakonnoho nasylstva v militsii (2004-2017 rr.) / Kol. avt. Kharkiv,
Kharkivskyi instytut sotsiolohichnykh doslidzhen, 2017. 19 p.
A atitude dos ucranianos em relação ao perigo de se tornarem vítimas de violência ilegal
pelas autoridades policiais é confirmada pelos resultados deste estudo de monitorização.
(em 2009 2.5%, em 2010 1.8%, em 2011 1.5%, em 2015 1.4%, em 2017
3.2%). Ao mesmo tempo, este indicador diminuiu gradualmente, ano após ano, com
exceção de 2017 [7, p. 27].
Os seguintes fatores de violação do direito humano à liberdade contra a tortura e
tratamento desumano pelos órgãos da Polícia Nacional da Ucrânia foram apresentados
pelos ucranianos como principais:
- Ilegalidade dos agentes que usam métodos ilegais de trabalho - (43.5%);
- Recrutamento deficiente de pessoal, em resultado do qual pessoas com inclinações
sádicas entram para a polícia (34.7%);
- Baixo nível profissional e cultural dos agentes da polícia (30.5%) [7, p. 36].
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As responsabilidades das agências nacionais de aplicação da lei e, em particular, da
Polícia Nacional da Ucrânia para impedir violações da proibição de tortura ou tratamento
desumano são o resultado de um longo processo de estabelecimento de normas da
legislação internacional e nacional, assim como de um processo não menos longo e
discutível da sua coerência.
Entre todas as ferramentas jurídicas internacionais existentes, a Convenção para a
Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais de 1950 é a mais
respeitada pelos Estados, na prática. Isso deve-se, em particular, ao facto de que esta
Convenção é juridicamente vinculativa para os Estados que a ela aderiram e as decisões
dos órgãos de supervisão da Convenção vinculam os Estados signatários. Além disso, a
monitorização do cumprimento adequado dos direitos humanos é realizada pelo Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos, cujas atividades são regulamentadas pela Convenção,
pelo Regulamento do Tribunal e pelo processamento de pedidos.
Ao ratificar a Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades
Fundamentais, a Ucrânia reconheceu a jurisdição obrigatória do Tribunal Europeu dos
Direitos Humanos.
De acordo com o Artigo 32, Parte 1, da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos
e das Liberdades Fundamentais, a interpretação das suas normas é da competência
exclusiva do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos. Portanto, nesta perspetiva, a
jurisprudência do Tribunal constitui a interpretação internacional oficial da Convenção
para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais [5].
Enquanto exerce os seus poderes para proteger os direitos humanos garantidos pela
Convenção, em particular o direito à liberdade contra a tortura ou tratamentos ou
castigos desumanos ou degradantes, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos toma
medidas destinadas a aproximar as leis dos Estados e adota decisões que afetam
diretamente os seus sistemas legais. O principal objetivo do Tribunal é interpretar e
expressar a sua posição sobre a prática da aplicação dos direitos e liberdades
proclamados na Convenção. Prevê-se que o Estado, alterando o seu sistema jurídico
como parte da implementação da decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos
referente a uma queixa de um de seus cidadãos, impeça automaticamente uma violação
semelhante dos direitos de outros cidadãos.
Ao mesmo tempo, os Estados que não estão sujeitos à decisão do Tribunal Europeu dos
Direitos Humanos, mas que adotam práticas legislativas e de aplicação da lei
semelhantes às que o Tribunal considera ilegais em relação a outras partes da
Convenção, podem não esperar pela decisão do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos
para fazer alterações oportunas na sua legislação nacional. Uma tal posição do Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos é particularmente relevante em termos de restauração e
observância dos direitos humanos fundamentais, incluindo o direito à liberdade contra a
tortura ou tratamento ou punição desumana ou degradante, uma vez que o Tribunal
estabelece certos padrões para a aplicação doméstica interna do artigo 3 da Convenção
e sua interpretação.
A natureza incondicional da garantia da proteção dos direitos contida no Artigo 3 também
significa que, em circunstância alguma, de acordo com a Convenção ou outra disposição
do direito internacional, ações que violem este artigo poderão ser justificadas. Por outras
palavras, não fatores que possam ser considerados justificativos para atos proibidos
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nos sistemas jurídicos internos (conflitos armados, estado de emergência,
comportamento da vítima, diferentes circunstâncias externas, etc.) [8, pp. 380-381].
A resposta à pergunta sobre o que é exatamente uma “tortura, tratamento ou punição
desumana ou degradante” depende das circunstâncias do caso particular.
Ao dividir os termos “tortura” e “tratamento desumano”, o Tribunal Europeu dos Direitos
Humanos aplicou o princípio de determinar a gravidade do sofrimento, mas sob a
influência da Convenção das Nações Unidas contra a Tortura e Outros Tratamentos ou
Punições Cruéis, Desumanos ou Degradantes de 1984, transformou a posição, agregando
às principais diferenças o objetivo e a natureza intencional de tais ações. Considera-se
tratamento desumano tanto as ões ativas como a omissão em atuar por parte das
autoridades ou dos seus funcionários, que causaram apenas o sofrimento moral do
requerente.
outra diferença entre os conceitos de “tortura”, “tratamento desumano” e “tratamento
degradante”, além do objetivo, intenção, gravidade do sofrimento, que é o
comprometimento da dignidade de uma pessoa em particular. Foi investigado que tortura
e tratamento desumano o ataques à dignidade humana no seu significado absoluto,
enquanto que o tratamento degradante visa denegrir a dignidade de um indivíduo em
particular. O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos também incluiu as condições para
a detenção de reclusos na qualificação de tratamento degradante, enfatizando o caráter
universal do disposto no artigo 3 da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e
das Liberdades Fundamentais, segundo o qual os detidos ou presos têm todos os direitos
inerentes à dignidade de cada pessoa.
Considerando a questão da violação do artigo 3 da Convenção para a Proteção dos
Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, o Tribunal Europeu dos Direitos
Humanos baseia-se na doutrina do nível mínimo de severidade. A essência dessa
doutrina, em poucas palavras, é que, para se enquadrar no âmbito do Artigo 3, os maus-
tratos devem estar no nível mínimo de severidade.
A prática do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos destaca três conceitos básicos,
contidos no conteúdo do artigo 3 da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e
das Liberdades Básicas no que diz respeito ao grau de gravidade de um tratamento:
- Tortura é um tratamento desumano destinado a obter qualquer informação ou
confissão para punição adicional;
- Tratamento ou punição desumana é um comportamento que causa deliberadamente
sofrimento moral ou físico sério e não deve ser justificado na situação em questão;
- Tratamento ou punição degradante é um comportamento que humilha de forma
selvagem um indivíduo diante dos outros e o obriga a desistir de sua vontade ou
consciência.
Na avaliação do nível de gravidade, de acordo com o Tribunal Europeu dos Direitos
Humanos, factos como sexo, idade e condição de saúde da vítima ganham particular
importância. A doutrina do próprio nível mínimo de severidade é usada para separar
tortura de tratamento e punição desumano ou degradante [9].
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Resumindo, a prática do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos em casos de violação
do direito humano à liberdade contra a tortura ou tratamento ou punição desumano ou
degradante, devem ser apresentados pelo menos 5 dos seguintes requisitos em relação
ao tratamento de pessoas detidas e presas aos órgãos da Polícia Nacional da Ucrânia:
1. Dever de relatar qualquer lesão ocorrida durante uma permanência sob a jurisdição
das autoridades policiais.
2. Dever de fornecer explicações para cada lesão ocorrida durante uma permanência
sob a jurisdição das autoridades policiais.
3. Dever de fornecer explicações sobre o tratamento com uma pessoa durante sua
permanência sob a jurisdição das autoridades policiais.
4. Dever de fornecer explicações sobre as causas da morte e o tratamento médico
fornecido a essa pessoa até à sua morte, se a pessoa morrer durante a detenção.
5. Dever de fornecer uma explicação satisfatória e plausível sobre as causas da morte
se uma pessoa morreu enquanto estava sob a jurisdição das autoridades policiais
[10].
Análise das Sentenças do Tribunal Europeu de Direitos Humanos
Referentes a Violações do Artigo 3 da Convenção para a Proteção dos
Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais
Como parte deste estudo, é importante esclarecer os requisitos adicionais contidos nas
decisões do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos referentes à Ucrânia em relação às
violações do artigo 3 da Convenção que vincula os órgãos da Polícia Nacional da Ucrânia.
A seguir, examinaremos essa parte da prática do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos.
O Caso “Kaverzin v. Ukraine” (2013). Em 12 de janeiro de 2001, Kaverzin O. foi detido
em Kharkiv por oficiais da milícia por suspeita de cometer vários assassinatos e roubos.
Após a detenção, o requerente foi levado para o posto de micia, onde teria sido torturado
por oficiais desconhecidos da milícia, a fim de obter testemunho de cometer crimes.
Segundo o requerente, durante esses maus tratos, que continuaram durante vários dias,
ele sofreu uma lesão ocular que acabou por resultar numa completa perda de visão. O
requerente reclamou que as autoridades estatais não lhe forneceram tratamento médico
adequado, resultando em incapacidade.
O requerente reclamou que não houve uma investigação efetiva dos espancamentos e
torturas dos oficiais da milícia. Além disso, na colónia de Dnipropetrovsk, apesar de sua
cegueira, cada vez que ele era retirado da cela e durante as breves visitas de membros
da família, era algemado.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, depois de considerar o caso, observou que
uma violação do artigo 3 da Convenção. O Tribunal reitera que o artigo 3 da Convenção
exige a investigação cuidadosa de queixas razoáveis de maus-tratos. Isso significa que
as autoridades devem sempre tentar de boa-fé descobrir o que aconteceu e não confiar
em conclusões precipitadas e irracionais para encerrar o caso criminal. O Tribunal
também considera que a não prestação de cuidados médicos necessários às pessoas em
locais de detenção, que é de responsabilidade do Estado, é uma violação do artigo 3 da
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171
Convenção. O Tribunal considera que o uso de algemas pelo requerente na colónia de
Dnipropetrovsk foi um tratamento desumano e degradante e que houve uma violação do
artigo 3 da Convenção [3].
O caso “Kulik v. Ukraine” (2015). Em 4 de maio de 2003, Kulik V. foi preso por suspeita
de roubar pepinos de uma estufa numa fazenda de hortaliças, bem como por cometer
um crime administrativo (desobediência deliberada e resistência a oficiais da milícia).
Segundo o requerente, no mesmo dia, os milicianos espancaram-no na
Chervonozavodskyi District Militia Station, em Kharkiv, forçando-o a confessar o roubo.
Subsequentemente, o requerente concedeu provas confessionais.
Em 5 de maio de 2003, o requerente foi ao hospital para assistência médica. O médico
registou as numerosas lesões no corpo do requerente e diagnosticou-o com uma
concussão cerebral e um possível nariz fraturado. O requerente foi internado no hospital
para um internamento para tratamentos relacionados com os ferimentos sofridos.
A 8 de julho de 2003, o requerente foi examinado por um psiquiatra que o diagnosticou
com um distúrbio psiquiátrico.
O requerente reclamou, nos termos do artigo 3 da Convenção, que tinha sido submetido
a maus-tratos por oficiais da milícia e que tinha sido feita uma investigação efetiva do
incidente.
O Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, depois de analisar o caso, chegou à conclusão
de que a lesão corporal do requerente era grave o suficiente e que sua queixa de maus-
tratos era razoável nos termos do artigo 3 da Convenção, exigindo, portanto, uma
investigação efetiva a ser conduzida pelas autoridades nacionais.
O Tribunal considera que as provas médicas disponíveis no caso são suficientes para
concluir que, em 4 de maio de 2003, na data em que o requerente foi detido e estava na
estação da milícia, sofreu uma concussão cerebral e numerosos ferimentos corporais. As
provas médicas também sugerem que a partir dessa data ele teve uma perturbação
psicológica. Nessas circunstâncias, o Tribunal decidiu que o Estado deveria ser
responsabilizado pelos maus-tratos que deveriam ser qualificados como tratamento
desumano e degradante. Portanto, houve uma violação do artigo 3 da Convenção e o
Estado devia ser responsabilizado por ela [3].
O caso Serikov v. Ukraine” (2015). Em 16 de maio de 2008, Serikov S. foi detido por
oficiais da micia e enviado para o Departamento da Cidade de Kharkiv da Administração
Principal do Ministério de Assuntos Internos da Ucrânia na região de Kharkiv.
Durante a busca aos pertences pessoais do requerente, a milícia encontrou um pacote
com uma substância que, como ficou estabelecido mais tarde, verificou-se ser canábis.
Segundo o requerente, foi maltratado pela milícia para fazê-lo confessar na estação de
milícia. Em particular, argumentou que foi ameaçado com violação, espancado com
pernas e braços na cabeça e no corpo, e também ameaçado com armas. Os oficiais
usaram o "enforcamento palestiniano"; com as mãos algemadas atrás das costas, ele foi
pendurado a uma altura de um metro ou um metro e meio e depois atirado ao chão com
a cara para baixo. Perdeu a consciência várias vezes.
Em 17 de maio de 2008, o requerente procurou uma instituição médica, onde foi
diagnosticado com uma concussão cerebral, uma contusão de tecido mole da cabeça e
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do peito. O recorrente queixou-se de ter sido submetido a maus-tratos por oficiais da
milícia e de que as autoridades nacionais o tinham conduzido uma investigação efetiva
das suas alegações de maus-tratos. Ele referiu-se aos artigos 3 e 13 da Convenção.
Com base em todo o material disponível, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos
considera que todas as lesões corporais foram causadas ao requerente após o seu
encontro com oficiais da milícia em 16 de maio de 2008 e até que ele deixasse a estação
de milícias naquele dia. Por estas razões, o Tribunal considera que o requerente foi
submetido a maus-tratos, o Estado deve ser responsabilizado por isso e os mesmos
devem ser classificados como desumanos e degradantes. Nestas circunstâncias, o
Tribunal conclui que as autoridades nacionais não garantiram que as alegações de maus-
tratos do requerente fossem efetivamente investigadas. Portanto, houve uma violação
do aspeto substancial do artigo 3 da Convenção. [3].
O caso Pomiliaiko v. Ukraine” (2017). No início de novembro de 2008, equipamentos
foram subtraídos da empresa onde Pomiliaiko S. trabalhava. Em relação com o roubo,
ela foi convocada à Estação de Milícias do Distrito Ordzhonikidzevskiy em Kharkiv,
juntamente com seu empregado.
Tendo chegado à estação distrital, a requerente foi empurrada para o escritório,
algemada com as mãos atrás das costas, embora não demonstrasse resistência.
Os oficiais da milícia presentes intimidaram a requerente de forma a forçá-la a confessar
o roubo. Não conseguindo obter a sua confissão, os oficiais da milícia forçaram-na a
sentar-se numa cadeira, colocaram um saco de polietileno na cabeça e começaram a
sufocá-la. Ao mesmo tempo, bateram-lhe na cabeça, no rosto e nos lábios, para que ela
não mordesse o saco. A requerente perdeu a consciência várias vezes. Quando ela disse
aos oficiais da milícia que precisava de ir à casa de banho, um dos oficiais da polícia
atingiu-a no estômago e na cabeça. Ela perdeu a consciência novamente e urinou
involuntariamente. Ela recusou repetidamente e declarou a sua inocência. A requerente
foi obrigada a escrever uma declaração em como não tinha queixas sobre o tratamento
dos oficiais da milícia para com ela. No entanto, de 9 a 27 de novembro de 2008, ela
esteve internada devido a uma lesão craniocerebral fechada, concussão cerebral,
contusão de partes moles da cabeça, lesão de membros superiores e inferiores, lesão da
parede abdominal anterior, osteocondrose lombar e síndrome asténica.
A requerente queixou-se de ter sido submetida a tortura por oficiais da milícia e de que
não tinha havido uma investigação efetiva das suas queixas ao nível estatal. Embora a
requerente se tenha referido aos artigos 3 e 13 da Convenção, o Tribunal considerou
apropriado estudar esta queixa apenas nos termos do artigo 3 da Convenção.
Tendo em conta todas as considerações sobre esse assunto, o Tribunal Europeu dos
Direitos Humanos considera suficientemente estabelecido que a requerente foi submetida
aos maus tratos de que se queixou, o que é uma violação do artigo 3 da Convenção. [3].
Assim, com base nas decisões acima mencionadas do Tribunal Europeu dos Direitos
Humanos, as autoridades ucranianas e os órgãos da Polícia Nacional da Ucrânia o
obrigados a tomar as seguintes ações:
1. Um exame médico especial deve ser realizado após a denúncia sobre maus-tratos
ao lesado e seu advogado.
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2. As agências policiais são obrigadas a evitar casos em que a prisão de uma pessoa
possa ser interpretada como uma desculpa para ultrapassar a sua resistência interna
e obter confissões.
3. Usando a força contra pessoas detidas e presas, os agentes da polícia devem seguir
rigorosamente os princípios de necessidade e proporcionalidade.
4. A incapacidade de considerar oficiais civis culpados de violência ilegal contra uma
pessoa detida não pode eximir o Estado da responsabilidade. Portanto, no caso de
uma reclamação razoável por uma pessoa sobre maus-tratos por agentes da lei, o
estado deve conduzir uma investigação, que deve ser: oficial, eficaz, independente,
aberta ao controle público e deve oferecer a oportunidade de identificar os autores.
O último item merece atenção especial, não apenas porque é mencionado em muitos
casos contra a Ucrânia, mas também porque o acesso do público aos resultados de
investigações oficiais de maus-tratos é bastante problemático.
Hoje, a prática dos corpos da Polícia Nacional da Ucrânia fornece à própria tima, que
sofreu as ações ilegais da polícia, informações muito breves em caso de confirmação de
tal facto.
É claro que uma prática mal estabelecida como esta atenua as tentativas de organizações
não-governamentais de analisar o progresso da verificação oficial dos factos de tortura
e tratamento desumano e, portanto, contradiz diretamente os requisitos do Tribunal
Europeu dos Direitos Humanos em relação à disponibilidade de procedimentos para
controlo público. É por isso que a sociedade civil, por sua vez, considera necessário
estabelecer um objetivo para a administração do Ministério de Assuntos Internos e do
Ministério Público da Ucrânia desenvolver procedimentos para o acesso das instituições
da sociedade civil aos materiais das investigações.
Considerações Finais
“A proibição da tortura é absoluta, ou seja, não está sujeita a nenhuma limitação,
derrogação ou relativização” [11]. Resumindo o material apresentado, podemos concluir
que o problema da observância do direito humano à liberdade contra a tortura e
tratamento desumano nas atividades dos órgãos da Polícia Nacional da Ucrânia continua
a ser importante. Este facto é confirmado pelas inúmeras decisões do Tribunal Europeu
dos Direitos Humanos em relação à Ucrânia, sobre a violação do artigo 3 da Convenção
para a Proteção dos Direitos Humanos e das Liberdades Fundamentais, segundo as quais
a Ucrânia foi considerada um Estado que viola os direitos humanos à liberdade contra a
tortura ou tratamento ou castigo desumano ou degradante.
Tendo analisado certos casos do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos, as principais
obrigações dos estados nos termos do art. 3 da Convenção para a Proteção dos Direitos
Humanos e das Liberdades Fundamentais podem ser definidas. Da obrigação geral do
Estado de garantir direitos convencionais para cada pessoa sob a sua jurisdição, outras
obrigações derivam relacionadas à execução e observância de apenas um certo direito.
Essas obrigações podem ser negativas e positivas. A obrigação negativa dos Estados
consagrados no artigo 3 da Convenção tem natureza convencional e consiste em abster-
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se de qualquer ação que possa levar a uma violação desta disposição. As obrigações
positivas dos Estados assumem o uso de medidas razoáveis e adequadas para proteger
os direitos que uma pessoa tem sob a Convenção.
A proibição de tortura ou tratamento desumano, como uma obrigação internacional do
estado, determina correspondentemente a responsabilidade das agências policiais,
incluindo a Polícia Nacional da Ucrânia, de impedir a tortura ou tratamento desumano e
investigar efetivamente cada uma dessas manifestações.
Para reduzir o nível de tortura e tratamento desumano pelos oficiais da Polícia Nacional,
é aconselhável tomar as seguintes medidas:
- É necessário desenvolver um novo sistema para avaliar a efetividade das atividades
dos órgãos da Polícia Nacional da Ucrânia ao nível legislativo, que abole
completamente o chamado sistema de “quota de bilhetes” de avaliação do trabalho
policial necessário abolir o estabelecimento de planos para a divulgação de crimes
por um certo período de tempo);
- No caso da detenção de uma pessoa, os oficiais da polícia devem garantir o direito
de acesso a um advogado, o direito de ser examinado por um médico e o direito de
notificar um parente ou outro terceiro sobre essa detenção;
- O nível legislativo deve consagrar o dever dos órgãos da Polícia Nacional da Ucrânia
de registar (áudio e vídeo) todas as ões que ocorrem com a participação de
pessoas, independentemente do estatuto (detido, entregue ou visitante) que chegou
à polícia, com arquivamento e armazenamento de materiais de vídeo;
- A administração do Ministério da Administração Interna e da Polícia Nacional da
Ucrânia devem garantir o desenvolvimento de planos para o treino dos funcionários,
incluindo materiais didáticos sobre a proibição total da tortura ou tratamentos ou
punições desumanos ou degradantes, com o estudo do conteúdo de casos específicos
do Tribunal Europeu dos Direitos Humanos sobre a violação da Ucrânia e de outros
estados do Artigo 3 da Convenção para a Proteção dos Direitos Humanos e das
Liberdades Fundamentais, generalizando de forma clara e compreensível os
requisitos dos agentes da polícia e padrões de conduta que devem cumprir
estritamente nas suas atividades profissionais;
- Garantir o acesso do público ao progresso e aos resultados das investigações de
violações dos direitos humanos à liberdade contra a tortura e tratamento desumano
pela Polícia Nacional da Ucrânia.
A implementação dessas recomendações pela administração do Ministério da
Administração Interna e pela Polícia Nacional da Ucrânia contribui para garantir o
direito humano à liberdade contra a tortura ou tratamentos ou punições desumanos ou
degradantes no decorrer da atividade profissional da polícia e contribuirá para aumentar
a confiança e o respeito do público pela polícia e pelo sistema de aplicação da lei em
geral.
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