OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 10, Nº. 1 (Maio-Outubro 2019), pp. 15-30
JÜRGEN HABERMAS E A DEMOCRATIZAÇÃO DA POLÍTICA MUNDIAL
André Saramago
avsaramago@gmail.com
Professor Auxiliar Convidado de Relações Internacionais na Universidade de Coimbra e na
Universidade da Beira Interior (Portugal). É igualmente investigador e assistente de ensino on-
line na DiploFoundation, Universidade de Malta, e investigador associado no Instituto do Oriente.
É doutorado em Política Internacional pela Universidade de Aberystwyth. As suas áreas de
especialização incluem Teoria das Relações Internacionais, incidindo em estudos sobre Teoria
Internacional Crítica, assim como Sociologia Histórica e Estudos sobre a Ásia Oriental. Entre os
seus trabalhos mais recentes, destacam-se a edição de Climate Change, Moral Panics and
Civilization, da autoria de Amanda Rohloff e publicado pela Routledge, e ‘Singapore’s use of
education as a soft power tool in Arctic cooperation’, em coautoria com Danita Burke e publicado
Resumo
Este artigo examina as ideias de Jürgen Habermas sobre o dilema colocado pela
interdependência global humana à possibilidade de políticas democráticas. De acordo com
Habermas, desde a Segunda Guerra Mundial, e parte de um processo que se tornou mais
difundido desde o fim da Guerra Fria, as sociedades humanas têm vindo a integrar redes de
interdependência política, social e económica cada vez mais complexas que acabaram por
afetar a capacidade dos públicos democráticos de base estatal de exercer algum grau de
influência sobre as suas condições de existência. A partir de uma perspetiva crítica da teoria
internacional, o argumento de Habermas destaca o desafio contemporâneo fundamental
enfrentado pelas ciências sociais em geral e pelas Relações Internacionais (RI) em particular.
A partir dessa perspetiva, a função fundamental das RI não é apenas explicar a política
mundial, mas também orientar a prática social e política para um aumento do controlo
democrático sobre a mesma. O objetivo deste artigo é demonstrar como o trabalho de
Habermas constitui uma contribuição fundamental para melhorar o papel crítico orientador
das RI. O artigo articula os escritos políticos mais recentes de Habermas sobre a União
Europeia (UE) e a Organização das Nações Unidas (ONU) com o seu trabalho anterior sobre o
desenvolvimento de uma teoria da evolução social. Ao fazê-lo, mostra como o trabalho de
Habermas pode constituir a base para, por um lado, uma abordagem ao estudo da política
mundial que revela como o atual dilema entre a complexidade global e a democracia passou
a ser a característica definidora do presente estágio de desenvolvimento humano, e, por outro
lado, descobrir o potencial imanente reunido pela modernidade para uma expansão radical da
democracia ao nível da política mundial.
Palavras chave
Relações Internacionais; Teoria Internacional Crítica; Democracia; Poder; Capitalismo; União
Europeia
Como citar este artigo
Saramago, André (2019). "Jürgen Habermas e a democratização da política mundial".
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 10, N.º 1, Maio-Outubro 2019.
Consultado [online] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.1.2
Artigo recebido em 15 de Dezembro de 2018 e aceite para publicação em 26 de Fevereiro
de 2019
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Jürgen Habermas e a democratização da política mundial
André Saramago
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JÜRGEN HABERMAS E A DEMOCRATIZAÇÃO DA POLÍTICA MUNDIAL
1
André Saramago
2
Introdução
Ao longo de sua vasta carreira, Jürgen Habermas tem trabalhado no desenvolvimento de
uma teoria da evolução social que capture a dinâmica do desenvolvimento histórico
humano. Nesse contexto, Habermas caracteriza a história da espécie como um processo
de aprendizagem coletiva de longo prazo em dois campos que se inter-relacionam; o do
conhecimento moral-prático e o do conhecimento técnico-instrumental (Habermas,
1987).
Enquanto o primeiro se refere à aprendizagem ao nível das normas coletivas que regulam
a vida social, o último refere-se predominantemente à aprendizagem nas áreas
necessárias à reprodução material da vida social, designadamente o controlo da natureza
não humana através de atividades produtivas. O argumento de Habermas é que, ao longo
da história, os diferentes estágios de desenvolvimento do conhecimento moral-prático
têm sido incorporados nas normas sociais e nos contextos morais partilhados pelas
sociedades humanas (o que Habermas chama 'mundo da vida'), enquanto os diferentes
estágios de conhecimento técnico-instrumental têm sido integrados na economia e nas
esferas que lhe estão relacionadas, tais como administrações burocráticas e técnicas (o
que Habermas denomina ‘sistema’). Habermas defende que, à medida que as sociedades
humanas se desenvolvem e se tornam mais complexas, existe uma tensão crescente
entre o mundo da vida e o sistema. Se, por um lado, a aprendizagem moral-prática cria
a possibilidade de exercer maior controlo democrático sobre a vida social, por outro, a
complexidade social cria pressões para uma maior autonomia sistémica, com os setores
sociais burocráticos e económicos a assumir uma dinâmica própria que escapa às políticas
democráticas (Habermas, 1987). Nos últimos 20 anos, Habermas (1996; 2001; 2012)
tem argumentado que a modernidade enfrenta um problema sistémico fundamental
que, com a interligação global e a interdependência da humanidade provocada pelos
processos de globalização, engloba agora o mundo todo.
1
A tradução deste artigo foi financiada por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e
a Tecnologia no âmbito do projeto do OBSERVARE com a referência UID/CPO/04155/2019, e tem como
objetivo a publicação no JANUS.NET. Texto traduzido por Carolina Peralta.
2
Gostaria de agradecer ao Professor Andrew Linklater e à Doutora Kamila Stullerova pelos seus comentários
a uma versão anterior deste artigo. Também gostaria de agradecer à equipa editorial do JANUS.NET e aos
dois revisores anónimos cujos comentários melhoraram muito a qualidade deste artigo.
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Uma característica central deste problema é a forma como, com a integração das
economias nacionais num mercado capitalista global, e especialmente com a liberalização
radical dos mercados financeiros desde o fim do padrão-ouro em 1971, houve um
aumento dramático na autonomia dos contextos sistémicos em relação aos públicos
democráticos que permanecem ligados ao estado (Habermas, 2001). Este facto minou o
equilíbrio entre a democracia e a autonomia sistémica que tinha sido alcançado nos
Estados-providência desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Constitui igualmente uma
das fontes do reaparecimento contemporâneo dos movimentos étnico-nacionalistas que
exigem um reforço da soberania do estado como solução para as consequências sociais
adversas, e não planeadas, de um sistema capitalista global fora de controlo (Haro,
2017). No entanto, para Habermas, um regresso ao estado é uma fuga ilusória do
problema. O seu argumento é que é necessário desenvolver um novo 'princípio de
organização' para a política mundial, que seja capaz de dilatar a capacidade de adaptação
social aos desafios do desenvolvimento colocados pela crescente interdependência global
(Habermas, 2012).
Neste contexto, Habermas tem-se preocupado principalmente em identificar o potencial
cognitivo, disponível nas visões do mundo modernas e nas estruturas da consciência,
para o desenvolvimento desse princípio de organização política mundial que altere o
equilíbrio prevalente entre públicos democráticos e sistemas autónomos globais. Em
particular, Habermas está interessado em compreender como o processo de
democratização da vida social, iniciado ao nível dos Estados-providência democráticos,
pode ser alargado à política mundial numa forma que reforce o controlo humano coletivo
e consciente sobre o caráter sistémico das relações interestatais e da economia
capitalista global.
Os argumentos de Habermas a esse respeito são analisados nas quatro seções seguintes.
Primeiro, o artigo examina as suas ideias sobre a forma como a interligação global
humana mina o grau de controlo democrático que os cidadãos dos Estados-providência
exercem sobre as suas condições de existência. Em segundo lugar, analisa o argumento
de Habermas sobre a necessidade de uma reconstrução do projeto de Kant para a paz
perpétua como estrutura orientadora da organização da teia global da humanidade de
maneira a garantir um maior grau de controlo coletivo e consciente sobre o seu
desenvolvimento futuro. Em terceiro lugar, comenta a ligação entre esse argumento e os
trabalhos mais recentes de Habermas sobre a União Europeia, e sobre a dissociação entre
democracia e poder estatal que pode ocorrer no seu contexto. E, em quarto lugar, o
artigo examina a forma como a análise de Habermas sobre a UE está na base da sua
proposta para a reforma das Nações Unidas e a democratização radical da política
mundial que lhe está associada.
Interdependência global e democracia
Desde 1971, com o fim do padrão-ouro e a subsequente liberalização radical dos
mercados financeiros, as dinâmicas sistémicas do capitalismo libertaram-se das
condições de limite estabelecidas pelos públicos democráticos nacionais e tornaram-se
capazes de se desenvolverem por conta própria em condições de maior autonomia. A
capacidade de movimentar livremente o capital através das redes da economia mundial
significou que, cada vez mais, áreas importantes da sociedade sejam submetidas a
relações assentes no dinheiro como o principal meio de integração social (Habermas,
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2001: 78). Este facto permitiu que as empresas multinacionais retivessem investimentos
em certos estados ou áreas sociais, bloqueando o acesso a importantes fontes de receita
através de impostos, a menos que os estados fizessem reformas para tornar as suas
condições internas mais adequadas às necessidades e interesses dos empreendimentos
capitalistas. Os estados tornaram-se assim cada vez mais obrigados a competir entre si
para se tornarem mais atraentes aos interesses comerciais globais, nomeadamente
através da privatização de áreas como a saúde e a educação, redução dos salários e
benefícios dos trabalhadores, alargamento das horas laborais e uma combinação de
aumento de impostos para os cidadãos e uma redução de impostos para as empresas
(Habermas, 2001: 79).
Nestas condições, os sistemas de segurança social dos Estados-providência, concebidos
para aliviar os efeitos negativos do desenvolvimento capitalista, ficaram sobrecarregados
com o aumento do desemprego e uma base tributária mais curta. Progressivamente, os
Estados-providência tornaram-se um canal para a sistematização dos mundos da vida
nacionais por imperativos sistémicos globais e perderam a capacidade de garantir o
controlo democrático sobre a dinâmica capitalista. Acompanhando a crescente
complexidade das redes económicas globais, surgiram também cadeias não planeadas
de decisões políticas e resultados interligados que, quando combinados com a forma
como as identidades culturais e poticas são remodeladas e reavivadas por esses
processos, levaram a que muitos atores sub-estatais locais e regionais questionassem a
legitimidade do Estado-nação enquanto centro de poder representativo e responsável
(Habermas, 1973; Habermas, 2006; Held, 1995: 136). Assim, o processo de
globalização, 'enredou' os Estados-nação na dependência de uma sociedade mundial
cada vez mais interligada, cujos contextos sistémicos 'contornam sem esforço as
fronteiras territoriais' (Habermas, 2006: 175; veja-se igualmente: Walker, 1988).
Uma das respostas a essa situação tem sido o comportamento hegemónico exibido pelos
Estados Unidos (EUA) nas últimas duas décadas. As tentativas recentes da superpotência
de usar a sua superioridade militar, tecnológica e económica para criar uma ordem global
compatível com as suas noções religiosamente coloridas do bem e do mal constituem
uma expressão da possibilidade histórica do aparecimento de uma resposta imperial ao
desafio de regular a interdependência global (Habermas, 2006: 149). No entanto,
segundo Habermas, o resultado mais provável dessa estratégia, dada a inevitável
resistência por parte de outras grandes potências, como a ssia e a China, é o
aparecimento de uma ordem mundial schmittiana caracterizada pela hipótese
alarmante de competição entre os hemisférios (Habermas, 2006: 148). Essa ordem
global, de facto, minaria a possibilidade de controlo coletivo sobre o processo de
globalização, que a dinâmica não planeada decorrente da competição acrescida pelo
poder levaria as pessoas e os estados a padrões de interação não planeados por nenhum
deles, potencialmente com implicações nefastas para todos os participantes.
Em vez disso, Habermas (2012) propõe um 'princípio de organização' alternativo para a
política mundial na forma de uma extensão, ao vel da sociedade internacional, do
processo de longo prazo de democratização da vida social, que até agora esteve
confinado ao vel intraestatal. A domação democrática-legal do poder do estado que
tem ocorrido nos estados-providência precisa de ser continuada através de uma
democratização do sistema internacional de estados, que pacifique as relações entre os
estados e controle a sua competição anárquica pelo poder. Além disso, essa pacificação
criaria as condições para o estabelecimento de novos procedimentos e instituições
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supranacionais, assim como novas formas de solidariedade entre as pessoas, com base
nas quais um maior grau de controlo consciente e coletivo passaria a ser exercido sobre
a dinâmica do sistema económico global.
Nesse contexto, o projeto de Kant para a paz perpétua é sugerido como a alternativa
mais convincente à proposta hegemónica. No entanto, também se constata que necessita
de reconstrução à luz da própria investigação de Habermas sobre processos de longo
prazo de pacificação legal do poder do estado.
A constituição política da sociedade mundial
O projeto de Kant é construído com base na constatação da ligação interna entre paz e
liberdade (Kant, 2015; Habermas, 2006: 175). Só sob condições de paz internacional é
que os seres humanos podem exercer um grau suficiente de controlo sobre as relações
interestatais que garanta que são capazes de autodeterminar livremente as suas
condições de existência e não serem arrastados pela dinâmica não planeada da
competição e conflito entre os estados. Tanto a pacificação como um controlo acrescido
das relações interestatais podem ser alcançados, na visão de Kant, através do
estabelecimento de um código de leis que regule todas as possíveis dimensões da
interdependência humana (Kant, 1991). Assim, a lei civil regula as relações entre os
cidadãos dentro de um estado; o direito internacional regula as relações entre estados;
e a lei cosmopolita regularia as relações entre estados e seres humanos na sua qualidade
de cidadãos do mundo.
Na interpretação de Habermas, (embora existam outras, vejam-se: Kleingeld, 2012;
Mikalsen, 2011), Kant considera que esse código legal exige a constituição de uma
federação mundial de estados republicanos com poderes coercitivos para assegurar o seu
cumprimento. Um entendimento que Habermas contesta ao afirmar que o
desenvolvimento histórico do direito internacional desde o tempo de Kant aponta para
uma conclusão diferente. Ou seja, que existe uma diferença importante entre o
desenvolvimento do controlo legal sobre o poder estatal dentro dos estados e o controlo
legal sobre o poder do estado nas relações internacionais (Habermas, 2006: 122). O
primeiro implica um processo em que um monopólio existente sobre os meios da
violência legítima passa a ser delimitado, no seu funcionamento, por leis civis que,
concomitantemente, dependem desse mesmo monopólio para garantir o seu
cumprimento. No caso do último, não existe monopólio supranacional sobre os meios de
violência legítima para assegurar a aplicação do direito internacional. Pelo contrário, o
direito internacional é desenvolvido e garantido com base na expectativa de autocontrolo
por parte dos estados. Assim, o desenvolvimento do direito internacional contraria o
desenvolvimento do direito civil, dado que o principal desafio ao nível das relações
internacionais é como tornar o direito internacional efetivo, e não como pacificar e
legitimar o poder de um monopólio sobre os meios da violência legítima existente
(Habermas, 2006: 172). A nível internacional, -se assim o que Habermas (2006: 134)
denomina de dissociação entre a lei e o poder do estado, o que não ocorre a vel
intraestatal.
Se a levarmos em consideração, esta dissociação’’ mostra que o modelo de Kant de um
estado democrático federal em grande escala - o estado global das nações ou república
mundial - é o errado (Habermas, 2006: 134). É errado não porque entende a
pacificação da política mundial como uma reprodução do processo que ocorreu ao nível
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intraestatal, mas também porque prevê que o monopólio dos meios de violência legítima
e do direito internacional permaneça fundidos numa única instituição, a federação
mundial de estados. Em vez disso, a análise do desenvolvimento histórico do direito
internacional revela uma dissociação entre o poder do estado e o direito, o que abre a
possibilidade de uma alternativa à federação mundial de Kant (veja-se: Beardsworth,
2011: 32).
Segundo Habermas, essa alternativa reside na possibilidade de existência de uma
sociedade mundial descentrada, como uma ordem global multinível que não tem o
caráter de um estado, mas garante o controlo democrático da dinâmica dos sistemas
interestatal e económico globais (Habermas, 2006: 136). Essa sociedade mundial
multinível implica não apenas a constituição dos três níveis do direito previstos por Kant
- respetivamente, civil, internacional e cosmopolita - mas também a criação de três veis
de decisão. Primeiro, o vel supranacional de uma organização mundial que é
responsável pelas tarefas claramente circunscritas de assegurar a paz e proteger os
direitos humanos sem, no entanto, assumir o caráter de uma federação mundial de
estados. Em segundo lugar, o vel transnacional no qual as grandes potências e as
uniões continentais de estados lidam com problemas económicos, sociais e ecológicos
através de conferências permanentes. E terceiro, o vel nacional em que o mundo da
vida de cada estado, expresso nas suas respetivas esferas públicas, pode readquirir o
controlo democrático sobre o poder estatal nacional e a economia nacional globalmente
ligada, dada sua integração na sociedade mundial multinível (Habermas, 2006: 136). Ao
enfatizar a pluralidade de ordens jurídicas numa sociedade mundial politicamente
constituída, Habermas rejeita efetivamente a noção de que o direito deve formar um
sistema normativo unitário e hierárquico. Em vez disso, prevê a coordenação de ordens
jurídicas a serem garantidas não por uma cadeia vertical de autoridade, mas sim pelo
funcionamento de processos deliberativos de consensualização de normas em diferentes
níveis de tomada de decisão.
Habermas (2006, p. 136) observa que, na atual conjuntura histórica, apenas as grandes
potências naturais, como os EUA, Rússia ou China, dispõem dos recursos necessários
para funcionar a nível transnacional e estabelecer regimes continentais que regulem
políticas económicas, sociais e ambientais nas suas respetivas áreas do mundo.
Consequentemente, a fim de dar forma a essa sociedade mundial politicamente
constituída, os estados nas várias regiões do mundo têm que se unir para formar regimes
continentais segundo o modelo da União Europeia (Habermas, 2006: 136). Com esta
proposta para a sociedade mundial politicamente constituída, Habermas pretende
mostrar que uma 'república mundial' não é a única forma institucional que o projeto
kantiano pode assumir, nem é o dispositivo orientador mais adequado para alcançar a
pacificação e democratização da política mundial, dado o potencial cognitivo reunido pelo
desenvolvimento histórico mundial (Beardsworth, 2011: 32).
As duas seções seguintes analisam de forma mais detalhada as reflexões de Habermas
sobre os veis transnacional e supranacional da sua proposta de sociedade mundial
multinível, centrando-se primeiro na sua ideia de União Europeia e depois nas suas
propostas de reforma das Nações Unidas.
O modelo europeu
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A proposta mais elaborada de Habermas para a constituição política da sociedade
mundial encontra-se na compilação de textos intitulada A crise da União Europeia: uma
resposta (2012). Nestes textos, Habermas defende que, sob condições de
interdependência global, os seres humanos podem alcançar um maior grau de controlo
democrático sobre as dinâmicas sistémicas globais que os ameaçam com perturbações
ambientais, económicas e sociais através da constituição de uniões continentais de
estados responsáveis pela regulação e coordenação de políticas nas suas respetivas áreas
do mundo.
A União Europeia (UE) constitui o mais sustentado esforço de sempre para alargar a
pacificação da vida social iniciada dentro dos estados até ao nível internacional. Esse
esforço foi desenvolvido para não só pacificar as relações interestatais de um continente
encharcado de sangue, mas também para desenvolver capacidades de tomada de
decisão e direção que permitam aos estados europeus exercer coletivamente um maior
grau de controlo sobre as dinâmicas dos sistemas internacional e económico que afetam
o continente como um todo e ignoram as fronteiras estatais (Habermas, 2012: 28). O
desenvolvimento do direito europeu que regula o comportamento dos estados sem a
constituição de um monopólio europeu sobre os meios de violência legítima tem sido um
aspeto essencial deste processo. As inovações que estão a emergir na UE podem, com o
tempo, servir de referência para outras instituições regionais menos integradas
(Habermas, 2001). Em particular, o facto de o direito europeu ser obedecido e ser
independente do direito nacional e do poder do estado estabelece um 'precedente' para
a política regional e global, efetivamente criando uma nova relação entre lei e poder.
Habermas defende que esta nova relação fornece um novo 'modelo' de organização
política a veis regional e global (Habermas, 2012, veja-se igualmente: Beardsworth,
2001: 98).
Contudo, Habermas também refere que o processo de democratização no contexto da
UE está longe de terminado. Um dos principais desafios é o facto de a integração
económica europeia não ter sido acompanhada pela criação de instituições políticas
democráticas capazes de regulamentar o mercado comum. A subordinação incessante
da UE à interdependência económica impulsionada por interesses empresariais como
principal força integradora e pacificadora no continente 'já não é aceitável' sem um
esforço simultâneo para aliar a lógica da eficiência do mercado à democratização das
instituições políticas europeias (Habermas, 2012, Verovšek, 2012: 369). Os processos
de tomada de decisão ao nível da UE continuam assim a ser predominantemente
moldados pelas relações de poder entre estados que escapam à influência das esferas
públicas nacionais, ao mesmo tempo que tomam decisões que têm um efeito profundo
nas condições de existência das populações de cada estado. Assim, o direito europeu,
enquanto possibilita a autorregulação do sistema europeu de estados, frequentemente
carece de legitimidade aos olhos dos cidadãos europeus, dado que não é constituído por
processos deliberativos de consensualização entre todos os que são por si afetados (veja-
se: Linklater, 2007; Fraser, 2007). O atual carácter da UE é assim melhor descrito como
uma forma de federalismo executivo em que o Conselho Europeu, composto por
representantes de cada estado, adota medidas que são implementadas a nível nacional
através de maiorias governamentais que enfraquecem o poder dos parlamentos
nacionais e escapam ao controlo dos públicos nacionais deliberativos (Habermas, 2012:
28). Como tal, os governos nacionais e as administrações burocráticas podem usar as
instituições europeias para escapar à regulamentação das esferas públicas nacionais e
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recuperar um grau de autonomia sistémica das restrições normativas dos mundos da
vida nacionais.
Habermas assim a UE como uma formação social altamente contraditória. Por um
lado, contribuiu para a pacificação das relações interestatais europeias e para o
desenvolvimento de instituições europeias capazes de alargar o controlo legal e
democrático sobre as forças sistémicas que ultrapassaram as fronteiras nacionais. Mas,
por outro lado, essas mesmas instituições reforçam a autonomia do poder do estado face
aos mundos da vida nacionais e diminuem o vel de controlo democrático coletivo que
as pessoas podem exercer sobre as suas vidas, tornando-se uma espécie de 'regra
burocrática pós-democrática' (Habermas, 2012: 52).
A UE é um 'paradoxo' na medida em que revela tendências visíveis para o
aprofundamento do seu défice democrático, ao mesmo tempo que reúne o potencial para
servir de veículo à extensão da governação democrática para além do Estado-nação e,
portanto, para o desenvolvimento de fronteiras democráticas sobre os 'impactos
socialmente corrosivos' da globalização (Habermas, 2001; Grewal, 2001).
Na avaliação de Habermas, a UE encontra-se numa encruzilhada. Por um lado, enfrenta
o perigo de aprofundar o seu fice democrático, tornando-se uma correia transportadora
para a transformação dos mundos da vida nacionais de acordo com as pressões
sistémicas das burocracias estatais e dos interesses capitalistas. Por outro lado, o
desenvolvimento histórico das instituições europeias e a pacificação legal do continente
constituem um acontecimento 'novo na política mundial, que reúne o potencial imanente
de alargar a tomada de decisões democráticas ao vel transnacional da sociedade
mundial. Tal extensão permitiria a constituição de uma 'democracia transnacional
europeia que aproximasse uma 'comunidade de comunicação ideal’ (Habermas, 2012:
52).
Para Habermas, a principal dificuldade da democratização da UE é que, com exceção do
Parlamento Europeu, as instituições democráticas de tomada de decisão continuam
ligadas ao vel estatal. Neste contexto, alguns autores argumentaram que a
democratização da UE é impossível, dada a ausência de um 'demoscomum para além
dos Estados-nação europeus, uma identidade coletiva europeia que crie laços de
solidariedade entre os cidadãos europeus e os torne num único sujeito constitucional
(Dahl, 1999). A tese do ‘sem demos’ pode, no entanto, ser contestada à luz da teoria da
evolução social de Habermas, que refere que enquanto a 'nação' serviu de base para a
comunidade política a vel estatal, o fez na medida em que foi a solução histórica
para a tensão inerente à identidade dos cidadãos modernos. Uma tensão entre o seu
caráter moral universal, que é 'mais adequado aos cidadãos do mundo', e a realidade da
fragmentação da política mundial entre os diferentes Estados-nação (Habermas, 1979:
115). Como tal, inerente às orientações morais da modernidade, está presente o
potencial cognitivo para superar a 'nação' como princípio fundamental de organização
das comunidades políticas (Habermas, 2006: 76).
Nas cosmovisões modernas e universalistas e nas suas estruturas da consciência reside
o potencial para a validade e legitimidade das normas sociais deixarem de ser
fundamentadas em identidades étnico-nacionalistas, para o passarem a ser em princípios
universais constituídos através de processos deliberativos de consensualização
envolvendo todos aqueles que por eles são afetados. Este caráter deliberativo da validade
e legitimidade do direito implica a sua dissociação das tradições nacionais partilhadas.
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Os processos de tomada de decisão relativos a problemas comuns podem assim ser
baseados em 'princípios de justiça' e não em termos do 'destino da nação', dada a forma
como a 'fixação emocional' das pessoas pode passar da comunidade étnico-nacional para
a lei deliberativamente constituída (Habermas, 2006: 77-78). Cada vez mais, a
'solidariedade vica' pode ser definida não por pertencer a um Estado-nação comum,
mas por constituir um compromisso comum para com os princípios constitucionais
deliberativamente alcançados e plasmados na lei. A partir dessa perspetiva, torna-se
possível conceber um 'alargamento' da solidariedade cívica e das fronteiras da
comunidade política para abranger os não-nacionais e os forasteiros como membros
legítimos de uma comunidade dialógica transnacional de colegisladores que estão
vinculados por normas comuns, e não por orientações culturais ou aspirações políticas
partilhadas (Linklater, 1998: 85; 2017). Habermas chama a esta solidariedade cívica
transnacional 'patriotismo constitucional’ (Habermas, 2006: 53; Habermas, 2006b: 118).
O patriotismo constitucional exprime um possível novo princípio de organização dos
Estados-providência e da política mundial que permite a expansão da solidariedade vica
para além das fronteiras da ‘nação'. Aponta para o possível aparecimento de uma
solidariedade vica à escala europeia que una pessoas de diferentes estados numa
constelação ‘pós-nacional através de um compromisso comum para com os princípios do
direito europeu, que coletivamente reconhecem como legítimos e válidos se estes
princípios derivarem de processos deliberativos de tomada de decisão envolvendo todos
aqueles que são afetados pelos mesmos. Portanto, o potencial cognitivo para o
desenvolvimento da democracia transnacional europeia se encontra presente nas
cosmovisões modernas e nas estruturas de consciência dos cidadãos dos Estados-
providência europeus modernos. De facto, segundo Habermas, a atualização parcial
desse potencial cognitivo das cosmovisões modernas já se observa na crescente
dissociação entre o direito europeu e o poder estatal. O Tratado de Lisboa é uma
expressão deste processo quando, na ausência de um monopólio europeu sobre os meios
de violência legítima, deriva a legitimidade do direito europeu dos princípios
constitucionais que foram constituídos pelo ‘duplo sujeito constitucional’ da UE, que é
definido como os povos nacionais (representados pelos seus estados) e os cidadãos da
União Europeia (Habermas, 2012: 37).
Na opinião de Habermas, o Tratado de Lisboa confirma, portanto, de jure o que a UE
historicamente negou de facto; isto é, que a legitimidade do direito europeu só pode ser
assegurada se derivar de processos deliberativos democráticos de tomada de decisão
envolvendo tanto os cidadãos como os Estados-membros da União. Por consequência, a
dissociação atual do direito europeu do poder do estado, na qual a UE está estruturada,
bem como a validade do direito europeu, podem ser mantidas se a União concretizar
o ideal da constitucionalização política da sociedade mundial a nível transnacional e
tornar o 'duplo sujeito constitucional da União uma realidade institucional (veja-se:
McCormick, 2007). O aparato institucional para a atualização do ‘duplo sujeito
constitucional´ existe, sob a forma de cidadania europeia e de instituições como o
Parlamento Europeu e o Conselho Europeu. O que é necessário é que essas instituições
integrem o potencial cognitivo reunido nas cosmovisões e nas estruturas de consciência
modernas dos cidadãos europeus, estabelecendo um processo de tomada de decisão
democrático com ‘duas vias’ em toda a Europa. Um processo que permita às pessoas,
tanto na qualidade de cidadãos europeus como de cidadãos dos respetivos estados
nacionais, participar no Parlamento e no Conselho na constituição do direito europeu
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(Habermas, 2012: 28). Este cenário implica que as ‘mesmas pessoas’ representarão
esses dois papéis em ‘união pessoal’ e adotarão ‘perspetivas de justiça distintas’,
dependendo de qual das duas vias de decisão for utilizada. O que conta como um
interesse ‘público’ em processos deliberativos em que se envolvam como cidadãos de um
estado, transforma-se num interesse ‘particularista’ nos processos deliberativos em que
participarem como cidadãos europeus (Habermas, 2012: 37). Esta tensão surge do
caráter dualista do processo decisório e tem consequências importantes para a natureza
democrática da União Europeia.
Por um lado, garante que o direito europeu possui realmente uma validade democrática
e que garante o seu poder de regular as relações interestatais, mesmo na ausência de
um monopólio europeu sobre os meios de violência legítima. Além disso, alarga também
o nível de controlo democrático que os cidadãos europeus são capazes de exercer sobre
os contextos sistémicos que afetam o continente europeu - sejam os das relações
interestatais ou os do mercado capitalista. Por outro lado, o facto de o duplo sujeito
constitucional da UE ser composto não pelos cidadãos europeus, mas também pelos
estados da União, significa que a legislação europeia não se pode sobrepor às legislações
constitucionais nacionais. Cada estado tem a possibilidade de salvaguardar o seu próprio
quadro legal e normativo interno, assegurando que o direito europeu deve garantir os
padrões de liberdades civis que já foram historicamente alcançados ao vel estatal.
Assim, o direito europeu integra as orientações ‘universais’ dos cidadãos europeus e
protege a ‘diferença’ dos vários biótipos culturais de cada um dos povos nacionais da
União (Habermas, 2012: 40). A transformação da União Europeia numa associação
democrática transnacional de estados e cidadãos contribuiria para a concretização do
novo princípio de organização da política mundial que é imanente nas cosmovisões e nas
estruturas de consciência modernas. Constituiria um ‘passo adicional’ na constituição
política da sociedade mundial e na democratização da política mundial ao permitir que
os blicos deliberativos adquirissem um maior grau de controlo coletivo e consciente
sobre as dinâmicas sistémicas das relações económicas interestatais e globais, que
escaparam ao seu controlo dentro dos Estados-providência (Linklater, 1998: 167;
Linklater, 2011).
Contudo, Habermas está bem ciente de que estes desenvolvimentos na União Europeia
se entrelaçam necessariamente com dinâmicas mais vastas do sistema internacional e
do capitalismo global, e que a democratização do nível transnacional da UE pode ser
bem-sucedida se enquadrada na democratização mais ampla da política mundial. A
próxima seção aborda a forma como as reflexões de Habermas sobre a UE são
complementadas pelo seu trabalho sobre o potencial da constitucionalização política do
nível supranacional da interdependência humana. Nomeadamente, considera a sua
proposta de uma reforma das Nações Unidas como condição para o alargamento do
controlo democrático sobre os sistemas interestatais e capitalista globais que atualmente
destroem a capacidade dos seres humanos de se autodeterminarem quanto às suas
condições de existência.
A condição cosmopolita
O objetivo de alargar o controlo legal democrático sobre os contextos sistémicos para
além das fronteiras nacionais é impulsionado por uma ‘constelação paralisante’ na política
mundial. A globalização da interdependência humana ‘esgotou’ a capacidade de resposta
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dos estados aos problemas colocados pelas forças sistémicas globais da competição
interestatal e do capitalismo, que se desenvolveram para além do controlo dos estados
ou uniões de estados mais poderosos (Habermas, 2012: 54). Assim, os esforços
transnacionais de regulação legal democrática, como os da União Europeia, devem ser
complementados por uma maior democratização da política mundial. Nomeadamente,
através de uma reforma das Nações Unidas que democratize o seu papel na definição
legal das condições de fronteira para o funcionamento das relações interestatais e dos
mercados capitalistas. Segundo Habermas (2006: 137), a reforma democrática da ONU
exige uma transição para uma ‘condição cosmopolita’ na política mundial, caracterizada
pela ‘substituição’ do direito internacional pelo direito cosmopolita. Ao contrário do direito
internacional atual, o direito cosmopolita seria o resultado de processos decisórios
envolvendo não apenas estados, mas também cidadãos do mundo na sua qualidade de
sujeitos constitucionais da organização mundial. A ONU teria assim de incorporar
institucionalmente as duas inovações que Habermas vê como imanentes no nível
transnacional da UE. Por um lado, teria que garantir a conformidade dos Estados-
membros com o direito cosmopolita, mesmo que o monopólio sobre os meios de violência
legítima permanecesse ao vel estatal. Por outro lado, teria de incorporar
institucionalmente um ‘duplo sujeito constitucional composto por cidadãos do mundo e
povos nacionais, representados pelos seus respetivos estados, ou por outras entidades
representativas, tais como ONGs no caso de povos subestatais ou apátridas (Habermas,
2012: 54).
Enquanto a primeira destas duas condições pode ser discernida no quadro institucional
das Nações Unidas, a atualização do segundo elemento requer a atribuição, a cada ser
humano do planeta, do estatuto de cidadão do mundo, e a constituição, paralelamente à
Assembleia Geral, de um 'parlamento mundial' composto pelos seus representantes
eleitos (Habermas, 2012: 58; veja-se o paralelismo entre a proposta de cidadania
mundial de Habermas e as avançadas por Apel (2007) que, no entanto, carece do nível
de compromisso de Habermas para com as mudanças institucionais que podem ser
necessárias para concretizar formas de cidadania mundial/cosmopolita). O parlamento
mundial não transformaria as Nações Unidas numa república mundial, mas reforçaria a
legitimidade democrática do direito cosmopolita ao tornar os cidadãos do mundo,
juntamente com os estados, um dos seus sujeitos constitucionais. Por outras palavras,
seria o mesmo que aconteceria numa UE transformada em democracia transnacional, em
que o direito cosmopolita não se sobreporia ao direito constitucional nacional ou às
conceções étnico-nacionais da boa vida. Os Estados-membros, como os segundos
sujeitos fundadores da constituição, seriam capazes de proteger as suas disposições
internas da lei cosmopolita que não cumprisse os seus padrões de liberdades civis
(Habermas, 2012: 58). Além disso, uma vez que a organização mundial não é uma
federação mundial de estados e não possui um monopólio supranacional sobre os meios
de violência legítima, teria que confiar nos ‘monopolistas nacionais’ para assegurar o
cumprimento das suas tarefas, incluindo as que propõem a implementação de medidas
coercivas para restabelecer o cumprimento da lei cosmopolita. A necessidade de que a
organização mundial confie nos Estados-membros dessa forma não apenas confirma a
dissociação entre a lei e o poder estatal que caracteriza a constituição política da
sociedade mundial, mas também assegura a proteção da autonomia dos estados através
da manutenção do monopólio sobre os meios de violência legítima ao nível estatal
(Habermas, 2012: 61). Desse modo, a democratização da política mundial concebida por
Habermas efetivamente ‘uniria’ o ideal kantiano de participação igualitária de um reino
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universal de fins com o projeto marxista de desmantelar sistemas de dominação e
exclusão que minam a autonomia humana ao promover novas relações entre
universalidade e diferença (Linklater, 1998).
Segundo Habermas, é essencial, a esse respeito, que a organização mundial se restrinja
às funções de manutenção de paz e proteção dos direitos humanos, deixando os
processos de tomada de decisão relacionados com problemas económicos, sociais ou
ecológicos para o nível transnacional da sociedade mundial. A restrição da ONU a esse
conjunto restrito de funções centrais assenta no argumento que as questões relacionadas
com problemas económicos, sociais ou ecológicos, apesar de expressarem um ‘interesse
abstrato partilhado por todos os seres humanos, implicam necessariamente respostas
que se relacionam com conceções de boa vida específicas (Habermas, 2012: 63). São
questões cujas respostas envolvem a autoafirmação de identidades culturais e políticas
específicas e, enquanto tal, ao mesmo tempo que admitem a consensualização entre
pessoas que partilham características culturais comuns como parte da sua história
coletiva e pertencentes a uma determinada região do globo, não são passiveis de
respostas verdadeiramente universais decorrentes de processos globais de
consensualização entre cidadãos do mundo. Consequentemente, estas questões devem
ser tratadas a nível transnacional, onde as uniões continentais de estados nas mesmas
áreas culturais podem potencialmente aproximar-se de acordos comuns sobre ‘formas
de vida’ preferíveis (Habermas, 2012: 63).
No entanto, a mesma análise não se aplica a questões de paz mundial e direitos
humanos. Na avaliação de Habermas (2012: 64), essas questões traduzem um interesse
geral a priori partilhado pela população mundial que se situa além de todas as divisões
político-culturais’, na prevenção da violência e na expressão de solidariedade para com
tudo que tenha uma face humana'. Essas questões têm um caráter inerentemente
universal, na medida em que a vulnerabilidade humana partilhada à guerra e à violência
é uma característica comum da espécie (veja-se Linklater, 2011). Como tal, a sua
discussão poderá produzir respostas verdadeiramente universais, alcançadas através de
processos globais de consensualização de normas envolvendo cidadãos do mundo e todos
os estados nos quais a humanidade se divide. A organização mundial deve, portanto,
restringir-se às questões relativas ao interesse humano universalmente partilhado.
De acordo com Habermas, o caráter universal, comum a toda a espécie, das funções
primordiais da ONU também significa que a organização mundial tem requisitos de
legitimidade distintos dos presentes ao vel transnacional nas uniões continentais. Dado
que os ‘deveres negativos de evitar violações injustificáveis dos direitos humanos e
guerras de agressão estão enraizados no conteúdo moral primordial de todas as
principais religiões mundiais e das culturas que nelas assentam’, a solidariedade cívica
global entre os cidadãos do mundo pode basear-se nestas convicções partilhadas e não
exige um compromisso coletivo mais profundo com uma conceção comum de ‘boa vida’,
como ocorre a nível transnacional (Habermas, 2012: 65). Consequentemente, a
avaliação democrática dos processos de tomada de decisão deliberativos do parlamento
mundial pode basear-se apenas na expressão do, na essência moralmente justificados,
"sim" ou do "não" na aplicação supranacional de princípios e normas morais
presumivelmente partilhados' (Habermas, 2012: 65). Assim, embora a legitimidade do
direito aovel transnacional europeu exija não apenas um duplo sujeito constitucional,
mas também a consideração permanente de questões transnacionais na esfera pública
europeia, os requisitos de legitimidade mais fracos do direito cosmopolita não requerem
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a formação de uma esfera pública global permanente. Simplesmente exigem que a
constituição temática e temporalmente circunscrita de um blico global seja
desencadeada intermitentemente por este ou aquele grande acontecimento sem adquirir
permanência estrutural’ (Habermas, 2012: 62).
Conclusão
As reflexões de Habermas sobre a possibilidade de democratização da política mundial
são um importante ponto de partida para discutir a forma como lidar com a erosão da
capacidade dos públicos democráticos ligados ao estado de controlar os processos sociais
que os unem à escala global. Na avaliação de Habermas, a resposta a essa erosão exige
um novo princípio de organização para a política mundial, cuja atualização se encontra
imanente no potencial cognitivo reunido nas estruturas de consciência modernas pelo
longo processo de desenvolvimento humano. Segundo Habermas, o potencial cognitivo
da modernidade implica a possibilidade de uma dissociação entre democracia e poder
estatal, com base na qual a constituição política da sociedade mundial pode ter lugar de
maneira a restabelecer o equilíbrio entre a política democrática e os imperativos
sistémicos do capital global e das relações entre estados. A sua teoria da evolução social
fornece assim uma abordagem interessante para umas RI criticamente comprometidas
com cumprir o seu papel de ser um meio de orientação mais adequado para lidar com os
desafios impostos pela complexidade da interdependência global humana. Por outras
palavras, umas RI que procuram constituir-se como uma estrutura orientadora que pode
ajudar as pessoas a compreender-se melhor, assim como o seu contexto histórico atual,
e identificar que tipo de inovações institucionais internacionais são necessárias para
realizar o potencial inerente à modernidade no que concerne o aumento da capacidade
dos seres humanos autodeterminarem as suas condições de existência.
As propostas de Habermas, no entanto, constituem apenas um ponto de partida para o
desenvolvimento de essas RI. É necessário trabalho adicional, especialmente para melhor
unir as propostas teórico-filosóficas de Habermas às análises histórico-sociológicas mais
concretas da política mundial. Por exemplo, é discutível se a restrição que Habermas faz
das funções da organização mundial às de manutenção da paz e dos direitos humanos
argumentando que essas funções, ao contrário das relacionadas com problemas
económicos, sociais e ecológicos, o mais universais e menos dependentes de conceções
específicas da boa vida é completamente sustentável. A história demonstra que
assuntos como a manutenção da paz e os direitos humanos estão tão politizados e
dependentes de conceções específicas da boa vida como os relacionados com problemas
económicos, sociais e ecológicos. Encontramos provas suficientes disso nos numerosos
debates no Conselho de Segurança em torno da legitimidade das intervenções
internacionais em nome da manutenção da paz ou em debates recentes sobre se os
direitos humanos, como atualmente concebidos, são verdadeiramente universais, ou se
o seu conteúdo ainda reflete uma fase da predominância das potências ocidentais na
sociedade internacional (vejam-se: Sun, 2016; Qi, 2005; Regilme, 2018). Além disso, os
desenvolvimentos recentes na política mundial têm assistido a organizações
internacionais a nível transnacional, como a União Europeia ou a União Africana, a
assumir, ou com a intenção de assumir, um papel maior a nível da manutenção da paz
e da segurança nas suas respetivas áreas do mundo (vejam-se: Joshua e Olanrewaju,
2017; Nováki, 2018). E, finalmente, é altamente discutível se os problemas que resultam
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da interdependência económica, social e ecológica podem ser adequadamente tratados
puramente ao vel das uniões continentais transnacionais, ou se essas questões,
especialmente no contexto da globalização capitalista cada vez mais descontrolada e de
processos globais de alterações climáticas, não exigem também algum grau de
coordenação global, que necessariamente teria que decorrer ao vel da organização
mundial proposta por Habermas.
Como tal, a abordagem crítica de Habermas à política mundial precisa de ser mais
desenvolvida, designadamente através de um envolvimento mais profundo com o estudo
histórico-sociológico da política mundial, a fim de divulgar os potenciais para o
desenvolvimento do tipo de visão cosmopolita’ que Habermas acalenta (veja-se: Beck,
2006). Os recentes desenvolvimentos na teoria crítica internacional aparentam estar a
avançar nessa direção, seja apelando a um maior compromisso histórico-sociológico
(Schmide, 2018, Devetak, 2018), ou procurando desenvolvê-lo eles próprios (Linklater,
2016). Cabe aos estudiosos contemporâneos e futuros concluir essa tarefa e perceber
se, e como, a visão ética de Habermas sobre o futuro da política mundial pode ser
materializada.
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