OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 10, Nº. 1 (Maio-Outubro 2019), pp. 45-67
AGENDA-SETTING E FRAMING NA POLÍTICA EXTERNA: O CASO DA COBERTURA
TELEVISIVA RUSSA E UCRANIANA DO CASO DA CRIMEIA
Yuliia Krutikova
Yuliia.krutikova@gmail.com
Licenciada e Mestre em Relações Internacionais, especialização em Estudos Europeus (Universidade de
Coimbra, Portugal). Realizou estágios profissionais na Embaixada de Portugal na Bulgária, na Navigator
Company, e no National System Limited Inter TV em Kiev
Maria Raquel Freire
rfreire@fe.uc.pt
Investigadora no Centro de Estudos Sociais e Professora Associada de Relações Internacionais da Faculdade
de Economia, Universidade de Coimbra (Portugal). É titular da cátedra Jean Monnet. Doutorada em Relações
Internacionais pela Universidade de Kent. Atualmente é diretora do Programa de Doutoramento em Política
Internacional e Resolução de Conflitos (CES|FEUC). Membro do Conselho de Administração da European
Studies Association (EISA). A sua investigação centra-se em estudos sobre a paz, em particular manutenção
e construção da paz; política externa, segurança internacional, Rússia e espaço pós-soviético. Tem publicado
em revistas especializadas com revisão por pares como o European Politics and Society, European Review of
International Studies, Journal of Balkan and Near Eastern Studies, East European Politics, European Security,
International Peacekeeping, International Politics, Asian Perspective, Global Society, La Revue Internationale
et Stratégique, Journal of Conflict, Security Development, e Relações Internacionais.
Sofia José Santos
sjs@fe.uc.pt
Professora Auxiliar Convidada na Faculdade de Economia e Investigadora Integrada do Centro de Estudos
Sociais, Universidade de Coimbra (Portugal). Investigadora associada no OBSERVARE, Universidade
Autónoma de Lisboa. Tem pós-graduação em Ciências da Comunicação, ISCTE-IUL, é doutorada e mestre em
Política Internacional e Resolução de Conflitos, Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra e licenciada
em Relações Internacionais pela mesma universidade. Foi investigadora de pós-doutoramento no
OBSERVARE/UAL e no CES e investigadora e coordenadora de média e comunicação no Promundo-Europa.
Pertenceu à equipa de investigação do Flemish Peace Institute como visiting scholar e foi visiting fellow na
Universiteit Utrecht. Foi cocoordenadora e coeditora do Boletim P@x, publicação periódica do Grupo de
Estudos para a Paz do NHUMEP. Os atuais interesses de investigação centram-se em questões relacionadas
com média e masculinidades; digital rights e contentious politics; literacia mediática; política internacional, e
representações mediáticas.
Resumo
O presente artigo procura analisar o papel que os meios de comunicação convencionais russos
e ucranianos desempenharam enquanto agenda-setters e produtores de framings subjetivos
no contexto da crise da Crimeia, examinando ao mesmo tempo a relação entre o Estado e os
meios de comunicação e o impacto da representação destes últimos nas opiniões públicas
nacionais. A análise revela que a agenda-setting e o framing ao nível das políticas dos estados
desempenharam um papel fundamental na formação da decisão e na construção da perceção,
destacando que a manipulação da informação através da construção narrativa é uma
ferramenta poderosa ao serviço da política. Este estudo contribui para validar a ideia que os
meios de comunicação podem ser entendidos como influenciadores-chave da agenda pública
à medida que surgem como os agentes mais relevantes na mediação política, tornando-se
assim um guardião funcional que tanto pode facilitar o discurso oficial como obstruí-lo.
Palavras chave
Agenda-setting, framing, política externa, Rússia, Crimeia
Como citar este artigo
Krutikova, Y; Freire, MR; Santos, SJ (2019). "Agenda-setting e framing na política externa: o
caso da cobertura televisiva russa e ucraniana do caso da Crimeia". JANUS.NET e-journal of
International Relations, Vol. 10, N.º 1, Maio-Outubro 2019. Consultado [online] em data da
última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.1.4
Artigo recebido em 24 de Outubro de 2018 e aceite para publicação em 9 de Fevereiro
de 2019
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AGENDA-SETTING E FRAMING NA POLÍTICA EXTERNA: O CASO DA COBERTURA
TELEVISIVA RUSSA E UCRANIANA DO CASO DA CRIMEIA
1
Yuliia Krutikova
Maria Raquel Freire
2
Sofia José Santos
Introdução
No contexto dos processos de decisão e de gestão em termos de política externa,
particularmente em alturas de crise, os meios de comunicação social desempenham um
papel crucial no tratamento e interpretação da informação (Gilboa, 2002) sendo, de todos
os atores discursivos existentes na sociedade, os mais eficientes na disseminação de uma
narrativa específica (Kuusik, 2010).
As teorias de agenda-setting (Shaw, 1979; McCombs e Shaw, 1993; Traquina, 1995) e
de framing (Gofman, 1974) ajudam a explicar o poder da comunicação social para
determinar a agenda atual a cada momento, ou seja, o poder de moldar o que deve ser
discutido e o que deve ser descartado, assim como o poder de validar uma visão
particular sobre uma questão ou um ator. Os média, portanto, não são apenas um canal
de informação, mas uma “rede de comunicação” ativa (Naveh, 2002: 3), onde
entendimentos específicos e representações de atores, intenções e acontecimentos são
(re)produzidos, intencionalmente ou não, afetando a cobertura por parte dos próprios
media, as decisões políticas dos decisores e as preferências da opinião pública.
Enquanto a maioria dos estudos aponta para a politização recorrente da comunicação
social (Craig, 1976; Herman, 2003; Herman e Chomsky, 1988; Eilders, 2002; Kishan e
Freedman, 2003), particularmente em alturas de crise política, são menos os que
analisam a forma como - a partir de uma perspetiva ilustrativa processual
3
- o processo
de mediatização da política acontece. Dessa forma, este artigo analisa a forma como o
framing é conduzido, ou seja, como as escolhas relacionadas com os média são feitas e
estruturadas e como evoluem. Recorrendo às teorias de agenda-setting e framing
aplicadas à política externa, este artigo analisa o papel dos meios de comunicação social
em contextos de crise através do estudo do endurecimento das relações entre a Rússia
1
A tradução deste artigo foi financiada por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e
a Tecnologia no âmbito do projeto do OBSERVARE com a referência UID/CPO/04155/2019, e tem como
objetivo a publicação no JANUS.NET. Texto traduzido por Carolina Peralta.
2
Maria Raquel Freire é titular de uma Cátedra Jean Monnet (574780-PPE-1-2016-1-PT-EPPJMO-CHAIR -
Relações Externas da UE em Direção a Leste), cofinanciada pelo programa Erasmus+ da União Europeia.
3
A “perspetiva ilustrativa processual” significa destacar processos específicos através de exemplos concretos.
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e a Ucrânia entre 2013 e 2015, com a anexação/reintegração
4
da península em março
de 2014, um evento que assinalou o auge da tensão.
Este estudo mapeia e analisa criticamente o discurso da comunicação social, comparando
as diferentes leituras e interpretações da crise da Crimeia retratada pelas transmissões
televisivas (TV) russa e ucraniana. De acordo com as sondagens de 2014, a maioria da
população russa e ucraniana recebe informação principalmente através dos órgãos de
comunicação social tradicionais (KIIS, 2014a; Centro Levada, 2014a). Com o objetivo de
compreender qual a imagem da crise que foi transmitida nesses países, este estudo
analisou as notícias dos canais nacionais de televisão na Rússia e na Ucrânia, o que
permitiu uma melhor compreensão da cobertura local dos eventos, aportando
informações adicionais para as contas baseadas no Ocidente que eram privilegiadas na
altura. Além disso, a maioria dos estudos publicados sobre a cobertura dos eventos na
Ucrânia concentrou-se no uso das redes sociais, descurando o estudo dos meios mais
tradicionais, como é o caso da televisão (p. ex. Onuch, 2015a, 2015b; Surzhko-Harnede
Zahuranec, 2017). Para a análise, selecionou-se um período de um mês - de 24 de
fevereiro a 23 de março de 2014. No entanto, com o objetivo de demonstrar que a
questão da Crimeia surgiu na agenda da comunicação social russa no período do
EuroMaidan, o artigo também analisou várias transmissões russas de dezembro de 2013
e de janeiro de 2014.
Para a análise do discurso dos média e da sua evolução durante os acontecimentos na
Crimeia, selecionou-se uma amostra de dez reportagens dos quatro canais que
registaram a audiência mais vasta (dois ucranianos - 1+1 e Inter - e dois russos - 1TV e
Rossiya). Para fins metodológicos, este estudo analisou as notícias das transmissões
noturnas, uma vez que se focam de forma mais aprofundada nas questões do conflito e
abrangem um público mais alargado.
Relativamente ao processo de seleção dos canais, dois critérios principais orientaram a
escolha: a share mais significativa de visualizações no ano de 2014; e a estreita relação
dos canais com as autoridades estatais ou as elites financeiras. Dentro dos canais de TV
russos, escolhemos o Perviy Nacionalniy (1TV) e o Rossiya, ambos estatais. No caso da
Ucrânia, escolhemos dois canais públicos governados por dois oligarcas ucranianos, o
1+1 de Ihor Kolomoyskyi e o Inter de Dmytro Firtash, tendo o 1+1 um público que fala
principalmente ucraniano, enquanto o Inter é transmitido em língua russa e dirigido à
população falante de russo. Também analisámos os inquéritos de opinião nos dois países
com o objetivo de entender a opinião pública durante os acontecimentos na Crimeia, que
- como as teorias de agenda-setting e de framing nos permitem perceber - obtinha a
informação sobretudo através das representações difundidas pela comunicação social.
Essa seleção de feeds de notícias, em combinação com os inquéritos de opinião, permite-
nos compreender como o processo de mediatização da política se tornou evidente no
caso da Crimeia.
Em termos de estrutura, este artigo divide-se em quatro partes principais. A primeira
mapeia e explora a estrutura teórica e analítica em que assenta o estudo. A segunda
parte apresenta os contextos nos quais os órgãos de comunicação dos dois países -
4
A escolha entre anexação” ou “reintegração” da Crimeia depende das interpretações específicas dos atores
políticos ou da comunicação social. As palavras explicam as distintas narrativas, intenções e o curso dos
acontecimentos. Os russos usam a palavra “reintegração”, enquadrando a questão como o direito da
Crimeia à “autodeterminação”; os ucranianos interpretam o assunto como uma violação da integridade
territorial e da soberania da Ucrânia.
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Rússia e Ucrânia se inserem, a fim de compreender melhor os contextos de
comunicação em que as narrativas específicas sobre a Crise da Crimeia são produzidas
e divulgadas. A terceira explora as diferentes representações e interpretações que o
promovidas e divulgadas nos dois países e entre a respetiva opinião pública. Por fim, a
quarta parte analisa os dados recolhidos, levando em conta os enquadramentos teóricos
e analíticos e examinando igualmente a forma como as audiências se envolveram com
as representações transmitidas pela comunicação social.
Alimentando-se mutuamente: da agenda-setting e do framing à
formulação de políticas
Entre os distintos elementos que influenciam as lentes através das quais entendemos o
mundo e (re)agimos em relação a ele, o discurso é fundamental. Ao fornecer uma lógica
específica de representação baseada num sistema de pensamento (Foucault, 1994
[1970]), o discurso permite (re)construir abordagens à realidade, criar narrativas e
rótulos que estabelecem as fronteiras dentro das quais um tópico, acontecimento ou ator
específico serão considerados ([Ibidem]; Hall, 1997).
Entre os atores discursivos, os média são centrais e eficientes na difusão de certas
narrativas enquadradas em determinados discursos (Kuusik, 2010), afetando a
representação da realidade com implicações na opinião pública, particularmente no que
se refere à atribuição de sentido. Desta forma, é possível compreender as notícias como
participantes no processo de construção do mundo e criação de sentido (Weber, 2010;
Robinson, 2002). Essa dinâmica ganha expressão em dois momentos particularmente
relevantes: a definição da agenda (McCombs e Shaw, 1972) e a maneira como a
comunicação social enquadra os eventos e os atores nessa agenda. A dinâmica de
gatekeeping é transversal aos dois processos e está na base dos mesmos (Shoemaker
et al., 2013).
De acordo com a teoria da agenda-setting (McCombs e Shaw, 1972), são os tópicos e os
acontecimentos selecionados pela comunicação social que definem a agenda nas
sociedades. Quanto mais atenção as notícias prestam a questões específicas, mais
provável é que a opinião pública entenda essas questões como sendo importantes (Shaw,
1979). No entanto, os meios de comunicação social não estabelecem apenas a agenda,
mas também acabam por dizer ao público como este deve pensar sobre essa mesma
agenda, já que as histórias veiculadas pelos media são filtradas através de frames
estabelecidos por cadeias de comando específicas (subjetivas) de comunicação
(McCombs e Shaw, 1993). A forma como uma informação é apresentada ao público (“o
frame”) influencia as escolhas que as pessoas fazem sobre como interpretar e reagir a
essa informação e em relação à realidade que descreve (Gofman, 1974). Na base da
agenda-setting e da teoria e da prática de framing, situa-se a teoria do gatekeeping
cunhada por Lewin (1943). Ao decidir quais as histórias que são contadas e as deixadas
de fora, o gatekeeper decide e, portanto, controla, as informações e narrativas que
podem ser do conhecimento público e entrar na esfera da opinião pública. Isso tem
consequências relativamente à validação de políticas específicas que abordam os
acontecimentos, questões ou atores dessas histórias (Hovland et al., 1953; Shoemaker
e Reese, 2014). Em cenários de tensão, o peso da informação e das narrativas que a
comunicação social produz é tal que muitos autores assumem que a comunicação social
é ator no conflito ou agente da paz (Rahman, 2014). Ao selecionar informações, repetir
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palavras específicas, usando símbolos culturais específicos, a comunicação social
influencia a perceção do público em relação a uma situação particular e aos atores
envolvidos (Entman, 1993, 2004).
As três teorias (agenda-setting, framing e gatekeeping) são úteis para compreender a
dinâmica da comunicação e os efeitos políticos subsequentes em contextos democráticos
amadurecidos, bem como em regimes menos democráticos, bridos ou até mesmo
autoritários. De fato, embora esses processos possam ser cada vez mais complexos em
contextos democráticos à medida que mais atores, agendas e imprevistos estão em jogo,
estes são fundamentais para explicar os processos de comunicação, bem como as forças
hegemónicas e contra-hegemónicas em todos os regimes políticos. As secções que se
seguem aplicam esses modelos teóricos ao caso da Ucrânia, esclarecendo as
interconexões entre a comunicação social, o público e a esfera política.
O panorama da comunicação social na Rússia e na Ucrânia
Segundo dados do World Press Freedom Index 2017, a Rússia ocupa o 148º lugar entre
os 178 estados do mundo (RSF, 2017)
5
. Apesar das semelhanças com a era soviética, o
atual “modelo neossoviético” da comunicação social (Oates, 2007) é menos monolítico
relativamente à estrutura, mais seletivo em relação à censura, prefere propaganda ao
controlo direto e enfatiza métodos legais e económicos para eliminar as vozes
independentes (Snegovaya, 2014). Atualmente, o Estado não controla todo o mercado
dos média, mas controla a porção que permite reforçar a sua imagem positiva na
sociedade e legitimar as suas ões nas conversas entre os cidadãos (Arutunyan, 2009).
Relativamente à imprensa escrita e à Internet, embora o Kremlin tenha menos influência
nesses setores (Dunn, 2014), “as publicações mais populares apoiam a política do
Kremlin, e vários jornais influentes foram comprados por empresas com estreitas
ligações ao Kremlin” (BBC, 2017). Quanto à TV, que “é o setor mais poderoso da indústria
da comunicação russa (...) [,] as principais redes nacionais são administradas
diretamente pelo Estado ou são propriedade de empresas com ligações estreitas ao
Kremlin” (BBC, 2017). Os canais 1TV e Rossiya têm o maior alcance em termos de
audiência, com 14,5% e 13,2%, respetivamente (Oshkalo, 2015) e são controlados pelo
Estado. Desde a crise ucraniana, a comunicação social russa intensificou o tom pró-
Kremlin e nacionalista das suas transmissões, “administrando uma dieta regular de
adulação a Putin, sentimentos nacionalistas, rejeição feroz da influência ocidental e
ataques contra os inimigos do Kremlin” (BBC, 2017). Um ex-funcionário superior da All-
Russia State Television and Radio Broadcasting Company - Companhia Estatal de
Televisão e Radiodifusão de Toda a Rússia (VGTRK), numa entrevista ao jornal russo
“Colta” (s.d.) descreveu como a agenda dos media foi construída e influenciada pelo
Kremlin durante a crise ucraniana:
Todas as semanas, o conselho de diretores reunia-se no Kremlin
para obter o plano com instruções sobre o que deveria ser
transmitido e como as informações deveriam ser apresentadas. (...)
Na Ucrânia, as instruções apontavam claramente para uma ampla
cobertura, incluindo relatos completos sobre a Crimeia, e notícias de
5
Veja-se também Khvostunova (2013).
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Kiev e Donetsk. Após o referendo, o canal teve uma “tarefa
adicional” do Kremlin para transmitir diariamente notícias sobre o
desenvolvimento da Crimeia, desde a ciência ao artesanato, e como
a vida da população era alegre com o regresso a casa. Ninguém
discutiu o enquadramento das notícias, nem a necessidade de
apresentar outras perspetivas que não se manifestavam tão
satisfeitas com o status quo. (Entrevista com o ex-funcionário
superior da VGTRK, Colta, s.d. a).
Tabela 1 Meios de comunicação independentes em termos de classificações de tráfego e scores
médios. 1 corresponde a "Mais Independente" e 7 corresponde a "Menos Independente"
1999-
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
RÚSSIA
4.75
5.25
5.50
5.50
5.75
6.00
6.00
6.25
6.25
6.25
6.25
6.25
6.25
6.25
6.25
6.50
6.50
6.50
6.5
UCRÂNIA
5.00
5.25
5.50
5.50
5.50
4.75
3.75
3.75
3.50
3.50
3.50
3.75
4.00
4.00
4.25
4.00
4.00
4.00
4.25
Fonte: Freedom House, 2018
6
A Ucrânia ocupa o 10lugar entre 178 estados no World Press Freedom Index (RSF,
2017). Por outro lado, para a Rússia, a maioria dos meios de comunicação ucranianos
possui proprietários privados (Rozvadovskyy, 2010), principalmente provenientes dos
grupos financeiros mais proeminentes. Para esses grupos, a comunicação social é uma
forma de influenciar a política e uma ferramenta para proteger os seus interesses
financeiros e comerciais (Dutsyk, 2015: 10). Mesmo que em 2014 a comunicação social
tenha sido forçada a divulgar informações sobre os seus proprietários, as estruturas de
propriedade ainda são opacas (RSF, 2016). No entanto, reconhece-se que a maior parte
do setor dos média é controlada por um pequeno grupo de empresários com interesses
na política, economia e outras áreas, nomeadamente Dmytro Firtash e Serhiy Lyovochkin
(Inter), Ihor Kolomoyskyi (1+1), Victor Pinchuk (Star Light Media) e Rinat Akhmetov
(Ucrânia). Todos os acionistas importantes têm interesses pessoais e políticos que se
ajustam continuamente às condições políticas e que se refletem na política editorial da
comunicação social (Dutsyk, 2015). As guerras permanentes entre oligarcas como Ihor
Kolomoyskyi e Dmytro Firtash são visíveis na cobertura das notícias nos seus canais, o
que justificou a escolha de canais como o Inter e o 1+1 para a análise das notícias
transmitidas no período de crise na Ucrânia. Além disso, durante os protestos no centro
de Kiev, os canais interpretaram os acontecimentos de maneira diferente. Tal como a
Rússia, a TV ucraniana é a principal fonte de notícias diárias para a maioria da população
ucraniana (KIIS, 2014a).
O grupo 1+1 foi um dos poucos canais ucranianos que defenderam uma posição pró-
Maidan apoiando os manifestantes. Durante os eventos da EuroMaidan, este canal
ativamente deu voz aos deres da Maidan e aos representantes nas manifestações. Em
6
“Comunicação social independente: aborda o estado atual da liberdade de imprensa, incluindo leis da
difamação, assédio a jornalistas e independência editorial; aparecimento de uma imprensa privada
financeiramente viável; e acesso à Internet para os cidadãos particulares” (Freedom House, 2018).
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2012, quando o país começou a preparar-se para uma maior integração na União
Europeia (UE), o canal considerou as mudanças na política externa ucraniana e
posicionou-se como “a empresa com valores europeus que cria conteúdo que muda a
maneira das pessoas verem o mundo e de se verem a si próprios” (1+1). De acordo com
o diretor-geral do 1+1, “o nosso dono partilha os mesmos valores que defendemos”
(Mediasat, 2014), denotando ligações claras entre o conteúdo das agendas de média e a
orientação do seu proprietário. O dono do 1+1 viu em Maidan uma oportunidade para a
redistribuição de poderes nas esferas de influência da política ucraniana, o que lhe
permitiu escapar da “sombra” e dependência dos poderes estabelecidos no país
(Entrevista com Vasil, 2016).
O último ponto que demonstra o interesse de Kolomoyskyi na queda do regime de
Yanukovych durante os eventos do EuroMaidan foi a sua nomeação como Presidente da
Administração Regional da cidade de Dnipropetrovsk pelo novo governo ucraniano em
março de 2014, com o objetivo de acabar com o separatismo no leste da Ucrânia e
prestar apoio aos militares ucranianos. Os principais bens do oligarca estavam nessa
região e encontravam-se sob um risco elevado de desestabilização. Ele foi, portanto,
capaz de influenciar a situação e proteger os seus negócios (Kononczuk, 2015).
Relativamente ao canal Inter, a orientação da cobertura da crise ucraniana mudou
completamente em várias ocasiões - às vezes até mesmo ao ponto de se contradizer.
Em julho de 2013, o canal promoveu ativamente a integração europeia, ao passo que, a
partir de outubro, e em consonância com a política do país, promoveu a ideia de que
ninguém na UE desejava a integração da Ucrânia e que o país devia manter relações
amistosas com a Rússia. Um dos proprietários do canal, Serhiy Lyovochkin, foi chefe do
governo do presidente Yanukovych até janeiro de 2014, e apoiou a posição do governo.
No entanto, após a fuga do ex-presidente ucraniano do país, o canal Inter, que desde o
início dos protestos EuroMaidan apelidou os manifestantes de “radicais governados por
extremistas”, mudou o discurso e começou a desig-los por “povo e cidadãos
ucranianos”. Além disso, o canal começou a criticar fortemente as antigas autoridades
ucranianas, que anteriormente tinham sido consideradas defensoras do regime e da
ordem no país. Sob o regime de Yanukovych, Firtash (dono do canal Inter) encontrava-
se entre os oligarcas cujos ativos aumentaram durante esse período de governo. Firtash
também é visto como um homem de negócios com ligações à Rússia, envolvido na venda
de gás russo em cooperação com a Gazprom, a Ucrânia e a UE durante muitos anos
(Kononczuk, 2015).
Na comunicação social: (re)apresentações e (re)interpretações da
Crimeia
O referendo realizado na Ucrânia em 16 de março de 2014 (Putin, 2014)
7
foi o culminar
de uma série de tensões, tanto na política ucraniana como no envolvimento de atores
externos, nomeadamente da Rússia e das potências ocidentais. O contexto de crescente
tensão e diferenças políticas logo se transformaria em violência, que persiste até hoje,
ecoando também a divisão profunda que a Ucrânia vinha enfrentando e evidenciando a
ausência de uma identidade nacional coesa.
7
Para mais detalhes sobre o referendo e os eventos que conduziram ao mesmo e se lhe seguiram, veja-se,
por exemplo, Sakwa (2015), Katchanovski (2015), Averre (2016), Freire (2017).
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52
As manifestações no centro de Kiev estavam muito presentes nas agendas dos telejornais
russos e ucranianos, mas os acontecimentos foram transmitidos de maneiras distintas.
A apropriação subjetiva da realidade na comunicação social assumiu contornos críticos
com o aumento da tensão. Desde o início dos protestos na Praça da Independência, a
Rússia cobriu a Crimeia. Os correspondentes especiais da 1TV e do Rossiya no período
entre janeiro e fevereiro destacaram que o apoio de Yanukovych à população naquela
área refletia o desejo da Crimeia em manter e aprofundar os seus laços com a Rússia, o
que estava claramente ameaçado devido aos protestos contra o governo que se faziam
sentir. A partir de dezembro de 2013, os principais canais de TV russos começaram a
falar sobre a possibilidade de uma divisão da Ucrânia e a consequente separação da
Crimeia. Além disso, a representação da Crimeia na agenda dos média como uma
questão especial em face da crise na Ucrânia foi adaptada de forma a transmitir uma
imagem dos manifestantes de Maidan como “o outro” (Mezhygirsky, 2014). O noticiário
Vremya demonstrou claramente esta tendência:
A Ucrânia está atualmente dividida em duas partes. Uma procura
derrubar o governo e deseja a integração com a União Europeia,
enquanto a outra prefere preservar a estabilidade. (1TV,
04.12.2013).
Nesta mesma linha, Vesty afirmou que “a crise está a aprofundar-se e está a ficar mais
claro que a Ucrânia está dividida por fronteiras regionais” (Rossiya, 12.12.2013).
Com o agravamento dos protestos do EuroMaidan, os canais russos começaram a falar
abertamente sobre o facto de que os acontecimentos do Maidan levariam à divisão da
Ucrânia. Na Ucrânia, o Inter seguiu a mesma linha de transmissão. Neste período tenso,
os canais russos deixaram claro que a Ucrânia enfrentava o caos e que o país se estava
a separar, destacando que apenas a intervenção da Rússia poderia manter pelo menos
uma parte do país unida. Quando o ex-presidente ucraniano fugiu da Ucrânia, a Crimeia
tornou-se um dos principais tópicos da TV russa (Mezhygirsky, 2014). A partir do final
de fevereiro, os canais russos anunciaram com toda certeza a separação da Crimeia para
breve, embora ainda não falassem sobre “autodeterminação”. O ponto de viragem foi a
decisão do novo governo de Kiev relativamente à abolição da lei sobre o estatuto regional
da ngua russa. Pouco depois, os deputados russos começaram a discutir a forma de
proteger os direitos da população russa na Crimeia. A comunicação social russa começou
a transmitir a mensagem que os habitantes da Crimeia estavam a ser ameaçados,
afirmando que:
a lei aprovada conduz à destruição dos direitos da população de
língua russa, ao abandono dos direitos em relação à língua nativa,
à destruição do direito a uma história independente (Rossiya,
26.02.2014).
As notícias concentraram-se na necessidade de proteger as minorias russas ou os
falantes de língua russa dos fascistas ucranianos”. A mesma narrativa foi usada pelo
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Kremlin para justificar as suas ações na Crimeia e foi transmitida por todos os meios de
comunicação social estatais (Dougherty, 2014: 4). No entanto, o canal ucraniano 1+1
relatou a situação sob uma perspetiva diferente, definindo os manifestantes contra o
novo regime em Kiev como “ativistas pró-russos” e “separatistas”. Desta forma, nas suas
transmissões, o 1+1 assinalava que o novo governo na Crimeia estava sob influência
russa, o que era ilegal de acordo com a lei ucraniana, referindo-se à “entrada da região
na histeria separatista” (1+1, 25.02.2014). O outro canal ucraniano, o Inter, que
anteriormente apoiara o regime de Yanukovych, transmitiu apenas uma notícia
informando que “a ssia emitirá os passaportes dos habitantes da Crimeia”, incluindo
uma declaração de um deputado da Duma sobre a ‘reintegração’ da Crimeia na Rússia
(Inter, 25.02.2014). Considerando a incerteza da situação política ucraniana e a estreita
relação do governo anterior com a Rússia, no início dos eventos da Crimeia, o Inter
transmitia um discurso mais neutro.
A 26 de fevereiro, realizaram-se duas manifestações em Simferopol, uma composta
principalmente por tártaros que insistiam que a Crimeia deveria ser mantida dentro da
Ucrânia e outra liderada principalmente por russos étnicos, com o líder Sergiy Aksenova
a exigir a independência da Crimeia e a pedir o apoio russo (Expert, 2014). Os canais
russos optaram por transmitir as exigências do segundo grupo.
As manifestações na Crimeia reúnem milhões de pessoas. A
bandeira russa foi hasteada no prédio do Conselho Supremo. As
pessoas afirmam que querem proteção contra a vontade imposta
por Kiev e exigem a organização de um referendo sobre o estatuto
da região. (1TV, 26.02.2014)
Sobre estes protestos, o 1+1 transmitiu as opiniões de ambos os lados, mas, entretanto,
introduziu informações sobre os “instigadores desconhecidos da violência”.
Tatars e Maidanivci
8
locais reuniram-se perto do Parlamento. Os que
apoiam as forças russas também se lhes juntaram. Entre eles está
a polícia. De repente, no meio da multidão, apareceram pessoas
desconhecidas a provocar os dois lados, exigindo que as bandeiras
russa e ucraniana fossem removidas. (1+1, 26.02.2014)
O Inter também mencionou os defensores da territorialidade da Ucrânia e os que desejam
a separação da Crimeia da Ucrânia, mas chamou aos organizadores dos protestos
“ativistas russos” (Inter, 26.02.2014).
As notícias russas comunicaram o apoio maciço das Forças Militares Ucranianas à
Crimeia, com as forças militares a unirem-se à Crimeia contra o governo central de Kiev.
Os canais ucranianos não duvidaram que estava em curso uma operação militar russa
em grande escala na Crimeia e que havia cada vez mais falta de confiança na região
sobre o novo governo central em Kiev.
8
Maidanivci participantes e apoiantes dos protestos da oposição na Ucrânia no final de 2013-2014.
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O aeroporto de Simferopol está sob o controlo de homens
camuflados. Os soldados admitiram que são russos. No entanto, no
parlamento da Crimeia, afirma-se que são unidades de autodefesa
voluntárias. (1+1, 28.02.2014)
No entanto, do lado russo, os canais transmitiram declarações oficiais sobre a posição
russa de não-interferência em assuntos ucranianos e que não havia provas sobre o
envolvimento de militares russos na Crimeia. Houve, no entanto, um claro apoio a Sergey
Aksenov, que se tornara o novo primeiro-ministro da Crimeia. De acordo com fontes
russas, ele tinha o poder necessário para “deter as ondas de desordem e provocação
decorrentes da Maidan” na região. A rápida organização do referendo sobre a autonomia
da Crimeia, inicialmente prevista para 25 de maio de 2014 e que, devido à “situação
complexa do conflito que está para além do razoável”, foi antecipada, recebeu
ativamente o apoio dos canais russos (Rossiya, 1.03.2014).
Quando, a 1 de março, o Conselho da Federação Russa adotou uma decisão sobre a
mobilização das forças armadas russas em território ucraniano, os canais russos
interpretaram a decisão como sendo necessária para proteger os habitantes da região
autónoma da violência (1TV, 1.03.2014; Rossiya, 1.03.2014). No entanto, essa decisão
foi considerada por ambos os canais ucranianos uma “invasão militar da Ucrânia” (1+1,
1.03.2014; Inter, 1.03.2014).
A 6 de março, realizou-se mais uma sessão extraordinária do Conselho Supremo da
Crimeia, que decidiu que o referendo deveria ter lugar dez dias mais cedo. A antecipação
da votação foi transmitida como uma consequência natural do movimento nacionalista
de Maidan que afirma que “a Ucrânia é apenas para os ucranianos” (Rossiya, 6.03.2014).
Os canais ucranianos contestaram a decisão, afirmando que esta era ilegal, tomada sob
pressão das armas russas, e que representava um ataque à soberania do país. Além
disso, os canais afirmaram que as novas autoridades governamentais na Crimeia
estavam a preparar resultados do referendo falsificados. Referiam-se ao voto da
comunidade tártara, que seria desconsiderado (Inter, 6.03.2014; 1+1, 6.03.2014). No
entanto, o Inter também transmitiu as opiniões dos habitantes da Crimeia a favor do
referendo e da sua reintegração na ssia. Ao mesmo tempo, os jornalistas televisivos
pararam de se referir à população da Crimeia como parte do povo ucraniano, e
começaram a chamá-los “compatriotas na Ucrânia”, “habitantes da Crimeia” ou “falantes
de russo”. Os que chegaram ao poder em Kiev continuaram a ser chamados “banderas”,
“nazis” e “fascistas”.
Desta forma, a ideia principal transmitida era que a Rússia deveria proteger todos os
ucranianos falantes de russo dos poderes que governavam o país. Em relação aos canais
ucranianos, principalmente no que tocava às notícias transmitidas pelo 1+1, os
jornalistas falavam abertamente sobre a presença de soldados russos e até começaram
a apelidá-los de “invasores” e “ocupantes” da região. A Rússia era considerada a
“agressora”, enquanto as forças de autodefesa voluntárias na Crimeia estavam
diretamente ligadas ao Kremlin. Nessa altura, o Inter optou por uma narrativa diferente,
e foi o único canal a fazê-lo, uma vez que os jornalistas que descreviam os
acontecimentos na Crimeia se abstiveram de mencionar a presença dos militares russos,
embora em fevereiro esse facto tenha sido mencionado abertamente. Esta mudança de
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rumo esteve principalmente ligada à nova situação política no país depois da partida de
Yanukovych, particularmente devido às ligações próximas entre o proprietário do canal
e o ex-presidente.
O dia mais turbulento foi o de 16 de março - o dia do referendo. A comunicação social
ucraniana tinha um sentimento negativo sobre o referendo, insistindo na sua ilegalidade
e destacando a preparação de dez dias para o mesmo, afirmando que os resultados
seriam falsificados, que a lista de eleitores incluía pessoas com cidadania russa,
indivíduos já falecidos e não incluía todos os habitantes ucranianos (Inter, 16.03.2016).
Nesse mesmo dia, o 1+1 abriu a sua transmissão das notícias da seguinte maneira:
O referendo é artificial e sob armas russas. A votação não é
reconhecida internacionalmente, não é reconhecida pelas
autoridades em Kiev, e também não é reconhecida pelos habitantes
da península […] O primeiro-ministro ilegítimo Aksenov decidiu o
destino da Crimeia antes da abertura dos votos, tuitando que a
Crimeia vai fazer parte da Rússia. (1+1, 16.03.2014)
Os órgãos de comunicação social russos informaram que o referendo decorreu de acordo
com os princípios democráticos e padrões internacionais. Ambos os canais russos
referiram que observadores internacionais de 23 países diferentes monitorizaram o
processo, e o Rossiya transmitiu um comentário de um representante sérvio que apoiou
a votação. Os relatórios de votação fizeram referência às pessoas que faziam fila para
votar antes da abertura dos locais de voto, mostrando como o referendo constituía um
sonho para a população. Também foi afirmado que houve uma alta participação da
população na votação, inclusive dos tártaros (1TV, 16.03.2014; Rossiya, 16.03.2014).
Quando os resultados foram publicados, os média russos ficaram eufóricos, indicando
como os habitantes da Crimeia e a população russa se tinham reunido para celebrar “o
regresso a casa”, pelo qual “esperavam há vinte e três anos” (Rossiya, 23.03.2014). A
“reintegração” da Crimeia na Rússia foi considerada o único cenário possível, dentro do
qual o referendo se tornou a opção pacífica, salvando vidas e assegurando o direito à
“autodeterminação”. Além disso, afirmava-se que “se o Ocidente não está contente com
os resultados, isso não significa que estes sejam ilegítimos” (1TV, 17.03.2014). A linha
de fundo da agenda dos média russos após o referendo resume-se bem na expressão “a
Crimeia é nossa!”. Além disso, os média promoveram ativamente a ideia que a “vitória
na Crimeia tornou-se possível apenas porque a Rússia é governada por Vladimir Putin
(Rossiya, 23.03.2014).
Após o referendo, os canais ucranianos apoiaram a visão oficial do governo de Kiev: o
referendo não cumpria os princípios democráticos nem o direito internacional. Três
ideias/ narrativas principais foram avançadas de forma clara: primeiro, que uma parte
da Ucrânia “tinha sido roubada”; segundo, que a Crimeia estava agora sob a
responsabilidade do governo russo; e terceiro, que a anexação era temporária e que, em
algum momento, a Crimeia voltaria a fazer parte da Ucrânia.
Os dois canais ucranianos descreveram o referendo como um ato ilegal de ocupação de
parte do território de um estado soberano. O 1+1 foi mais longe e comparou a anexação
da Crimeia à anexação de territórios pelos regimes fascistas que conduziu à Segunda
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Guerra Mundial. A UE foi apresentada como aliada da Ucrânia na tentativa de reverter a
agressão russa. Esta coincidência na narrativa é interessante face aos diferentes estilos
de reportagem dos canais ucranianos.
Tabela 2 - Principais comentários dos órgãos de comunicação social sobre o referendo
CANAIS RUSSOS
CANAIS UCRANIANOS
Reconhecimento do referendo e dos resultados
como legítimos. O processo cumpriu as regras
internacionais.
O referendo foi ilegítimo e violou a legislação
internacional e ucraniana.
As autoridades russas confirmam os
resultados.
O governo ucraniano não reconhece os
resultados.
Tártaros incluídos nas listas de voto.
População tártara contra o referendo e não
incluída nas listas de voto.
Participação elevada na votação, inclusive por
parte da população tártara.
Participação fraca na votação. Os cidadãos
russos votaram e as listas incluíam nomes de
pessoas falecidas.
Os militares russos da Frota do Mar Negro não
interferiram no processo.
A ‘invasão militar’ russa influenciou as decisões
tomadas pelo Parlamento da Crimeia.
Os políticos ocidentais tentaram impedir o
referendo histórico.
Os políticos ocidentais consideram que o
referendo ameaça a estabilidade das fronteiras
na Europa.
O bloqueio do aeroporto e de outras
infraestruturas foi necessário para impedir a
mobilização de forças de Kiev para a península,
especialmente as que procuravam impedir o
referendo sobre o estatuto da região.
Os separatistas tomaram o poder na Crimeia,
ocuparam o aeroporto e as instalações
militares.
Grande quantidade de militares ucranianos que
se juntaram à posição do governo sobre a
Crimeia.
Não houve apoio significativo por parte dos
militares ucranianos aos separatistas, a
comunicação social russa fabricou esses factos.
Reintegração/Reincorporação da
Crimeia/Regresso a casa.
Anexação da Crimeia.
O que é que estas informações contraditórias nos dizem sobre o framing
e a agenda-setting?
Com a queda do regime de Yanukovych e a formação do novo governo em Kiev, a atenção
da comunicação social voltou-se para a Crimeia. A maioria das transmissões sobre a
península nos média ucranianos continha um tom negativo, enquanto na ssia a
cobertura destacou as consequências positivas da “reintegração da Crimeia” na Rússia.
Nos média russos, o tom só mudou quando houve referências ao novo governo de Kiev,
denotando críticas do mesmo. O único framing que foi neutro em todas as notícias estava
relacionado com a data do referendo, incluindo a sua antecipação para 16 de março. A
abolição da lei das línguas regionais foi coberta sucintamente pelas notícias ucranianas,
que apenas referiram a decisão (neutra). Nas notícias russas, foi transmitida como uma
ameaça à população russófona e uma violação dos direitos humanos, exigindo uma
intervenção para proteger os “direitos dos compatriotas”. As manifestações em curso
foram descritas como pacifistas e a favor da autonomia da região. No entanto, na
Ucrânia, essas mesmas manifestações foram descritas como sendo promovidas por ‘pró-
russos’ e ‘separatistas’ com o apoio do Kremlin, com o objetivo de desestabilizar a
situação nessa área e avançar com a divisão do país.
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O framing do ‘referendo’ foi outra questão tratada de forma diferente nos média
ucranianos e russos. Na Rússia, o referendo foi descrito como representando a vontade
do povo de regressar à Rússia e corrigir um erro da história. Enfatizou-se a natureza
democrática do ato e a sua legitimidade, incluindo a monitorização internacional da
votação. Os resultados foram sempre enquadrados na vontade das pessoas de fazer
parte da ssia. Numa postura bastante diferente, a comunicação social ucraniana frisou
o caráter ilegítimo da votação e como o referendo tinha violado a lei internacional. Não
houve palavras de apoio ao ato, sublinhando-se que os resultados foram falsificados e,
como tal, não reconhecendo ou validando os resultados anunciados.
Em linhas gerais, o tom negativo da comunicação social russa dirige-se às autoridades
ucranianas descritas como ‘fascistas’ que tomaram o poder através de um golpe de
Estado ilegítimo. O tom negativo dos média ucranianos estava diretamente ligado a
questões de soberania e à violação da integridade territorial do país, descrevendo as
manobras militares russas e a mudança de poder na Crimeia como uma invasão
perpetrada por separatistas e uma tomada do poder sob a bandeira e comando russos.
No entanto, o que é mais percetível é a mudança no seio da cobertura ucraniana dos
acontecimentos, já que os dois canais, com o tempo, tornaram-se mais próximos no tom
das suas reportagens. Enquanto o Inter, na altura dos protestos do EuroMaidan,
transmitia de uma maneira mais favorável à ssia, após a mudança de poder na Ucrânia
e as mudanças políticas que isso implicou, o canal mudou a abordagem e tornou-se mais
crítico em relação à Rússia. Este facto é igualmente reforçado pelas sondagens, tal como
se analisa na próxima secção, e também seguiu essa mesma tendência de grande desvio
no início dos acontecimentos, para se tornar cada vez mais unido na narrativa ao longo
do tempo.
Em suma, a análise da cobertura da Crimeia mostra que, apesar de abordar o mesmo
tema, o foco das transmissões divergiu, não entre a Ucrânia e a Rússia (o que era
esperado), mas também dentro da própria Ucrânia, que foi inesperado dado o
alinhamento com a posição russa. A quantidade de tempo dedicado à Crimeia também
aumentou, à exceção do período em que os Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi
(Rússia) se realizaram, quando o tema ‘Ucrânia’ quase desapareceu da agenda da
comunicação social na Rússia. No entanto, a maior parte do tempo de transmissão
durante este período foi dedicado à Crimeia, com recurso a símbolos e linguagem forte,
deixando clara a importância do assunto para ambos os países e como foi apresentado
de forma tão diferente na Ucrânia e Rússia, servindo principalmente fins políticos.
Sondagens de opinião e influência dos média na formação de opinião
Todos os canais analisados tiveram um forte impacto na entrada de questões e perceções
específicas sobre a crise ucraniana na agenda pública. A agenda pública pode ser
caracterizada como a hierarquia de questões durante um período determinado e é
geralmente mediada pelas sondagens de opinião pública sobre um determinado
acontecimento (Dearing & Rogers, 1996: 40-41).
De acordo com os dados do Centro Levada na Rússia, as sondagens realizadas entre a
população russa mostram que o número de russos que acompanharam os
desenvolvimentos na Ucrânia desde dezembro de 2013 triplicou em 2014 (Levada,
2014). No início de janeiro de 2014, os inquéritos de opinião realizados sobre o tema
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“Em geral, qual é a sua perceção atual da Ucrânia?” apontaram para um parecer
favorável, com 66% encarando a Ucrânia como sendo “boa/geralmente, boa” e 26%
indicando uma perceção do país como sendo “má/geralmente má” (Levada, 2014a). Após
quatro meses, realizou-se nova sondagem, mas os resultados mudaram: a resposta
“boa/geralmente boa” foi escolhida apenas por 35% dos inquiridos, enquanto a perceção
da Ucrânia como sendo “má/geralmente má” aumentou para 49% (Levada, 2014b).
Gráfico 1 - Perceção geral russa face à Ucrânia (%)
Quando o regime de Yanukovich caiu e o novo governo chegou ao poder, 37% dos russos
concordaram que o poder na Ucrânia fora tomado pelos nacionalistas radicais e 36% dos
inquiridos acreditavam que nessa altura não havia um único governo na Ucrânia. 62%
afirmaram que a Ucrânia se encontrava num estado de anarquia e não tinha governo
legítimo, e 15% apoiavam Yanukovych como presidente legítimo do país (Levada,
2014c).
O inquérito após o referendo na Crimeia revela que 88% dos inquiridos estavam a favor
do resultado do referendo, o que conduziu a emoções positivas relacionadas com
sentimentos de justiça, orgulho no país e alegria. 62% da população russa reconheceu a
necessidade de proteger as minorias russas dos nacionalistas radicais ucranianos e 38%
favoreceram a restauração da justiça histórica. 37% dos russos atribuíram a
responsabilidade pela deterioração das relações entre a Rússia e a Ucrânia aos países
ocidentais e 35% apontaram o dedo à política não construtiva das autoridades
ucranianas. Apenas 8% dos inquiridos concordaram que a adesão da Crimeia constituía
de facto uma anexação (Levada, 2014c).
Durante o período pós-soviético na Rússia, a agenda pública sempre se mostrou
convencida que a Crimeia deveria ser devolvida, e 84% acreditavam que a região fora
injustamente concedida à Ucrânia (ibidem). Portanto, a população russa encarou todos
os acontecimentos na Ucrânia como a restauração do vigoroso poder russo, protetor da
sua população (Gudkov, 2015). As sondagens ucranianas fornecidas pelo Centro
Sociológico Internacional de Kiev entre janeiro e fevereiro de 2014 mostraram que as
opiniões dos ucranianos sobre os protestos do EuroMaidan se tinham dividido de forma
quase igual. O número de inquiridos que apoiaram os protestos foi de 47%, enquanto
que os que o apoiaram foi de 46% (KIIS, 2014a). Estes resultados poderiam estar
associados a uma representação diferente dos acontecimentos do EuroMaidan por parte
dos canais ucranianos, onde o 1+1 era pró-Maidan e o Inter era a favor do regime de
Yanukovich. No entanto, durante os acontecimentos na Crimeia, os canais alinharam as
suas posições e a perceção ucraniana sobre a Rússia alterou-se consideravelmente.
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Com o aumento da tensão e, em particular, após a anexação da Crimeia por parte da
Rússia, as relações e as perceções deterioraram-se. Em fevereiro de 2014, 78% dos
inquiridos manifestavam uma atitude positiva em relação à Rússia, enquanto que as
atitudes negativas totalizaram apenas 13% (KIIS, 2014b). Em comparação com a
sondagem de fevereiro, em maio de 2014 houve uma queda de 52% na atitude positiva
em relação à Rússia, e inversamente, o tom negativo aumentou, quase triplicou,
chegando aos 38%. Essa inversão de perceções justifica-se pelo curso dos
acontecimentos e pela deterioração geral das relações entre a Rússia e a Ucrânia (KIIS,
2014c).
Gráfico 2. Perceção geral ucraniana face à Rússia (%)
Em relação à Crimeia, 78% dos inquiridos ucranianos concordaram que se tratava de um
ato de ‘anexação’, 11% discordaram e 12% não responderam (KIIS, 2015). Pelo
contrário, 86% dos inquiridos russos entenderam a ‘adesão’ da Crimeia como a realização
do direito das pessoas à autodeterminação, e apenas 8% o encararam como um ato de
‘anexação’.
Gráfico 3. ‘Adesão’ da Crimeia à Rússia (%)
Ao analisarmos estes inquéritos de opinião e as transmissões dos órgãos de comunicação
social da Rússia e da Ucrânia, podemos ver claramente uma evolução paralela nas
tendências. De alguma forma, os resultados dos inquéritos coincidem com as informações
veiculadas e com o modo como transmitiam uma mensagem política - os meios de
comunicação dos dois países reproduziram o discurso oficial dos respetivos governos,
78
11
12
8
86
6
Adesão é anexação Adesão não é anexação Não sabe/Não responde
Ucrânia Rússia
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não aportando efetivamente perspetivas diferentes sobre os acontecimentos.
Curiosamente, o canal pró-russo na Ucrânia inicialmente secundou o apoio russo, mas
com o tempo alterou a narrativa para se alinhar com o principal discurso político
ucraniano. Com o início das manifestações p-russas e as medidas ativas aprovadas
pelas autoridades russas, como a autorização de entrada de militares russos na Crimeia,
a agenda da comunicação social ucraniana (1+1 e Inter) alinhou as suas posições,
passando a transmitir uma imagem da ssia como a agressora externa que ameaça a
integridade territorial da Ucrânia, conduzindo ao aumento da vontade da Ucrânia de se
aproximar da UE.
Conclusão
Este artigo procurou comparar as agendas de comunicação televisiva russa e ucraniana
no período da crise da Crimeia, com o objetivo de compreender o ponto de vista local
sobre os acontecimentos; o papel dos meios de comunicação enquanto agenda-setters e
produtores de framings subjetivos no contexto do conflito interestatal; a relação entre
autoridades estatais e os média; e o impacto que os média exercem sobre a formação
da opinião pública relativamente a este assunto.
Em ambos os países - Rússia e Ucrânia -, a comunicação social enfrenta uma situação
desfavorável em termos da sua capacidade de agir de forma independente, enfrentando
uma pressão constante das autoridades estatais ou dos grupos financeiros que as
sustentam. No caso da Rússia, isso deve-se ao fato do sistema de comunicação televisiva
continuar a seguir o “modelo neossoviético”, enquanto no caso da Ucrânia, os canais
seguem os interesses dos seus proprietários porque não podem sobreviver sem o apoio
financeiro dos oligarcas. Esta situação afetou claramente a agenda de transmissão e as
opções de framing, revelando um discurso mediático cada vez mais politizado.
Apesar de analisarem os mesmos acontecimentos, as transmissões da comunicação
social foram bastante diferentes, em termos de narrativas e da interpretação das
mesmas, influenciando e moldando entendimentos e perceções contraditórias nos dois
países. No caso da Ucrânia, a informação que foi transmitida pelo canal 1+1 foi distinta
dos factos fornecidos pelo canal Inter: enquanto o 1+1 apresentou um discurso
claramente anti-russo, o canal Inter escolheu narrativas mais cuidadosas para
caracterizar os acontecimentos na Crimeia.
Ao selecionar certos aspetos a serem transmitidos, tornando alguns acontecimentos mais
visíveis do que outros, e definindo e interpretando ocorrências, a comunicação social
acabou por tornar-se um ator político, transmitindo a mensagem política dos respetivos
governos e elites económicas, mesmo que às vezes mudasse a narrativa. Além disso,
como meio privilegiado de informar a população e, portanto, com grande potencial para
influenciar e moldar a opinião política, a comunicação social contribuiu indubitavelmente
para moldar a identidade nacional nos dois países e alimentar opiniões que legitimam e
deslegitimam as autoridades e decisões do Estado.
Este artigo conclui que o discurso dos média contribuiu para moldar e formar a opinião
pública relativamente à reintegração/anexação da Crimeia ao apresentar factos
específicos, omitir acontecimentos, reinterpretar discursos e refletir os próprios
interesses de ambas as elites políticas e económicas. A análise ilustra a alteração nas
relações entre os dois países ao longo do curso dos acontecimentos, destacando a
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mudança na narrativa também no seio da comunicação social ucraniana, e como isso se
refletiu também nas sondagens da opinião pública. A cristalização das perspetivas nos
interesses políticos torna-se clara, assim como o papel da comunicação social na
construção de uma ‘certa’ realidade.
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