OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 10, Nº. 1 (Maio-Outubro 2019)
Vol 10, Nº. 1 (Maio-Outubro 2019)
ARTIGOS
Isomorfismo institucional e a continuidade da ordem internacional atual - Vítor Ramon Fernandes
pp 1-14
Jürgen Habermas e a democratização da política mundial - André Saramago pp 15-30
A relevância das sessões especiais no âmbito do trabalho do Conselho de Direitos Humanos: a
proteção da população civil nos conflitos internos atuais - Sónia Roque pp 31-44
Agenda-setting e framing na política externa: o caso da cobertura televisiva russa e ucraniana do
Caso da Crimeia - Yuliia Krutikova, Maria Raquel Freire e Sofia José Santos - pp 45-67
A adequação dos meios de cooperação internacional para combater o cibercrime e formas de
modernizá-los - Farouq Ahmad Faleh Al Azzam pp 68-86
Least Developed Countries (LDC): por um orçamento global de carbono justo entre nações - Gustavo
Furini pp 87-101
O papel da política e do ambiente institucional no empreendedorismo: evidência empírica de
Moçambique - Renato Pereira e Redento Maia pp 102-116
La inversión de las empresas españolas en America Latina, patrones y rasgos determinantes- Gonzalo
Gonzalez e Rafael Myro Sánchez pp 117-130
Intenções e motivações de mobilidade internacional de uma comunidade de estudantes da
Universidade do Algarve - Margarida Viegas e Rita Baleiro pp 131-149
NOTAS
A cooperação transfronteiriça na Eurorregião Galiza-Norte de Portugal - Vera Ferreira pp 150-158
RECENSÃO CRÍTICA
Sá, Tiago Moreira de; Soller, Diana (2018). Donald Trump: O Método no Caos. Alfragide, Publicações
Dom Quixote, 2018, 227 páginas - Patrícia Caetano 159-162
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ISOMORFISMO INSTITUCIONAL E A CONTINUIDADE DA ORDEM
INTERNACIONAL ATUAL
Vítor Ramon Fernandes
vitor.fernandes60@gmail.com
Professor Auxiliar na Universidade Lusíada (Portugal) e Professor Visitante na Universidade de
Cambridge (Wolfson College) e, anteriormente, no Departamento de Política e Estudos
Internacionais.
Resumo
As ordens internacionais refletem os entendimentos que definem as relações entre os estados
em determinados momentos da história. A ordem falha quando o conjunto adotado de
princípios organizacionais que definem os papéis e os termos dessas relações deixam de
funcionar. As organizações internacionais são uma característica central da ordem atual e
uma importante fonte de legitimidade. Este artigo apoia-se num conjunto de ideias derivadas
da nova literatura do institucionalismo sociológico sobre análise organizacional e apresenta
um argumento que mostra as suas possíveis implicações para a ordem atual. Defendo que
existem certas características organizacionais relacionadas com o isomorfismo institucional
que podem sustentar a continuidade e manutenção da presente ordem internacional. O
argumento baseia-se na homogeneidade de práticas e enendimentos identificados em
diferentes instituições e organizações. A continuidade dessas práticas e a sua reprodução em
estruturas são, até certo ponto, auto-sustentáveis e podem fornecer apoio adicional à ideia
de que a atual ordem internacional liderada pelos americanos pode durar mais do que se
pensa, ao mesmo tempo que permite mudanças na distribuição de poder.
Palavras chave
Organização Internacional; Novo Institucionalismo; Isomorfismo Institucional; Campo
Organizacional; Ordem Internacional
Como citar este artigo
Fernandes, Vitor Ramon (2019). "Isomorfismo institucional e a continuidade da ordem
internacional atual". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 10, N.º 1, Maio-
Outubro 2019. Consultado [online] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.1.1
Artigo recebido em 27 de Maio de 2018 e aceite para publicação em 02 de Fevereiro de
2019
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Isomorfismo institucional e a continuidade da ordem internacional atual
Vítor Ramon Fernandes
2
ISOMORFISMO INSTITUCIONAL E A CONTINUIDADE DA ORDEM
INTERNACIONAL ATUAL
1
Vítor Ramon Fernandes
Introdução
Considera-se que a atual ordem internacional
2
está a mudar. Estão a decorrer mudanças
de poder e a questão sobre a natureza dessa mudança é crucial. De uma perspetiva
crítica, é importante saber se as transições de poder em curso conduzirão a uma ordem
bipolar, ou mesmo multipolar. Além disso, será importante ver se haverá grandes
mudanças na natureza operacional dessa ordem, ou se conservará muitas das suas
principais características, nomeadamente em relação ao papel e à importância das
organizações internacionais.
3
Fazendo um balanço da importância que as organizações internacionais e outras
instituições tiveram na criação e manutenção da atual ordem internacional, o principal
argumento que aqui se apresenta é que também um conjunto de ideias proveninentes
da sociologia que podem ajudar a sustentá-la.
uma série de características organizacionais pertencentes à teoria organizacional
relacionadas com o isomorfismo institucional que devem ser consideradas, uma vez que
provavelmente exercem uma influência importante no modo como as organizações
internacionais funcionam e prestam um apoio significativo à continuidade da atual ordem
internacional. Essas ideias decorrem do trabalho relacionado com o novo
institucionalismo
4
na teoria e sociologia das organizações - o novo institucionalismo
sociológico.
Esta abordagem rejeita os modelos de atores racionais e considera as instituições como
variáveis independentes em alternativa às abordagens mais convencionais que encaram
1
A tradução deste artigo foi financiada por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e
a Tecnologia no âmbito do projeto do OBSERVARE com a referência UID/CPO/04155/2019, e tem como
objetivo a publicação no JANUS.NET. Texto traduzido por Carolina Peralta.
2
Considera-se ordem internacional o conjunto de normas, regras e entendimentos entre estados que
orientam as interações entre si e, em particular, a forma como as grandes potências interagem entre si e
com outros estados (veja-se, por exemplo, Ikenberry, 2001, 2014).
3
As organizações internacionais são aqui definidas, essencialmente, como organizações que têm
representantes de três ou mais estados que apoiam um secretariado permanente e que são designados
para executar certas tarefas para alcançar certos objetivos definidos e comuns. Nesse sentido, abrange
apenas organizações governamentais internacionais. No entanto, embora o foco da análise se centre nelas,
muito do que é discutido neste artigo também se aplica a outras organizações internacionais, como as
organizações não governamentais. Sobre este assunto, veja-se, por exemplo, Archer (2014).
4
Tal como observado por Powell e DiMaggio (1991: 1): “existem muitos 'novos institucionalismos'”. Neste
artigo, debruço-me sobre o Novo Institucionalismo nos estudos organizacionais e na sociologia. As suas
características tornar-se-ão mais claras à medida que prossigo.
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as instituições como sendo consequência de motivos e ações baseadas simplesmente no
comportamento racional (Powell e DiMaggio, 1991). O novo institucionalismo sociológico
é a teoria mais influente das últimas décadas que estuda questões relacionadas com o
desenvolvimento institucional. Baseia-se em argumentos que diferem bastante da linha
de investigação mais comum sobre o papel e a importância das organizações
internacionais, principalmente na criação e manutenção da atual ordem internacional
dentro da teoria institucional liberal e da teoria do regime. É-lhe, no entanto,
complementar.
O resto do artigo desdobra-se da seguinte maneira: na primeira seção, apresento uma
breve análise da atual ordem internacional com o objetivo de caracterizar o contexto
geral do argumento principal. Aqui, além de uma série de considerações gerais sobre a
natureza e estabilidade da ordem atual simultaneamente contextualizando algumas
das mudanças de poder que estão a fazer-se sentir, mais notavelmente com a ascensão
da China revejo a importância que as organizações internacionais detiveram nessa
ordem até ao momento. Na segunda seção, teço uma série de considerações sobre a
natureza das organizações internacionais, chamando a atenção para os seus princípios
organizadores e elementos, tais como burocracias. Aqui, assinalo algumas das
características mais importantes das organizações internacionais, sob a forma de
burocracias do ponto de vista da teoria organizacional, a fim de destacar a sua relevância
na política internacional. Nesta seção, discuto igualmente a importância do poder no
contexto das organizações internacionais. Na seção seguinte, refiro algumas das
abordagens mais conhecidas que podem ser utilizadas no estudo das organizações, com
o objetivo de contextualizar a perspectiva que adoto no meu argumento principal.
Destaco igualmente algumas das diferenças entre essas perspectivas. A seção seguinte
apresenta os principais argumentos sobre o isomorfismo institucional baseado nos
trabalhos de Meyer e Rowan (1977), e DiMaggio e Powell (1983), uma vez que são
essenciais para o argumento principal. De seguida, defendo que os mecanismos
identificados como fontes de isomorfismo e, de fato, de alguma homogeneização
resultante do isomorfismo institucional, provavelmente desempenharão um papel
importante na manutenção da atual ordem internacional. O artigo termina com uma
conclusão dos principais argumentos.
A estabilidade duradoura da atual ordem internacional
Na literatura das relações internacionais, muito se tem escrito sobre o papel das
organizações internacionais e outras instituições na atual ordem internacional, e,
sobretudo, como têm cconstituído uma parte essencial dessa ordem desde o fim da
Segunda Guerra Mundial. Um atributo muito importante tem sido o de fornecer
legitimidade coletiva. Esta última é muito importante, dado que “a legitimidade é uma
propriedade de uma norma ou instituição normativa que por si exerce uma atração
rumo à conformidade nos assuntos abordados de forma normativa, porque os visados
acreditam que a norma ou as instituições surgiram e operam de acordo com princípios
geralmente aceites do devido processo” (Franck, 1990: 24). As ordens internacionais
refletem os entendimentos estabelecidos que definem as relações entre os estados em
determinados momentos da história. A ordem desfaz-se quando o conjunto adotado de
princípios organizacionais que definem os papéis e os termos dessas relações deixam de
funcionar. As regras e instituições acordadas limitam o poder do Estado, e as
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organizações internacionais são uma característica central da atual ordem, assim como
uma importante fonte de legitimidade (Ikenberry, 1998/99, 2001, 2014).
Desde o colapso da União Soviética, os Estados Unidos têm desfrutado de um poder
inigualável no sistema internacional, com um vel de preponderância de poder que
nenhum outro estado igualou na história moderna. Por essa razão, essa ordem é
caracterizada como unipolar. O tempo di se, e quando, retornaremos a um tipo
diferente de ordem, bipolar, como foi o caso durante a guerra fria, ou multipolar, como
muitos previram que ocorreria logo após o fim da União Soviética. No entanto, até agora
isso não aconteceu. Contudo, parece provável que os Estados Unidos e a China continuem
a ser as duas maiores potências do sistema internacional nas próximas décadas, à
medida que a economia chinesa continua a crescer a um ritmo acelerado, possivelmente
superando os Estados Unidos em várias frentes e apesar de ainda estar muito atrás em
termos de poder militar
5
.
Será crucial observar como a relação entre esses dois países, o obstante outros, se
processará. Em grande parte, a questão incide também sobre o relacionamento entre a
China e a ordem ocidental liberal que surgiu após a Segunda Guerra Mundial através da
liderança dos Estados Unidos (Ikenberry, 2013). A China ainda parece estar longe de se
tornar a primeira potência, ou superpotência, do mundo.
6
Também não parece querer
liderar o mundo de maneira missionária. No entanto, a China vai querer impulsionar os
seus interesses e isso provavelmente significará que a energia mundial no futuro será
partilhada entre os Estados Unidos e a China. Neste contexto, existe a possibilidade de
estes países conseguirem encontrar formas de gerir as suas diferenças e poderão
desenvolver perspectivas de cooperação política, económica e de segurança que
conduzam à paz e estabilidade no sistema internacional. Além disso, enquanto a China
provavelmente desejará reformar partes da ordem internacional assente em normas do
pós-guerra de forma a melhor atender aos seus interesses, isso poderá acontecer sem
grandes mudanças na forma como opera. Contudo, a possibilidade de conflito no futuro
existe se as rivalidades não forem contidas. A diplomacia de Pequim tem sido por vezes
considerada um desafio, um tanto perturbante e muitas vezes transtornante em várias
ocasiões (Christensen, 2011; Shambaugh, 2011). Existe também algum ceticismo
quanto ao relacionamento entre estados poderosos e organizações internacionais. Além
disso, os estados poderosos frequentemente submetem muitas das normas das
organizações internacionais à sua vontade. Não obstante, a adeo a essas organizações
e às normas que elas representam podem ser usadas como uma forma de demonstrar
poder e obter vantagens. A China continuará a tentar limitar e estabelecer limites ao
poder dos Estados Unidos e as organizações internacionais podem ser instituições
eficazes para esse fim.
Esta ordem também tem sido relativamente estável, apesar de algumas mudanças
significativas na distribuição global do poder que parecem difíceis de negar e que ainda
estão em curso
7
.
5
O poder militar é um elemento crucial, principalmente em termos de polaridade. A diferença considerável
que ainda existe entre os Estados Unidos e a China nessa frente é, a meu ver, considerada essencial para
caracterizar o sistema internacional como unipolar.
6
Resta ver se alguma vez o será.
7
Como um árbitro anónimo me chamou a atenção, exemplos como a criação do Asian Infrastructure
Investment Bank - que é considerado um concorrente do Banco Mundial - podem ser vistos como o resultado
da incapacidade deste último de permitir mudanças na distribuição do poder. O meu argumento difere no
sentido que considero essa situação uma possível circunstância do ajustamento dentro da ordem
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Essa estabilidade parece dever-se a vários fatores institucionais, incluindo um número
de “características constitucionais” (Ikenberry, inverno 1998/1999: 45) que mitigam as
diferenças de poder existentes entre estados e as suas implicações, reduzindo assim a
necessidade de equilíbrio entre os estados. Com as suas regras e normas, as instituições
são, assim, uma componente importante da ordem internacional, exibindo o que
Ikenberry (inverno 1998/1999: 46) define como características de “retornos crescentes”.
Isso pode ser considerado relevante no sentido de que quanto mais se tornam parte da
atual ordem internacional, mais ajudam a mantê-la e tornam mais difícil derrubá-la. Além
disso, a atual ordem internacional liberal pode ser organizada de diferentes maneiras.
Evoluiu com o tempo e pode continuar a evoluir (Ikenberry, 2009). Pode estar mais ou
menos ligada às normas e instituições existentes, pode ser mais ou menos aberta, e mais
ou menos assente em regras ou institucionalizada.
A natureza das organizações internacionais
Independentemente da questão em causa na política mundial, seja por questões de
conflito, económicas ou financeiras, humanitárias, preocupações ambientais ou qualquer
outra, encontraremos organizações internacionais envolvidas. A sua função é muito mais
do que apenas estabelecer ou executar acordos internacionais entre estados, que
moldam a ordem internacional global e, particularmente desde a Segunda Guerra
Mundial, são fulcrais para a construção da ordem e da sua manutenção. As organizações
internacionais geralmente tomam decisões com autoridade que têm alcance e âmbito
global. Em muitas situações, as organizações internacionais atuam como facilitadoras da
coordenação de políticas, enquanto mecanismos para administrar e legitimar as soluções
de problemas que, de outra forma, seriam geridos por estados independentes num
mundo interdependente e que simplesmente permaneceriam sem solução.
Basicamente, as organizações internacionais são estruturas burocráticas que continuam
a ser a estrutura privilegiada para a organização do trabalho num mundo complexo
(Weber, 1947; Weber, Roth e Wittich, 1978). As burocracias são consideradas o sistema
mais eficiente de organização e a maneira mais eficaz de racionalizar processos no mundo
atual, dadas algumas das características que lhe estão associadas, ou seja, esferas de
competência definidas dentro de uma divisão de trabalho com alguma hierarquia. Além
disso, o trabalho necessário e a persecução dos objetivos definidos são realizados de
acordo com regras e procedimentos operacionais, e independentemente das pessoas que
trabalham numa dada altura, ou seja, o impessoais. Permitem que uma organização
responda de forma mais eficaz e previsível às solicitações. Como tal, as burocracias são
grupos de regras que definem tarefas sociais complexas dentro de uma certa divisão do
trabalho na persecução de certos objetivos.
As burocracias também afetam o comportamento de outros atores dentro do sistema
internacional, como países e outras burocracias (Krasner, 1983; Keohane, 1984).
Também definem e criam regras que têm impacto no mundo social. Um exemplo disto
seria o caso do Fundo Monetário Internacional (FMI), no sentido de criar regras para
administrar problemas de balanço de pagamentos ou atividades relaccionadas com
procedimentos institucionalizados para resolver problemas específicos ou realizar certas
internacional para permitir mudanças na distribuição de poder e manter as suas principais características.
Veja-se também a nota de rodapé 12.
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tarefas. Não menos importante, a cultura burocrática tende a guiar a ação, embora não
a determine, pois os burocratas tendem a partilhar uma visão semelhante do mundo,
que essas burocracias influenciam os seus interesses (Campbell, 1998; Immergut, 1987;
Swidler, 1986).
Outro tema crucial relacionado com os organizações internacionais é o poder.
8
Muito se
diz acerca do poder e das organizações internacionais e, nesse aspeto, é importante
distinguir o poder nas organizações internacionais do poder dessas organizações. Mais
especificamente, pode-se pensar em poder dentro das organizações no sentido da
capacidade que os membros dessas organizações têm na criação e funcionamento dessas
organizações. O mesmo pode ser dito em termos de capacidade de negociação e
capacidade de definição de agendas. No entanto, aqui quero concentrar-me no poder das
organizações. Ou seja, a ideia que essas organizações internacionais têm poder
independente e não militar.
Esse poder também pode ser expresso em termos de influência dentro dessas
organizações, nomeadamente através da definição de agendas e da criação de
procedimentos. Um exemplo seria as Nações Unidas em relação à paz e segurança
internacionais. Esse poder surge da autoridade moral, que confere legitimidade à
organização específica para atuar de maneira despolitizada e de um ponto de vista
imparcial. No entanto, também pode ser usado para impulsionar determinadas posições
políticas e agendas.
A outra fonte de poder nas organizações internacionais é a produção e controlo de
informações. Muitas vezes, esse poder autoritário está relacionado com a capacidade de
usar as “comunidades epistémicas” (Haas, 1992: 3), que permite que as organizações
se apresentem como despolitizadas e enfatizem um ponto de vista objetivo em relação
ao conhecimento. Mais uma vez, um bom exemplo disso seria o FMI em relação a
alegações acerca de decisões sobre política monetária, mas muitas outras organizações
também podem fornecer exemplos semelhantes. Isto porque os burocratas possuem
informações que os outros não possuem ou, alternativamente, porque podem influenciar
as informações que os outros atores devem reunir e indicar que podem aumentar o seu
controlo sobre os resultados. Além disso, o poder burocrático pode incluir a capacidade
de transformar informação em conhecimento, conferindo-lhe significado, o que também
pode ter efeito na formação da realidade social. Tudo isso proporciona uma maneira de
estabelecer regras e normas que as organizações internacionais desejam disseminar
como modelos de comportamento bom e adequado (Finnemore, 1996; Katzenstein,
1996; Legro, 1997). Considera-se que uma das funções das organizações internacionais
é a criação, disseminação e aplicação de valores e normas que devem definir o que
constitui o comportamento aceitável e legítimo do Estado.
Diferentes abordagens no estudo das organizações internacionais
Tradicionalmente, as organizações internacionais têm sido estudadas a partir de uma
perspectiva institucional (Kratochwil e Ruggie, 1986). Nessa perspectiva, que é estática
e não permite compreender muitas das mudanças que ocorrem nessas instituições, a
maneira de proceder é geralmente através do estudo das suas estruturas formais,
princípios organizadores e hierarquias, o que permite entender o que uma organização
8
Para uma boa discussão sobre poder e organizações internacionais veja-se, por exemplo, Barkin (2013).
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específica pode e o pode fazer. Por exemplo, seria impossível entender as ações e
políticas das Nações Unidas sem saber como funciona o poder de veto dos cinco membros
permanentes do Conselho de Segurança. O mesmo se aplica aos procedimentos de
empréstimo do FMI ou do Banco Mundial sem entender os processos de votação. Além
disso, é importante ter em conta que essas organizações têm funcionários
administrativos e políticos nomeados. Deve fazer-se uma distinção chave aqui, dado que
a lealdade primordial dos primeiros é para com a organização e os seus objetivos,
enquanto a lealdade principal dos segundos é para com os seus respectivos governos.
Este fato tem importantes implicações para as organizações governamentais
internacionais.
As abordagens funcionalista e neofuncionalista tentam lidar com o fato das organizações
internacionais mudarem e evoluíram com o tempo à medida que surgem novas
exigências e se tornam mais internacionais, alimentadas pelo aumento da cooperação.
As diferenças entre as primeiras e as segundas é que esta última também tenta explicar
as exigências políticas e os processos de integração, além dos de cariz técnico (Barkin,
2013: 29-40). Algumas perspectivas funcionalistas consideram que as organizações
internacionais existem devido às funções que desempenham, no sentido que os estados
as criam para tentar superar problemas e dificuldades que, de outro modo, não seriam
possíveis de ultrapassar, ou, simplesmente, muito dispendiosas. A natureza da sua
atenção tende a concentrar-se em questões relacionadas com custos de transação,
informações incompletas e outras barreiras que os estados tentam ultrapassar, mas que,
basicamente, não levam em conta o papel mais independente das organizações
internacionais, que permite a criação de agendas independentes.
Não obstante, vale a pena notar que a análise funcionalista também deixa em aberto
outras dimensões importantes que se tornaram cada vez mais importantes nos últimos
anos, particularmente no atual contexto internacional e na presente administração dos
EUA. De particular importância, várias organizações internacionais, como as Nações
Unidas, a Organização Mundial do Comércio e a UNESCO, entre outras, tornaram-se um
campo de batalha no qual os estados operaram para salvaguardar os seus interesses na
política mundial, refletindo as mudanças de poder que vão tendo lugar.
9
Embora exista
o risco de esta situação ameaçar a manutenção da atual ordem internacional no futuro,
particularmente se a mesma persistir, esse facto não afeta a precisão do meu argumento
principal.
A abordagem predominante na análise das organizações internacionais no campo da
política internacional é, com toda a probabilidade, a análise dos regimes.
10
De acordo
com esta abordagem, as organizações internacionais são consideradas estruturas formais
que “podem ser definidas como conjuntos de princípios implícitos ou explícitos, normas,
regras e processos de tomada de decisão em torno dos quais as expectativas dos atores
convergem numa determinada área das relações internacionais” (Krasner, 1983: 2).
Como tal, muitas vezes conduzem à criação de instituições, algumas das quais são
organizações internacionais que promovem a cooperação (Krasner, 1983; Keohane,
1984; Young, 1982, 1986). Alguns autores até argumentam que existe sempre um
regime quando um padrão regular de comportamento que é sustentável por um
período significativo de tempo (Puchala e Hopkins, 1982). Nesse sentido, os regimes e
9
Agradeço a um dos árbitros anónimos por me ter referido este ponto.
10
Os regimes internacionais são geralmente considerados acordos multilaterais baseados na noção de que a
cooperação internacional é possível e existe.
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os comportamentos estão intimamente ligados. Por sua vez, este aspeto pode ajudar a
manter a ordem atual. No entanto, uma ideia crucial nessa abordagem é que as
organizações internacionais não têm agência. O seu papel é a imagem habitual das
organizações internacionais, vistas como instrumentos que os estados utilizam para
alcançar os seus próprios objetivos (Archer, 2014: 117).
O que é aqui é significativo e diferente do que é geralmente considerado na teoria dos
regimes, é o facto de vários autores das relações internacionais, alguns dos quais de
tendência construtivista, terem contestado o valor da abordagem centrada no ator
racional no estudo das instituições. Tendem a adotar uma perspectiva mais orientada
para o processo, no qual as instituições constituem atores (Estados), mas também os
limitam, o que faz com que os formuladores de políticas levem em consideração normas
e regras nos seus processos de decisão (Ruggie, 1982; Kratochwil e Ruggie, 1986;
Krasner 1988; Keohane, 1988). Na sua perspectiva, as organizações internacionais
promovem a disseminação de normas por causa do enfoque na tentativa de gerar
consenso através do multilateralismo. Segundo Acharya (2006: 113) “Sem o
multilateralismo, as normas de soberania não se teriam tornado uma característica tão
proeminente da ordem internacional do pós-guerra”. Agir de acordo com as normas
internacionais conduz à disseminação de normas, onde uma norma pode ser identificada
como “um padrão de comportamento apropriado para atores com uma determinada
identidade” (Finnemore e Sikkink, 1998: 891). Além disso, facilita a aprovação interna
para a operacionalização da ação, uma vez que “as regras e normas internacionais podem
afetar as escolhas políticas nacionais, ao funcionarem através do processo político interno
(Cortell e Davis, 1996: 471). Além disso, as normas são importantes e têm um impacto
real e relevante na maneira como os estados se comportam. Este fato acontece através
de efeitos ‘reguladores’, no sentido de que induzem os estados a comportarem-se de
uma determinada maneira, ou de uma maneira ‘constitutiva’, o que significa que
influenciam as preferências e interesses dos estados (Glanville, 2016: 186-187). Outros
autores argumentam que, sob certas condições restritivas do fracasso das ações
individuais dos Estados para assegurar resultados ótimos de Pareto, os regimes
internacionais podem desempenhar um papel importante no sistema internacional,
apesar da sua natureza anárquica (Stein, 1982; Jervis, 1982).
Não obstante a relevância das diferentes abordagens na análise organizacional, o
enfoque aqui assume uma perspectiva diferente, principalmente do que é geralmente
considerado na teoria positiva das instituições. O argumento apresentado é sobretudo de
natureza sociológica e não adota necessariamente uma perspectiva de abordagem
racional.
11
Baseia-se na nova literatura institucionalista da análise organizacional, que
considera a homogeneidade de práticas e entendimentos nas diferentes instituições e
organizações. A continuação dessas práticas e a sua reprodução em estruturas é, em
certa medida, auto-sustentável. Contudo, o mais significativo é que também permite
mudanças na distribuição de poder dentro da ordem internacional.
Essa abordagem diferente baseia-se em argumentos de um tipo próprio de novo
institucionalismo, pelo qual as estruturas organizacionais normais refletem requisitos
técnicos e dependências de recursos, mas que também são moldadas por forças
institucionais que incluem mitos racionais, conhecimento legitimado através do sistema
educativo, das profissões e do direito. As organizações estão profundamente enraizadas
11
Sobre este assunto, veja-se Powell e DiMaggio (1991, especialmente a introdução).
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em ambientes sociais e políticos. Além disso, essas práticas e estruturas organizacionais
também refletem ou são respostas a regras, crenças e convenções incorporadas num
ambiente mais vasto. Essa abordagem assume um tom sociológico claro que a distingue
das restantes.
Grande parte desta perspetiva está também relacionada com o trabalho de Bourdieu
(1977, 1980, 1984) e Bourdieu e Wacquant (1992), que segue uma epistemologia
reflexiva e uma ontologia relacional que se baseia na noção de "habitus" e campos. O
conceito de habitus de Bourdieu consiste num sistema de disposições que têm origem
em estruturas sociais, mas que são profundamente internalizadas por atores que geram
comportamentos mesmo depois das condições estruturais originais terem mudado
(Swartz, 1997, particularmente p. 101). As noções de campos
12
e de capital simbólico de
Bourdieu aprofundam a nossa compreensão da rede, não apenas como um sistema de
fluxos de conhecimento - um instrumento ou meio - mas também como um fenómeno
importante em si mesmo. A ideia central aqui é que existem processos dentro da teoria
das organizações que são pertinentes no âmbito das instituições/organizações
internacionais. Esses processos podem abranger todo o setor empresarial, e serem
nacionais ou internacionais. Pode considerar-se que esta perspectiva tem algum em
comum com o trabalho de Wendt (1987, 1999).
Mecanismos de isomorfismo institucional e homogeneização
O argumento central do novo institucionalismo sociológico assenta nos processos de
homogeneização institucional (Lawrence e Suddaby, 2006; Tempel e Walgenbach, 2007),
na sequência, em particular, da contribuição seminal de Meyer e Rowan (1977) e
DiMaggio e Powell (1983). Meyer e Rowan defendem que muitas estruturas
organizacionais formais surgem como reflexos de regras racionais, com regras
institucionais que funcionam como mitos que as organizações incorporam na sua
estrutura e modo de funcionamento, ganhando assim legitimidade e estabilidade. Estes
autores argumentam que, para obter legitimidade, as organizações tendem a construir
histórias sobre suas ões e atividades. Essas histórias são usadas como formas de
garantia simbólica para apaziguar pessoas influentes ou o blico em geral. DiMaggio e
Powell (1983) centram-se nos processos de homogeneização institucional, bem como na
similaridade de práticas e entendimentos nas instituições. Basicamente, desenvolveram
ainda mais o tópico inicial.
Assinalando a notável semelhança das organizações nas sociedades industrializadas
contemporâneas, questionam a razão pela qual as organizações têm tendência a
tornarem-se tão semelhantes umas às outras. O seu argumento central é que as
organizações tendem a incorporar práticas, regras e procedimentos que foram
institucionalizados e, ao estabelecerem como esse processo decorre, destacam processos
de reprodução autoritários, miméticos e normativos que conduzem a estruturas
organizacionais isomórficas que geram maior legitimidade. Mais do que devido a
concorrência ou objetivos associados a uma maior eficiência, as organizações procuram
obter legitimidade nos seus contextos para dar resposta a pressões institucionais. Essa
homogeneidade de práticas que conduz a um modus operandis constante e repetitivo na
12
Isto é, redes ou arenas sociais dentro das quais se travam as lutas por recursos escassos.
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vida organizada pode não ser facilmente explicada por uma abordagem centrada no ator
racional.
De acordo com DiMaggio e Powell (1983: 150): “O isomorfismo autoritário resulta de
pressões formais e informais exercidas sobre as organizações por outras organizações
das quais dependem e de expectativas culturais na sociedade onde as organizações
operam”. Como tal, os factores coercivos podem também envolver pressões políticas e a
força do estado e, em alguns casos, até supervisão e controlo regulamentares,
nomeadamente através da definição de medidas e procedimentos que precisam de ser
implementados pelos actores dentro desses setores regulamentados. No entanto,
também podem ser o resultado de expectativas culturais. No caso das organizações
internacionais, o isomorfismo também pode ser consequência de processos mais subtis
e indiretos.
Uma segunda fonte de isomorfismo institucional é a mimesis (DiMaggio e Powell, 1983:
151). Esse mecanismo funciona no sentido que os atores são atraídos para certos tipos
de modelos organizacionais e, muitas vezes, para tempo de trabalho e comportamento,
pois consideram que essas soluções são atraentes para os problemas que enfrentam ou
favoráveis em termos de progressão e reconhecimento.
Esta imitação de modelos institucionais legitimados em organizações muitas vezes
compensa a falta de racionalidade da decisão e, não menos importante, torna-se um
elemento salvador em caso de falha, pois é possível demonstrar que se fez o que deveria
ter sido feito”, ou que se agiu “de acordo com os procedimentos corretos”. Este
isomorfismo mimético pode ser encarado como uma resposta à incerteza e como uma
fonte de legitimação (DiMaggio e Powell, 1983: 155; Kalev et al, 2006; Meyer e
Jepperson, 2000; Meyer e Rowan, 1977; Powell e DiMaggio, 1991).
Existe igualmente isomorfismo que resulta de fatores normativos derivados da influência
das profissões e do papel da educação, muitos deles gozando de grande autoridade e
influência, assim como de forças miméticas que se baseiam em respostas habituais
consideradas corretas em contextos de incerteza. Por exemplo, universidades e outras
instituições de formação profissional difundem padrões através das fronteiras nacionais,
e muitas vezes tornam-se exemplos de “boas práticas” em qualquer profissão. Como tal,
“são centros importantes para o desenvolvimento de normas organizacionais entre os
gestores profissionais e os seus funcionários” (DiMaggio e Powell, 1983: 152). Além
disso, funcionam como pessoas que desenvolvem práticas e modos de pensar comuns,
fazendo com que os profissionais das organizações, a vários veis, se tornem
semelhantes em contexto, educação e orientação. Em muitas organizações, notadamente
organizações governamentais internacionais, existe frequentemente uma filtragem
informal na contratação. -se uma situação semelhante ao longo da progressão na
carreira, que também favorece o isomorfismo. Nesse contexto, Kontinen e Onali (2017)
fornecem um bom exemplo de isomorfismo institucional normativo envolvendo
organizações não-governamentais (ONGs).
Os três mecanismos acima referidos podem o ser fáceis de distinguir uns dos outros
do ponto de vista empírico. São distintos, mas podem funcionar, e muito provavelmente
funcionam, em simultâneo, com resultados que não são facilmente identificáveis
13
. Não
13
Por exemplo, o Asian Infrastructure Investment Bank apresenta elementos de isomorfismo com o Banco
Mundial, tanto a nível de fatores miméticos como normativos, no trabalho, embora não sejam
necessariamente fáceis de identificar. Isso resulta da adoção de estruturas organizacionais, regras e rituais
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precisamos de nos deter nesta questão. Mais relevante é a noção de que, para sobreviver,
as organizações precisam de convencer o ambiente no qual funcionam que são legítimas
e que merecem existir. As organizações têm a necessidade de perpetuar essas atividades
simbólicas e cerimoniais, que se tornam parte do contexto, ou seja, institucionalizadas.
Não existe dúvida que as organizações internacionais não estão imunes a essas
influências, já que suas respeitáveis burocracias também desempenham um papel
determinante na forma como operam. Além disso, alguns desses processos podem
influenciar os representantes políticos nessas organizações e as políticas dos estados. A
continuidade dessas práticas nessas organizações internacionais (governamentais) e as
formas de agir adotadas como sendo as corretas em termos de comportamento e atitudes
favorecem a reprodução de estruturas que prestam apoio adicional à manutenção da
atual ordem internacional.
Conclusão
O novo institucionalismo tornou-se uma abordagem líder dentro da análise
organizacional, particularmente entre os sociólogos organizacionais norte-americanos. A
ideia principal é que as organizações precisam de adquirir legitimidade para sobreviver
e, como resultado, tendem a criar mitos sobre si mesmas, muitas vezes através de
atividades simbólicas e cerimoniais, tornado-se institucionalizadas e profundamente
enraizadas em ambientes sociais e políticos.
Estamos a assistir a transições de poder no seio do sistema internacional e ainda não é
óbvio como é que isso afetará a atual ordem internacional, e em que medida. No entanto,
apesar dessas transições de poder, a natureza fundamental da atual ordem internacional
não precisa de mudar drasticamente ou, numa perspectiva diferente, pode mudar a um
ritmo muito mais lento. Muitos defensores da perspectiva institucionalista liberal
argumentaram isso precisamente. Mas o argumento que aqui se apresenta é que existem
processos e mecanismos institucionais que foram estudados na teoria organizacional
dentro da Nova Teoria Institucional que podem apoiar a ideia de uma ordem duradoura.
Esses processos tendem a ter impacto nas organizações em geral, independentemente
da área de atividade e do contexto sociopolítico, e, como tal, tendem a influenciar
também as organizações internacionais. O resultado pode ser o provável papel que
desempenham na manutenção da atual ordem internacional que, consequentemente,
pode durar mais do que se pensa, ao mesmo tempo que acolhem algumas das mudanças
de poder em curso.
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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JÜRGEN HABERMAS E A DEMOCRATIZAÇÃO DA POLÍTICA MUNDIAL
André Saramago
avsaramago@gmail.com
Professor Auxiliar Convidado de Relações Internacionais na Universidade de Coimbra e na
Universidade da Beira Interior (Portugal). É igualmente investigador e assistente de ensino on-
line na DiploFoundation, Universidade de Malta, e investigador associado no Instituto do Oriente.
É doutorado em Política Internacional pela Universidade de Aberystwyth. As suas áreas de
especialização incluem Teoria das Relações Internacionais, incidindo em estudos sobre Teoria
Internacional Crítica, assim como Sociologia Histórica e Estudos sobre a Ásia Oriental. Entre os
seus trabalhos mais recentes, destacam-se a edição de Climate Change, Moral Panics and
Civilization, da autoria de Amanda Rohloff e publicado pela Routledge, e ‘Singapore’s use of
education as a soft power tool in Arctic cooperation’, em coautoria com Danita Burke e publicado
Resumo
Este artigo examina as ideias de Jürgen Habermas sobre o dilema colocado pela
interdependência global humana à possibilidade de políticas democráticas. De acordo com
Habermas, desde a Segunda Guerra Mundial, e parte de um processo que se tornou mais
difundido desde o fim da Guerra Fria, as sociedades humanas têm vindo a integrar redes de
interdependência política, social e económica cada vez mais complexas que acabaram por
afetar a capacidade dos públicos democráticos de base estatal de exercer algum grau de
influência sobre as suas condições de existência. A partir de uma perspetiva crítica da teoria
internacional, o argumento de Habermas destaca o desafio contemporâneo fundamental
enfrentado pelas ciências sociais em geral e pelas Relações Internacionais (RI) em particular.
A partir dessa perspetiva, a função fundamental das RI não é apenas explicar a política
mundial, mas também orientar a prática social e política para um aumento do controlo
democrático sobre a mesma. O objetivo deste artigo é demonstrar como o trabalho de
Habermas constitui uma contribuição fundamental para melhorar o papel crítico orientador
das RI. O artigo articula os escritos políticos mais recentes de Habermas sobre a União
Europeia (UE) e a Organização das Nações Unidas (ONU) com o seu trabalho anterior sobre o
desenvolvimento de uma teoria da evolução social. Ao fazê-lo, mostra como o trabalho de
Habermas pode constituir a base para, por um lado, uma abordagem ao estudo da política
mundial que revela como o atual dilema entre a complexidade global e a democracia passou
a ser a característica definidora do presente estágio de desenvolvimento humano, e, por outro
lado, descobrir o potencial imanente reunido pela modernidade para uma expansão radical da
democracia ao nível da política mundial.
Palavras chave
Relações Internacionais; Teoria Internacional Crítica; Democracia; Poder; Capitalismo; União
Europeia
Como citar este artigo
Saramago, André (2019). "Jürgen Habermas e a democratização da política mundial".
JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 10, N.º 1, Maio-Outubro 2019.
Consultado [online] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.1.2
Artigo recebido em 15 de Dezembro de 2018 e aceite para publicação em 26 de Fevereiro
de 2019
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Jürgen Habermas e a democratização da política mundial
André Saramago
JÜRGEN HABERMAS E A DEMOCRATIZAÇÃO DA POLÍTICA MUNDIAL
1
André Saramago
2
Introdução
Ao longo de sua vasta carreira, Jürgen Habermas tem trabalhado no desenvolvimento de
uma teoria da evolução social que capture a dinâmica do desenvolvimento histórico
humano. Nesse contexto, Habermas caracteriza a história da espécie como um processo
de aprendizagem coletiva de longo prazo em dois campos que se inter-relacionam; o do
conhecimento moral-prático e o do conhecimento técnico-instrumental (Habermas,
1987).
Enquanto o primeiro se refere à aprendizagem ao vel das normas coletivas que regulam
a vida social, o último refere-se predominantemente à aprendizagem nas áreas
necessárias à reprodução material da vida social, designadamente o controlo da natureza
não humana através de atividades produtivas. O argumento de Habermas é que, ao longo
da história, os diferentes estágios de desenvolvimento do conhecimento moral-prático
têm sido incorporados nas normas sociais e nos contextos morais partilhados pelas
sociedades humanas (o que Habermas chama 'mundo da vida'), enquanto os diferentes
estágios de conhecimento técnico-instrumental têm sido integrados na economia e nas
esferas que lhe estão relacionadas, tais como administrações burocráticas e técnicas (o
que Habermas denomina ‘sistema’). Habermas defende que, à medida que as sociedades
humanas se desenvolvem e se tornam mais complexas, existe uma tensão crescente
entre o mundo da vida e o sistema. Se, por um lado, a aprendizagem moral-prática cria
a possibilidade de exercer maior controlo democrático sobre a vida social, por outro, a
complexidade social cria pressões para uma maior autonomia sistémica, com os setores
sociais burocráticos e económicos a assumir uma dinâmica própria que escapa às políticas
democráticas (Habermas, 1987). Nos últimos 20 anos, Habermas (1996; 2001; 2012)
tem argumentado que a modernidade enfrenta um problema sistémico fundamental
que, com a interligação global e a interdependência da humanidade provocada pelos
processos de globalização, engloba agora o mundo todo.
1
A tradução deste artigo foi financiada por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e
a Tecnologia no âmbito do projeto do OBSERVARE com a referência UID/CPO/04155/2019, e tem como
objetivo a publicação no JANUS.NET. Texto traduzido por Carolina Peralta.
2
Gostaria de agradecer ao Professor Andrew Linklater e à Doutora Kamila Stullerova pelos seus comentários
a uma versão anterior deste artigo. Também gostaria de agradecer à equipa editorial do JANUS.NET e aos
dois revisores anónimos cujos comentários melhoraram muito a qualidade deste artigo.
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Jürgen Habermas e a democratização da política mundial
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Uma característica central deste problema é a forma como, com a integração das
economias nacionais num mercado capitalista global, e especialmente com a liberalização
radical dos mercados financeiros desde o fim do padrão-ouro em 1971, houve um
aumento dramático na autonomia dos contextos sistémicos em relação aos públicos
democráticos que permanecem ligados ao estado (Habermas, 2001). Este facto minou o
equilíbrio entre a democracia e a autonomia sistémica que tinha sido alcançado nos
Estados-providência desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Constitui igualmente uma
das fontes do reaparecimento contemporâneo dos movimentos étnico-nacionalistas que
exigem um reforço da soberania do estado como solução para as consequências sociais
adversas, e não planeadas, de um sistema capitalista global fora de controlo (Haro,
2017). No entanto, para Habermas, um regresso ao estado é uma fuga ilusória do
problema. O seu argumento é que é necessário desenvolver um novo 'princípio de
organização' para a política mundial, que seja capaz de dilatar a capacidade de adaptação
social aos desafios do desenvolvimento colocados pela crescente interdependência global
(Habermas, 2012).
Neste contexto, Habermas tem-se preocupado principalmente em identificar o potencial
cognitivo, disponível nas visões do mundo modernas e nas estruturas da consciência,
para o desenvolvimento desse princípio de organização política mundial que altere o
equilíbrio prevalente entre públicos democráticos e sistemas autónomos globais. Em
particular, Habermas está interessado em compreender como o processo de
democratização da vida social, iniciado ao nível dos Estados-providência democráticos,
pode ser alargado à política mundial numa forma que reforce o controlo humano coletivo
e consciente sobre o caráter sistémico das relações interestatais e da economia
capitalista global.
Os argumentos de Habermas a esse respeito são analisados nas quatro seções seguintes.
Primeiro, o artigo examina as suas ideias sobre a forma como a interligação global
humana mina o grau de controlo democrático que os cidadãos dos Estados-providência
exercem sobre as suas condições de existência. Em segundo lugar, analisa o argumento
de Habermas sobre a necessidade de uma reconstrução do projeto de Kant para a paz
perpétua como estrutura orientadora da organização da teia global da humanidade de
maneira a garantir um maior grau de controlo coletivo e consciente sobre o seu
desenvolvimento futuro. Em terceiro lugar, comenta a ligação entre esse argumento e os
trabalhos mais recentes de Habermas sobre a União Europeia, e sobre a dissociação entre
democracia e poder estatal que pode ocorrer no seu contexto. E, em quarto lugar, o
artigo examina a forma como a análise de Habermas sobre a UE está na base da sua
proposta para a reforma das Nações Unidas e a democratização radical da política
mundial que lhe está associada.
Interdependência global e democracia
Desde 1971, com o fim do padrão-ouro e a subsequente liberalização radical dos
mercados financeiros, as dinâmicas sistémicas do capitalismo libertaram-se das
condições de limite estabelecidas pelos públicos democráticos nacionais e tornaram-se
capazes de se desenvolverem por conta própria em condições de maior autonomia. A
capacidade de movimentar livremente o capital através das redes da economia mundial
significou que, cada vez mais, áreas importantes da sociedade sejam submetidas a
relações assentes no dinheiro como o principal meio de integração social (Habermas,
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Jürgen Habermas e a democratização da política mundial
André Saramago
2001: 78). Este facto permitiu que as empresas multinacionais retivessem investimentos
em certos estados ou áreas sociais, bloqueando o acesso a importantes fontes de receita
através de impostos, a menos que os estados fizessem reformas para tornar as suas
condições internas mais adequadas às necessidades e interesses dos empreendimentos
capitalistas. Os estados tornaram-se assim cada vez mais obrigados a competir entre si
para se tornarem mais atraentes aos interesses comerciais globais, nomeadamente
através da privatização de áreas como a saúde e a educação, redução dos salários e
benefícios dos trabalhadores, alargamento das horas laborais e uma combinação de
aumento de impostos para os cidadãos e uma redução de impostos para as empresas
(Habermas, 2001: 79).
Nestas condições, os sistemas de segurança social dos Estados-providência, concebidos
para aliviar os efeitos negativos do desenvolvimento capitalista, ficaram sobrecarregados
com o aumento do desemprego e uma base tributária mais curta. Progressivamente, os
Estados-providência tornaram-se um canal para a sistematização dos mundos da vida
nacionais por imperativos sistémicos globais e perderam a capacidade de garantir o
controlo democrático sobre a dinâmica capitalista. Acompanhando a crescente
complexidade das redes económicas globais, surgiram também cadeias não planeadas
de decisões políticas e resultados interligados que, quando combinados com a forma
como as identidades culturais e políticas são remodeladas e reavivadas por esses
processos, levaram a que muitos atores sub-estatais locais e regionais questionassem a
legitimidade do Estado-nação enquanto centro de poder representativo e responsável
(Habermas, 1973; Habermas, 2006; Held, 1995: 136). Assim, o processo de
globalização, 'enredou' os Estados-nação na dependência de uma sociedade mundial
cada vez mais interligada, cujos contextos sistémicos 'contornam sem esforço as
fronteiras territoriais' (Habermas, 2006: 175; veja-se igualmente: Walker, 1988).
Uma das respostas a essa situação tem sido o comportamento hegemónico exibido pelos
Estados Unidos (EUA) nas últimas duas décadas. As tentativas recentes da superpotência
de usar a sua superioridade militar, tecnológica e económica para criar uma ordem global
compatível com as suas noções religiosamente coloridas do bem e do mal constituem
uma expressão da possibilidade histórica do aparecimento de uma resposta imperial ao
desafio de regular a interdependência global (Habermas, 2006: 149). No entanto,
segundo Habermas, o resultado mais provável dessa estratégia, dada a inevitável
resistência por parte de outras grandes potências, como a ssia e a China, é o
aparecimento de uma ordem mundial schmittiana caracterizada pela hipótese
alarmante de competição entre os hemisférios (Habermas, 2006: 148). Essa ordem
global, de facto, minaria a possibilidade de controlo coletivo sobre o processo de
globalização, que a dinâmica não planeada decorrente da competição acrescida pelo
poder levaria as pessoas e os estados a padrões de interação não planeados por nenhum
deles, potencialmente com implicações nefastas para todos os participantes.
Em vez disso, Habermas (2012) propõe um 'princípio de organização' alternativo para a
política mundial na forma de uma extensão, ao nível da sociedade internacional, do
processo de longo prazo de democratização da vida social, que até agora esteve
confinado ao vel intraestatal. A domação democrática-legal do poder do estado que
tem ocorrido nos estados-providência precisa de ser continuada através de uma
democratização do sistema internacional de estados, que pacifique as relações entre os
estados e controle a sua competição anárquica pelo poder. Além disso, essa pacificação
criaria as condições para o estabelecimento de novos procedimentos e instituições
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Jürgen Habermas e a democratização da política mundial
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supranacionais, assim como novas formas de solidariedade entre as pessoas, com base
nas quais um maior grau de controlo consciente e coletivo passaria a ser exercido sobre
a dinâmica do sistema económico global.
Nesse contexto, o projeto de Kant para a paz perpétua é sugerido como a alternativa
mais convincente à proposta hegemónica. No entanto, também se constata que necessita
de reconstrução à luz da própria investigação de Habermas sobre processos de longo
prazo de pacificação legal do poder do estado.
A constituição política da sociedade mundial
O projeto de Kant é construído com base na constatação da ligação interna entre paz e
liberdade (Kant, 2015; Habermas, 2006: 175). Só sob condições de paz internacional é
que os seres humanos podem exercer um grau suficiente de controlo sobre as relações
interestatais que garanta que são capazes de autodeterminar livremente as suas
condições de existência e não serem arrastados pela dinâmica não planeada da
competição e conflito entre os estados. Tanto a pacificação como um controlo acrescido
das relações interestatais podem ser alcançados, na visão de Kant, através do
estabelecimento de um código de leis que regule todas as possíveis dimensões da
interdependência humana (Kant, 1991). Assim, a lei civil regula as relações entre os
cidadãos dentro de um estado; o direito internacional regula as relações entre estados;
e a lei cosmopolita regularia as relações entre estados e seres humanos na sua qualidade
de cidadãos do mundo.
Na interpretação de Habermas, (embora existam outras, vejam-se: Kleingeld, 2012;
Mikalsen, 2011), Kant considera que esse digo legal exige a constituição de uma
federação mundial de estados republicanos com poderes coercitivos para assegurar o seu
cumprimento. Um entendimento que Habermas contesta ao afirmar que o
desenvolvimento histórico do direito internacional desde o tempo de Kant aponta para
uma conclusão diferente. Ou seja, que existe uma diferença importante entre o
desenvolvimento do controlo legal sobre o poder estatal dentro dos estados e o controlo
legal sobre o poder do estado nas relações internacionais (Habermas, 2006: 122). O
primeiro implica um processo em que um monopólio já existente sobre os meios da
violência legítima passa a ser delimitado, no seu funcionamento, por leis civis que,
concomitantemente, dependem desse mesmo monopólio para garantir o seu
cumprimento. No caso do último, não existe monopólio supranacional sobre os meios de
violência legítima para assegurar a aplicação do direito internacional. Pelo contrário, o
direito internacional é desenvolvido e garantido com base na expectativa de autocontrolo
por parte dos estados. Assim, o desenvolvimento do direito internacional contraria o
desenvolvimento do direito civil, dado que o principal desafio ao nível das relações
internacionais é como tornar o direito internacional efetivo, e não como pacificar e
legitimar o poder de um monopólio sobre os meios da violência legítima existente
(Habermas, 2006: 172). A nível internacional, -se assim o que Habermas (2006: 134)
denomina de dissociação entre a lei e o poder do estado, o que não ocorre a nível
intraestatal.
Se a levarmos em consideração, esta dissociação’’ mostra que o modelo de Kant de um
estado democrático federal em grande escala - o estado global das nações ou república
mundial - é o errado (Habermas, 2006: 134). É errado não porque entende a
pacificação da política mundial como uma reprodução do processo que já ocorreu ao vel
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intraestatal, mas também porque prevê que o monopólio dos meios de violência legítima
e do direito internacional permaneça fundidos numa única instituição, a federação
mundial de estados. Em vez disso, a análise do desenvolvimento histórico do direito
internacional revela uma dissociação entre o poder do estado e o direito, o que abre a
possibilidade de uma alternativa à federação mundial de Kant (veja-se: Beardsworth,
2011: 32).
Segundo Habermas, essa alternativa reside na possibilidade de existência de uma
sociedade mundial descentrada, como uma ordem global multinível que o tem o
caráter de um estado, mas garante o controlo democrático da dinâmica dos sistemas
interestatal e económico globais (Habermas, 2006: 136). Essa sociedade mundial
multinível implica não apenas a constituição dos três níveis do direito previstos por Kant
- respetivamente, civil, internacional e cosmopolita - mas também a criação de três níveis
de decisão. Primeiro, o nível supranacional de uma organização mundial que é
responsável pelas tarefas claramente circunscritas de assegurar a paz e proteger os
direitos humanos sem, no entanto, assumir o caráter de uma federação mundial de
estados. Em segundo lugar, o nível transnacional no qual as grandes potências e as
uniões continentais de estados lidam com problemas económicos, sociais e ecológicos
através de conferências permanentes. E terceiro, o vel nacional em que o mundo da
vida de cada estado, expresso nas suas respetivas esferas blicas, pode readquirir o
controlo democrático sobre o poder estatal nacional e a economia nacional globalmente
ligada, dada sua integração na sociedade mundial multinível (Habermas, 2006: 136). Ao
enfatizar a pluralidade de ordens jurídicas numa sociedade mundial politicamente
constituída, Habermas rejeita efetivamente a noção de que o direito deve formar um
sistema normativo unitário e hierárquico. Em vez disso, prevê a coordenação de ordens
jurídicas a serem garantidas não por uma cadeia vertical de autoridade, mas sim pelo
funcionamento de processos deliberativos de consensualização de normas em diferentes
níveis de tomada de decisão.
Habermas (2006, p. 136) observa que, na atual conjuntura histórica, apenas as grandes
potências naturais, como os EUA, Rússia ou China, dispõem dos recursos necessários
para funcionar a vel transnacional e estabelecer regimes continentais que regulem
políticas económicas, sociais e ambientais nas suas respetivas áreas do mundo.
Consequentemente, a fim de dar forma a essa sociedade mundial politicamente
constituída, os estados nas várias regiões do mundo têm que se unir para formar regimes
continentais segundo o modelo da União Europeia (Habermas, 2006: 136). Com esta
proposta para a sociedade mundial politicamente constituída, Habermas pretende
mostrar que uma 'república mundial' não é a única forma institucional que o projeto
kantiano pode assumir, nem é o dispositivo orientador mais adequado para alcançar a
pacificação e democratização da política mundial, dado o potencial cognitivo reunido pelo
desenvolvimento histórico mundial (Beardsworth, 2011: 32).
As duas seções seguintes analisam de forma mais detalhada as reflexões de Habermas
sobre os níveis transnacional e supranacional da sua proposta de sociedade mundial
multinível, centrando-se primeiro na sua ideia de União Europeia e depois nas suas
propostas de reforma das Nações Unidas.
O modelo europeu
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A proposta mais elaborada de Habermas para a constituição política da sociedade
mundial encontra-se na compilação de textos intitulada A crise da União Europeia: uma
resposta (2012). Nestes textos, Habermas defende que, sob condições de
interdependência global, os seres humanos só podem alcançar um maior grau de controlo
democrático sobre as dinâmicas sistémicas globais que os ameaçam com perturbações
ambientais, económicas e sociais através da constituição de uniões continentais de
estados responsáveis pela regulação e coordenação de políticas nas suas respetivas áreas
do mundo.
A União Europeia (UE) constitui o mais sustentado esforço de sempre para alargar a
pacificação da vida social iniciada dentro dos estados até ao vel internacional. Esse
esforço foi desenvolvido para não só pacificar as relações interestatais de um continente
encharcado de sangue, mas também para desenvolver capacidades de tomada de
decisão e direção que permitam aos estados europeus exercer coletivamente um maior
grau de controlo sobre as dinâmicas dos sistemas internacional e económico que afetam
o continente como um todo e ignoram as fronteiras estatais (Habermas, 2012: 28). O
desenvolvimento do direito europeu que regula o comportamento dos estados sem a
constituição de um monopólio europeu sobre os meios de violência legítima tem sido um
aspeto essencial deste processo. As inovações que estão a emergir na UE podem, com o
tempo, servir de referência para outras instituições regionais menos integradas
(Habermas, 2001). Em particular, o facto de o direito europeu ser obedecido e ser
independente do direito nacional e do poder do estado estabelece um 'precedente' para
a política regional e global, efetivamente criando uma nova relação entre lei e poder.
Habermas defende que esta nova relação fornece um novo 'modelo' de organização
política a níveis regional e global (Habermas, 2012, veja-se igualmente: Beardsworth,
2001: 98).
Contudo, Habermas também refere que o processo de democratização no contexto da
UE está longe de terminado. Um dos principais desafios é o facto de a integração
económica europeia não ter sido acompanhada pela criação de instituições políticas
democráticas capazes de regulamentar o mercado comum. A subordinação incessante
da UE à interdependência económica impulsionada por interesses empresariais como
principal força integradora e pacificadora no continente 'já não é aceitável' sem um
esforço simultâneo para aliar a lógica da eficiência do mercado à democratização das
instituições políticas europeias (Habermas, 2012, Verovšek, 2012: 369). Os processos
de tomada de decisão ao vel da UE continuam assim a ser predominantemente
moldados pelas relações de poder entre estados que escapam à influência das esferas
públicas nacionais, ao mesmo tempo que tomam decisões que têm um efeito profundo
nas condições de existência das populações de cada estado. Assim, o direito europeu,
enquanto possibilita a autorregulação do sistema europeu de estados, frequentemente
carece de legitimidade aos olhos dos cidadãos europeus, dado que não é constituído por
processos deliberativos de consensualização entre todos os que o por si afetados (veja-
se: Linklater, 2007; Fraser, 2007). O atual carácter da UE é assim melhor descrito como
uma forma de federalismo executivo em que o Conselho Europeu, composto por
representantes de cada estado, adota medidas que são implementadas a vel nacional
através de maiorias governamentais que enfraquecem o poder dos parlamentos
nacionais e escapam ao controlo dos públicos nacionais deliberativos (Habermas, 2012:
28). Como tal, os governos nacionais e as administrações burocráticas podem usar as
instituições europeias para escapar à regulamentação das esferas públicas nacionais e
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recuperar um grau de autonomia sistémica das restrições normativas dos mundos da
vida nacionais.
Habermas assim a UE como uma formação social altamente contraditória. Por um
lado, contribuiu para a pacificação das relações interestatais europeias e para o
desenvolvimento de instituições europeias capazes de alargar o controlo legal e
democrático sobre as forças sistémicas que ultrapassaram as fronteiras nacionais. Mas,
por outro lado, essas mesmas instituições reforçam a autonomia do poder do estado face
aos mundos da vida nacionais e diminuem o vel de controlo democrático coletivo que
as pessoas podem exercer sobre as suas vidas, tornando-se uma espécie de 'regra
burocrática pós-democrática' (Habermas, 2012: 52).
A UE é um 'paradoxo' na medida em que revela tendências visíveis para o
aprofundamento do seu défice democrático, ao mesmo tempo que reúne o potencial para
servir de veículo à extensão da governação democrática para além do Estado-nação e,
portanto, para o desenvolvimento de fronteiras democráticas sobre os 'impactos
socialmente corrosivos' da globalização (Habermas, 2001; Grewal, 2001).
Na avaliação de Habermas, a UE encontra-se numa encruzilhada. Por um lado, enfrenta
o perigo de aprofundar o seu défice democrático, tornando-se uma correia transportadora
para a transformação dos mundos da vida nacionais de acordo com as pressões
sistémicas das burocracias estatais e dos interesses capitalistas. Por outro lado, o
desenvolvimento histórico das instituições europeias e a pacificação legal do continente
constituem um acontecimento 'novo na política mundial, que reúne o potencial imanente
de alargar a tomada de decisões democráticas ao vel transnacional da sociedade
mundial. Tal extensão permitiria a constituição de uma 'democracia transnacional
europeia que aproximasse uma 'comunidade de comunicação ideal’ (Habermas, 2012:
52).
Para Habermas, a principal dificuldade da democratização da UE é que, com exceção do
Parlamento Europeu, as instituições democráticas de tomada de decisão continuam
ligadas ao vel estatal. Neste contexto, alguns autores argumentaram que a
democratização da UE é impossível, dada a ausência de um 'demoscomum para além
dos Estados-nação europeus, uma identidade coletiva europeia que crie laços de
solidariedade entre os cidadãos europeus e os torne num único sujeito constitucional
(Dahl, 1999). A tese do ‘sem demos’ pode, no entanto, ser contestada à luz da teoria da
evolução social de Habermas, que refere que enquanto a 'nação' serviu de base para a
comunidade política a nível estatal, o fez na medida em que foi a solução histórica
para a tensão inerente à identidade dos cidadãos modernos. Uma tensão entre o seu
caráter moral universal, que é 'mais adequado aos cidadãos do mundo', e a realidade da
fragmentação da política mundial entre os diferentes Estados-nação (Habermas, 1979:
115). Como tal, inerente às orientações morais da modernidade, está presente o
potencial cognitivo para superar a 'nação' como princípio fundamental de organização
das comunidades políticas (Habermas, 2006: 76).
Nas cosmovisões modernas e universalistas e nas suas estruturas da consciência reside
o potencial para a validade e legitimidade das normas sociais deixarem de ser
fundamentadas em identidades étnico-nacionalistas, para o passarem a ser em princípios
universais constituídos através de processos deliberativos de consensualização
envolvendo todos aqueles que por eles são afetados. Este caráter deliberativo da validade
e legitimidade do direito implica a sua dissociação das tradições nacionais partilhadas.
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Os processos de tomada de decisão relativos a problemas comuns podem assim ser
baseados em 'princípios de justiça' e não em termos do 'destino da nação', dada a forma
como a 'fixação emocional' das pessoas pode passar da comunidade étnico-nacional para
a lei deliberativamente constituída (Habermas, 2006: 77-78). Cada vez mais, a
'solidariedade cívica' pode ser definida não por pertencer a um Estado-nação comum,
mas por constituir um compromisso comum para com os princípios constitucionais
deliberativamente alcançados e plasmados na lei. A partir dessa perspetiva, torna-se
possível conceber um 'alargamento' da solidariedade vica e das fronteiras da
comunidade política para abranger os não-nacionais e os forasteiros como membros
legítimos de uma comunidade dialógica transnacional de colegisladores que estão
vinculados por normas comuns, e não por orientações culturais ou aspirações políticas
partilhadas (Linklater, 1998: 85; 2017). Habermas chama a esta solidariedade vica
transnacional 'patriotismo constitucional’ (Habermas, 2006: 53; Habermas, 2006b: 118).
O patriotismo constitucional exprime um possível novo princípio de organização dos
Estados-providência e da política mundial que permite a expansão da solidariedade cívica
para além das fronteiras da ‘nação'. Aponta para o possível aparecimento de uma
solidariedade vica à escala europeia que una pessoas de diferentes estados numa
constelação ‘pós-nacional através de um compromisso comum para com os princípios do
direito europeu, que coletivamente reconhecem como legítimos e válidos se estes
princípios derivarem de processos deliberativos de tomada de decisão envolvendo todos
aqueles que são afetados pelos mesmos. Portanto, o potencial cognitivo para o
desenvolvimento da democracia transnacional europeia se encontra presente nas
cosmovisões modernas e nas estruturas de consciência dos cidadãos dos Estados-
providência europeus modernos. De facto, segundo Habermas, a atualização parcial
desse potencial cognitivo das cosmovisões modernas se observa na crescente
dissociação entre o direito europeu e o poder estatal. O Tratado de Lisboa é uma
expressão deste processo quando, na ausência de um monopólio europeu sobre os meios
de violência legítima, deriva a legitimidade do direito europeu dos princípios
constitucionais que foram constituídos pelo ‘duplo sujeito constitucional’ da UE, que é
definido como os povos nacionais (representados pelos seus estados) e os cidadãos da
União Europeia (Habermas, 2012: 37).
Na opinião de Habermas, o Tratado de Lisboa confirma, portanto, de jure o que a UE
historicamente negou de facto; isto é, que a legitimidade do direito europeu só pode ser
assegurada se derivar de processos deliberativos democráticos de tomada de decisão
envolvendo tanto os cidadãos como os Estados-membros da União. Por consequência, a
dissociação atual do direito europeu do poder do estado, na qual a UE está estruturada,
bem como a validade do direito europeu, podem ser mantidas se a União concretizar
o ideal da constitucionalização política da sociedade mundial a nível transnacional e
tornar o 'duplo sujeito constitucional da União uma realidade institucional (veja-se:
McCormick, 2007). O aparato institucional para a atualização do ‘duplo sujeito
constitucional´ existe, sob a forma de cidadania europeia e de instituições como o
Parlamento Europeu e o Conselho Europeu. O que é necessário é que essas instituições
integrem o potencial cognitivo reunido nas cosmovisões e nas estruturas de consciência
modernas dos cidadãos europeus, estabelecendo um processo de tomada de decisão
democrático com ‘duas vias’ em toda a Europa. Um processo que permita às pessoas,
tanto na qualidade de cidadãos europeus como de cidadãos dos respetivos estados
nacionais, participar no Parlamento e no Conselho na constituição do direito europeu
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(Habermas, 2012: 28). Este cenário implica que as ‘mesmas pessoas’ representarão
esses dois papéis em ‘união pessoal’ e adotarão ‘perspetivas de justiça distintas’,
dependendo de qual das duas vias de decisão for utilizada. O que conta como um
interesse ‘público’ em processos deliberativos em que se envolvam como cidadãos de um
estado, transforma-se num interesse ‘particularista’ nos processos deliberativos em que
participarem como cidadãos europeus (Habermas, 2012: 37). Esta tensão surge do
caráter dualista do processo decisório e tem consequências importantes para a natureza
democrática da União Europeia.
Por um lado, garante que o direito europeu possui realmente uma validade democrática
e que garante o seu poder de regular as relações interestatais, mesmo na ausência de
um monopólio europeu sobre os meios de violência legítima. Além disso, alarga também
o nível de controlo democrático que os cidadãos europeus são capazes de exercer sobre
os contextos sistémicos que afetam o continente europeu - sejam os das relações
interestatais ou os do mercado capitalista. Por outro lado, o facto de o duplo sujeito
constitucional da UE ser composto não pelos cidadãos europeus, mas também pelos
estados da União, significa que a legislação europeia não se pode sobrepor às legislações
constitucionais nacionais. Cada estado tem a possibilidade de salvaguardar o seu próprio
quadro legal e normativo interno, assegurando que o direito europeu deve garantir os
padrões de liberdades civis que foram historicamente alcançados ao nível estatal.
Assim, o direito europeu integra as orientações ‘universais’ dos cidadãos europeus e
protege a ‘diferença’ dos rios biótipos culturais de cada um dos povos nacionais da
União (Habermas, 2012: 40). A transformação da União Europeia numa associação
democrática transnacional de estados e cidadãos contribuiria para a concretização do
novo princípio de organização da política mundial que é imanente nas cosmovisões e nas
estruturas de consciência modernas. Constituiria um ‘passo adicional na constituição
política da sociedade mundial e na democratização da política mundial ao permitir que
os públicos deliberativos adquirissem um maior grau de controlo coletivo e consciente
sobre as dinâmicas sistémicas das relações económicas interestatais e globais, que
escaparam ao seu controlo dentro dos Estados-providência (Linklater, 1998: 167;
Linklater, 2011).
Contudo, Habermas está bem ciente de que estes desenvolvimentos na União Europeia
se entrelaçam necessariamente com dinâmicas mais vastas do sistema internacional e
do capitalismo global, e que a democratização do nível transnacional da UE pode ser
bem-sucedida se enquadrada na democratização mais ampla da política mundial. A
próxima seção aborda a forma como as reflexões de Habermas sobre a UE são
complementadas pelo seu trabalho sobre o potencial da constitucionalização política do
nível supranacional da interdependência humana. Nomeadamente, considera a sua
proposta de uma reforma das Nações Unidas como condição para o alargamento do
controlo democrático sobre os sistemas interestatais e capitalista globais que atualmente
destroem a capacidade dos seres humanos de se autodeterminarem quanto às suas
condições de existência.
A condição cosmopolita
O objetivo de alargar o controlo legal democrático sobre os contextos sistémicos para
além das fronteiras nacionais é impulsionado por uma ‘constelação paralisante’ na política
mundial. A globalização da interdependência humana ‘esgotou’ a capacidade de resposta
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dos estados aos problemas colocados pelas forças sistémicas globais da competição
interestatal e do capitalismo, que se desenvolveram para além do controlo dos estados
ou uniões de estados mais poderosos (Habermas, 2012: 54). Assim, os esforços
transnacionais de regulação legal democrática, como os da União Europeia, devem ser
complementados por uma maior democratização da política mundial. Nomeadamente,
através de uma reforma das Nações Unidas que democratize o seu papel na definição
legal das condições de fronteira para o funcionamento das relações interestatais e dos
mercados capitalistas. Segundo Habermas (2006: 137), a reforma democrática da ONU
exige uma transição para uma ‘condição cosmopolita’ na política mundial, caracterizada
pela ‘substituição’ do direito internacional pelo direito cosmopolita. Ao contrário do direito
internacional atual, o direito cosmopolita seria o resultado de processos decisórios
envolvendo não apenas estados, mas também cidadãos do mundo na sua qualidade de
sujeitos constitucionais da organização mundial. A ONU teria assim de incorporar
institucionalmente as duas inovações que Habermas vê como imanentes no nível
transnacional da UE. Por um lado, teria que garantir a conformidade dos Estados-
membros com o direito cosmopolita, mesmo que o monopólio sobre os meios de violência
legítima permanecesse ao vel estatal. Por outro lado, teria de incorporar
institucionalmente um ‘duplo sujeito constitucional’ composto por cidadãos do mundo e
povos nacionais, representados pelos seus respetivos estados, ou por outras entidades
representativas, tais como ONGs no caso de povos subestatais ou apátridas (Habermas,
2012: 54).
Enquanto a primeira destas duas condições pode ser discernida no quadro institucional
das Nações Unidas, a atualização do segundo elemento requer a atribuição, a cada ser
humano do planeta, do estatuto de cidadão do mundo, e a constituição, paralelamente à
Assembleia Geral, de um 'parlamento mundial' composto pelos seus representantes
eleitos (Habermas, 2012: 58; veja-se o paralelismo entre a proposta de cidadania
mundial de Habermas e as avançadas por Apel (2007) que, no entanto, carece do nível
de compromisso de Habermas para com as mudanças institucionais que podem ser
necessárias para concretizar formas de cidadania mundial/cosmopolita). O parlamento
mundial não transformaria as Nações Unidas numa república mundial, mas reforçaria a
legitimidade democrática do direito cosmopolita ao tornar os cidadãos do mundo,
juntamente com os estados, um dos seus sujeitos constitucionais. Por outras palavras,
seria o mesmo que aconteceria numa UE transformada em democracia transnacional, em
que o direito cosmopolita não se sobreporia ao direito constitucional nacional ou às
conceções étnico-nacionais da boa vida. Os Estados-membros, como os segundos
sujeitos fundadores da constituição, seriam capazes de proteger as suas disposições
internas da lei cosmopolita que não cumprisse os seus padrões de liberdades civis
(Habermas, 2012: 58). Além disso, uma vez que a organização mundial não é uma
federação mundial de estados e não possui um monopólio supranacional sobre os meios
de violência legítima, teria que confiar nos ‘monopolistas nacionais’ para assegurar o
cumprimento das suas tarefas, incluindo as que propõem a implementação de medidas
coercivas para restabelecer o cumprimento da lei cosmopolita. A necessidade de que a
organização mundial confie nos Estados-membros dessa forma não apenas confirma a
dissociação entre a lei e o poder estatal que caracteriza a constituição política da
sociedade mundial, mas também assegura a proteção da autonomia dos estados através
da manutenção do monopólio sobre os meios de violência legítima ao nível estatal
(Habermas, 2012: 61). Desse modo, a democratização da política mundial concebida por
Habermas efetivamente ‘uniria’ o ideal kantiano de participação igualitária de um reino
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universal de fins com o projeto marxista de desmantelar sistemas de dominação e
exclusão que minam a autonomia humana ao promover novas relações entre
universalidade e diferença (Linklater, 1998).
Segundo Habermas, é essencial, a esse respeito, que a organização mundial se restrinja
às funções de manutenção de paz e proteção dos direitos humanos, deixando os
processos de tomada de decisão relacionados com problemas económicos, sociais ou
ecológicos para o vel transnacional da sociedade mundial. A restrição da ONU a esse
conjunto restrito de funções centrais assenta no argumento que as questões relacionadas
com problemas económicos, sociais ou ecológicos, apesar de expressarem um ‘interesse
abstrato partilhado por todos os seres humanos, implicam necessariamente respostas
que se relacionam com conceções de boa vida específicas (Habermas, 2012: 63). o
questões cujas respostas envolvem a autoafirmação de identidades culturais e políticas
específicas e, enquanto tal, ao mesmo tempo que admitem a consensualização entre
pessoas que partilham características culturais comuns como parte da sua história
coletiva e pertencentes a uma determinada região do globo, não são passiveis de
respostas verdadeiramente universais decorrentes de processos globais de
consensualização entre cidadãos do mundo. Consequentemente, estas questões devem
ser tratadas a nível transnacional, onde as uniões continentais de estados nas mesmas
áreas culturais podem potencialmente aproximar-se de acordos comuns sobre formas
de vida’ preferíveis (Habermas, 2012: 63).
No entanto, a mesma análise não se aplica a questões de paz mundial e direitos
humanos. Na avaliação de Habermas (2012: 64), essas questões traduzem um interesse
geral a priori partilhado pela população mundial que se situa além de todas as divisões
político-culturais’, na prevenção da violência e na expressão de solidariedade para com
tudo que tenha uma face humana'. Essas questões têm um caráter inerentemente
universal, na medida em que a vulnerabilidade humana partilhada à guerra e à violência
é uma característica comum da espécie (veja-se Linklater, 2011). Como tal, a sua
discussão poderá produzir respostas verdadeiramente universais, alcançadas através de
processos globais de consensualização de normas envolvendo cidadãos do mundo e todos
os estados nos quais a humanidade se divide. A organização mundial deve, portanto,
restringir-se às questões relativas ao interesse humano universalmente partilhado.
De acordo com Habermas, o caráter universal, comum a toda a espécie, das funções
primordiais da ONU também significa que a organização mundial tem requisitos de
legitimidade distintos dos presentes ao nível transnacional nas uniões continentais. Dado
que os ‘deveres negativos de evitar violações injustificáveis dos direitos humanos e
guerras de agressão estão enraizados no conteúdo moral primordial de todas as
principais religiões mundiais e das culturas que nelas assentam’, a solidariedade vica
global entre os cidadãos do mundo pode basear-se nestas convicções partilhadas e não
exige um compromisso coletivo mais profundo com uma conceção comum de ‘boa vida’,
como ocorre a vel transnacional (Habermas, 2012: 65). Consequentemente, a
avaliação democrática dos processos de tomada de decisão deliberativos do parlamento
mundial pode basear-se apenas na expressão do, na essência moralmente justificados,
"sim" ou do "não" na aplicação supranacional de princípios e normas morais
presumivelmente partilhados' (Habermas, 2012: 65). Assim, embora a legitimidade do
direito aovel transnacional europeu exija não apenas um duplo sujeito constitucional,
mas também a consideração permanente de questões transnacionais na esfera pública
europeia, os requisitos de legitimidade mais fracos do direito cosmopolita não requerem
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a formação de uma esfera pública global permanente. Simplesmente exigem que a
constituição temática e temporalmente circunscrita de um público global seja
desencadeada intermitentemente por este ou aquele grande acontecimento sem adquirir
permanência estrutural’ (Habermas, 2012: 62).
Conclusão
As reflexões de Habermas sobre a possibilidade de democratização da política mundial
são um importante ponto de partida para discutir a forma como lidar com a erosão da
capacidade dos públicos democráticos ligados ao estado de controlar os processos sociais
que os unem à escala global. Na avaliação de Habermas, a resposta a essa erosão exige
um novo princípio de organização para a política mundial, cuja atualização se encontra
imanente no potencial cognitivo reunido nas estruturas de consciência modernas pelo
longo processo de desenvolvimento humano. Segundo Habermas, o potencial cognitivo
da modernidade implica a possibilidade de uma dissociação entre democracia e poder
estatal, com base na qual a constituição política da sociedade mundial pode ter lugar de
maneira a restabelecer o equilíbrio entre a política democrática e os imperativos
sistémicos do capital global e das relações entre estados. A sua teoria da evolução social
fornece assim uma abordagem interessante para umas RI criticamente comprometidas
com cumprir o seu papel de ser um meio de orientação mais adequado para lidar com os
desafios impostos pela complexidade da interdependência global humana. Por outras
palavras, umas RI que procuram constituir-se como uma estrutura orientadora que pode
ajudar as pessoas a compreender-se melhor, assim como o seu contexto histórico atual,
e identificar que tipo de inovações institucionais internacionais são necessárias para
realizar o potencial inerente à modernidade no que concerne o aumento da capacidade
dos seres humanos autodeterminarem as suas condições de existência.
As propostas de Habermas, no entanto, constituem apenas um ponto de partida para o
desenvolvimento de essas RI. É necessário trabalho adicional, especialmente para melhor
unir as propostas teórico-filosóficas de Habermas às análises histórico-sociológicas mais
concretas da política mundial. Por exemplo, é discutível se a restrição que Habermas faz
das funções da organização mundial às de manutenção da paz e dos direitos humanos
argumentando que essas funções, ao contrário das relacionadas com problemas
económicos, sociais e ecológicos, são mais universais e menos dependentes de conceções
específicas da boa vida é completamente sustentável. A história demonstra que
assuntos como a manutenção da paz e os direitos humanos estão tão politizados e
dependentes de conceções específicas da boa vida como os relacionados com problemas
económicos, sociais e ecológicos. Encontramos provas suficientes disso nos numerosos
debates no Conselho de Segurança em torno da legitimidade das intervenções
internacionais em nome da manutenção da paz ou em debates recentes sobre se os
direitos humanos, como atualmente concebidos, são verdadeiramente universais, ou se
o seu conteúdo ainda reflete uma fase da predominância das potências ocidentais na
sociedade internacional (vejam-se: Sun, 2016; Qi, 2005; Regilme, 2018). Além disso, os
desenvolvimentos recentes na política mundial têm assistido a organizações
internacionais a vel transnacional, como a União Europeia ou a União Africana, a
assumir, ou com a intenção de assumir, um papel maior a vel da manutenção da paz
e da segurança nas suas respetivas áreas do mundo (vejam-se: Joshua e Olanrewaju,
2017; Nováki, 2018). E, finalmente, é altamente discutível se os problemas que resultam
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da interdependência económica, social e ecológica podem ser adequadamente tratados
puramente ao nível das uniões continentais transnacionais, ou se essas questões,
especialmente no contexto da globalização capitalista cada vez mais descontrolada e de
processos globais de alterações climáticas, não exigem também algum grau de
coordenação global, que necessariamente teria que decorrer ao vel da organização
mundial proposta por Habermas.
Como tal, a abordagem crítica de Habermas à política mundial precisa de ser mais
desenvolvida, designadamente através de um envolvimento mais profundo com o estudo
histórico-sociológico da política mundial, a fim de divulgar os potenciais para o
desenvolvimento do tipo de ‘visão cosmopolita’ que Habermas acalenta (veja-se: Beck,
2006). Os recentes desenvolvimentos na teoria crítica internacional aparentam estar a
avançar nessa direção, seja apelando a um maior compromisso histórico-sociológico
(Schmide, 2018, Devetak, 2018), ou procurando desenvolvê-lo eles próprios (Linklater,
2016). Cabe aos estudiosos contemporâneos e futuros concluir essa tarefa e perceber
se, e como, a visão ética de Habermas sobre o futuro da política mundial pode ser
materializada.
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A RELEVÂNCIA DAS SESSÕES ESPECIAIS NO ÂMBITO DO TRABALHO DO
CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS: A PROTEÇÃO DA POPULAÇÃO CIVIL NOS
CONFLITOS INTERNOS ATUAIS
Sónia Roque
sroque@live.com.pt
Doutoranda em Relações Internacionais na Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra,
Centro de Estudos Sociais (Portugal). Bolseira da Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCT)
Resumo
Este artigo centra-se na análise da primeira década (2006-2016) do trabalho do Conselho de
Direitos Humanos (CDH) ao nível da relevância das sessões especiais do Conselho para a
proteção da população civil nos conflitos armados de caráter não internacional (CANI) atuais.
O CDH foi instituído pela Assembleia-Geral das Nações Unidas (AGNU) através da Resolução
60/251 adotada a 15 de março de 2006, em substituição da Comissão de Direitos Humanos.
Esta remodelação institucional tinha como intuito tornar o Conselho num órgão orientado para
a ação, numa tentativa de dar uma resposta mais eficaz e célere aos desafios mundiais de
proteção dos direitos humanos (DH).
No seguimento do Relatório do Painel de Alto Nível sobre Ameaças, Desafios e Mudança de
2004, o Secretário-Geral das Nações Unidas Kofi Annan chamou a atenção para o facto de se
estar a enfrentar um momento decisivo para as Nações Unidas, em particular, para a
concretização das aspirações estabelecidas na Carta constitutiva da Organização das Nações
Unidas (ONU). De entre estes desafios foi salientada a proteção dos DH em geral e da
população civil em particular, dada a complexidade dos conflitos atuais. O CDH surge assim
nesta linha de reestruturação institucional.
As sessões especiais são um dos métodos de trabalho do Conselho que permite que se
considerem situações flagrantes de abusos de DH que necessitam de atenção e tomada de
posição urgente. A autora argumenta que a análise destas sessões é particularmente
pertinente, por permitir examinar que situações foram alvo desta atuação e as diferentes
posições em relação a esta forma de tomada de decisão que nem sempre se revelou
consensual. Argumento ainda que este processo de tomada de decisão reflete algumas
oportunidades e enfrenta desafios ao tentar lidar com as diferentes perspetivas dos atores no
seio do CDH.
Palavras chave
Conselho de Direitos Humanos, sessões especiais, proteção, população civil, conflitos internos
Como citar este artigo
Roque, Sónia (2019). "A relevância das sessões especiais no âmbito do trabalho do Conselho
de Direitos Humanos: a proteção da população civil nos conflitos internos atuais". JANUS.NET
e-journal of International Relations, Vol. 10, N.º 1, Maio-Outubro 2019. Consultado [online]
em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.1.3
Artigo recebido em 24 de Março de 2018 e aceite para publicação em 04 de Setembro de
2018
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A relevância das sessões especiais no âmbito do trabalho do Conselho de Direitos Humanos:
a proteção da população civil nos conflitos internos atuais
Sónia Roque
A RELEVÂNCIA DAS SESSÕES ESPECIAIS NO ÂMBITO DO TRABALHO DO
CONSELHO DE DIREITOS HUMANOS: A PROTEÇÃO DA POPULAÇÃO CIVIL NOS
CONFLITOS INTERNOS ATUAIS
Sónia Roque
Introdução
O CDH, também denominado neste artigo por Conselho, foi instituído pela AGNU através
da Resolução A/RES/60/251 adotada a 15 de março de 2006, em substituição da
Comissão de Direitos Humanos. A Comissão vinha a ser alvo de diversas críticas, sendo
considerada um órgão extremamente politizado (Sheeran e Rodley, 2013: 745), em que
os países procuravam assento na Comissão para evitar a discussão da sua situação
interna em matéria de DH, e a aprovação de medidas tais como a nomeação de
investigadores ou comissões de inquérito, ou mesmo a aprovação de sanções, sendo que
a missão de proteção das timas de abusos de DH que lhe deu origem se transformou
num escudo de proteção para os infratores (Lauren, 2007: 307).
Não é assim de surpreender que quando se falou na necessidade de reformas mais
abrangentes na ONU, uma atenção especial fosse devotada à substituição da Comissão
e à importância dos DH para a segurança coletiva (Lauren, 2007: 330-331), tal como
discutido na sequência da Cimeira Mundial, no relatório do Painel de Alto Nível sobre
Ameaças, Desafios e Mudança intitulado A more secure world: our shared
responsability”, bem como no relatório do próprio Secretário-Geral das Nações Unidas
(SGNU) Kofi Annan “In larger freedom: towards development, security and human rights
for all.
Cox (2010: 95) a este respeito enfatizou o facto de o SGNU, o Painel de Alto Nível da
ONU, e um número crescente de Estados-membros terem feito pressão de tal forma que
a Comissão começou a ser vista por muitos como uma instituição problemática que
precisava de ser substituída. Como a Cimeira Mundial em 2005 demonstrou a ideia de
substituir a Comissão tomou conta da ONU, levando a uma pressão constante para
substituir este órgão que os Estados podem ter percebido como um custo de reputação
se não apoiassem uma nova instituição. O CDH foi criado neste sentido como um órgão
orientado para a ação como consta da Resolução 60/251, sendo elevado o seu estatuto
a órgão subsidiário da AGNU, o que lhe conferiria maior poder de atuação e autonomia
como defendido pelo SGNU.
Sob um ponto de vista construtivista o processo negocial e o estabelecimento do próprio
CDH denotam a influência que os agentes podem ter na estrutura das Nações Unidas
(Ruggie, 1998; Wendt, 1995). O papel do SGNU, tal como o dos Peritos por si designados
e a posição dos Estados-membros responsáveis pela tomada de decisão é central em
todo o processo, uma vez que estamos perante um processo de cariz intergovernamental.
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A relevância das sessões especiais no âmbito do trabalho do Conselho de Direitos Humanos:
a proteção da população civil nos conflitos internos atuais
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De entre os métodos de trabalho do CDH estão a realização de sessões especiais que
ocorrem sempre que 1/3 dos Estados-membros considere que existe uma situação
flagrante de abusos de DH que necessita de atenção e tomada de posição urgente
(A/RES/60/251: 4). Procurou-se desta forma contrariar o bloqueio político que tinha
começado a descredibilizar o trabalho da Comissão, o que nos permite inferir sobre a
importância destas sessões para a proteção dos DH.
A realização destas sessões foi também flexibilizada no âmbito do trabalho do CDH
comparativamente ao que acontecia na Comissão. Além da análise da situação em países
específicos, também é possível realizar sessões sobre temas com implicações na área
dos DH. Outra inovação foi a diminuição do número que Estados necessário para a
convocação destas sessões, o que permite que questões urgentes sejam debatidas no
CDH com maior facilidade (ICRC, 2008: 490), procurando-se responder assim de forma
célere às necessidades de proteção dos DH.
Sessões especiais
Entre 2006 e 2016, a primeira década de trabalho do CDH que pode ser considerada um
marco para a análise da sua atuação, em que todas as expectativas estavam postas no
trabalho deste novo órgão, realizaram-se 26
1
sessões especiais. Tal revela, por um lado,
a maior capacidade de atuação e análise do CDH e por outro, a maior facilidade de
convocação destas sessões. Estas sessões serão analisadas do ponto de vista da sua
contribuição para a proteção dos civis em situações de CANI, tendo em consideração a
iniciativa da sua convocação, as contribuições e posições para a tomada de decisão e o
resultado final da sessão no sentido de inferir sobre a concretização destas expectativas.
Sudão
A primeira situação no âmbito da nossa análise a ser levada perante o CDH foi referente
ao Sudão na Sessão especial por iniciativa da Finlândia (A/HRC/S-4/1). A sessão foi
apoiada por Estados dos diversos continentes inclusive Cuba, Rússia, China, Índia e
Equador que evidenciam maior susceptibilidade em relação a interferências nos assuntos
internos dos Estados, mas com oposição do Estado visado o Sudão que não obstante
participou na sessão, como aconteceu com os Estados cuja situação interna foi analisada.
Esta situação denota por um lado a aceitação da competência dos órgãos internacionais
nos quais os Estados decidem participar, neste caso, do CDH, e por outro, a sua tentativa
de influenciar a tomada de decisão destes órgãos.
A posição dos Peritos Independentes, Relatores Especiais do Conselho e Representantes
Especiais da ONU é essencial nestas sessões e de forma geral na tomada de decisão do
CDH, uma vez que são responsáveis pela apresentação de informação concreta sobre
cada situação cuja credibilidade ou veracidade é difícil de contentar por estas funções
fazerem parte do mandato que lhes foi conferido no âmbito da Organização e, como tal,
aceite pelos Estados-membros da ONU. Esta é uma componente fundamental no trabalho
do CDH, órgão político de cariz intergovernamental, pela independência dos seus
mandatos em relação aos Estados-membros. Embora a cooperação seja o motor
1
Destas 26, 7 foram referentes ao conflito Israel-Palestina caraterizado pela ONU como internacional (TIJ,
2004: 7-8). A 7ª, 10ª e 13ª não contêm referência a situações de conflito armado.
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A relevância das sessões especiais no âmbito do trabalho do Conselho de Direitos Humanos:
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essencial desta interação o seu trabalho permite persuadir os Estados a alterarem as
suas posições e perceções em relação às diversas questões como analisado pelo
Construtivismo, no nosso caso em apreço a proteção da população civil
2
.
A gravidade da situação dos DH no Sudão, em especial as infrações e abusos contra civis,
vinha a ser alvo de atenção na Comissão, mas sem grandes resultados práticos. Na
sessão o representante da Comissão de Inquérito sobre o Darfur, o Assessor-Especial do
SGNU para a Prevenção do Genocídio, o SGNU e o Alto Comissariado das Nações Unidas
para os Direitos Humanos (ACNUDH) enfatizaram os ataques contra civis que foram por
vezes instigados pelo próprio governo. O ACNUDH enumerou especificamente estas
infrações aos DH e ao DIH (tortura e tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes;
violência sexual e outras agressões; deslocamento de civis; pilhagem de bens civis;
impedimento do acesso humanitário; ameaças de assassinato; impedimento do retorno
das pessoas deslocadas internamente (PDI); prisões e detenções arbitrárias).
Tendo em atenção estes relatos a Finlândia enquanto promotora da sessão apresentou
o projeto de resolução A/HRC/S-4/L.1 no qual se manifestava preocupação com a
situação humanitária e dos DH no Darfur e se solicitava o fim das violações dos DH e do
DIH (A/HRC/S-4/L.1: 1-2). Em alternativa, a Argélia em nome do Grupo Africano (GA),
apresentou os projetos A/HRC/S-4/L.2 e A/HRC/S-4/L.3 que o continham o
reconhecimento das infrações aos DH e ao DIH apesar da informação dos Peritos
Independentes e da proposta da Finlândia. Desta sessão e como resultado da divergência
de posições dos Estados-membros resultou a Decisão S-4/101 adotada sem votação e
na qual, em termos gerais, o CDH manifestou a sua preocupação com a situação
humanitária e dos DH no Darfur, tendo sido decidido o envio de uma missão para avaliar
a situação dos DH e as necessidades do país (A/HRC/S-4/5: 3).
A posição do GA denota a falta de apoio a uma tomada de posição forte e condenatória
em relação à situação vivida no Darfur, o que revela nesta fase inicial do trabalho do
Conselho uma resistência em aprovar medidas com implicações internas. No entanto a
pressão da informação sobre a gravidade da situação levou à nomeação de uma missão
de investigação, demonstrando a importância dos relatos dos Peritos sobre a situação e
a pressão sobre a necessidade de continuar a analisar a situação humanitária e dos DH
no Sudão com vista à proteção dos civis que seria feita nas sessões regulares, nas quais
se obteve o apoio do governo.
Sudão do Sul
A Albânia, Paraguai, Reino Unido e Estados Unidos da América (EUA) solicitaram uma
sessão sobre a situação dos DH no Sudão do Sul a 26ª sessão especial no âmbito do
trabalho do Conselho (A/HRC/S-26/1). Esta sessão contou com apoio inter-regional à
exceção da Venezuela e do Sudão do Sul que, não obstante estava disposto a cooperar,
reservou-se o direito soberano de tomar as medidas adequadas em momento oportuno.
Esta posição revela que a soberania continua a ser um ponto incontornável nas relações
internacionais, embora possamos considerar a cooperação um contrapeso a esta situação
no sentido analisado por Wendt (1995) ao entender que a interação nas estruturas sociais
2
Por civis, como previsto no artigo 50.º do I Protocolo Adicional às CG, entendem-se as pessoas que não
são membros das forças armadas; a população civil compreende todas as pessoas que são civis. Alguma
prática acrescenta a condição de que os civis são pessoas que não participam nas hostilidades (ICRC,
2005).
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A relevância das sessões especiais no âmbito do trabalho do Conselho de Direitos Humanos:
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(nas quais podemos incluir o CDH) pode moldar as identidades e os interesses dos atores
que nelas participam também com intuito de obter legitimidade e reconhecimento
internacional.
Devemos começar por realçar a independência do Sudão do Sul do Estado do Sudão em
2011 e que apesar da situação de infração aos DH e DIH que vinha a ser relatada desde
2006 aquando, como analisámos, da sessão especial sobre o Sudão, não foi solicitada
neste período de tempo nenhuma sessão extraordinária sobre a situação, sendo os fóruns
regulares considerados suficientes para acompanhar a situação.
Na sua intervenção nesta sessão o ACNUDH em termos de infrações aos direitos dos civis
fez referência aos sequestros, prisões arbitrárias, deslocamento forçado e violação dos
direitos à liberdade de circulação, expressão e opinião. A Comissão de DH no Sudão do
Sul denunciou as infrações, inclusive contra crianças, salientando o processo de limpeza
étnica também mencionada pela Assessora Especial para a Prevenção do Genocídio; a
iminência da fome; a redução dos grupos da sociedade civil; o aumento do número de
refugiados e PDI. Por seu turno o Comité de Coordenação dos Procedimentos Especiais
(CCPE) referiu-se, em particular, à violência sexual e de género como ferramenta de
limpeza étnica e aos ataques a locais e infra-estruturas civis; recrutamento forçado de
crianças; desaparecimentos forçados; tortura e maus tratos e execuções extrajudiciais.
Tomando a iniciativa na tomada de decisão os EUA introduziram o projeto de resolução
A/HRC/S-26/L.1 que foi aprovado sem votação na Resolução S-26/1 (A/HRC/S-26/2: 9),
demonstrando o apoio inclusive do GA em relação à premência de assegurar a proteção
dos civis. Esta Resolução incluiu as referências às infrações à proteção de civis
mencionadas pelos Peritos, tal como a questão da responsabilização dos infratores e a
responsabilidade do governo proteger a sua população do genocídio, crimes de guerra,
limpeza étnica e crimes contra a humanidade (A/HRC/S-26/L.1: 2-4), No projeto referiu-
se ainda a importância de prestar assistência e proteção atempada aos sobreviventes de
violência sexual e de género, tendo em atenção as necessidades das pessoas com
deficiência e a preocupação com as restrições aos DH e liberdades fundamentais
(A/HRC/S-26/L.1: 3). Estas referências interligam de forma evidente o DIH às
salvaguardas do Direito Internacional dos Direitos Humanos (DIDH) na proteção dos civis
um avanço significativo em relação à 4ª sessão especial.
Myanmar
A situação no Myanmar foi analisada por iniciativa da Eslovénia na sessão especial
(A/HRC/S-5/1), que não contou com o apoio do Myanmar, da Rússia e Índia. Esta
situação demonstra que os Estados não concordam em ser visados diretamente numa
sessão específica que os responsabilize por falhas na proteção dos DH, mas que é
conseguida no âmbito das novas regras de funcionamento do CDH, o que evidencia a
importância das estruturas nas quais os Estados participam.
Em relação ao Myanmar o Relator Especial sobre o Myanmar alertou para os ataques
contra manifestantes pelas forças de segurança e as restrições aos meios de comunicação
e informação. Entre as violações flagrantes contaram-se as execuções sumárias;
restrições à liberdade de religião e expressão; tortura e maus tratos; falta de
independência de juízes e advogados, bem como prisões e detenções arbitrárias
reforçadas pela informação apresentada pelo ACNUDH.
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A relevância das sessões especiais no âmbito do trabalho do Conselho de Direitos Humanos:
a proteção da população civil nos conflitos internos atuais
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Estes relatos foram incluídos no projeto A/HRC/S-5/L.1 apresentado por Portugal, em
nome da União Europeia (UE) e aprovado sem votação na Resolução S-5/1 (A/HRC/S-
5/2: 8), no qual foi consensual incluir além da proteção da vida e integridade sica, os
DH e liberdades fundamentais como a realização de atividades políticas pacíficas, a
liberdade dos meios de comunicação, e o acesso à informação na proteção dos civis
(A/HRC/S-5/L.1: 1-2). Conseguiu-se obter para a Resolução a cooperação do Myanmar
e o consenso da Rússia e da Índia, evidenciando-se os custos de reputação dos Estados,
devido aos relatos dos Peritos e ao próprio mandato que foi conferido ao CDH no qual
participam.
República Democrática do Congo (RDC)
A iniciativa de avaliar a situação na RDC foi da França (A/HRC/S-8/1), a qual foi feita na
8ª Sessão especial.
Em termos de infrações à proteção dos civis o ACNUDH relatou as execuções sumárias
ou arbitrárias, os sequestros e saques generalizados e os abusos, incluindo a violência
sexual contra PDI, em especial contra mulheres e crianças. Neste seguimento enquanto
impulsionadora da sessão a França apresentou, em nome da UE, o projeto A/HRC/S-
8/L.1, mas após longas discussões sobre a proposta A/HRC/S-8/L.2/Rev.2, apresentada
pela Egito em nome do GA e do consenso alcançado retirou o projeto, tendo sido
aprovada sem votação a Resolução S-8/1 no sentido de obter um consenso que
permitisse proteger os civis.
A proposta inicial A/HRC/S-8/L.2 apresentada pelo Egito foi elaborada em termos mais
gerais, não havendo exemplos dos atos de infração. A primeira revisão por pressão dos
promotores do projeto L.1 introduziu a referência às infrações cometidas em Kivu contra
os civis, em particular a violência sexual, o recrutamento pelas micias de crianças e a
necessidade de responsabilização por violações dos DH e do DIH (A/HRC/S-8/L.2/Rev.1:
2), o que denota a questão das identidades dos atores na estrutura do CDH e a influência
mútua destes agentes. A importância da assistência humanitária (alimentos, água,
medicamentos e abrigo), da liberdade de circulação de pessoas e bens o também
referidas, indo-se além da proteção da integridade física e dignidade dos civis cada vez
mais consensual entre os Estados.
Sri Lanka
A situação no Sri Lanka seria avaliada na 11ª sessão especial por iniciativa da Alemanha
(A/HRC/S-11/l). Esta sessão foi apoiada maioritariamente pelo Grupo dos Estados da
Europa Ocidental e Outros, havendo resistência dos países dos restantes continentes e
do Sri Lanka por considerarem tratar-se de uma situação interna de combate ao
terrorismo.
O ACNUDH procurando conseguir avanços na proteção dos civis denunciou as infrações
aos DH e ao DIH (assassinatos; deslocamentos forçados; destruição de bens e meios de
subsistência: falta de alimentos, água e assistência médica; falta de independência das
instituições nacionais) e referiu-se à importância das timas de violência terem acesso
à justiça e a remédios.
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A relevância das sessões especiais no âmbito do trabalho do Conselho de Direitos Humanos:
a proteção da população civil nos conflitos internos atuais
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No entanto, dada a oposição à convocação da sessão e no sentido de influenciar a decisão
final o Sri Lanka apresentou a proposta A/HRC/S-11/L.1 onde apenas as infrações dos
Tigres Tamil foram mencionadas. Na primeira revisão que resultou na Resolução S-11/1
(A/HRC/S-11/2: 10), com vista a conseguir um consenso, pela recusa em aceitar a
proposta da Alemanha, foi acrescentada a responsabilidade de prestar proteção e
assistência humanitária (água potável, saneamento, alimentos, assistência médica) e a
obrigação de respeitar o DIDH e o DIH. Evidenciou-se um avanço nas garantias dos civis
considerado ainda assim insuficiente, pelo que não contou com o apoio dos Estados
promotores da sessão que pretendiam a inclusão das infrações praticadas pelo governo.
Costa do Marfim
Na 14ª Sessão especial foi analisada a situação na Costa do Marfim por iniciativa da
Nigéria (em nome do GA) e dos EUA (A/HRC/S-14/1: 4-5). A posição do GA vinha a ser
de cooperação no âmbito do CDH de forma a tentar resolver ou gerir os problemas no
Continente através de uma posição na tomada de decisão.
O vice-Comissário Adjunto para os DH reiterou, como o ACNUDH, a preocupação com as
violações dos DH caraterizadas pela repressão de encontros e manifestações públicas;
assédio e intimidação; detenção e prisão arbitrária; tortura; desaparecimentos;
assassinatos extrajudiciais; deslocamento forçado; infrações à liberdade de informação
e expressão e à liberdade de circulação que prejudicaram a prestação de serviços e
assistência humanitária.
No seguimento da iniciativa da convocação da sessão a Nigéria em nome do GA
apresentou o projeto de resolução A/HRC/S-14/ L.1 aprovado consensualmente na
Resolução S-14/1 (A/HRC/S-14/1: 6-7). Em relação à Costa do Marfim foram
consideradas as infrações aos DH e ao DIH cometidas por todas as partes como relatado
pelos Representantes Especiais, incluindo os direitos e liberdades fundamentais como a
liberdade de informação e expressão e a questão humanitária, incluindo o impacto
socioeconómico sobre a população. Esta proteção vai além da proteção que seria
conferida ao abrigo do DIH de acordo como artigo 3.º comum às CG, especificando-se os
direitos das PDI e refugiados, incluindo os direitos civis e políticos, económicos e sociais
que garantem o bem-estar e subsistência da população cada vez mais consensuais como
constatado pelas sessões anteriores.
Líbia
A situação na Líbia que vinha a ser alvo de consideração na ONU foi também tida em
atenção no CDH por iniciativa da Hungria em nome da UE na 15ª sessão especial
(A/HRC/S-15/1: 6).
Sobre a proteção de civis o ACNUDH e o CCPE alertaram para a repressão violenta contra
manifestantes pacíficos com homicídios em massa, prisões arbitrárias, detenções e
tortura de manifestantes; bloqueios a áreas residenciais; impedimento à assistência
médica e humanitária; uso de combatentes estrangeiros (mercenários) e infrações aos
direitos e liberdades fundamentais da população.
A iniciativa de apresentar um projeto de resolução A/HRC/S-15/L.1 coube à promotora
da sessão, sendo o projeto adotado sem votação na Resolução S-15/l (A/HRC/S-l5/l: 10-
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a proteção da população civil nos conflitos internos atuais
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11). O projeto continha uma referência explícita às infrações contra os civis de acordo
com os dados apresentados pelos Peritos, incluindo aos direitos e liberdades
fundamentais, embora sem referência aos direitos socioeconómicos ao contrário da Costa
do Marfim, ou ao uso de mercenários (A/HRC/S-15/L.1: 1-2). Dada a gravidade da
situação foi decidido estabelecer uma Comissão de Inquérito para investigar as violações
do DIDH na Líbia com vista à responsabilização (A/HRC/S-15/L.1: 2), o que não será
consensual, como veremos, em relação à Síria.
Síria
No mesmo sentido dos restantes órgãos da ONU que analisavam a situação na ria assim
que o conflito despoletou, o CDH sob iniciativa dos EUA analisou esta situação na 16ª
sessão especial (A/HRC/S-16/2: 5). Esta foi a primeira de várias sessões extraordinárias
sobre a Síria no intuito de contribuir para a resolução ou gestão da situação, em especial
quando se verificou um bloqueio no Conselho de Segurança (Gowan e Pinheiro, 2014), o
que não aconteceu em relação à Líbia.
A sessão especial como será evidente em relação a todas as sessões convocadas não foi
apoiada pela Síria que considerou a situação como de emergência/manutenção da ordem
pública, pelo que não requeria a atenção do CDH, sendo apoiada pela Rússia, China,
Cuba, Venezuela, Equador, Paquistão e Nicarágua.
Na sessão os Peritos Independentes não se posicionaram em relação à classificação do
conflito, que poderia prejudicar a tomada de decisão, focando a proteção dos civis em
termos dos DH e liberdades fundamentais considerados aplicáveis a todas as situações,
inclusive em situações de emergência. Deste modo, o ACNUDH considerou entre as
infrações o uso de fogo vivo contra manifestantes pacíficos; detenção e
desaparecimentos forçados; tortura e maus-tratos; repressão à liberdade de expressão,
reunião e associação; perseguição e intimidação; ataques contra pessoal médico,
instalações e pacientes; ataques a áreas densamente povoadas; impedimento da entrega
de alimentos e assistência aos feridos e bloqueio a serviços públicos como à eletricidade
e o sistema de transportes, que podiam constituir crimes contra a humanidade. O Relator
Especial sobre o Direito à Alimentação em nome dos titulares de mandatos do CDH
considerou ademais que devia haver reparações e compensações às timas e às suas
famílias.
Tomando a iniciativa na tomada de decisão os EUA apresentaram o projeto A/HRC/S-
16/L.1 aprovado de forma não consensual na Resolução S-16/1 onde se reafirmava a
obrigação dos Estados protegerem os DH e liberdades fundamentais dos civis (A/HRC/S-
16/L.1: 1) na linha do contributo dos Peritos, o que denota mais uma vez a importância
destes Peritos na consideração da proteção dos civis através do relato das infrações. No
entanto, os direitos socioeconómicos como a questão da alimentação, cuidados de saúde
não foram mencionados de forma explícita, aludindo-se ao direito à justiça social.
Uma segunda sessão sobre a Síria que correspondeu à 17ª sessão especial foi solicitada
pela Polónia em nome da UE a (A/HRC/S-17/1), já com apoio inter-regional, inclusive de
países árabes, mas que manteve a mesma oposição.
semelhança da sessão anterior o ACNUDH e o Relator Especial sobre a Tortura em
nome dos titulares de mandatos do CDH não se posicionaram em relação à qualificação
do conflito, considerando a proteção dos civis ao abrigo dos DH e liberdades
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fundamentais como previsto pelo DIDH relatadas na 16ª sessão especial agora
confirmadas pela missão enviada à Síria.
Procurando impulsionar a tomada de decisão a Polónia promotora da sessão em nome
da UE apresentou o projeto A/HRC/S-17/L.1 aprovado também de forma não consensual
na Resolução S-17/1. O projeto referiu as informações sobre a situação mencionadas
pelos Peritos, e pela missão de investigação que evidenciaram as violações aos DH
cometidas pelas autoridades sírias que podiam constituir crimes contra a humanidade,
instando-se nesta resolução as autoridades a garantirem a assistência humanitária e
médica (A/HRC/S-17/L.1: 1-3), o que não aconteceu na anterior. Foi também decidido
enviar uma comissão de inquérito nomeada pelo Presidente do CDH para investigar as
alegadas violações do DIDH, incluindo crimes contra a humanidade, no sentido de
identificar os responsáveis (A/HRC/S-17/L.1: 3). Esta nomeação denota o reforço da
competência do CDH em relação às infrações contra civis cujos infratores deviam ser
responsabilizados. Decidiu-se igualmente transmitir o relatório desta comissão à AGNU
que o encaminharia aos organismos relevantes, o que reforça a gravidade das infrações
praticadas contra civis, procurando-se uma tomada de posição também dos órgãos
principais da ONU.
Novamente a Polónia em nome da UE solicitou uma sessão sobre a Síria à luz do relatório
solicitado à comissão de inquérito que foi avaliado na 18ª sessão especial (A/HRC/S-
18/2: 6). Esta sessão teve ainda maior apoio inter-regional, mas manteve a mesma
oposição das sessões anteriores.
A Comissão de Inquérito sobre a ria relatou, como o ACNUDH, na linha das sessões
anteriores entre os infrações aos DH e liberdades fundamentais contra civis o
assassinato, inclusive de crianças; tortura e maus-tratos; estupro e outras formas de
violência sexual; prisão ou outras formas de privação da liberdade; desaparecimentos
forçados; bloqueios a áreas residenciais com obstrução do acesso à água, alimentos e
outras necessidades básicas; destruição de propriedade e infra-estruturas civis; infração
aos direitos das crianças (incluindo a educação); restrições à liberdade de circulação;
utilização de hospitais como centros de tortura para manifestantes feridos; impedimentos
à prestação de assistência médica e restrições aos direitos civis e políticos como a
liberdade de expressão, reunião ou manifestação pacíficas, no sentido de levar a uma
tomada de decisão forte.
Novamente a Polónia impulsionadora da sessão em nome da UE apresentou o projeto
A/HRC/S-18/L.1 aprovado como os anteriores de forma não consensual na Resolução S-
18/1 (A/HRC/S-18/2: 8-9), onde se mencionavam as infrações aos DH e liberdades
fundamentais na linha dos relatos dos Peritos, realçando-se novamente a importância da
assistência humanitária; o retorno voluntário de refugiados e PDI e a preocupação com
a impunidade (A/HRC/S-18/L.1: 1-3). Na revisão acrescentou-se a referência à
importância do cumprimento dos direitos civis, políticos, económicos, sociais e culturais
da população, o que demonstra maior consenso sobre esta questão, solicitando-se
diretamente aos órgãos da ONU a tomada de medidas com base na consideração da
Resolução (A/HRC/S-18/L.1/Rev.1: 2-4). Esta referência denota a pressão crescente
para a proteção dos civis pela ONU através dos seus órgãos principais.
Uma nova sessão foi solicitada por representantes da Dinamarca, Kuwait, Qatar, Arábia
Saudita, Turquia, UE e dos EUA em relação à deterioração da situação dos DH na Síria e
os recentes assassinatos em El-Houleh que seria a 19ª sessão especial (A/HRC/S-19/1).
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Esta sessão contou com um apoio ainda mais extenso, evidenciando a pressão em torno
da resolução da situação.
Os Peritos que participaram na sessão, o ACNUDH e o Relator Especial sobre Execuções
Extrajudiciais, Sumárias ou Arbitrárias em nome dos titulares de mandatos do CDH, na
linha das sessões anteriores referiram-se à proteção dos civis de acordo com o DIDH que
incluía os direitos e liberdades fundamentais com base no relatório da Comissão de
Inquérito sobre a Síria A/HRC/19/69.
No seguimento destes relatos pela primeira vez por iniciativa de um país árabe, o Qatar,
foi apresentado o projeto A/HRC/S-19/L.1 aprovado também de forma não consensual
na Resolução S-19/1 (A/HRC/S-19/2: 8). Na proposta referiram-se as infrações contra
civis ao nível do uso de artilharia pesada contra áreas residenciais e abusos físicos,
especificando os ataques contra mulheres e crianças, e as infrações aos direitos e
liberdades fundamentais (A/HRC/S-19/L.1:1-2), não existindo ao contrário das
anteriores uma referência aos direitos económicos e sociais. Na revisão A/HRC/S-
19/L.1/Rev.1 também se recordou a declaração do ACNUDH de que as atrocidades
cometidas podiam constituir crimes contra a humanidade e o seu apelo ao Conselho de
Segurança para encaminhar a situação ao Tribunal Penal Internacional. Esta referência
evidência novamente a importância da posição dos Peritos Independentes na tomada de
decisão, que requer, dada a gravidade prolongada da situação, uma responsabilização
dos infratores. No projeto também se solicitou à Comissão de Inquérito que realize uma
investigação sobre El-Houleh, para identificar os responsáveis (A/HRC/S-19/L.1:2) no
seguimento da importância conferida à responsabilização como forma de combater a
impunidade.
A situação da Síria foi novamente analisada na 25ª sessão especial solicitada pelo Reino
Unido devido à situação em Aleppo (A/HRC/S-25/l).
Como intervenientes na sessão o ACNUDH, o CCPE e a Comissão de Inquérito sobre a
Síria referiram as infrações contra os civis na linha dos relatos das sessões anteriores ao
abrigo do DIDH que inclui os direitos e liberdades fundamentais, mas em 2016 com
referência explícita ao DIH pelo consenso alcançado em relação à qualificação da situação
enquanto “conflito armado”.
Na sequência da iniciativa da sessão o Reino Unido apresentou o projeto A/HRC/S-25/L.1
aprovado novamente de forma não consensual na Resolução S-25/1 (A/HRC/S-25/2: 7-
10). Nesta Resolução foi feita referência às infrações ao DIDH e ao DIH por todas as
partes no conflito, incluindo a violência sexual e baseada no género, praticada também
contra crianças; destruição de infra-estruturas civis (escolas, instalações médicas) em
Aleppo; ataques a civis; remoção de itens de comboios humanitários; interrupções
deliberadas de abastecimento de água; uso indiscriminado de armas; uso da fome como
método de combate e cerco de áreas povoadas (A/HRC/S-25/L.1: 1-3), sem referência
aos direitos económicos e sociais, o que revela ainda algumas reticências em relação a
esta categoria de direitos. Foi igualmente solicitada à Comissão de Inquérito a realização
de um inquérito sobre Aleppo com vista à responsabilização dos infratores (A/HRC/S-
25/L.1: 3-4), sendo o combate à impunidade uma das principais formas consideradas
para dissuadir as infrações.
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República Centro-Africana (RCA)
Por iniciativa da Etiópia em nome do GA foi solicitada uma sessão sobre a situação dos
DH na RCA analisada na 20ª sessão especial (A/HRC/S-20/1). Esta sessão teve um amplo
apoio inter-regional, incluindo da RCA devido ao risco de genocídio pela dimensão étnica
e religiosa da crise, demonstrando a importância que os Estados atribuem à cooperação
através da atuação das instituições internacionais.
O ACNUDH e o CCPE mencionam em relação à situação as execuções sumárias com base
na religião; atos de violência sexual e baseada no género; desaparecimentos forçados;
tortura; mutilações; maus-tratos, prisões e detenções arbitrárias; saques e destruição
de propriedade, em especial de edifícios religiosos e o uso de crianças-soldado que
levaram a um elevado número de refugiados e PDI.
Neste seguimento a Etiópia em nome do GA apresentou o projeto A/HRC/S-20/L.1
aprovado consensualmente na Resolução S-20/1 (A/HRC/S-20/2), na qual foram
consideradas as violações e abusos dos DH e liberdades fundamentais como mencionadas
pelo ACNUDH e pelo CCPE (A/HRC/S-20/L.1: 1-2), novamente sem referência aos
direitos económicos e sociais.
Iraque
O Iraque solicitou uma sessão (22ª sessão especial) sobre a situação dos DH no próprio
país à luz dos abusos cometidos pelo auto-denominado Estado Islâmico, grupo Levante
e grupos associados (A/HRC/S-22/4), a qual teve amplo apoio inter-regional, incluindo
da Rússia e China ao contrário do que aconteceu em relação ao Sri Lanka.
O ACNUDH mencionou as violações ao DIDH e ao DIH praticadas por estes grupos contra
civis (violência sexual; sequestros; tortura; perseguição com base na filiação étnica,
religiosa ou sectária, entendendo-se os direitos culturais e religiosos como direitos à
identidade; uso de crianças-soldado; destruição de infra-estruturas e dos meios de
subsistência da população; impedimento da assistência humanitária; atos de intimidação
e atemorização das populações e proibição dos civis deixarem em segurança os locais de
combate), sendo também constatadas infrações ao DIDH e ao DIH praticados pelas
forças do Iraque e grupos armados contra estes grupos.
Assumindo a iniciativa do processo de decisão a França apoiada pelo Iraque apresentou
o projeto A/HRC/S-22/L.1 aprovado na Resolução S-22/l (A/HRC/S-22/4: 9), no qual se
evidenciaram as infrações ao DH e ao DIH cometidas pelos grupos terroristas que podiam
constituir crimes de guerra e contra a humanidade relatadas pelo ACNUDH; a
necessidade de proteger e prestar assistência aos civis; proteger as infra-estruturas civis;
promover e proteger todos os DH e liberdades fundamentais; investigar os alegados
abusos e promover o regresso das PDI (A/HRC/S-22/L.1: 1-3), interligando-se o DIDH e
o DIH na proteção dos civis que inclui os meios necessários à subsistência da população.
Mas sem referência às infrações cometidas pelo governo, situação que tinha sido criticada
em relação ao Sri Lanka.
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Grupo Boko Haram
A atuação do Grupo Boko Haram que teve implicações nos Camarões, Chade, Níger e
Nigéria, foi levada perante o Conselho pela Argélia em nome do GA na 23ª sessão
especial (A/HRC/S-23/1).
Na sessão o ACNUDH referiu as infrações cometidas pelo Grupo Boko Haram com
dimensões étnicas e sectárias (assassinatos, raptos, escravidão sexual, recrutamento
forçado, saques e destruição de aldeias e cidades) que levaram a um elevado número de
PDI e refugiados que necessitavam de assistência humanitária e psicológica. Também
houve relatos de violações graves ao DIDH e ao DIH pelas forças da Nigéria e outros
países na resposta às atividades do Grupo. O CCPE relembrou ademais a proteção dos
DH e liberdades fundamentais (segurança jurídica; liberdade de pensamento, consciência
e religião e a decisão sobre o retorno ao país).
Tratando-se mais uma vez de uma situação no Continente Africano a Argélia em nome
do GA apresentou o projeto A/HRC/S-23/L.1 aprovado consensualmente na Resolução
S-23/1 (A/HRC/S-23/2: 9), na qual foram mencionadas as atrocidades e abusos ao DIDH
e ao DIH cometidas pela organização terrorista contra civis na linha dos relatos dos
Peritos, incluindo os DH e liberdades fundamentais, tendo também sido manifestada
preocupação com as PDI e os refugiados (A/HRC/S-23/L.1: 3). Mas novamente não foram
referidas as infrações praticadas pelos Estados no combate ao terrorismo à semelhança
do Iraque e do Sri Lanka, não se mencionando também os direitos económicos e sociais
enquanto garantias da população.
Burundi
A gravidade da situação levou os EUA a solicitarem uma sessão sobre o Burundi que seria
a 24ª sessão especial (A/HRC/S-24/l), a qual teve o apoio do Burundi pela consciência
da dimensão étnica do conflito como aconteceu com a RCA.
Na sessão o ACNUDH, o Conselheiro para a Prevenção do Genocídio e o CCPE,
enumeraram as infrações aos DH com base na filiação política e étnica (execuções
extrajudiciais; detenções e prisões arbitrárias; desaparecimentos forçados;
espancamentos; saques; bloqueios a bairros; repressão; tortura; intimidação e a
ausência de meios de subsistência da população).
Neste sentido os EUA apresentaram o projeto A/HRC/S-24/L.1 aprovado
consensualmente na Resolução S-24/l (A/HRC/S-24/2: 9-10), no qual foi reafirmada a
promoção e proteção dos DH e liberdades fundamentais (A/HRC/S-24/L.1: 1) conforme
mencionadas pelos Peritos, solicitando-se ao ACNUDH que organize uma missão de
investigação (A/HRC/S-24/L.1: 5), enfatizando-se novamente a importância do combate
à impunidade.
Conclusões
Dos casos analisados evidenciamos a iniciativa dos Estados da Europa Ocidental e Outros
na convocação da maioria das sessões na linha da defesa de uma maior capacidade de
atuação do CDH em situações de graves infrações aos DH. Também se verificou um
assumir pelo GA das questões em África que geram maior consenso internacional, ao
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contrário de outras regiões como se verificou pela falta de consenso em relação ao Sri
Lanka e à Síria mais próximas das fronteiras de grandes potências.
Não obstante as dificuldades de enquadramento dos conflitos atuais nas categorias ditas
clássicas (CANI, conflito internacional, distúrbios ou tensões internas) aceitação da
inter-relação na proteção dos civis entre o DIH e o DIDH que foi assumida diretamente
nas diversas resoluções como proposto pelos Peritos Independentes. Esta
complementaridade além da proteção mínima nos CANI conferida pelo artigo 3.º comum
às CG, a única aceite consensualmente por todos os Estados, abrange os DH e liberdades
fundamentais com ênfase para os direitos civis e políticos (liberdade de opinião,
expressão, informação, manifestação pacífica, circulação, religião ou crença e exercício
de atividades pacíficas inclusive políticas); a proteção de infra-estruturas e bens civis;
proibição de todos os tratamentos cruéis, desumanos ou degradantes especificando-se
entre estes a violência, abusos e agressões sexuais; a proibição do uso de crianças-
soldado; a obrigação de prover os meios necessários à subsistência das populações
mesmo que através da assistência humanitária (alimentos, água, cuidados de saúde,
abrigo), com ênfase para a parte da população considerada mais vulnerável refugiados,
PDI, mulheres e crianças e a responsabilização dos infratores.
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AGENDA-SETTING E FRAMING NA POLÍTICA EXTERNA: O CASO DA COBERTURA
TELEVISIVA RUSSA E UCRANIANA DO CASO DA CRIMEIA
Yuliia Krutikova
Yuliia.krutikova@gmail.com
Licenciada e Mestre em Relações Internacionais, especialização em Estudos Europeus (Universidade de
Coimbra, Portugal). Realizou estágios profissionais na Embaixada de Portugal na Bulgária, na Navigator
Company, e no National System Limited Inter TV em Kiev
Maria Raquel Freire
rfreire@fe.uc.pt
Investigadora no Centro de Estudos Sociais e Professora Associada de Relações Internacionais da Faculdade
de Economia, Universidade de Coimbra (Portugal). É titular da cátedra Jean Monnet. Doutorada em Relações
Internacionais pela Universidade de Kent. Atualmente é diretora do Programa de Doutoramento em Política
Internacional e Resolução de Conflitos (CES|FEUC). Membro do Conselho de Administração da European
Studies Association (EISA). A sua investigação centra-se em estudos sobre a paz, em particular manutenção
e construção da paz; política externa, segurança internacional, Rússia e espaço pós-soviético. Tem publicado
em revistas especializadas com revisão por pares como o European Politics and Society, European Review of
International Studies, Journal of Balkan and Near Eastern Studies, East European Politics, European Security,
International Peacekeeping, International Politics, Asian Perspective, Global Society, La Revue Internationale
et Stratégique, Journal of Conflict, Security Development, e Relações Internacionais.
Sofia José Santos
sjs@fe.uc.pt
Professora Auxiliar Convidada na Faculdade de Economia e Investigadora Integrada do Centro de Estudos
Sociais, Universidade de Coimbra (Portugal). Investigadora associada no OBSERVARE, Universidade
Autónoma de Lisboa. Tem pós-graduação em Ciências da Comunicação, ISCTE-IUL, é doutorada e mestre em
Política Internacional e Resolução de Conflitos, Faculdade de Economia, Universidade de Coimbra e licenciada
em Relações Internacionais pela mesma universidade. Foi investigadora de pós-doutoramento no
OBSERVARE/UAL e no CES e investigadora e coordenadora de média e comunicação no Promundo-Europa.
Pertenceu à equipa de investigação do Flemish Peace Institute como visiting scholar e foi visiting fellow na
Universiteit Utrecht. Foi cocoordenadora e coeditora do Boletim P@x, publicação periódica do Grupo de
Estudos para a Paz do NHUMEP. Os atuais interesses de investigação centram-se em questões relacionadas
com média e masculinidades; digital rights e contentious politics; literacia mediática; política internacional, e
representações mediáticas.
Resumo
O presente artigo procura analisar o papel que os meios de comunicação convencionais russos
e ucranianos desempenharam enquanto agenda-setters e produtores de framings subjetivos
no contexto da crise da Crimeia, examinando ao mesmo tempo a relação entre o Estado e os
meios de comunicação e o impacto da representação destes últimos nas opiniões públicas
nacionais. A análise revela que a agenda-setting e o framing ao nível das políticas dos estados
desempenharam um papel fundamental na formação da decisão e na construção da perceção,
destacando que a manipulação da informação através da construção narrativa é uma
ferramenta poderosa ao serviço da política. Este estudo contribui para validar a ideia que os
meios de comunicação podem ser entendidos como influenciadores-chave da agenda pública
à medida que surgem como os agentes mais relevantes na mediação política, tornando-se
assim um guardião funcional que tanto pode facilitar o discurso oficial como obstruí-lo.
Palavras chave
Agenda-setting, framing, política externa, Rússia, Crimeia
Como citar este artigo
Krutikova, Y; Freire, MR; Santos, SJ (2019). "Agenda-setting e framing na política externa: o
caso da cobertura televisiva russa e ucraniana do caso da Crimeia". JANUS.NET e-journal of
International Relations, Vol. 10, N.º 1, Maio-Outubro 2019. Consultado [online] em data da
última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.1.4
Artigo recebido em 24 de Outubro de 2018 e aceite para publicação em 9 de Fevereiro
de 2019
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 10, Nº. 1 (Maio-Outubro 2019), pp. 45-67
Agenda-setting e framing na política externa:
o caso da cobertura televisiva russa e ucraniana do caso da Crimeia
Yuliia Krutikova, Maria Raquel Freire, Sofia José Santos
AGENDA-SETTING E FRAMING NA POLÍTICA EXTERNA: O CASO DA COBERTURA
TELEVISIVA RUSSA E UCRANIANA DO CASO DA CRIMEIA
1
Yuliia Krutikova
Maria Raquel Freire
2
Sofia José Santos
Introdução
No contexto dos processos de decisão e de gestão em termos de política externa,
particularmente em alturas de crise, os meios de comunicação social desempenham um
papel crucial no tratamento e interpretação da informação (Gilboa, 2002) sendo, de todos
os atores discursivos existentes na sociedade, os mais eficientes na disseminação de uma
narrativa específica (Kuusik, 2010).
As teorias de agenda-setting (Shaw, 1979; McCombs e Shaw, 1993; Traquina, 1995) e
de framing (Gofman, 1974) ajudam a explicar o poder da comunicação social para
determinar a agenda atual a cada momento, ou seja, o poder de moldar o que deve ser
discutido e o que deve ser descartado, assim como o poder de validar uma visão
particular sobre uma questão ou um ator. Os média, portanto, não são apenas um canal
de informação, mas uma “rede de comunicação” ativa (Naveh, 2002: 3), onde
entendimentos específicos e representações de atores, intenções e acontecimentos o
(re)produzidos, intencionalmente ou não, afetando a cobertura por parte dos próprios
media, as decisões políticas dos decisores e as preferências da opinião pública.
Enquanto a maioria dos estudos aponta para a politização recorrente da comunicação
social (Craig, 1976; Herman, 2003; Herman e Chomsky, 1988; Eilders, 2002; Kishan e
Freedman, 2003), particularmente em alturas de crise política, são menos os que
analisam a forma como - a partir de uma perspetiva ilustrativa processual
3
- o processo
de mediatização da política acontece. Dessa forma, este artigo analisa a forma como o
framing é conduzido, ou seja, como as escolhas relacionadas com os média são feitas e
estruturadas e como evoluem. Recorrendo às teorias de agenda-setting e framing
aplicadas à política externa, este artigo analisa o papel dos meios de comunicação social
em contextos de crise através do estudo do endurecimento das relações entre a Rússia
1
A tradução deste artigo foi financiada por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e
a Tecnologia no âmbito do projeto do OBSERVARE com a referência UID/CPO/04155/2019, e tem como
objetivo a publicação no JANUS.NET. Texto traduzido por Carolina Peralta.
2
Maria Raquel Freire é titular de uma Cátedra Jean Monnet (574780-PPE-1-2016-1-PT-EPPJMO-CHAIR -
Relações Externas da UE em Direção a Leste), cofinanciada pelo programa Erasmus+ da União Europeia.
3
A “perspetiva ilustrativa processual” significa destacar processos específicos através de exemplos concretos.
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o caso da cobertura televisiva russa e ucraniana do caso da Crimeia
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e a Ucrânia entre 2013 e 2015, com a anexação/reintegração
4
da península em março
de 2014, um evento que assinalou o auge da tensão.
Este estudo mapeia e analisa criticamente o discurso da comunicação social, comparando
as diferentes leituras e interpretações da crise da Crimeia retratada pelas transmissões
televisivas (TV) russa e ucraniana. De acordo com as sondagens de 2014, a maioria da
população russa e ucraniana recebe informação principalmente através dos órgãos de
comunicação social tradicionais (KIIS, 2014a; Centro Levada, 2014a). Com o objetivo de
compreender qual a imagem da crise que foi transmitida nesses países, este estudo
analisou as notícias dos canais nacionais de televisão na Rússia e na Ucrânia, o que
permitiu uma melhor compreensão da cobertura local dos eventos, aportando
informações adicionais para as contas baseadas no Ocidente que eram privilegiadas na
altura. Além disso, a maioria dos estudos publicados sobre a cobertura dos eventos na
Ucrânia concentrou-se no uso das redes sociais, descurando o estudo dos meios mais
tradicionais, como é o caso da televisão (p. ex. Onuch, 2015a, 2015b; Surzhko-Harnede
Zahuranec, 2017). Para a análise, selecionou-se um período de um mês - de 24 de
fevereiro a 23 de março de 2014. No entanto, com o objetivo de demonstrar que a
questão da Crimeia surgiu na agenda da comunicação social russa no período do
EuroMaidan, o artigo também analisou várias transmissões russas de dezembro de 2013
e de janeiro de 2014.
Para a análise do discurso dos média e da sua evolução durante os acontecimentos na
Crimeia, selecionou-se uma amostra de dez reportagens dos quatro canais que
registaram a audiência mais vasta (dois ucranianos - 1+1 e Inter - e dois russos - 1TV e
Rossiya). Para fins metodológicos, este estudo analisou as notícias das transmissões
noturnas, uma vez que se focam de forma mais aprofundada nas questões do conflito e
abrangem um público mais alargado.
Relativamente ao processo de seleção dos canais, dois critérios principais orientaram a
escolha: a share mais significativa de visualizações no ano de 2014; e a estreita relação
dos canais com as autoridades estatais ou as elites financeiras. Dentro dos canais de TV
russos, escolhemos o Perviy Nacionalniy (1TV) e o Rossiya, ambos estatais. No caso da
Ucrânia, escolhemos dois canais blicos governados por dois oligarcas ucranianos, o
1+1 de Ihor Kolomoyskyi e o Inter de Dmytro Firtash, tendo o 1+1 um público que fala
principalmente ucraniano, enquanto o Inter é transmitido em língua russa e dirigido à
população falante de russo. Também analisámos os inquéritos de opinião nos dois países
com o objetivo de entender a opinião pública durante os acontecimentos na Crimeia, que
- como as teorias de agenda-setting e de framing nos permitem perceber - obtinha a
informação sobretudo através das representações difundidas pela comunicação social.
Essa seleção de feeds de notícias, em combinação com os inquéritos de opinião, permite-
nos compreender como o processo de mediatização da política se tornou evidente no
caso da Crimeia.
Em termos de estrutura, este artigo divide-se em quatro partes principais. A primeira
mapeia e explora a estrutura teórica e analítica em que assenta o estudo. A segunda
parte apresenta os contextos nos quais os órgãos de comunicação dos dois países -
4
A escolha entre “anexação” ou “reintegração” da Crimeia depende das interpretações específicas dos atores
políticos ou da comunicação social. As palavras explicam as distintas narrativas, intenções e o curso dos
acontecimentos. Os russos usam a palavra “reintegração”, enquadrando a questão como o direito da
Crimeia à “autodeterminação”; os ucranianos interpretam o assunto como uma violação da integridade
territorial e da soberania da Ucrânia.
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Rússia e Ucrânia se inserem, a fim de compreender melhor os contextos de
comunicação em que as narrativas específicas sobre a Crise da Crimeia são produzidas
e divulgadas. A terceira explora as diferentes representações e interpretações que são
promovidas e divulgadas nos dois países e entre a respetiva opinião pública. Por fim, a
quarta parte analisa os dados recolhidos, levando em conta os enquadramentos teóricos
e analíticos e examinando igualmente a forma como as audiências se envolveram com
as representações transmitidas pela comunicação social.
Alimentando-se mutuamente: da agenda-setting e do framing à
formulação de políticas
Entre os distintos elementos que influenciam as lentes através das quais entendemos o
mundo e (re)agimos em relação a ele, o discurso é fundamental. Ao fornecer uma lógica
específica de representação baseada num sistema de pensamento (Foucault, 1994
[1970]), o discurso permite (re)construir abordagens à realidade, criar narrativas e
rótulos que estabelecem as fronteiras dentro das quais um tópico, acontecimento ou ator
específico serão considerados ([Ibidem]; Hall, 1997).
Entre os atores discursivos, os média são centrais e eficientes na difusão de certas
narrativas enquadradas em determinados discursos (Kuusik, 2010), afetando a
representação da realidade com implicações na opinião pública, particularmente no que
se refere à atribuição de sentido. Desta forma, é possível compreender as notícias como
participantes no processo de construção do mundo e criação de sentido (Weber, 2010;
Robinson, 2002). Essa dinâmica ganha expressão em dois momentos particularmente
relevantes: a definição da agenda (McCombs e Shaw, 1972) e a maneira como a
comunicação social enquadra os eventos e os atores nessa agenda. A dinâmica de
gatekeeping é transversal aos dois processos e está na base dos mesmos (Shoemaker
et al., 2013).
De acordo com a teoria da agenda-setting (McCombs e Shaw, 1972), são os tópicos e os
acontecimentos selecionados pela comunicação social que definem a agenda nas
sociedades. Quanto mais atenção as notícias prestam a questões específicas, mais
provável é que a opinião pública entenda essas questões como sendo importantes (Shaw,
1979). No entanto, os meios de comunicação social não estabelecem apenas a agenda,
mas também acabam por dizer ao público como este deve pensar sobre essa mesma
agenda, que as histórias veiculadas pelos media são filtradas através de frames
estabelecidos por cadeias de comando específicas (subjetivas) de comunicação
(McCombs e Shaw, 1993). A forma como uma informação é apresentada ao público (“o
frame”) influencia as escolhas que as pessoas fazem sobre como interpretar e reagir a
essa informação e em relação à realidade que descreve (Gofman, 1974). Na base da
agenda-setting e da teoria e da prática de framing, situa-se a teoria do gatekeeping
cunhada por Lewin (1943). Ao decidir quais as histórias que são contadas e as deixadas
de fora, o gatekeeper decide e, portanto, controla, as informações e narrativas que
podem ser do conhecimento blico e entrar na esfera da opinião pública. Isso tem
consequências relativamente à validação de políticas específicas que abordam os
acontecimentos, questões ou atores dessas histórias (Hovland et al., 1953; Shoemaker
e Reese, 2014). Em cenários de tensão, o peso da informação e das narrativas que a
comunicação social produz é tal que muitos autores assumem que a comunicação social
é ator no conflito ou agente da paz (Rahman, 2014). Ao selecionar informações, repetir
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palavras específicas, usando símbolos culturais específicos, a comunicação social
influencia a perceção do público em relação a uma situação particular e aos atores
envolvidos (Entman, 1993, 2004).
As três teorias (agenda-setting, framing e gatekeeping) são úteis para compreender a
dinâmica da comunicação e os efeitos políticos subsequentes em contextos democráticos
amadurecidos, bem como em regimes menos democráticos, bridos ou até mesmo
autoritários. De fato, embora esses processos possam ser cada vez mais complexos em
contextos democráticos à medida que mais atores, agendas e imprevistos estão em jogo,
estes são fundamentais para explicar os processos de comunicação, bem como as forças
hegemónicas e contra-hegemónicas em todos os regimes políticos. As secções que se
seguem aplicam esses modelos teóricos ao caso da Ucrânia, esclarecendo as
interconexões entre a comunicação social, o público e a esfera política.
O panorama da comunicação social na Rússia e na Ucrânia
Segundo dados do World Press Freedom Index 2017, a Rússia ocupa o 148º lugar entre
os 178 estados do mundo (RSF, 2017)
5
. Apesar das semelhanças com a era soviética, o
atual “modelo neossoviético” da comunicação social (Oates, 2007) é menos monolítico
relativamente à estrutura, mais seletivo em relação à censura, prefere propaganda ao
controlo direto e enfatiza métodos legais e económicos para eliminar as vozes
independentes (Snegovaya, 2014). Atualmente, o Estado não controla todo o mercado
dos média, mas controla a porção que permite reforçar a sua imagem positiva na
sociedade e legitimar as suas ões nas conversas entre os cidadãos (Arutunyan, 2009).
Relativamente à imprensa escrita e à Internet, embora o Kremlin tenha menos influência
nesses setores (Dunn, 2014), “as publicações mais populares apoiam a política do
Kremlin, e vários jornais influentes foram comprados por empresas com estreitas
ligações ao Kremlin” (BBC, 2017). Quanto à TV, que “é o setor mais poderoso da indústria
da comunicação russa (...) [,] as principais redes nacionais são administradas
diretamente pelo Estado ou são propriedade de empresas com ligações estreitas ao
Kremlin” (BBC, 2017). Os canais 1TV e Rossiya têm o maior alcance em termos de
audiência, com 14,5% e 13,2%, respetivamente (Oshkalo, 2015) e são controlados pelo
Estado. Desde a crise ucraniana, a comunicação social russa intensificou o tom pró-
Kremlin e nacionalista das suas transmissões, “administrando uma dieta regular de
adulação a Putin, sentimentos nacionalistas, rejeição feroz da influência ocidental e
ataques contra os inimigos do Kremlin” (BBC, 2017). Um ex-funcionário superior da All-
Russia State Television and Radio Broadcasting Company - Companhia Estatal de
Televisão e Radiodifusão de Toda a Rússia (VGTRK), numa entrevista ao jornal russo
“Colta” (s.d.) descreveu como a agenda dos media foi construída e influenciada pelo
Kremlin durante a crise ucraniana:
Todas as semanas, o conselho de diretores reunia-se no Kremlin
para obter o plano com instruções sobre o que deveria ser
transmitido e como as informações deveriam ser apresentadas. (...)
Na Ucrânia, as instruções apontavam claramente para uma ampla
cobertura, incluindo relatos completos sobre a Crimeia, e notícias de
5
Veja-se também Khvostunova (2013).
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Kiev e Donetsk. Após o referendo, o canal teve uma “tarefa
adicional” do Kremlin para transmitir diariamente notícias sobre o
desenvolvimento da Crimeia, desde a ciência ao artesanato, e como
a vida da população era alegre com o regresso a casa. Ninguém
discutiu o enquadramento das notícias, nem a necessidade de
apresentar outras perspetivas que não se manifestavam tão
satisfeitas com o status quo. (Entrevista com o ex-funcionário
superior da VGTRK, Colta, s.d. a).
Tabela 1 Meios de comunicação independentes em termos de classificações de tráfego e scores
médios. 1 corresponde a "Mais Independente" e 7 corresponde a "Menos Independente"
1999-
2000
2001
2002
2003
2004
2005
2006
2007
2008
2009
2010
2011
2012
2013
2014
2015
2016
2017
2018
RÚSSIA
4.75
5.25
5.50
5.50
5.75
6.00
6.00
6.25
6.25
6.25
6.25
6.25
6.25
6.25
6.25
6.50
6.50
6.50
6.5
UCRÂNIA
5.00
5.25
5.50
5.50
5.50
4.75
3.75
3.75
3.50
3.50
3.50
3.75
4.00
4.00
4.25
4.00
4.00
4.00
4.25
Fonte: Freedom House, 2018
6
A Ucrânia ocupa o 10lugar entre 178 estados no World Press Freedom Index (RSF,
2017). Por outro lado, para a Rússia, a maioria dos meios de comunicação ucranianos
possui proprietários privados (Rozvadovskyy, 2010), principalmente provenientes dos
grupos financeiros mais proeminentes. Para esses grupos, a comunicação social é uma
forma de influenciar a política e uma ferramenta para proteger os seus interesses
financeiros e comerciais (Dutsyk, 2015: 10). Mesmo que em 2014 a comunicação social
tenha sido forçada a divulgar informações sobre os seus proprietários, as estruturas de
propriedade ainda são opacas (RSF, 2016). No entanto, reconhece-se que a maior parte
do setor dos média é controlada por um pequeno grupo de empresários com interesses
na política, economia e outras áreas, nomeadamente Dmytro Firtash e Serhiy Lyovochkin
(Inter), Ihor Kolomoyskyi (1+1), Victor Pinchuk (Star Light Media) e Rinat Akhmetov
(Ucrânia). Todos os acionistas importantes têm interesses pessoais e políticos que se
ajustam continuamente às condições políticas e que se refletem na política editorial da
comunicação social (Dutsyk, 2015). As guerras permanentes entre oligarcas como Ihor
Kolomoyskyi e Dmytro Firtash são visíveis na cobertura das notícias nos seus canais, o
que justificou a escolha de canais como o Inter e o 1+1 para a análise das notícias
transmitidas no período de crise na Ucrânia. Além disso, durante os protestos no centro
de Kiev, os canais interpretaram os acontecimentos de maneira diferente. Tal como a
Rússia, a TV ucraniana é a principal fonte de notícias diárias para a maioria da população
ucraniana (KIIS, 2014a).
O grupo 1+1 foi um dos poucos canais ucranianos que defenderam uma posição p-
Maidan apoiando os manifestantes. Durante os eventos da EuroMaidan, este canal
ativamente deu voz aos líderes da Maidan e aos representantes nas manifestações. Em
6
“Comunicação social independente: aborda o estado atual da liberdade de imprensa, incluindo leis da
difamação, assédio a jornalistas e independência editorial; aparecimento de uma imprensa privada
financeiramente viável; e acesso à Internet para os cidadãos particulares” (Freedom House, 2018).
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2012, quando o país começou a preparar-se para uma maior integração na União
Europeia (UE), o canal considerou as mudanças na política externa ucraniana e
posicionou-se como “a empresa com valores europeus que cria conteúdo que muda a
maneira das pessoas verem o mundo e de se verem a si próprios” (1+1). De acordo com
o diretor-geral do 1+1, “o nosso dono partilha os mesmos valores que defendemos”
(Mediasat, 2014), denotando ligações claras entre o conteúdo das agendas de média e a
orientação do seu proprietário. O dono do 1+1 viu em Maidan uma oportunidade para a
redistribuição de poderes nas esferas de influência da política ucraniana, o que lhe
permitiu escapar da sombra” e dependência dos poderes estabelecidos no país
(Entrevista com Vasil, 2016).
O último ponto que demonstra o interesse de Kolomoyskyi na queda do regime de
Yanukovych durante os eventos do EuroMaidan foi a sua nomeação como Presidente da
Administração Regional da cidade de Dnipropetrovsk pelo novo governo ucraniano em
março de 2014, com o objetivo de acabar com o separatismo no leste da Ucrânia e
prestar apoio aos militares ucranianos. Os principais bens do oligarca estavam nessa
região e encontravam-se sob um risco elevado de desestabilização. Ele foi, portanto,
capaz de influenciar a situação e proteger os seus negócios (Kononczuk, 2015).
Relativamente ao canal Inter, a orientação da cobertura da crise ucraniana mudou
completamente em várias ocasiões - às vezes até mesmo ao ponto de se contradizer.
Em julho de 2013, o canal promoveu ativamente a integração europeia, ao passo que, a
partir de outubro, e em consonância com a política do país, promoveu a ideia de que
ninguém na UE desejava a integração da Ucrânia e que o país devia manter relações
amistosas com a Rússia. Um dos proprietários do canal, Serhiy Lyovochkin, foi chefe do
governo do presidente Yanukovych até janeiro de 2014, e apoiou a posição do governo.
No entanto, após a fuga do ex-presidente ucraniano do país, o canal Inter, que desde o
início dos protestos EuroMaidan apelidou os manifestantes de “radicais governados por
extremistas”, mudou o discurso e começou a designá-los por “povo e cidadãos
ucranianos”. Além disso, o canal começou a criticar fortemente as antigas autoridades
ucranianas, que anteriormente tinham sido consideradas defensoras do regime e da
ordem no país. Sob o regime de Yanukovych, Firtash (dono do canal Inter) encontrava-
se entre os oligarcas cujos ativos aumentaram durante esse período de governo. Firtash
também é visto como um homem de negócios com ligações à Rússia, envolvido na venda
de gás russo em cooperação com a Gazprom, a Ucrânia e a UE durante muitos anos
(Kononczuk, 2015).
Na comunicação social: (re)apresentações e (re)interpretações da
Crimeia
O referendo realizado na Ucrânia em 16 de março de 2014 (Putin, 2014)
7
foi o culminar
de uma série de tensões, tanto na política ucraniana como no envolvimento de atores
externos, nomeadamente da Rússia e das potências ocidentais. O contexto de crescente
tensão e diferenças políticas logo se transformaria em violência, que persiste até hoje,
ecoando também a divisão profunda que a Ucrânia vinha enfrentando e evidenciando a
ausência de uma identidade nacional coesa.
7
Para mais detalhes sobre o referendo e os eventos que conduziram ao mesmo e se lhe seguiram, veja-se,
por exemplo, Sakwa (2015), Katchanovski (2015), Averre (2016), Freire (2017).
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As manifestações no centro de Kiev estavam muito presentes nas agendas dos telejornais
russos e ucranianos, mas os acontecimentos foram transmitidos de maneiras distintas.
A apropriação subjetiva da realidade na comunicação social assumiu contornos críticos
com o aumento da tensão. Desde o início dos protestos na Praça da Independência, a
Rússia cobriu a Crimeia. Os correspondentes especiais da 1TV e do Rossiya no período
entre janeiro e fevereiro destacaram que o apoio de Yanukovych à população naquela
área refletia o desejo da Crimeia em manter e aprofundar os seus laços com a Rússia, o
que estava claramente ameaçado devido aos protestos contra o governo que se faziam
sentir. A partir de dezembro de 2013, os principais canais de TV russos começaram a
falar sobre a possibilidade de uma divisão da Ucrânia e a consequente separação da
Crimeia. Além disso, a representação da Crimeia na agenda dos média como uma
questão especial em face da crise na Ucrânia foi adaptada de forma a transmitir uma
imagem dos manifestantes de Maidan como “o outro” (Mezhygirsky, 2014). O noticiário
Vremya demonstrou claramente esta tendência:
A Ucrânia está atualmente dividida em duas partes. Uma procura
derrubar o governo e deseja a integração com a União Europeia,
enquanto a outra prefere preservar a estabilidade. (1TV,
04.12.2013).
Nesta mesma linha, Vesty afirmou que “a crise está a aprofundar-se e está a ficar mais
claro que a Ucrânia está dividida por fronteiras regionais” (Rossiya, 12.12.2013).
Com o agravamento dos protestos do EuroMaidan, os canais russos começaram a falar
abertamente sobre o facto de que os acontecimentos do Maidan levariam à divisão da
Ucrânia. Na Ucrânia, o Inter seguiu a mesma linha de transmissão. Neste período tenso,
os canais russos deixaram claro que a Ucrânia enfrentava o caos e que o país se estava
a separar, destacando que apenas a intervenção da Rússia poderia manter pelo menos
uma parte do país unida. Quando o ex-presidente ucraniano fugiu da Ucrânia, a Crimeia
tornou-se um dos principais tópicos da TV russa (Mezhygirsky, 2014). A partir do final
de fevereiro, os canais russos anunciaram com toda certeza a separação da Crimeia para
breve, embora ainda não falassem sobre “autodeterminação”. O ponto de viragem foi a
decisão do novo governo de Kiev relativamente à abolição da lei sobre o estatuto regional
da língua russa. Pouco depois, os deputados russos começaram a discutir a forma de
proteger os direitos da população russa na Crimeia. A comunicação social russa começou
a transmitir a mensagem que os habitantes da Crimeia estavam a ser ameaçados,
afirmando que:
a lei aprovada conduz à destruição dos direitos da população de
língua russa, ao abandono dos direitos em relação à língua nativa,
à destruição do direito a uma história independente (Rossiya,
26.02.2014).
As notícias concentraram-se na necessidade de proteger as minorias russas ou os
falantes de ngua russa dos fascistas ucranianos”. A mesma narrativa foi usada pelo
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Kremlin para justificar as suas ações na Crimeia e foi transmitida por todos os meios de
comunicação social estatais (Dougherty, 2014: 4). No entanto, o canal ucraniano 1+1
relatou a situação sob uma perspetiva diferente, definindo os manifestantes contra o
novo regime em Kiev como “ativistas pró-russos” e “separatistas”. Desta forma, nas suas
transmissões, o 1+1 assinalava que o novo governo na Crimeia estava sob influência
russa, o que era ilegal de acordo com a lei ucraniana, referindo-se à “entrada da região
na histeria separatista” (1+1, 25.02.2014). O outro canal ucraniano, o Inter, que
anteriormente apoiara o regime de Yanukovych, transmitiu apenas uma notícia
informando que “a Rússia emitirá os passaportes dos habitantes da Crimeia”, incluindo
uma declaração de um deputado da Duma sobre a ‘reintegração’ da Crimeia na ssia
(Inter, 25.02.2014). Considerando a incerteza da situação política ucraniana e a estreita
relação do governo anterior com a Rússia, no início dos eventos da Crimeia, o Inter
transmitia um discurso mais neutro.
A 26 de fevereiro, realizaram-se duas manifestações em Simferopol, uma composta
principalmente por tártaros que insistiam que a Crimeia deveria ser mantida dentro da
Ucrânia e outra liderada principalmente por russos étnicos, com o líder Sergiy Aksenova
a exigir a independência da Crimeia e a pedir o apoio russo (Expert, 2014). Os canais
russos optaram por transmitir as exigências do segundo grupo.
As manifestações na Crimeia reúnem milhões de pessoas. A
bandeira russa foi hasteada no prédio do Conselho Supremo. As
pessoas afirmam que querem proteção contra a vontade imposta
por Kiev e exigem a organização de um referendo sobre o estatuto
da região. (1TV, 26.02.2014)
Sobre estes protestos, o 1+1 transmitiu as opiniões de ambos os lados, mas, entretanto,
introduziu informações sobre os “instigadores desconhecidos da violência”.
Tatars e Maidanivci
8
locais reuniram-se perto do Parlamento. Os que
apoiam as forças russas também se lhes juntaram. Entre eles está
a polícia. De repente, no meio da multidão, apareceram pessoas
desconhecidas a provocar os dois lados, exigindo que as bandeiras
russa e ucraniana fossem removidas. (1+1, 26.02.2014)
O Inter também mencionou os defensores da territorialidade da Ucrânia e os que desejam
a separação da Crimeia da Ucrânia, mas chamou aos organizadores dos protestos
“ativistas russos” (Inter, 26.02.2014).
As notícias russas comunicaram o apoio maciço das Forças Militares Ucranianas à
Crimeia, com as forças militares a unirem-se à Crimeia contra o governo central de Kiev.
Os canais ucranianos não duvidaram que estava em curso uma operação militar russa
em grande escala na Crimeia e que havia cada vez mais falta de confiança na região
sobre o novo governo central em Kiev.
8
Maidanivci participantes e apoiantes dos protestos da oposição na Ucrânia no final de 2013-2014.
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Agenda-setting e framing na política externa:
o caso da cobertura televisiva russa e ucraniana do caso da Crimeia
Yuliia Krutikova, Maria Raquel Freire, Sofia José Santos
O aeroporto de Simferopol está sob o controlo de homens
camuflados. Os soldados admitiram que são russos. No entanto, no
parlamento da Crimeia, afirma-se que são unidades de autodefesa
voluntárias. (1+1, 28.02.2014)
No entanto, do lado russo, os canais transmitiram declarações oficiais sobre a posição
russa de não-interferência em assuntos ucranianos e que não havia provas sobre o
envolvimento de militares russos na Crimeia. Houve, no entanto, um claro apoio a Sergey
Aksenov, que se tornara o novo primeiro-ministro da Crimeia. De acordo com fontes
russas, ele tinha o poder necessário para “deter as ondas de desordem e provocação
decorrentes da Maidan” na região. A rápida organização do referendo sobre a autonomia
da Crimeia, inicialmente prevista para 25 de maio de 2014 e que, devido à “situação
complexa do conflito que está para além do razoável”, foi antecipada, recebeu
ativamente o apoio dos canais russos (Rossiya, 1.03.2014).
Quando, a 1 de março, o Conselho da Federação Russa adotou uma decisão sobre a
mobilização das forças armadas russas em território ucraniano, os canais russos
interpretaram a decisão como sendo necessária para proteger os habitantes da região
autónoma da violência (1TV, 1.03.2014; Rossiya, 1.03.2014). No entanto, essa decisão
foi considerada por ambos os canais ucranianos uma “invasão militar da Ucrânia” (1+1,
1.03.2014; Inter, 1.03.2014).
A 6 de março, realizou-se mais uma sessão extraordinária do Conselho Supremo da
Crimeia, que decidiu que o referendo deveria ter lugar dez dias mais cedo. A antecipação
da votação foi transmitida como uma consequência natural do movimento nacionalista
de Maidan que afirma que “a Ucrânia é apenas para os ucranianos” (Rossiya, 6.03.2014).
Os canais ucranianos contestaram a decisão, afirmando que esta era ilegal, tomada sob
pressão das armas russas, e que representava um ataque à soberania do país. Além
disso, os canais afirmaram que as novas autoridades governamentais na Crimeia
estavam a preparar resultados do referendo falsificados. Referiam-se ao voto da
comunidade tártara, que seria desconsiderado (Inter, 6.03.2014; 1+1, 6.03.2014). No
entanto, o Inter também transmitiu as opiniões dos habitantes da Crimeia a favor do
referendo e da sua reintegração na Rússia. Ao mesmo tempo, os jornalistas televisivos
pararam de se referir à população da Crimeia como parte do povo ucraniano, e
começaram a chamá-los “compatriotas na Ucrânia”, “habitantes da Crimeia” ou “falantes
de russo”. Os que chegaram ao poder em Kiev continuaram a ser chamados “banderas”,
“nazis” e “fascistas”.
Desta forma, a ideia principal transmitida era que a Rússia deveria proteger todos os
ucranianos falantes de russo dos poderes que governavam o país. Em relação aos canais
ucranianos, principalmente no que tocava às notícias transmitidas pelo 1+1, os
jornalistas falavam abertamente sobre a presença de soldados russos e até começaram
a apelidá-los de “invasores” e “ocupantes” da região. A Rússia era considerada a
“agressora”, enquanto as forças de autodefesa voluntárias na Crimeia estavam
diretamente ligadas ao Kremlin. Nessa altura, o Inter optou por uma narrativa diferente,
e foi o único canal a fazê-lo, uma vez que os jornalistas que descreviam os
acontecimentos na Crimeia se abstiveram de mencionar a presença dos militares russos,
embora em fevereiro esse facto tenha sido mencionado abertamente. Esta mudança de
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o caso da cobertura televisiva russa e ucraniana do caso da Crimeia
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rumo esteve principalmente ligada à nova situação política no país depois da partida de
Yanukovych, particularmente devido às ligações próximas entre o proprietário do canal
e o ex-presidente.
O dia mais turbulento foi o de 16 de março - o dia do referendo. A comunicação social
ucraniana tinha um sentimento negativo sobre o referendo, insistindo na sua ilegalidade
e destacando a preparação de dez dias para o mesmo, afirmando que os resultados
seriam falsificados, que a lista de eleitores incluía pessoas com cidadania russa,
indivíduos já falecidos e não incluía todos os habitantes ucranianos (Inter, 16.03.2016).
Nesse mesmo dia, o 1+1 abriu a sua transmissão das notícias da seguinte maneira:
O referendo é artificial e sob armas russas. A votação não é
reconhecida internacionalmente, o é reconhecida pelas
autoridades em Kiev, e também não é reconhecida pelos habitantes
da península […] O primeiro-ministro ilegítimo Aksenov decidiu o
destino da Crimeia antes da abertura dos votos, tuitando que a
Crimeia vai fazer parte da Rússia. (1+1, 16.03.2014)
Os órgãos de comunicação social russos informaram que o referendo decorreu de acordo
com os princípios democráticos e padrões internacionais. Ambos os canais russos
referiram que observadores internacionais de 23 países diferentes monitorizaram o
processo, e o Rossiya transmitiu um comentário de um representante sérvio que apoiou
a votação. Os relatórios de votação fizeram referência às pessoas que faziam fila para
votar antes da abertura dos locais de voto, mostrando como o referendo constituía um
sonho para a população. Também foi afirmado que houve uma alta participação da
população na votação, inclusive dos tártaros (1TV, 16.03.2014; Rossiya, 16.03.2014).
Quando os resultados foram publicados, os média russos ficaram eufóricos, indicando
como os habitantes da Crimeia e a população russa se tinham reunido para celebrar o
regresso a casa”, pelo qual “esperavam vinte e três anos” (Rossiya, 23.03.2014). A
“reintegração” da Crimeia na Rússia foi considerada o único cenário possível, dentro do
qual o referendo se tornou a opção pacífica, salvando vidas e assegurando o direito à
“autodeterminação”. Além disso, afirmava-se que “se o Ocidente não está contente com
os resultados, isso o significa que estes sejam ilegítimos” (1TV, 17.03.2014). A linha
de fundo da agenda dos média russos após o referendo resume-se bem na expressão “a
Crimeia é nossa!”. Além disso, os média promoveram ativamente a ideia que a “vitória
na Crimeia tornou-se possível apenas porque a Rússia é governada por Vladimir Putin”
(Rossiya, 23.03.2014).
Após o referendo, os canais ucranianos apoiaram a visão oficial do governo de Kiev: o
referendo não cumpria os princípios democráticos nem o direito internacional. Três
ideias/ narrativas principais foram avançadas de forma clara: primeiro, que uma parte
da Ucrânia “tinha sido roubada”; segundo, que a Crimeia estava agora sob a
responsabilidade do governo russo; e terceiro, que a anexação era temporária e que, em
algum momento, a Crimeia voltaria a fazer parte da Ucrânia.
Os dois canais ucranianos descreveram o referendo como um ato ilegal de ocupação de
parte do território de um estado soberano. O 1+1 foi mais longe e comparou a anexação
da Crimeia à anexação de territórios pelos regimes fascistas que conduziu à Segunda
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Guerra Mundial. A UE foi apresentada como aliada da Ucrânia na tentativa de reverter a
agressão russa. Esta coincidência na narrativa é interessante face aos diferentes estilos
de reportagem dos canais ucranianos.
Tabela 2 - Principais comentários dos órgãos de comunicação social sobre o referendo
CANAIS RUSSOS
CANAIS UCRANIANOS
Reconhecimento do referendo e dos resultados
como legítimos. O processo cumpriu as regras
internacionais.
O referendo foi ilegítimo e violou a legislação
internacional e ucraniana.
As autoridades russas confirmam os
resultados.
O governo ucraniano não reconhece os
resultados.
Tártaros incluídos nas listas de voto.
População tártara contra o referendo e não
incluída nas listas de voto.
Participação elevada na votação, inclusive por
parte da população tártara.
Participação fraca na votação. Os cidadãos
russos votaram e as listas incluíam nomes de
pessoas falecidas.
Os militares russos da Frota do Mar Negro não
interferiram no processo.
A ‘invasão militar’ russa influenciou as decisões
tomadas pelo Parlamento da Crimeia.
Os políticos ocidentais tentaram impedir o
referendo histórico.
Os políticos ocidentais consideram que o
referendo ameaça a estabilidade das fronteiras
na Europa.
O bloqueio do aeroporto e de outras
infraestruturas foi necessário para impedir a
mobilização de forças de Kiev para a península,
especialmente as que procuravam impedir o
referendo sobre o estatuto da região.
Os separatistas tomaram o poder na Crimeia,
ocuparam o aeroporto e as instalações
militares.
Grande quantidade de militares ucranianos que
se juntaram à posição do governo sobre a
Crimeia.
Não houve apoio significativo por parte dos
militares ucranianos aos separatistas, a
comunicação social russa fabricou esses factos.
Reintegração/Reincorporação da
Crimeia/Regresso a casa.
Anexação da Crimeia.
O que é que estas informações contraditórias nos dizem sobre o framing
e a agenda-setting?
Com a queda do regime de Yanukovych e a formação do novo governo em Kiev, a atenção
da comunicação social voltou-se para a Crimeia. A maioria das transmissões sobre a
península nos média ucranianos continha um tom negativo, enquanto na Rússia a
cobertura destacou as consequências positivas da “reintegração da Crimeia” na Rússia.
Nos média russos, o tom só mudou quando houve referências ao novo governo de Kiev,
denotando críticas do mesmo. O único framing que foi neutro em todas as notícias estava
relacionado com a data do referendo, incluindo a sua antecipação para 16 de março. A
abolição da lei das línguas regionais foi coberta sucintamente pelas notícias ucranianas,
que apenas referiram a decisão (neutra). Nas notícias russas, foi transmitida como uma
ameaça à população russófona e uma violação dos direitos humanos, exigindo uma
intervenção para proteger os “direitos dos compatriotas”. As manifestações em curso
foram descritas como pacifistas e a favor da autonomia da região. No entanto, na
Ucrânia, essas mesmas manifestações foram descritas como sendo promovidas por ‘pró-
russos’ e ‘separatistas’ com o apoio do Kremlin, com o objetivo de desestabilizar a
situação nessa área e avançar com a divisão do país.
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O framing do ‘referendo’ foi outra questão tratada de forma diferente nos média
ucranianos e russos. Na ssia, o referendo foi descrito como representando a vontade
do povo de regressar à Rússia e corrigir um erro da história. Enfatizou-se a natureza
democrática do ato e a sua legitimidade, incluindo a monitorização internacional da
votação. Os resultados foram sempre enquadrados na vontade das pessoas de fazer
parte da ssia. Numa postura bastante diferente, a comunicação social ucraniana frisou
o caráter ilegítimo da votação e como o referendo tinha violado a lei internacional. Não
houve palavras de apoio ao ato, sublinhando-se que os resultados foram falsificados e,
como tal, não reconhecendo ou validando os resultados anunciados.
Em linhas gerais, o tom negativo da comunicação social russa dirige-se às autoridades
ucranianas descritas como ‘fascistas’ que tomaram o poder através de um golpe de
Estado ilegítimo. O tom negativo dos média ucranianos estava diretamente ligado a
questões de soberania e à violação da integridade territorial do país, descrevendo as
manobras militares russas e a mudança de poder na Crimeia como uma invasão
perpetrada por separatistas e uma tomada do poder sob a bandeira e comando russos.
No entanto, o que é mais percetível é a mudança no seio da cobertura ucraniana dos
acontecimentos, já que os dois canais, com o tempo, tornaram-se mais próximos no tom
das suas reportagens. Enquanto o Inter, na altura dos protestos do EuroMaidan,
transmitia de uma maneira mais favorável à ssia, após a mudança de poder na Ucrânia
e as mudanças políticas que isso implicou, o canal mudou a abordagem e tornou-se mais
crítico em relação à Rússia. Este facto é igualmente reforçado pelas sondagens, tal como
se analisa na próxima secção, e também seguiu essa mesma tendência de grande desvio
no início dos acontecimentos, para se tornar cada vez mais unido na narrativa ao longo
do tempo.
Em suma, a análise da cobertura da Crimeia mostra que, apesar de abordar o mesmo
tema, o foco das transmissões divergiu, não entre a Ucrânia e a Rússia (o que era
esperado), mas também dentro da própria Ucrânia, que foi inesperado dado o
alinhamento com a posição russa. A quantidade de tempo dedicado à Crimeia também
aumentou, à exceção do período em que os Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi
(Rússia) se realizaram, quando o tema ‘Ucrânia’ quase desapareceu da agenda da
comunicação social na Rússia. No entanto, a maior parte do tempo de transmissão
durante este período foi dedicado à Crimeia, com recurso a símbolos e linguagem forte,
deixando clara a importância do assunto para ambos os países e como foi apresentado
de forma tão diferente na Ucrânia e Rússia, servindo principalmente fins políticos.
Sondagens de opinião e influência dos média na formação de opinião
Todos os canais analisados tiveram um forte impacto na entrada de questões e perceções
específicas sobre a crise ucraniana na agenda pública. A agenda pública pode ser
caracterizada como a hierarquia de questões durante um período determinado e é
geralmente mediada pelas sondagens de opinião pública sobre um determinado
acontecimento (Dearing & Rogers, 1996: 40-41).
De acordo com os dados do Centro Levada na ssia, as sondagens realizadas entre a
população russa mostram que o número de russos que acompanharam os
desenvolvimentos na Ucrânia desde dezembro de 2013 triplicou em 2014 (Levada,
2014). No início de janeiro de 2014, os inquéritos de opinião realizados sobre o tema
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“Em geral, qual é a sua perceção atual da Ucrânia?” apontaram para um parecer
favorável, com 66% encarando a Ucrânia como sendo “boa/geralmente, boa” e 26%
indicando uma perceção do país como sendo “má/geralmente má” (Levada, 2014a). Após
quatro meses, realizou-se nova sondagem, mas os resultados mudaram: a resposta
“boa/geralmente boa” foi escolhida apenas por 35% dos inquiridos, enquanto a perceção
da Ucrânia como sendo “má/geralmente má” aumentou para 49% (Levada, 2014b).
Gráfico 1 - Perceção geral russa face à Ucrânia (%)
Quando o regime de Yanukovich caiu e o novo governo chegou ao poder, 37% dos russos
concordaram que o poder na Ucrânia fora tomado pelos nacionalistas radicais e 36% dos
inquiridos acreditavam que nessa altura não havia um único governo na Ucrânia. 62%
afirmaram que a Ucrânia se encontrava num estado de anarquia e não tinha governo
legítimo, e 15% apoiavam Yanukovych como presidente legítimo do país (Levada,
2014c).
O inquérito após o referendo na Crimeia revela que 88% dos inquiridos estavam a favor
do resultado do referendo, o que conduziu a emoções positivas relacionadas com
sentimentos de justiça, orgulho no país e alegria. 62% da população russa reconheceu a
necessidade de proteger as minorias russas dos nacionalistas radicais ucranianos e 38%
favoreceram a restauração da justiça histórica. 37% dos russos atribuíram a
responsabilidade pela deterioração das relações entre a Rússia e a Ucrânia aos países
ocidentais e 35% apontaram o dedo à política não construtiva das autoridades
ucranianas. Apenas 8% dos inquiridos concordaram que a adesão da Crimeia constituía
de facto uma anexação (Levada, 2014c).
Durante o período pós-soviético na Rússia, a agenda pública sempre se mostrou
convencida que a Crimeia deveria ser devolvida, e 84% acreditavam que a região fora
injustamente concedida à Ucrânia (ibidem). Portanto, a população russa encarou todos
os acontecimentos na Ucrânia como a restauração do vigoroso poder russo, protetor da
sua população (Gudkov, 2015). As sondagens ucranianas fornecidas pelo Centro
Sociológico Internacional de Kiev entre janeiro e fevereiro de 2014 mostraram que as
opiniões dos ucranianos sobre os protestos do EuroMaidan se tinham dividido de forma
quase igual. O número de inquiridos que apoiaram os protestos foi de 47%, enquanto
que os que não apoiaram foi de 46% (KIIS, 2014a). Estes resultados poderiam estar
associados a uma representação diferente dos acontecimentos do EuroMaidan por parte
dos canais ucranianos, onde o 1+1 era pró-Maidan e o Inter era a favor do regime de
Yanukovich. No entanto, durante os acontecimentos na Crimeia, os canais alinharam as
suas posições e a perceção ucraniana sobre a Rússia alterou-se consideravelmente.
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Com o aumento da tensão e, em particular, após a anexação da Crimeia por parte da
Rússia, as relações e as perceções deterioraram-se. Em fevereiro de 2014, 78% dos
inquiridos manifestavam uma atitude positiva em relação à ssia, enquanto que as
atitudes negativas totalizaram apenas 13% (KIIS, 2014b). Em comparação com a
sondagem de fevereiro, em maio de 2014 houve uma queda de 52% na atitude positiva
em relação à Rússia, e inversamente, o tom negativo aumentou, quase triplicou,
chegando aos 38%. Essa inversão de perceções justifica-se pelo curso dos
acontecimentos e pela deterioração geral das relações entre a Rússia e a Ucrânia (KIIS,
2014c).
Gráfico 2. Perceção geral ucraniana face à Rússia (%)
Em relação à Crimeia, 78% dos inquiridos ucranianos concordaram que se tratava de um
ato de ‘anexação’, 11% discordaram e 12% não responderam (KIIS, 2015). Pelo
contrário, 86% dos inquiridos russos entenderam a ‘adesão’ da Crimeia como a realização
do direito das pessoas à autodeterminação, e apenas 8% o encararam como um ato de
‘anexação’.
Gráfico 3. ‘Adesão’ da Crimeia à Rússia (%)
Ao analisarmos estes inquéritos de opinião e as transmissões dos órgãos de comunicação
social da Rússia e da Ucrânia, podemos ver claramente uma evolução paralela nas
tendências. De alguma forma, os resultados dos inquéritos coincidem com as informações
veiculadas e com o modo como transmitiam uma mensagem política - os meios de
comunicação dos dois países reproduziram o discurso oficial dos respetivos governos,
78
11
12
8
86
6
Adesão é anexação Adesão não é anexação Não sabe/Não responde
Ucrânia Rússia
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não aportando efetivamente perspetivas diferentes sobre os acontecimentos.
Curiosamente, o canal pró-russo na Ucrânia inicialmente secundou o apoio russo, mas
com o tempo alterou a narrativa para se alinhar com o principal discurso político
ucraniano. Com o início das manifestações pró-russas e as medidas ativas aprovadas
pelas autoridades russas, como a autorização de entrada de militares russos na Crimeia,
a agenda da comunicação social ucraniana (1+1 e Inter) alinhou as suas posições,
passando a transmitir uma imagem da Rússia como a agressora externa que ameaça a
integridade territorial da Ucrânia, conduzindo ao aumento da vontade da Ucrânia de se
aproximar da UE.
Conclusão
Este artigo procurou comparar as agendas de comunicação televisiva russa e ucraniana
no período da crise da Crimeia, com o objetivo de compreender o ponto de vista local
sobre os acontecimentos; o papel dos meios de comunicação enquanto agenda-setters e
produtores de framings subjetivos no contexto do conflito interestatal; a relação entre
autoridades estatais e os média; e o impacto que os média exercem sobre a formação
da opinião pública relativamente a este assunto.
Em ambos os países - Rússia e Ucrânia -, a comunicação social enfrenta uma situação
desfavorável em termos da sua capacidade de agir de forma independente, enfrentando
uma pressão constante das autoridades estatais ou dos grupos financeiros que as
sustentam. No caso da ssia, isso deve-se ao fato do sistema de comunicação televisiva
continuar a seguir o “modelo neossoviético”, enquanto no caso da Ucrânia, os canais
seguem os interesses dos seus proprietários porque não podem sobreviver sem o apoio
financeiro dos oligarcas. Esta situação afetou claramente a agenda de transmissão e as
opções de framing, revelando um discurso mediático cada vez mais politizado.
Apesar de analisarem os mesmos acontecimentos, as transmissões da comunicação
social foram bastante diferentes, em termos de narrativas e da interpretação das
mesmas, influenciando e moldando entendimentos e perceções contraditórias nos dois
países. No caso da Ucrânia, a informação que foi transmitida pelo canal 1+1 foi distinta
dos factos fornecidos pelo canal Inter: enquanto o 1+1 apresentou um discurso
claramente anti-russo, o canal Inter escolheu narrativas mais cuidadosas para
caracterizar os acontecimentos na Crimeia.
Ao selecionar certos aspetos a serem transmitidos, tornando alguns acontecimentos mais
visíveis do que outros, e definindo e interpretando ocorrências, a comunicação social
acabou por tornar-se um ator político, transmitindo a mensagem política dos respetivos
governos e elites económicas, mesmo que às vezes mudasse a narrativa. Além disso,
como meio privilegiado de informar a população e, portanto, com grande potencial para
influenciar e moldar a opinião política, a comunicação social contribuiu indubitavelmente
para moldar a identidade nacional nos dois países e alimentar opiniões que legitimam e
deslegitimam as autoridades e decisões do Estado.
Este artigo conclui que o discurso dos média contribuiu para moldar e formar a opinião
pública relativamente à reintegração/anexação da Crimeia ao apresentar factos
específicos, omitir acontecimentos, reinterpretar discursos e refletir os próprios
interesses de ambas as elites políticas e económicas. A análise ilustra a alteração nas
relações entre os dois países ao longo do curso dos acontecimentos, destacando a
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mudança na narrativa também no seio da comunicação social ucraniana, e como isso se
refletiu também nas sondagens da opinião pública. A cristalização das perspetivas nos
interesses políticos torna-se clara, assim como o papel da comunicação social na
construção de uma ‘certa’ realidade.
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Universidade Autónoma de Lisboa
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Vol. 10, Nº. 1 (Maio-Outubro 2019), pp. 68-86
A ADEQUAÇÃO DOS MEIOS DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL PARA
COMBATER O CIBERCRIME E FORMAS DE MODERNIZÁ-LOS
Farouq Ahmad Faleh Al Azzam
farouq.azzam@hotmail.com
Professor Assistente de Direito na Universidade de Jadara (Jordânia)
Resumo
A era do desenvolvimento científico e tecnológico assistiu a um uso extensivo da Internet e
de dispositivos eletrónicos presentes em vários aspetos do dia a dia. Esse uso generalizado
aumentou os riscos de segurança, privacidade e os ataques cibernéticos que ameaçam
indivíduos e Estados. Este tipo de crime é difícil de evitar devido aos constantes avanços
tecnológicos digitais e à globalização.
Existe uma preocupação crescente entre os Estados e as agências governamentais que essas
intrusões possam afetar criticamente a segurança e a economia de qualquer Estado. Combater
este tipo de crimes requer cooperação internacional. Portanto, muitos Estados exigiram a
definição de cibercrime e a realização de convenções para adotar um quadro legal efetivo para
combater e restringir o avanço mundial do cibercrime.
Este estudo conclui que são necessários mecanismos de cooperação para coordenar e unificar
os esforços conjuntos e modernizar os meios de combate ao cibercrime recorrendo a técnicas
mais recentes, além da necessidade de atualizar os mecanismos existentes e desenvolver
outros métodos necessários para concretizar vários aspetos da cooperação
Palavras chave
Cibercrime, cooperação em matéria de segurança internacional, combate ao crime organizado
transnacional, crime organizado, modernização dos meios de combate ao cibercrime
Como citar este artigo
Al Azzam, Farouq Ahmad Faleh (2019). "A adequação dos meios de cooperação internacional
para combater o cibercrime e formas de modernizá-los". JANUS.NET e-journal of International
Relations, Vol. 10, N.º 1, Maio-Outubro 2019. Consultado [online] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.1.5
Artigo recebido em 25 de Outubro de 2018 e aceite para publicação em 20 de Fevereiro
de 2019
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Vol. 10, Nº. 1 (Maio-Outubro 2019), pp. 68-86
A adequação dos meios de cooperação internacional para combater o cibercrime e formas de modernizá-los
Farouq Ahmad Faleh Al Azzam
A ADEQUAÇÃO DOS MEIOS DE COOPERAÇÃO INTERNACIONAL PARA
COMBATER O CIBERCRIME E FORMAS DE MODERNIZÁ-LOS
1
Farouq Ahmad Faleh Al Azzam
Introdução
Num mundo cada vez mais globalizado e eletrónico, a extensão dos crimes informáticos
dentro e através dos países está a afetar um vasto setor da sociedade nacional e
internacional. Atualmente, muitos setores privados e locais estão a utilizar as redes para
alcançar os seus objetivos, sejam atividades sociais, económicas, financeiras ou políticas.
Essas práticas encorajaram a emergência do cibercrime.
O cibercrime é um crime que envolve o uso de tecnologias digitais e de comunicação
para cometer atividades ilegais. Essas atividades envolvem ataques ao Sistema de Dados
de Centros de Informações, roubo, transações fraudulentas online, venda fraudulenta
pela Internet e condução de atividades maliciosas na Internet, como rus, worms e
abuso de terceiros, tais como phishing e mensagens eletrónicas fraudulentas. Além disso,
pode constituir uma séria ameaça aos governos e às suas informações confidenciais
através do acesso aos seus sistemas e dados de segurança.
Assim, para combater o cibercrime, os governos devem utilizar meios científicos
modernos e planos estratégicos internacionais conjuntos através da cooperação formal a
todos os veis, colocando o interesse geral de segurança acima de todas os outros, e
superar as diferenças enfrentadas pelos governos, como o princípio de soberania, que é
uma das questões fundamentais que impedem a necessária cooperação internacional no
combate ao cibercrime.
A cooperação judiciária internacional é a base fundamental para combater um crime nas
suas diversas dimensões, como o terrorismo informático internacional, o cibercrime e
outros crimes cometidos por organizações criminosas ou por pessoas jurídicas. Assim, os
países devem procurar criar uma base legal que reforce a cooperação internacional
conjunta contra o cibercrime e estabeleça leis aplicáveis.
Para resolver esse problema, precisamos de esclarecer quais os mecanismos atuais que
são usados para combater o cibercrime, propor formas de melhoria e soluções. O autor
dividiu este artigo em dois tópicos: o primeiro aborda aspetos da cooperação
internacional no combate ao crime organizado transnacional. O segundo tópico examina
1
A tradução deste artigo foi financiada por fundos nacionais através da FCT - Fundação para a Ciência e
a Tecnologia no âmbito do projeto do OBSERVARE com a referência UID/CPO/04155/2019, e tem como
objetivo a publicação no JANUS.NET. Texto traduzido por Carolina Peralta.
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Vol. 10, Nº. 1 (Maio-Outubro 2019), pp. 68-86
A adequação dos meios de cooperação internacional para combater o cibercrime e formas de modernizá-los
Farouq Ahmad Faleh Al Azzam
as formas de modernizar os mecanismos de cooperação internacional no combate ao
crime.
I. Primeiro Tópico: aspetos da cooperação internacional no combate ao
crime organizado transnacional
O cibercrime ainda é um conceito moderno, pois está associado a inovações da tecnologia
contemporânea (a World Wide Web e a Internet). É definido como qualquer atividade
criminosa que é conduzida em, ou através de, computadores, a Internet ou outra
tecnologia reconhecida pelas Leis da Tecnologia da Informação. É cometido por
criminosos tecnicamente qualificados para concretizar as suas intenções ilegais.
As Nações Unidas definiram o cibercrime
2
no Décimo Congresso sobre Prevenção do
Crime e Tratamento de Delinquentes, que se realizou em Viena em 2000, como: qualquer
crime que possa ser cometido através de um sistema informático, rede de computadores
ou computadores, e que inclua, em princípio, todos os crimes que podem ser cometidos
em ambiente eletrónico.
3
Os crimes eletrónicos também se dividem em vários tipos, por
exemplo, crimes que são cometidos contra indivíduos, bens e governos. Também pode
ser definido como um crime que não conhece fronteiras.
O cibercrime tem como objetivo aceder ilegalmente a informações confidenciais, a fim
de roubar, excluir ou alterar os dados armazenados em instituições e órgãos
governamentais. Também acede a dados pessoais para chantagear indivíduos, e para
perseguir objetivos morais e políticos. Portanto, os Estados têm-se interessado pelo
conceito de cibercrime e pela capacidade de lidar com o crime transnacional, esforçando-
se por preencher a lacuna legal que as organizações criminosas transpõem
4
.
Geralmente, a assistência jurídica tua em matéria penal é um mecanismo efetivo para
lidar com crimes, devido ao seu profundo impacto no processo penal e ao papel que
desempenham na conciliação do direito do Estado de exercer a sua jurisdição penal
dentro das suas fronteiras territoriais e do seu direito de aplicar penas
5
.
O presente trabalho ilustra, na Seção I, o papel das Nações Unidas no combate ao
cibercrime e, na Seção II, o papel da Convenção de Budapeste na abordagem ao
cibercrime.
Seção I. O papel das Nações Unidas no combate ao cibercrime.
As convenções internacionais e regionais das Nações Unidas, bem como os tratados
árabes, desempenharam um papel significativo no combate ao crime internacional em
geral
6
, como a Convenção de Tóquio relativa às infrações e certos outros atos cometidos
2
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Direito, Universidade de Argel, Argel, 2013, p. 95.
3
Halabi, Khalid Ayad, Investigation of Computer and Internet Crimes, Dar Al-Thaqafa, Jordânia, 2011, p. 11
4
Al-Qahtani, Faleh Muflih, 2008, Role of International Cooperation in Combating Overseas Drug Trafficking,
Tese de Mestrado, Naif Security University, p.12
5
Surour, Ahmed Fathi, 1993, mediador no Código de Processo Penal, Modern Printing House, Egito, p. 82.
6
Al-Shawabkeh, Mohammed Amin, Computer and Internet Crimes, Jordânia, Dar Al-Thaqafa for Publishing
and Distribution, 2004, pp. 140-144
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a bordo de aeronaves de 14 de setembro de 1963, e a Convenção de Haia para a
Supressão de Captura Ilícita de Aeronaves de 16 de dezembro de 1970.
7
A Organização das Nações Unidas tem um papel direto na melhoria da imagem da
cooperação internacional nas suas várias manifestações, assinando tratados e
convenções internacionais que promovem a cooperação dos Estados entre si para
combater o crime. O artigo 17
8
, intitulado “Assistência Jurídica Mútua”, é a fonte mais
importante de cooperação penal internacional nesta área. O artigo 1 especifica o âmbito
da cooperação, no sentido de prestar ao Estado requerido a maior assistência mútua
possível em investigações e julgamentos.
O artigo 2 estabelece as regras do depoimento de testemunhas, a audiência de pessoas,
assistência na investigação, a comunicação de documentos autênticos e registos de
cópias autenticadas, incluindo registos bancários, financeiros, empresariais ou
comerciais.
9
Um modelo de tratado de assistência mútua em questões criminais foi
elaborado com base nas normas e padrões da ONU sobre prevenção do crime e justiça
criminal, adotadas pela Assembleia Geral na resolução 45/1117 de 14 de dezembro de
1990, implementada pelo Oitavo Congresso das Nações Unidas sobre Prevenção do
Crime e Tratamento de Delinquentes.
10
O preâmbulo do Tratado Modelo, que declara o
desejo de defender os objetivos da justiça, restaurar a estabilidade social dos criminosos
e promover os interesses das timas de crimes, foi igualmente mencionado no parágrafo
1 do artigo 1.
A fim de alcançar os resultados almejados da cooperação jurídica, o Grupo de Peritos
sobre a estratégia de combate à criminalidade organizada solicitou que o princípio da
dupla incriminação fosse abandonado como condição para a assistência tua,
flexibilidade e rapidez na troca de toda a assistência disponível, e que os Estados
deveriam coordenar esforços no combate às organizações criminosas transnacionais e,
assim, privá-las do produto do crime em caso de condenação, uma vez que têm um
impacto efetivo no crime organizado. Isto foi confirmado pela União Europeia em 1994,
no seu apelo para que o combate à criminalidade fosse eliminado das suas fontes através
da ativação da cooperação judiciária.
A Declaração das Nações Unidas sobre Criminalidade e Segurança Pública enquanto
documento fundamental para a cooperação contra o crime organizado declarou no artigo
1 que: Os Estados-membros protegerão a segurança e o bem-estar dos seus cidadãos
e outras pessoas abrangidas pelas medidas nacionais eficazes contra a criminalidade
transnacional, incluindo o crime organizado, o tráfico ilícito, o tráfico organizado de
pessoas, os crimes de terrorismo e o branqueamento de produtos de crimes graves, e
comprometem-se a cooperar juntos nesses esforços.”
O Artigo 2 da mesma Declaração das Nações Unidas afirma: “Os Estados-membros
devem promover a cooperação bilateral, multilateral, regional e global e a assistência na
implementação das leis, incluindo, conforme apropriado, entendimentos de assistência
jurídica mútua ou outra, e garantir que se realizem, com o objetivo de assegurar uma
7
Vejam-se artigos 22, 23, 24, 30, 31 e 33 da Convenção Árabe contra o Cibercrime de 2010, alterada em
2014.
8
Suleiman, Mohammed Ibrahim Mustafa, 2006, Terrorism and Organized Crime, Dar Al Talai, Egito. p.103.
9
Bassiouni, Mohamed Sherif, 2004, Transnational Organized Crime, F I, Dar al-Shorouk, Egito, p. 45
10
Waly, Ali, 1981, echoes of the Sixth United Nations Congress on the Prevention of Crime and the Treatment
of Offenders, Journal of Justice, Nº 27, publicado pelo Ministério da Justiça, Abu Dhabi. p. 146
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cooperação eficaz entre as autoridades responsáveis pela aplicação da lei e outras
autoridades competentes.”
11
De forma geral, a cooperação e a coordenação são os principais pilares da prevenção da
criminalidade, que não reside no Estado de origem, mas que se estende aos outros
países. Assim, a comunidade internacional confirmou a importância da assistência
jurídica ao estabelecer diferentes meios legais para impor leis conjuntas que aumentam
a prevenção do crime (por exemplo, delegação judicial e julgamentos no estrangeiro).
A. Delegação Judicial
A delegação judicial resulta dos deveres ou compromissos impostos pelo direito
internacional público às Nações Unidas
12
, ao abrigo dos quais as autoridades judiciárias
são obrigadas a tomar uma medida específica, a realizar investigações no interesse da
autoridade judiciária competente dos Estados requerentes, tendo em consideração o
respeito pelos direitos humanos e as liberdades universalmente reconhecidas. Em
contrapartida, o Estado requerente compromete-se a respeitar a reciprocidade e a as
consequências jurídicas do Estado requerido
13
.
De acordo com o artigo 6 da Convenção sobre Declarações e Jurisdições, a delegação
judicial significa que: cada Estado vinculado por esta convenção deverá solicitar a
qualquer Estado que inicie no seu território qualquer processo judicial relacionado com
um caso sob consideração, de acordo com os artigos 7 e 8. O objetivo da delegação
judicial é transferir procedimentos em matéria penal para combater a evolução dos
fenómenos criminais e superar dificuldades e obstáculos à condução de processos
criminais sobre questões extraterritoriais, onde a delegação judicial existe na forma de
leis nacionais, convenções internacionais e o princípio da reciprocidade.
B. Julgamentos Estrangeiros
Um dos conceitos que devem ser superados de forma a apoiar a cooperação internacional
é a não aplicabilidade do julgamento estrangeiro, com base no fato de a justiça criminal
ser, efetivamente, uma manifestação da soberania do Estado e do seu direito de punir
14
.
No entanto, não deve limitar-se às consequências negativas de uma sentença criminal
estrangeira sobre a inadmissibilidade de uma pessoa ser julgada duas vezes. A
jurisprudência criminal exige a necessidade de precedência na jurisprudência para
impedir a impunidade dos perpetradores e as exigências da justiça.
De acordo com os esforços envidados, várias convenções internacionais decidiram
implementar decisões judiciais
15
, incluindo disposições penais, como a celebrada em
1952 entre membros da Comunidade Europeia, e obrigam os Estados Partes a
implementar disposições penais e outras, a menos que um dos casos específicos o o
11
United Nations Documents of the General Assembly, 1995, 51st Session, United Nations Declaration on
Crime and Security, p. 2.
12
Sugheer, Jamil Abdel Baki, Procedural Aspects of Internet Related Crimes, Dar al-Nahda, Egito, 2001, p.
83.
13
Al-Harouni, Hazem, 1988, International Judicial Appeal, National Journal,3rd issue, p. 21.
14
Al-Laqli, Mahmoud Mustafa, 1991, Judicial Links, University Library House, Egito, p. 132.
15
Al-Ghareeb, Muhammed Eid, 1988, Penal Code, General Section, General Theory of Crime, II, Dar Al-Alam,
Líbano, p. 199.
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aplique, como na declaração do artigo 3 da Convenção contra o Tráfico Ilícito de
Estupefacientes e Substâncias Psicotrópicas de 1988.
A Convenção sobre a Supressão do Crime Organizado Transnacional tem-se concentrado
na assistência mútua como um dos principais meios de cooperação para combater
organizações criminosas que praticam várias formas de crime de caráter internacional.
O Artigo 6 estabelece que os Estados Partes devem ajudar-se e coordenar entre si a
execução das ações adotadas em todos os delitos abrangidos pelas disposições da
convenção, incluindo a recolha de provas, garantias de proteção de testemunhas e
transferência de processos. O décimo artigo do projeto de Convenção apresentado pela
Polónia enfatizava que os Estados deveriam cooperar entre si e ser flexíveis e rápidos no
intercâmbio de assistência jurídica
16
, de acordo com as suas leis processuais nacionais
em matéria de investigação, recolha de provas, ação penal e condução de processos
judiciais. O segundo parágrafo do mesmo artigo menciona a prestação de assistência
jurídica na área da informação abrangida pelo sigilo bancário.
O artigo 14 da Convenção Internacional contra a Criminalidade Organizada Transnacional
também garante a necessidade de documentar a assistência jurídica em várias áreas,
“investigações, acompanhamento, processos judiciais” no caso de ocorrência de qualquer
das infrações previstas nas suas disposições. O mesmo artigo identifica os casos e a
forma de solicitar assistência jurídica, incluindo documentos e registos relevantes,
registos bancários ou financeiros, empresariais, divulgação dos produtos do crime, bens,
instrumentos ou outros objetos resultantes de atividades criminosas ou necessários para
identificar o seu impacto, com o objetivo de obter as provas necessárias para acusar os
perpetradores
17
.
Como forma de superar e simplificar os obstáculos legais à ausência de um tratado
bilateral ou multilateral que reja a assistência jurídica mútua entre Estados requerentes
e requeridos, a Convenção contra o Crime Organizado foi considerada a base legal para
a troca de assistência, de modo que não seria possível enquadrar-se no requisito de dupla
incriminação (Parágrafo 6) ou sigilo bancário (Parágrafo 5). Para efeitos desta
Convenção, as infrações abrangidas pelas disposições relativas a crimes financeiros,
políticos ou motivos humanitários não o consideradas (Parágrafo 17 do mesmo artigo),
o que reflete o desejo dos formuladores de políticas criminais internacionais de lidar com
este crime que ameaça toda a comunidade internacional.
À luz da estratégia formulada pela Declaração de Nápoles contra o crime organizado,
assegurou o reconhecimento das sentenças nacionais, tendo em vista a importância do
registo criminal na tomada de decisão sobre processos penais
18
, nomeadamente a
condenação prévia do ponto de vista da gravidade do perpetrador, punição adequada e
proporcional à gravidade do crime e gravidade do culpado prevista no seu registo
criminal. A Declaração de Nápoles contra o Crime Organizado declarou que a condenação
estrangeira do crime original teria autoridade para processar o parceiro, especialmente
porque a maioria da legislação penal não definiu uma lei especial sobre o crime
organizado que situasse a atividade de um parceiro que contribui para o crime ao mesmo
nível da atividade realizada por membros da organização criminosa. Por este motivo, as
16
Basha Faizah, Younus, 2001, organized crime under international conventions and national laws, Dar al-
Nahda al-Arabiya, Egito, p. 221.
17
Vejam-se as Atas do Congresso das Nações Unidas sobre a Prevenção do Crime e Tratamento dos
Delinquentes 1985, p. 42.
18
Bassiouni, Mohamed Sherif, op. Cit., p. 97.
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autoridades judiciais italianas decidiram declarar o parceiro externo responsável pelos
crimes cometidos pelos membros do grupo criminoso, de acordo com o crime organizado.
A dimensão internacional do cibercrime impôs à comunidade internacional a procura de
meios mais adequados à sua natureza, reduzindo as lacunas legais que os perpetradores
têm explorado para evitar a punição e disseminar as suas atividades nas diferentes
regiões do mundo. A política criminal ideal não alcançará o objetivo desejado a menos
que todos os elementos sejam homogéneos e que se adotem medidas criminais,
preventivas e executivas. Vários mecanismos de natureza técnica e administrativa foram
adotados para aproveitar o avanço tecnológico e o conhecimento da fonte de informação
criminal de forma para combatê-lo. Este deve-se a duas formas de cooperação técnica,
como veremos em seguida:
Primeiro: troca de informações
Todos sabemos que a era moderna está a assistir a uma evolução tecnológica,
especialmente no campo informático, que forçou a comunidade internacional a prestar
mais importância à troca de informações como meio de combater o crime em geral e o
cibercrime em particular, pois fornece informações fiáveis e confidenciais para apoiar os
órgãos de aplicação da lei em todas as áreas, incluindo a atividade de organizações
criminosas e fontes de financiamento.
Assim, o Sexto Congresso das Nações Unidas para a Prevenção do Crime e o Tratamento
dos Delinquentes recomendou o desenvolvimento da troca sistemática de informações
como elemento-chave do Plano de Ação Internacional para a Prevenção e Controlo do
Crime, e que as Nações Unidas estabelecessem uma base de informações para comunicar
aos Estados partes as tendências globais do crime
19
. Desta forma, a cooperação em
matéria de crimes informáticos deve apoiar a utilização de sistemas de troca de
informações entre os Estados Membros e a prestação de assistência técnica bilateral e
multilateral aos Estados Membros, recorrendo a formação sobre aplicação da lei e o
tratado internacional de justiça criminal.
A centralização da informação não deve impedir a disseminação e troca de informação
entre os Estados após ter sido organizada, estudada e tratada de uma forma que lhe
permita ser usada na fase de investigação e julgamento e facilitar a condenação de
suspeitos, sejam eles indivíduos ou entidades. Este assunto foi confirmado pelo Acordo
de Schengen da União Europeia através da formulação de um sistema integrado para a
troca de informações.
Por isso, a prevenção da informação é um elemento essencial e uma base fundamental
para combater o crime informático, sendo igualmente uma forma de garantir a criação
de um sistema efetivo de falsificação. Com base nisso, os projetos da Convenção contra
o Crime Organizado de troca de informações provaram ser um mecanismo preventivo
para combater este tipo de crime. O projeto de convenção-quadro, no parágrafo nº 2 do
artigo 1, prevê que os Estados Partes facilitem a troca de informações sobre todos os
aspetos da atividade criminosa das pessoas envolvidas no crime organizado.
19
Qarzan Mustafa, International Politicians for Combating Cyber Crime, investigação publicada sobre a
organização legal da Internet e cibercrime, Universidade de Xi'an Ashour, Universidade de Djelfa, 2009, p.
7.
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Segundo: troca de conhecimentos e assistência técnica
Para conseguir a integração na tendência geral de informatização das operações de
justiça criminal, e para desenvolver e analisar informações de uma forma que sirva os
objetivos da política criminal moderna para combater o crime em geral, alguns
procedimentos devem ser levados em consideração. Estes incluem a troca de elementos
administrativos, o reforço da capacidade dos órgãos judiciais, a análise e divulgação dos
dados disponíveis sobre a criminalidade e a utilização de mecanismos inovadores,
tradicionais e não tradicionais, para combater a criminalidade. Além disso, a ênfase deve
ser colocada nos novos métodos, como o apoio à cooperação técnica e a disponibilização
de serviços de assessoria abrangentes para abarcar todas as áreas, tais como a ocultação
de fundos para combater a lavagem de dinheiro, privando as organizações criminosas
dos produtos do crime, que a política preventiva permanecerá inadequada a menos
que controle todos os elementos do alegado comportamento criminoso. A assistência
técnica bilateral e multilateral pode ser prestada aos Estados Membros através da
implementação de programas de intercâmbio internacional sobre formação na aplicação
da lei e tratados internacionais de justiça criminal. Neste caso, as autoridades legislativas
de qualquer Estado devem alterar o Código de Processo Penal, a fim de legitimá-lo para
que seja coerente com a natureza do crime nas suas várias novas dimensões. Para
alcançar este objetivo, deve criar-se uma lei especial que abranja todos os aspetos legais,
substantivos ou processuais, sem estar sujeita às regras gerais que podem, às vezes,
impedir que a justiça criminal alcance os seus objetivos
20
.
Seção II: O papel da Convenção de Budapeste na luta contra o crime cibernético.
No final de 2001, a Convenção de Budapeste foi assinada na capital húngara. Destina-se
a combater os crimes informáticos através da harmonização de leis, fornecendo um
quadro para a cooperação internacional entre os Estados Partes do tratado. Ilustra
igualmente os mecanismos de colaboração internacional em termos de controlo do
cibercrime. Mais de 30 estados ratificaram a convenção em 2001
21
para restringir as
contas eletrónicas ilegais e o abuso de redes de informação. Embora a Convenção de
Budapeste seja um tratado com origem na Europa, tem um cariz internacional. Foi
ratificada por estados não membros do Conselho da Europa, como o Canadá, o Japão, a
África do Sul e os EUA, porque é aberto e permite a adesão de outros países para além
dos da Comunidade Europeia (de acordo com o artigo 48 da Convenção de Budapeste)
22
.
Depois de examinar os 48 artigos da convenção, verificámos que esta confirma a
necessidade de adotar medidas legislativas para combater os crimes informáticos,
estipulando vários procedimentos e recomendações. A Convenção foi, portanto,
considerada uma referência importante para as convenções posteriores e leis internas de
alguns Estados
23
.
20
Al-Laqli, Mahmoud Mustafa, Op Cit, p. 123.
21
Arian, Mohamed Ali, Computer Crimes, New University House, Universidade de Alexandria, Egito, 2011, p.
25.
22
Zuhair, Haj Tahir, Mechanisms of Crime Prevention and Control, Mestrado em Direito Penal, Faculdade de
Direito, Universidade de Argel, Argel, 2013, p. 102
23
Attia, Tareq Ibrahim, Information Security - The Legal System of Information Protection, New University
House, Egito, 2009, p. 343.
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A Convenção de Budapeste centra-se em três elementos básicos: O primeiro é a
importância de medidas legislativas substantivas. O segundo elemento é a importância
de legislação processual apropriada à natureza do crime. O terceiro é a importância da
cooperação internacional e regional na área do cibercrime. Todos esses elementos são
apresentados sob a forma de textos distribuídos por quatro seções.
Pode dizer-se que os autores deste tratado identificaram a estrutura geral desses crimes
como um acesso ilegal ao sistema de dados, uso indevido de contas e fraude de
informações. Este tratado especificou as condições para identificar essas ações do ponto
de vista jurídico.
Por fim, pode afirmar-se que a Convenção de Budapeste respeita os direitos humanos e
impede a exposição a crimes cometidos através da Internet, não entrando em conflito
com a Declaração Universal dos Direitos Humanos.
A Convenção de Budapeste estabeleceu novas medidas para combater o cibercrime.
Essas medidas assentam nos seguintes princípios importantes: a obrigação dos Estados
Partes na Convenção adotarem legislação e outras medidas, se necessário, de acordo
com a sua legislação interna e o seu quadro legal, estabelecendo poderes e
procedimentos criminais especiais.
A Convenção de Budapeste estipula alguns novos procedimentos criminais para combater
o cibercrime, a saber:
Garantir a preservação rápida dos dados armazenados - Este procedimento está
previsto nos artigos 16 e 17 da Convenção, e destina-se a preservar, armazenar e
proteger as informações de algo que possa corromper ou danificar a sua qualidade.
24
Preservar e reunir as informações prestadas pelos participantes: esta ação visa
ajudar a investigação criminal e determinar a identidade do agressor no crime
informático.
Busca e apreensão de dados armazenados em computador: está previsto no artigo
19 da Convenção e tem como objetivo procurar e aceder aos dados após obtenção
de autorização oficial de inspeção pelas suas autoridades competentes.
25
O artigo
31, referente à busca de dados, estipula que devem ser adotadas disposições
processuais adicionais para garantir o acesso aos dados que serão utilizados como
prova.
Escutas: trata-se de um procedimento novo no âmbito do controlo processual do
crime informático.
Cooperação internacional: para ativar os procedimentos anteriores, o artigo 23
estipula que as partes cooperarão internacionalmente, na medida do possível
26
.
Reduzir os desafios relativamente à troca de informações e provas a vel
internacional.
A convenção de Budapeste tem uma estrutura vinculativa, uma vez que o artigo 2
estipula que cada Parte adotará as medidas legislativas e outras que sejam necessárias
24
Omar Abul-Fotouh Abdel-Azim Hamami, Criminal Protection of Electronic Information, Dar Al-Nahda Al-
Arabiya, Egito, p. 314
25
Hilali Abdullah Ahmed, Budapest Convention on Combating Cyber Crime, Dar al-Nahda al-Arabiya, Egito,
2011, p. 192.
26
Hilali Abdullah, op. Cit., p. 298
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para definir os crimes, de acordo com a sua legislação interna, quando cometidos
intencionalmente.
Por conseguinte, a Convenção de Budapeste é considerada a base de um acordo
internacional que representa uma visão unificada do cibercrime. Como estipula
procedimentos legislativos para lidar com atos criminosos, não é aceitável lidar com
cibercrimes neste século recorrendo a mecanismos tradicionais que não podem ser
adaptados.
III. Segundo Tópico: formas de modernizar os mecanismos e métodos de
cooperação internacional no combate ao cibercrime
Não vida que melhorar o nível de desempenho dos funcionários é uma exigência de
qualquer desenvolvimento profissional em geral e, particularmente, no campo da
aplicação da lei. Isto porque qualquer funcionário pode estar exposto a tentações
financeiras por parte de organizações criminosas para facilitar a sua conduta ilegal. Este
assunto foi estipulado na Declaração de Caracas da Sexta Conferência, que confirmou a
necessidade de melhorar as condições dos funcionários e elevar o seu nível educativo e
técnico na administração do sistema de justiça criminal, a fim de desempenharem as
suas funções de forma isenta e sem se deixarem tentar pelos seus interesses pessoais.
O Artigo 10 da Declaração de Caracas, intitulado “Formação em aplicação da lei” do
projeto de Convenção para a Supressão da Criminalidade Organizada Transnacional
estipula que: “Cada Estado Parte deverá, na medida do necessário, iniciar, desenvolver
ou melhorar um programa de formação específico para os funcionários envolvidos na
aplicação da lei, incluindo procuradores, magistrados e funcionários da alfândega, e
outros funcionários responsáveis pela prevenção, deteção e controlo dos crimes
abrangidos por esta Convenção.”
Nesse sentido, pode-se dizer que o processo de modernização dos mecanismos de
cooperação internacional em direito penal se inicia com um primeiro passo que visa
desenvolver leis nacionais mais abrangentes e flexíveis que correspondam à legislação
internacional sobre combate ao crime sistemático. Por outro lado, é necessário formular
uma teoria integrada que beneficie do desenvolvimento tecnológico em procedimentos
de recolha de provas e partilha de informações para lidar com organizações criminosas
que operam de maneira cientificamente informada relativamente a dispersar e descartar
provas. A cooperação judiciária também deve ser desenvolvida nas suas várias fases,
incluindo a implementação de condenações. Portanto, é necessário identificar a posição
da política executiva estabelecida pelas partes e rever o papel dos órgãos com base na
implementação de leis especializadas
27
.
É óbvio que o cibercrime é um desafio para os órgãos de justiça criminal nacionais,
regionais e internacionais, porque lhes faltam mecanismos e métodos que correspondam
à natureza desse crime, que pode mudar e mover-se facilmente devido à flexibilidade
das suas estruturas, à precisão das suas organizações e à cooperação estreita entre os
seus membros. Como resultado destes desafios, a Cimeira do Luxemburgo aprovou o
estabelecimento da Europol como um órgão central para a polícia criminal na UE ao
abrigo da Convenção de Maastricht.
27
Basha Faizah, Younus, Op Cit, p. 285.
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O Acordo Europol foi assinado em Bruxelas em 26 de Junho de 1995 por embaixadores
de 15 Estados-Membros da UE com o objetivo de assegurar a máxima cooperação,
partilha e troca de informações em todos os domínios, bem como facilitar a comunicação
entre Estados-Membros através da criação de pontos focais e da atribuição de um centro
para todos serviços relacionados
28
. A União Europeia também autorizou a Comissão
Europol a incluir as autoridades nacionais nos planos da política de combate ao crime
organizado, a preparar procedimentos no domínio da polícia, alfândegas e investigações
judiciais e a trabalhar com as autoridades como uma unidade integrada. Entre os seus
poderes mais importantes destaca-se o de permitir aos Estados-Membros intervir nas
investigações que iniciaram e assistir às sessões de investigação sobre o crime
organizado. A Europol está autorizada a analisar informações relacionadas com o crime
organizado e as suas práticas criminosas nas suas várias formas, incluindo as
relacionadas com organizações criminosas do tipo mafia, como as máfias siciliana,
japonesa, coreana, e russa e a investigar a sua penetração económica e comercial
29
.
A União Europeia continua a recomendar o alargamento da jurisdição da Europol e a
estabelecer pontos de comunicação entre esta e os países do terceiro mundo, incluindo
a Jordânia, para assegurar a adoção de uma política unificada de luta contra o terrorismo
e rias formas de crime organizado, incluindo o cibercrime. Além disso, coordena as
operações policiais, documenta a troca de informações e direciona a comunicação em
curso para o desenvolvimento da cooperação judiciária.
Logo, todos os países devem adotar uma política unificada para reduzir as deficiências
de segurança no combate ao crime organizado nas suas várias formas, especialmente o
cibercrime. Isto deve ser feito através da criação de um programa coordenado,
desenvolvendo mecanismos mais eficientes para facilitar o trabalho dos órgãos de justiça
criminal durante todas as etapas do processo, que começa com a recolha de provas e
termina com a acusação.
Atualmente, a segurança e a cooperação judiciária tornaram-se um dos elementos mais
significativos das estratégias nacionais e regionais, que unificam os procedimentos
práticos dos órgãos executivos e trabalham em estreita colaboração com os seus
membros.
Os países do Terceiro Mundo o deficitários neste tipo de cooperação e mostraremos
exemplos reais desse tipo de cooperação (o Acordo de Schengen, o Acordo de Maastricht,
o Acordo de Amsterdão), a saber:
A. Acordo de Schengen:
O Acordo de Schengen foi assinado em 1985 com o objetivo de aprofundar a cooperação
entre os países da União Europeia em vários domínios, incluindo a harmonização da
legislação, a cooperação judiciária, a eliminação dos controlos nas fronteiras e a obtenção
de mais liberdade e segurança. Em 1990, o Protocolo Suplementar incluiu 142 artigos.
28
Ghattas, Iskandar, Without a Year Publication, Arab Symposium on International Judicial Cooperation in the
Criminal Field in the Arab World, Dar Al-Qalam, Líbano, p. 22.
29
Al-Basha, Faizah, Younus, Op. Cit., 354
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No terceiro capítulo, incluiu a cooperação policial e de segurança e o regulamento
ratificou um sistema de informação, conhecido como SIS
30
.
O sistema presta informações sobre indivíduos e objetos através do controlo de
fronteiras. O sistema SIS permite que os órgãos de justiça dos Estados Partes se
desloquem livremente de um Estado para outro no território da Comunidade Europeia
para monitorizar e investigar crimes graves
31
. O acordo estabeleceu um sistema especial
de comunicação para a publicação de todas as ordens emitidas sobre a inspeção de
crimes, pessoas ou veículos com base em computadores ou outros meios de
comunicação, para que a polícia de fronteiras possa trabalhar em conjunto e reforçar a
cooperação oficial em pontos de passagem de fronteiras comuns.
B. Acordo de Maastricht:
Este acordo foi concluído em 1992 com o objetivo de preencher o vazio judicial e
combater o crime organizado. Concede aos Estados Partes do acordo um mecanismo de
cooperação em matéria de segurança. O artigo 1 do acordo afirma: foi celebrado a fim
de alcançar os objetivos da União Europeia e abordar questões de interesse comum,
especialmente a liberdade de circulação de pessoas, as leis que regem a passagem nas
fronteiras, o controlo da passagem de fronteiras, o sistema de imigração, condições de
residência ilegal, fraude internacional e o reforço da cooperação judiciária em matéria
civil e penal. Além disso, diz respeito à cooperação dos departamentos de alfândegas e
da polícia para garantir a prevenção do terrorismo e outras formas de crimes graves de
dimensão internacional
32
.
C. Convenção de Amsterdão
Em 1997, a União Europeia implementou os mecanismos de Maastricht para a proteção
da segurança e o estabelecimento de justiça e liberdade. Este acordo foi assinado em 2
de outubro de 1997. O artigo 1 confirmou a cooperação informal entre a polícia e os
órgãos judiciais para combater os crimes terroristas e o crime transnacional. Em 12 de
abril de 1996, realizou-se uma reunião de Ministros do Interior, Justiça e Finanças dos
Estados Membros para formular mecanismos operacionais para que as recomendações
aumentassem a eficácia das medidas de combate ao crime. Os pontos acordados refletem
a preocupação das autoridades sobre os efeitos do cibercrime. Com o objetivo de
melhorar a cooperação entre os órgãos policiais, a INTERPOL foi encarregada de alcançar
os objetivos estabelecidos nesta reunião. Estes objetivos são:
1. Assegurar a assistência e desenvolvimento conjunto das autoridades da polícia
penal num contexto mais vasto e no quadro das legislações dos vários Estados a
favor da proteção dos direitos do Homem.
2. Estabelecer centros que possam efetivamente contribuir para a prevenção e
impedir violações de leis comuns, e desenvolver esses centros sem interferir em
30
Nabhan, Mohamed Farouk, 1992, Towards a unified Arab strategy to combat organized crime, University
House, Jordan, p. 194.
31
Darwish, Abdel Kareem, without a Year of publish, Transnational Organized Crime, Al-Ma'aref
Establishment, Egito, p. 123.
32
Al-Janabihi, Muneer and Mamdouh, 2006, Internet Crimes, University Dar Al Feker, Egypt, p. 29.
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qualquer atividade política, militar, religiosa ou racista para impor leis, seja troca
de informações, investigação, ação judicial ou uso de tecnologia e organização
33
.
3. A Interpol desempenha agora um papel fundamental na troca de informações,
advertindo os bancos e instituições financeiras sobre transações suspeitas. Assim,
organizaram-se mecanismos para abordar o crime e as organizações criminosas e
as suas atividades. A Interpol foi criada em janeiro de 1990 como Secretaria-geral
do Crime Organizado e foi incumbida de supervisionar a política internacional de
combate ao crime fornecendo aos Estados Membros várias informações sobre
organizações criminosas, lavagem de dinheiro e suspeitos, sejam indivíduos ou
órgãos, e analisando todos os problemas e dificuldades sentidas pelos mecanismos
de controlo. Além disso, prepara estudos sobre projetos económicos e grupos de
pessoas que contribuem para as atividades ilegais, a fim de estabelecer a justiça
criminal e permitir que beneficiem do desenvolvimento científico e da adoção de
um plano unificado. Contribui também para o desenvolvimento de leis nacionais
para uma abordagem mais inclusiva e flexível para compreender a especificidade
deste crime, removendo os obstáculos à cooperação internacional e facilitando a
comunicação em termos de coordenação do trabalho. Este é o primeiro passo
34
.
O segundo passo é instar os Estados a estabelecer e operar um banco de dados conjunto
sobre o crime organizado e os seus membros e a recolher informações sobre pessoas
condenadas, assegurando que os arquivos jurídicos estão protegidos como o estão no
direito nacional e internacional
35
. Cada Estado Parte tomará medidas importantes e
eficazes. Propomos alguns exemplos a este respeito:
i. Nomeação de uma autoridade central que comunique diretamente com as autoridades
centrais dos outros Estados Partes com a finalidade de prestar o apoio e assistência
previstos nesta Convenção, inclusive direcionando e recebendo solicitações de apoio
e assistência.
ii. Criação de canais de comunicação entre as suas autoridades, departamentos e
serviços especializados para facilitar a troca segura e rápida de informações sobre
todos os aspetos mencionados nessas convenções. Além disso, o projeto de
Convenção concentrou-se na cooperação em fase de recolha de dados e investigação
sobre:
a. Identificação de pessoas suspeitas de terem cometido e contribuído para os crimes
abrangidos pela Convenção e dos seus locais de concentração e atividade.
b. Identificação da circulação de fundos e bens derivados de qualquer crime
organizado para garantir a eficácia e rapidez dos procedimentos. Recomenda-se a
criação de equipas conjuntas para monitorizar o percurso de fundos em cada Estado
Parte, a fim de assegurar a proteção da segurança de pessoas e operações.
As partes devem reconhecer e compreender que o processo de cooperação não afeta o
respeito pela soberania do Estado cujo território foi trespassado para monitorizar
33
Kheilaf, Mohamed Said, op. Cit., P. 71
34
Basha, winner of Yunus, op. Cit., p. 213.
35
Athena, Imad, op. Cit., p. 106.
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suspeitos ou verbas específicas e que devem tomar medidas práticas para garantir que
os seus serviços de segurança cooperam na monitorização e deteção de transferências
materiais. Como explicado anteriormente, o objetivo é a atualização de informação
36
.
A base de dados auditada disponível facilita a cooperação das autoridades responsáveis
pela aplicação da lei na troca de dados e na deteção de pessoas que fogem à justiça,
além de expor os métodos que as organizações criminosas utilizam para recrutar pessoas
para facilitar o tráfico. Para atingir os objetivos pretendidos, deve preocupar-se com o
seguinte:
A. Monitorizar o cumprimento dos Estados Partes na implementação dos acordos e
procedimentos institucionais estabelecidos no âmbito da Convenção e desenvolver
os seus mecanismos de maneira consistente com o desenvolvimento do
conhecimento científico e tecnológico.
B. Facilitar a troca de informações para combater o crime organizado transnacional.
C. Avaliar o alcance dos avanços na consecução dos objetivos da convenção e fazer
recomendações sobre as questões necessárias para a implementação da convenção
e para a mobilização de recursos financeiros
37
.
Nesse sentido, concluímos que a política executiva do projeto de convenções
internacionais contra o crime e os seus protocolos complementares visa fortalecer a
cooperação entre os órgãos de justiça criminal e insta os Estados a estabelecer um centro
comum de informações que beneficie dos avanços a nível da informação e comunicação,
cuja administração é confiada a pessoas altamente competentes. Procura igualmente
acompanhar as atividades criminosas e investigar os perpetradores para garantir um
contributo sério de acordo com os padrões modelo.
Por outro lado, devem prestar informação sobre os desafios e fatores que inibem a
implementação dos planos e programas em que estão a trabalhar. Podem igualmente
solicitar informações adicionais sobre atividades criminosas no seu território e sobre as
suas experiências com medidas de prevenção e controle.
Em todos os casos, a Comissão de Prevenção ao Crime e Justiça Criminal das Nações
Unidas deve fazer sugestões e recomendações gerais com base nas informações
recebidas de qualquer parte e transmiti-las aos Estados interessados.
O artigo 20 da Convenção das Nações Unidas contra o Crime, intitulado “Recolha e
partilha de informações sobre o crime organizado” declara:
“O Secretário compromete-se, com a assistência do Instituto de
Investigação Criminal e de Justiça das Nações Unidas e outras
organizações do Programa de Prevenção Criminal e de Justiça das
Nações Unidas, a recolher e analisar informações públicas e
resultados de investigações especiais sobre crime organizado, e a
36
Comissão sobre Prevenção do Crime e Justiça Criminal, sexta sessão, projeto da Convenção-Quadro das
Nações Unidas contra o Crime Organizado, p. 21.
37
Comissão sobre Prevenção do Crime e Justiça Criminal, sexta sessão, projeto da resolução IV contra
corrupção e suborno em transações comerciais e financeiras, p.78.
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preparar estudos sobre as tendências globais do crime organizado e
políticas e medidas para o prevenir e combater”
38
.
Nesse sentido, pode dizer-se que o papel desempenhado pelas Nações Unidas no passado
na implementação da Convenção Internacional contra o Crime tornou-a numa mera
observadora positiva que observa e faz sugestões. Assim, a organização internacional
deve melhorar a coordenação entre os órgãos envolvidos e selecionar os melhores
mecanismos para combater o crime organizado. Além disso, deve estabelecer uma rede
de agentes de ligação para facilitar a cooperação entre os Estados Partes, ajudar os
países em desenvolvimento na troca de informações e aproximar os pontos de vista dos
legisladores locais.
A este respeito, a Comissão sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal estipula que:
Cada Estado Parte estabelecerá um sistema regulador interno para controlar a atividade
das instituições financeiras dentro da jurisdição desse Estado para dissuadir o
branqueamento de capitais, a saber:
1. Emitindo licenças a essas instituições e realização de inspeções periódicas das suas
atividades.
2. Eliminação das leis de sigilo bancário que possam impedir a realização de programas
de monitorização de lavagem de dinheiro nos Estados Partes.
3. As instituições devem preparar registos de contas claros e completos e manter as
transações neles contidas ou através dos mesmos durante pelo menos cinco anos e
assegurar que esses registos estão disponíveis para uso das autoridades
especializadas em investigações criminais e processos de acusação.
4. Garantir que as informações detidas por tais instituições sobre a identidade dos
clientes e titulares de contas estejam disponíveis para uso das autoridades
responsáveis pela aplicação da lei e as partes envolvidas. Os Estados Partes
notificarão todas as instituições financeiras da abertura de contas anónimas ou com
nomes falsos.
5. Obrigar essas instituições a denunciar transações suspeitas ou fora do comum.
A experiência da Jordânia constitui um exemplo de experiências nacionais no combate
ao cibercrime. A Jordânia publicou a Lei dos Crimes Eletrónicos em 2015, emendada em
2018, para incluir novas formas de cibercrime e para aumentar as penas dos
perpetradores. Também publicou a Lei de Prevenção e Combate ao Terrorismo de 2006,
mas esta lei não criminalizava explicitamente o ciberterrorismo. Além disso, os crimes
de segurança do Estado são suficientemente flexíveis para incluir o ciberterrorismo. Mas
depois das alterações à lei introduzidas pelo legislador da Jordânia em 2014
39
, foram
considerados atos terroristas proibidos.
A lei da Jordânia refere, no texto do artigo 3, parágrafo e, o uso do sistema de
informação, da rede de informação ou qualquer meio de publicação ou dos média, ou o
38
Athena, Imad, Op. Cit., 88. & Comissão sobre Prevenção ao Crime e Justiça Criminal, oitava sessão,
proposta de programa de trabalho na área de prevenção ao crime e justiça criminal.
39
Lei de Prevenção do Terrorismo da Jordânia nº 18 de 2014
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estabelecimento de um website para facilitar a prática de atos terroristas ou prestar apoio
a um grupo ou organização que realize atos terroristas, promova as suas ideias ou
dinheiro, ou realize qualquer ato que exponha os jordanos ou os seus bens ao risco de
atos de hostilidade ou retaliação contra eles.
É óbvio que a Lei dos Crimes Eletrónicos de 2018 e a Lei Antiterrorista da Jordânia de
2014 se referiram ao cibercrime de uma forma generalizada. Contudo, a vontade nacional
envida esforços para desenvolver entidades e quadros especializados que cooperam com
os órgãos de justiça criminal internacionais para combater o cibercrime, porque a justiça
nacional por si não é suficiente para combater esses crimes. o foram criados órgãos
regionais para documentar o relacionamento com as contrapartes, e isso é feito através
do acordo entre os governos estatais e no âmbito da legalidade criminal.
Conclusão
Este estudo abordou a adequação dos meios de cooperação internacional para combater
o cibercrime e formas de modernizá-los. É um dos crimes mais graves da era moderna,
devido ao contínuo avanço da tecnologia da informação e dos dispositivos eletrónicos e
das redes que facilitam o seu desenvolvimento. Assim, o estudo teve como objetivo expor
este problema e tentar encontrar soluções para enfrentá-lo. Tentou esclarecer o que a
comunidade internacional e nacional está a fazer para acompanhar a rápida evolução dos
crimes informáticos e a modernização de mecanismos e métodos de cooperação em
segurança internacional para combater o cibercrime através da participação em acordos
e conferências internacionais. No entanto, a ativação dessa cooperação permanece
controversa devido à disseminação do crime e do seu desenvolvimento a todos os níveis
internacionais, o que levanta questões sobre o sucesso dos atuais mecanismos
internacionais para combater o crime organizado transnacional, as formas como o
aplicados e os obstáculos que limitam a sua eficácia. Torna-se necessário desenvolver
órgãos especializados para acompanhar o fenómeno do crime organizado e assegurar a
coordenação com autoridades afins.
Resultados
Os esforços para combater o cibercrime não são proporcionais à dimensão dos
recursos e técnicas das organizações criminosas.
A divergência dos sistemas políticos e legais conduz ao fracasso dos mecanismos de
cooperação internacional para combater o cibercrime.
As atuais convenções internacionais e regionais para combater o cibercrime são
desajustadas e completamente ineficazes.
A resposta ao cibercrime segue uma política não uniforme nos vários países
Recomendações
1) Criar agências especializadas para combater o cibercrime com o apoio das Nações
Unidas para formular uma teoria integrada que responda ao desenvolvimento
tecnológico e modernize os mecanismos de cooperação.
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2) Preencher a lacuna legislativa nas revistas digitais mediante a emissão de notas
explicativas da legislação, especialmente no campo do crime eletrónico, que
abranjam as regras substantivas e processuais.
3) Revisão do currículo e necessidade de incluir informações de TI e redes, para
reconhecer os seus aspetos positivos e riscos.
4) Obrigar os fornecedores de serviços de Internet a alocar parte do seu orçamento
para sensibilização e orientação, como usar a Internet com segurança e apoiar as
iniciativas da sociedade civil nesse sentido.
5) Planeamento científico para combater o crime informático e a necessidade dos
países adotarem uma política unificada para combater esse crime. A convergência
internacional é a única forma de combater o cibercrime e o crime organizado.
6) Expandir a cooperação árabe na área do combate ao cibercrime, como a Convenção
de Budapeste.
7) Atualizar a organização da segurança por todos os meios científicos e técnicos, a
fim de poder detetar e acompanhar o crime, através da formação de uma unidade
especializada para acompanhar os desenvolvimentos e formas de combatê-los.
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4. European Police Office website www.earopol.eu.in
5. International Criminal Police Organization website www.INTERPOL.int
6. Jordan Prevention of Terrorism Act No. 18 of 2014.
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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LEAST DEVELOPED COUNTRIES (LDC): POR UM ORÇAMENTO GLOBAL DE
CARBONO JUSTO ENTRE NAÇÕES
Gustavo Furini
gustavofurini@gmail.com
Aluno do Doutoramento em Relações Internacionais: Geopolítica e Geoeconomia na Universidade
Autónoma de Lisboa (Portugal). Geógrafo (Universidade Federal do Rio Grande do Sul); Mestre
em Gestão de Recursos Naturais e Desenvolvimento Local na Amazônia (UFPA); Investigador
Integrado no OBSERVARE Observatório de Relações Exteriores da Universidade Autónoma de
Lisboa.
Resumo
As alterações climáticas são um fenômeno reconhecido, monitorado e pesquisado por amplos
setores da comunidade científica por se apresentarem como um dos grandes desafios do
século XXI. Dentro deste vasto e transdisciplinar tema será discutido como os países menos
desenvolvidos (LDC) poderão se posicionar frente ao discurso hegemônico difundido pelos
países do centro nas negociações do clima, sobretudo em relação à mitigação de gases estufa.
Foi adotado o método indutivo a partir de estudo de caso, com recolha da informação em
fontes primárias e secundárias. Por meio do entendimento de emissões históricas, justiça
climática e orçamento global de carbono será debatido se os LDC realmente deverão consentir
com responsabilidades para todos, mesmo que diferenciadas, que possuem necessidades
urgentes de melhorarem seus índices de desenvolvimento, sobretudo em termos de PIB e
IDH. É defendido que os países do grupo LDC, cuja contribuição histórica de emissões é da
ordem de 0,4% do total, devem reivindicar, para já, aumento na participação do orçamento
global de carbono para fins de desenvolvimento económico e social.
Palavras chave
Alterações Climáticas; Emissões Históricas; Orçamento Global de Carbono; Justiça Climática;
Least Developed Countries (LDC)
Como citar este artigo
Furini, Gustavo (2019). "Least Developed Countries (LDC): por um orçamento global de
carbono justo entre nações". JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 10, N.º 1,
Maio-Outubro 2019. Consultado [online] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.1.6
Artigo recebido em 24 de Setembro de 2018 e aceite para publicação em 2 de Fevereiro
de 2019
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Least Developed Countries (LDC): por um orçamento global de carbono justo entre nações
Gustavo Furini
LEAST DEVELOPED COUNTRIES (LDC): POR UM ORÇAMENTO GLOBAL DE
CARBONO JUSTO ENTRE NAÇÕES
Gustavo Furini
Introdução
A questão ambiental é objeto de debate no cenário internacional mais de quatro
décadas pelos membros das Nações Unidas, com relevante destaque para a arquitetura
das negociações climáticas iniciadas a partir da Conferência do Rio de Janeiro em 1992,
também conhecida como ECO-92 (Bueno & Pascual, 2016). Tal ênfase baseia-se,
sobretudo, em função das evidências científicas do Intergovernmental Panel on Climate
Change (IPCC) que apontam um aumento gradativo na concentração de gases de efeito
estufa na atmosfera desde a segunda metade do século XIX (IPCC, 2013). A observação
confirma que fenômenos decorrentes das mudanças no clima estão a ocorrer, em
maior ou menor grau, em todo o planeta com potencial impacto nas economias e
sociedades de todas suas regiões (ibidem). Com base nas previsões e nos fatos
observados não se descarta a possibilidade de que no futuro venham a ocorrer tragédias
com dimensões globais, o que postula as alterações climáticas como um dos grandes
desafios do século XXI (Soromenho-Marques, 2012). Isso porque, como uma das
principais consequências, a alteração do sistema climático tem a capacidade de
incrementar as disparidades sociais em decorrência do aumento da pobreza, da fome,
da mobilidade humana forçada, de doenças, de desigualdades de gênero e de maior
dificuldade para ter acesso aos recursos naturais, fatores que acabam por limitar o
desenvolvimento sobretudo nos países mais pobres, os quais acabam por ser os mais
vulneráveis às alterações climáticas (IPCC, 2013).
A maior parte da comunidade científica e dos países membros que compõem a United
Nations Framework Convention on Climate Change (UNFCCC), Convenção-Quadro das
Nações Unidas que trata sobre a temática das alterações climáticas, consideram que o
uso intensivo de combustíveis fósseis, especialmente pelos pioneiros da revolução
industrial em Europa e nos Estados Unidos da América, é o fator principal para o
aquecimento global (Jönsson et al., 2012). Por conta dessa assimetria entre nações ricas
e pobres em relação às contribuições para o acúmulo de gases estufa ao longo do tempo,
as discussões no âmbito da UNFCCC utilizaram-se do fator histórico como critério para
definir o princípio das responsabilidades comuns, porém diferenciadas (Shue, 2015). A
partir deste entendimento os países ditos em desenvolvimento nunca possuíram metas
formais de redução de emissão estabelecidas, contudo, o falhanço nos objetivos por parte
dos países desenvolvidos quanto ao cumprimento das metas relativas ao primeiro (2005-
2012) e ao segundo (2013-2020) períodos do Tratado de Quioto
1
indicaram a
1
No decorrer do primeiro período de compromisso países industrializados constantes no Anexo B do Protocolo
do Quioto comprometeram-se em reduzir as emissões numa média de 5% em relação aos níveis de 1990.
Durante a Conferência das Partes (COP) realizada em Doha em dezembro de 2012 o Protocolo foi prorrogado
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necessidade de uma colaboração mais alargada entre nações (Bueno & Pascual, 2016).
Para que pudesse ser firmado o Acordo de Paris nos finais de 2015, dentre outras tantas
formalidades, todos os países membros da UNFCCC tiveram que enviar suas aspirações
de reduções para o período 2020-30, as Intended Nationally Determined Contribution
(INDC)”, com vistas a limitar até o final do século o aquecimento do planeta em no
máximo Celsius (Dion & Laurent, 2015). Embora as INDC estejam baseadas em
compromissos voluntários de redução de emissão, o Acordo de Paris é inovador ao propor
um novo arranjo nas negociações climáticas em nível internacional, visto que é apoiado
numa maior participação dos países que integram a UNFCCC para cumprimento de metas
de mitigação (Salinas, 2018; Bueno, 2017).
As Conferências das Partes, rodadas internacionais no âmbito da UNFCCC em que todos
membros participam, não ficam restritas à discussão técnica baseada em dados
científicos, cuja contribuição é imprescindível para o avanço das negociações (Dion &
Laurent, 2015). Estes encontros atingem seu auge quando os diálogos chegam ao nível
político, em que pese o pouco espaço para discussão de parâmetros sociais como os
defendidos pela justiça climática (ibidem). A justiça climática vai além da distribuição de
bens ou permissões ambientais entre nações, para os países do Sul tem caráter
imperativo com vistas a evitar o permanente processo de desenvolvimento desigual
(Fischer, 2015) e busca contrapor as políticas e medidas hegemônicas impostas aos
países da periferia pelos países do centro (Bond & Dorsey, 2010).
As negociações nas organizações multilaterais prometem reduzir a incerteza e aumentar
a previsibilidade de eventos futuros, com o objetivo de auxiliar todos aqueles que se
encontrarem em situação de dificuldade, contudo, via de regra as condições e decisões
são impostas pelas nações hegemônicas (Shadlen, 2003). Como mencionado, na
UNFCCC as conversações multilaterais para tratar e definir os possíveis quadros de
mitigação de gases levam em conta a responsabilidade histórica, mas há intensa
discussão para tentar reformular tal visão, seja a partir de cortes com base no fator per
capita, proposto pelos países em desenvolvidos, ou então a partir do perfil atual das
emissões totais como querem os países ricos (Parks & Roberts, 2008).
A responsabilidade histórica representa o princípio do poluidor-pagador e por mais que
seja protetiva aos que menos poluíram, pelo menos em teoria, por outro lado não
representou penalizações aos que historicamente mais emitiram gases estufa. A
abordagem per capita advoga pelo o princípio igualitário de que todos devem ter direitos
iguais aos bens públicos globais, incluindo a estabilidade atmosférica (Randalls, 2011).
Mas como parte das indústrias foram deslocadas do centro para a periferia nas últimas
décadas (Wallerstein, 2004) é preciso ter cuidado com esta abordagem que vem
aumentando a contribuição per capita dos países do Sul (Shue, 2015). E essa cautela
relativamente à migração de indústrias, sobretudo com o avanço da globalização no
século XXI, se reforça em função do discurso dos países ricos que defendem as emissões
totais atuais como parâmetro único para redução.
As diferentes perceções sobre justiça no âmbito do clima são construídas e percebidas,
em grande medida, pelas posições altamente desiguais que os países ocupam na
hierarquia global, materializadas pelo poder econômico e político que possuem (Randalls,
2011). A questão fundamental de ordem política das atuais negociações orbita em torno
para um segundo período de compromisso, de 2013 a 2020, no qual os países desenvolvidos se
comprometeram em reduzir as emissões em pelo menos 18% abaixo dos níveis de 1990 (UNFCCC, 2018).
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de quem deverá fazer cortes e quem poderá continuar a emitir, sendo que o estoque de
gases estufa acumulado na atmosfera é, maioritariamente, responsabilidade de países
ricos e industrializados (Parks & Roberts, 2008). A noção da existência de um orçamento
global de carbono, em que parte da cota já foi utilizada ao longo do tempo e outra está
comprometida para que possam ser cumpridos os objetivos dos acordos climáticos
internacionais, é fundamental para o debate das alterações climáticas.
Dados sobre a emissão de gases estufa demonstram uma clara a dissonância entre
emissões ao longo do tempo entre países pobres e ricos, assim como também é fato que
há crescente participação nas emissões dos países em desenvolvimento, principalmente
dos que passaram pelo processo de industrialização nas últimas décadas, exemplo dos
países que compõem o grupo dos BASIC
2
. Atualmente, é um desafio para as nações em
desenvolvimento lidarem com o tema das alterações climáticas emvel interno, já que
as atenções destes governos ainda estão voltadas à garantia de melhores condições
econômicas e sociais para sua população. O discurso no qual todos países devem assumir
medidas para frear emissões, incluindo aqueles que passam por sérias dificuldades para
garantir condições e direitos básicos à população, como os Least Developed Countries
(LDC)
3
, não parece factível, ao menos a curto prazo.
Diante do exposto, a pergunta norteadora deste ensaio é: qual postura os países LDC
devem adotar frente o orçamento global de carbono e sob que justificativa? O documento
foi elaborado a partir de (i) revisão bibliográfica de livros, publicações, periódicos e
revistas científicas e (ii) coleta, recorte, sistematização e análise de dados oficiais
4
qualitativos e quantitativos disponíveis na rede mundial de computadores para
elaboração de gráficos e figuras de própria autoria. Para além desta introdução, o texto
conta com três seções para abordagem de quadros teóricos envolvendo: orçamento
global de carbono, responsabilidades históricas e justiça climática. Encerrando o
documento a discussão envolvendo a justiça climática para os LDC e as considerações
finais.
ALTERAÇÕES CLIMÁTICAS E O ORÇAMENTO GLOBAL DE CARBONO
Predomina na comunidade científica o consenso de que as atividades humanas causam
interferência no balanço energético do planeta em decorrência da contínua e crescente
emissão de gases estufa, sendo que o processo de aquecimento global se evidencia por
meio da análise de dados coletados na atmosfera, na terra, no oceano e na criosfera
(IPCC, 2013). A partir da análise de dados coletados em diversas estações espalhadas
pelo planeta é possível constatar a variação na temperatura das superfícies terrestres e
oceânicas e, como consequência do aumento na temperatura média global, registram-se
taxas maiores de: derretimento de geleiras e calotas polares, subida do nível e
acidificação dos oceanos, aumento das ondas de calor e das áreas propensas à
desertificação, maior intensidade e constância de eventos climáticos extremos (ibidem).
2
Grupo de países formados por Brasil, África do Sul, Índia e China.
3
Designação dada pela Organização das Nações Unidas ao grupo formado por países de baixa renda que
enfrentam severos impedimentos estruturais para o desenvolvimento sustentável e são altamente
vulneráveis aos choques econômicos e ambientais em função do baixo capital humano. Acesso em
10/09/2018. Disponível em https://www.un.org/development/desa/dpad/least-developed-country-
category.html.
4
Fontes de dados primários: Banco Mundial, UNFCCC e United Nations Development Programme (UNDP).
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Desde a década de 1990 os esforços da UNFCCC estiveram centrados em mitigar as
emissões de gases causadores do efeito estufa, tendo em vista o objetivo final da
UNFCCC de estabilizar as concentrações atmosféricas desses gases para evitar que as
ações antrópicas interfiram de maneira perigosa no sistema climático (Matthews et al.,
2012). Em decorrência das pesquisas de modelagem climática, desenvolvidas com a
intenção de estimar os esforços de redução de emissões para cumprimento de metas de
emissão, desenvolveu-se a ideia que os futuros cenários devem ser avaliados tendo como
premissa um orçamento global de carbono (Collins et al. 2013 apud Gignac & Matthews,
2015; IPCC, 2013). Tal orçamento foi estruturado a partir da compreensão que as
alterações no clima estão diretamente relacionadas às emissões cumulativas de carbono
ao longo do tempo, ou seja, pela soma das emissões históricas com as atuais, mais as
futuras (Matthews et al., 2012). Desta forma é possível determinar a temperatura global
ao relacioná-la com a quantidade de emissões cumulativas produzidas num dado período
(Gignac & Matthews, 2015). Para limitar o aquecimento do planeta num máximo de
Celsius até o ano 2100 é preciso considerar um orçamento global de carbono da ordem
de 1.000 PgC
5
, ou 1.000 Gt, sendo que até 2011 cerca de metade deste orçamento
estava comprometido (IPCC, 2013).
O orçamento global de carbono dado pela acumulação de gases estufa apresenta-se
como uma alternativa para planear e negociar a agenda climática (Matthews et al.,
2012). A partir da concordância entre a comunidade científica acerca das quantidades e
dos responsáveis pelas emissões cumulativas, o passo seguinte é pactuar os esforços de
mitigação tendo como premissa a divisão do orçamento global de carbono (Gignac &
Matthews, 2015). Não está definido até o momento qual serão os critérios adotados na
repartição das emissões futuras, mas existem algumas propostas assentes em três
pilares: uma nos dados atuais sobre emissões, outra nas emissões históricas e uma
terceira baseada na divisão per capita (ibidem). Critérios baseados nas emissões
históricas e per capita salvaguardam os países em desenvolvimento, caso do grupo LDC,
enquanto decisões baseadas nas emissões atuais protegerão mais os interesses dos
países ricos tendo em conta que boa parte da indústria global foi, e ainda continua a ser,
deslocada do centro para a periferia.
AS RESPONSABILIDADES HISTÓRICAS
Em função das suas características físico-químicas os gases causadores do efeito estufa
têm um elevado tempo de permanência na atmosfera, deste modo, podem levar
centenas de anos até serem naturalmente dissipados (IPCC, 2013). Tendo isso em conta,
uma questão central nas discussões em torno das mudanças climáticas é se as nações
que poluíram no passado devem ser responsabilizadas pelas emissões que ainda estão
na atmosfera, para então, assumirem os custos das ações futuras de mitigação (Hayner
& Weisbach, 2016). O que está em causa é a equidade na partilha de responsabilidade
das emissões, ou responsabilidade histórica, isto é, a responsabilidade moral e jurídica
por emissões passadas, cuja discussão possui caráter fundamental ao contrário do que
buscam pregar alguns governos (Shue, 2015).
5
De acordo com a tabela do IPCC
1P (Peta) = 1015. Acesso em 20/09/2018. Disponível em
http://www.ipcc.ch/ipccreports/tar/wg3/ index.php?idp=477.
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atualmente um acalorado debate entre aqueles que entendem que as emissões
históricas devem ser enquadradas como apropriação indevida de um bem comum, no
caso a atmosfera, e assim aplicar os preceitos da justiça climática, enquanto outros
refutam tal teoria de apropriação, defendendo que no passado não se tinha conhecimento
dos potenciais danos causados, não cabendo imputação de má-fé (Schüssler, 2011) sob
o argumento da "excusable ignorance" sobre os atos (Bell, 2011). Esta última corrente
defende que os princípios da justiça distributiva ou corretiva não devem ser utilizados
nas negociações do clima para tentar resolver problemas de repartição injusta de riqueza,
devendo deixar tal tarefa a cargo do mercado (Bernstein, 2016). Do lado oposto, a justiça
climática busca contrapor a formulação de políticas elaboradas pelos países do Norte por
não acreditar nas promessas do mercado para solucionar o problema, as quais
interessam apenas em manter o status quo da hegemonia e da relação Centro-Periferia
(Fischer, 2015; Bond & Dorsey, 2010).
Mesmo que os países poluidores não tivessem a intenção de cometer danos ao ambiente,
tanto as gerações presentes quanto as futuras acabam sendo beneficiadas das ões
pregressas tomadas por sua nação, uma vez que esta é uma entidade contínua da qual
os indivíduos fazem parte (Shue, 2015). Uma nação possui "continuing structures and
institutions; past, present, and future members are primary beneficiaries of these on-
going national formations and practices" (Shue, 2015: 14). O fato de um cidadão nascer
numa nação industrializada e rica torna sua vida potencialmente mais saudável e repleta
de oportunidades e de opções de escolha, diferentemente do que ocorre aos que nascem
numa nação não industrializada e pobre, cujos indivíduos passam por diversas privações
que afetam diretamente suas liberdades de escolha (Sen, 2001).
Em função do bônus obtido pelo pioneirismo na industrialização a justiça referente ao
ônus dos custos, atuais e futuros, de mitigação de gases estufa deverá estar assente em
3 princípios: (i) encargos desiguais, (ii) maior capacidade de pagamento e (iii) garantia
do nimo (Shue, 2014: 13-14). Quanto ao primeiro parte-se do entendimento que
enquanto umas partes obtiveram vantagem injusta sobre outras no passado, ao impor
custos ambientais sem consentimento prévio, aqueles que foram unilateralmente
colocados em desvantagem têm o direito de exigir que, no futuro, as responsabilidades
sejam desiguais na medida da vantagem injusta previamente tomada, para que assim,
possa ser restaurada a igualdade; a maior capacidade de pagamento cabe aos mais
ricos, pois aqueles que detêm as maiores condições financeiras devem dar as maiores
contribuições e; a garantia do mínimo refere-se ao fator humano, pois quando algumas
pessoas o têm acesso a condições básicas para uma vida digna, e em contrapartida
outras pessoas possuem muito mais do que o suficiente, é injusto não garantir a todos
pelo menos um nimo adequado embora alguns ainda terão mais do que outros
(ibidem).
O FOCO NA JUSTIÇA CLIMÁTICA
É importante destacar que o discurso da corrente hegemônica que defende os países
ricos costuma prevalecer (Shadlen, 2003), deste modo, no que concerne as alterações
climáticas é comum que os países do centro tentem se eximir de quaisquer
responsabilidades sobre as emissões passadas valendo-se do argumento da ignorância
no momento da ação. Para tanto, argumentam que somente pouco mais de três
décadas é que foram realizadas as primeiras descobertas sobre os efeitos nocivos dos
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gases estufa lançados pelo homem na atmosfera (Bell, 2011). Entretanto, a apologia à
ignorância dos riscos que alegam os países do Norte é questionável.
E é questionável porque o conhecimento e estudos sobre os efeitos da interferência
antrópica no clima eram objeto de investigação por Svante Arrhenius nos finais do
século XIX (Rodhe et al., 1997). O cientista sueco foi o primeiro a estabelecer uma ligação
quantitativa entre as mudanças na concentração de CO
2
provocadas pela industrialização
e os possíveis impactos no clima, sendo que em abril de 1896 publicou um paper na
britânica Philosophical Magazine com os resultados obtidos na altura (Uppenbrink, 1996).
Para mais desde os anos 1950, logo após a segunda grande guerra, é utilizada uma
sofisticada estação de medição de CO
2
na ilha de Mauna Loa, localizada no Havaí,
responsável por coletar, registar e monitorar de maneira contínua os dados relacionados
às mudanças de concentração de gases na atmosfera (NOAA)
6
. ainda estudo dos
testemunhos de gelo coletados no continente antártico a partir da década de 1960, que
provam a tendência de aumento acentuado nos níveis de CO
2
a partir da propagação da
atividade industrial nos países do Norte no século XIX (Lüthi et al., 2008).
A justiça climática surge como movimento de reivindicação política e social a partir do
desdobramento da justiça ambiental e da compreensão que os impactos das alterações
no clima afetam de maneira desigual os distintos grupos sociais, sendo os
economicamente menos favorecidos os mais vulneráveis (Newell & Mulvaney, 2013). A
questão climática foi capaz de reunir atores com ou sem histórico de atuação relacionado
às questões ambientais dada sua abrangência global, sendo que a justiça climática tem
justamente na esfera internacional o seu principal palco de protestação (Milanez &
Fonseca, 2011). Ademais, a falta da habilidade da elite global para resolver os grandes
problemas de viés ambiental, social e económico, o trido desenvolvimento sustentável
segundo o Relatório Brundtland de 1987, gerou demanda para incorporação de outros
elementos e dimensões à justiça climática como: ética, moral, filosofia, ideologia,
estratégias e táticas (Bond, 2011).
O termo justiça climática, ou ainda justiça distributiva, entrou nas discussões da UNFCCC
através de um esforço concertado por parte dos países do Sul com base nas diferentes
responsabilidades históricas (Fischer, 2015), uma vez que estes apresentam elevado
grau de vulnerabilidade social, econômica e ambiental, bem como, limitada capacidade
de adaptação frente aos impactos do clima (IPCC, 2013). Dentre as posições políticas e
ideológicas da justiça climática destaca-se aquela que defende uma maior participação
no orçamento global de carbono para os países da periferia, tendo em consideração a
necessidade premente de desenvolvimento por parte destes (Fischer, 2015; Bond,
2011).
JUSTIÇA CLIMÁTICA AOS LDC
Os países LDC
7
constituem um grupo específico de países em vias de desenvolvimento
caracterizados por um baixo nível de renda, bem como uma série de impedimentos
6
A National Oceanic and Atmospheric Administration (NOAA) é agência científica dos EUA que se encarrega
do monitoramento das condições dos oceanos e atmosfera. Acesso em 15/09/2018. Disponível em
https://www.esrl.noaa.gov/gmd/obop/mlo/.
7
Os 47 países do grupo LDC: Afeganistão, Angola, Bangladesh, Benin, Burquina Faso, Burundi, Butão,
Camboja, Chade, Comores, Djibuti, Eritréia, Etiópia, Gâmbia, Guiné, Guiné-Bissau, Haiti, Iêmen, Ilhas
Salomão, Kiribati, Laos, Lesoto, Libéria, Moçambique, Madagascar, Malaui, Mali, Mauritânia, Mianmar,
Nepal, Níger, Rep. Centro-Africana, Rep. Democrática do Congo, Ruanda, São Tomé e Príncipe, Senegal,
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estruturais que prejudicam o crescimento econômico e o desenvolvimento social, que
demandam medidas especiais para tratar com os desafios que enfrentam (UN/DESA,
2018). Atualmente os países do grupo LDC contam com cerca de um bilhão de habitantes,
mas contribuíram com apenas 0,4% do volume total de gases acumulados na atmosfera
nas últimas 5 décadas
8
(Figura 1), enquanto os países com alto rendimento
9
contribuíram
com mais da metade das emissões no mesmo período. Deste modo, os LDC, tomando
como base as emissões históricas (Randalls, 2011; Bond & Dorsey, 2010) e pressupostos
contidos na justiça climática (Fischer, 2015; Bond, 2011) parecem ter o direito legítimo
de reivindicar um aumento substantivo de sua participação no orçamento global de
carbono (BASIC Experts 2011). Se analisarmos o período de um século e meio, entre
1850-2000, a discrepância entre emissões de países do Norte e Sul é ainda mais abissal,
pois estima-se que neste período 79% das emissões globais tenham sido lançadas na
atmosfera pelos países ricos (ibidem).
Figura 1. Emissão acumulada de CO
2
valores totais e percentuais (1960-2014).
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados do Banco Mundial
Os países LDC sob a argumentação de que todos merecem uma vida digna (Shue, 2014),
mesmo que a custa de aumento de suas emissões num primeiro momento, devem
reforçar o pleito para uma maior participação do orçamento global de carbono
envolvendo emissões atuais e futuras. É certo que, do ponto de vista da sustentabilidade
global, as emissões devem ser reduzidas pela humanidade como um todo (BASIC
Experts, 2011), cabendo aos países do centro arcar com os maiores custos em função
da dívida ecológica histórica com o clima (Parks & Roberts, 2008).
Considerando que os LDC têm uma tendência histórica de emitirem apenas 0,4% do total
de gases estufa, se estes aumentassem em 10 vezes suas emissões, por exemplo,
bastaria que o resto do mundo reduzisse suas emissões para 46% do total atual, e assim
as emissões globais cairiam pela metade. Parece legítimo, sob os preceitos da justiça
Serra Leoa, Somália, Sudão do Sul, Sudão, Timor-Leste, Togo, Tuvalu, Uganda, Tanzânia, Vanuatu e
Zâmbia. Acesso em 12/09/2018. Disponível em https://www.un.org/development/desa/dpad/least-
developed-country-category/LDCs-at-a-glance.html.
8
Dados disponíveis em https://data.worldbank.org/indicator/EN.ATM.GHGT.KT.CE. Acesso em 15/08/2018.
9
O grupo dos 78 países classificados pelo Banco Mundial como de Alto Rendimento, renda per capita anual
superior a 12.236 USD, que é majoritariamente representado por países ricos da América do Norte e Europa.
0
10000000
20000000
30000000
40000000
CO2 ( k ton )
Emissão de CO2 Acumulada na Atmosfera
(1960-2014)
Mundo (100%) Alto Rendimento (51,2%)
BASIC (20,2%) LDC (0,4%)
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climática, que os países do centro diminuam suas emissões a ponto de suportar que os
LDC emitam mais, e assim, possam melhorar seus índices de PIB (Produto Interno Bruto)
e IDH (Índice de Desenvolvimento Humano). Não se trata do simples repasse do direito
de poluir dado aos LDC, mas do recebimento de uma justa cota do orçamento global de
carbono (Pan & Chen, 2010).
A respeito das reduções futuras alguns países em desenvolvimento, especialmente os
que constituem o grupo dos BASIC, indicam que irão negociar alguma participação em
função da tendência de aumento a partir dos anos 1990 (BASIC Experts, 2011), mas
cabe destacar que muito do que é emitido deve-se ao movimento migratório de indústrias
do centro para periferia (Parks & Roberts, 2008). Ainda sobre os BASIC é bom frisar que
o grupo tem apresentado uma postura propositiva nas rodadas da UNFCCC,
demonstrando que seus integrantes almejam assumir papel de protagonismo nas
negociações climáticas (Hallding et al., 2013). Entretanto, dentro de grupo dos países
em desenvolvimento o grupo dos BASIC apresenta capacidades superiores aos LDC em
diversos aspetos, inclusive, no que diz respeito a capacidade econômica.
Pela justiça climática e com foco numa maior participação no orçamento global de
carbono para os membros do grupo dos LDC, estes deverão continuar perseguindo como
meta prioritária o desenvolvimento econômico e social ao invés de investirem os parcos
recursos em ações de mitigação, ao menos por hora. A participação de todos, mesmo
que de forma diferenciada e voluntária, parece não se justificar frente à necessidade
urgente de melhorar as condições básicas de vida das populações desses países. Os
baixos valores médios de IDH nos países do grupo LDC, historicamente sempre abaixo
de 0,5 numa escala ótima junto ao 1, reforçam tal necessidade
10
(Figura 2).
Figura 2. Evolução do IDH médio do grupo LDC (1990-2015)
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados da UNDP.
Para além do IDH, os LDC necessitam ampliar os níveis de PIB de forma a fomentar os
investimentos blicos no combate às carências sociais. Para ter-se ideia da discrepância
10
Dados disponíveis em: http://hdr.undp.org/en/content/human-development-index-hdi. Acesso em
25/08/2018.
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que existe entre valores de PIB no cenário internacional, os valores médios de PIB per
capita dos LDC representaram apenas 3% dos valores médios obtidos nos países com
alto rendimento ao longo das últimas 3 décadas
11
(Figura 3).
Figura 3. A) PIB médio per capita dos países com Alto Rendimento e BASIC (1960-2016) e LDC
(1985-2016). B) PIB per capita do grupo LDC (1985-2016).
Fonte: Elaborado pelo autor a partir de dados do Banco Mundial
Uma transição para uma economia de baixo carbono requer investimentos que os países
da periferia não possuem no momento, portanto, qualquer ação que requeira a aplicação
de novas tecnologias deveria ser financiada pelo centro. Em 2015, durante os
preparativos para o Acordo de Paris, todos os países tiveram que enviar para a UNFCCC
suas intenções de redução para o horizonte 2020-30, incluindo os LDC (Figura 4). Por
mais que todos do grupo LDC declarem necessidade de apoio externo para medidas de
mitigação, não parece razoável que 23 países, cerca de metade, busquem enquadrar-se
no discurso hegemônico do Norte e aceitem compartilhar responsabilidades ao investir
parte do estreito e comprometido orçamento público em ações de mitigação para
combater a crise climática originada pelos países do centro
12
.
11
Dados disponíveis em: https://data.worldbank.org/indicator/NY.GDP.MKTP.CD. Acesso em 20/08/2018.
12
Dados disponíveis em: https://www4.unfccc.int/sites/submissions/INDC/Submission%20Pages/
submissions.aspx. Acesso em 01/08/2018.
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Figura 4. Intended Nationally Determined Contribution (INDC) no âmbito da UNFCCC.
Fonte: Elaborado e sistematizado pelo autor com base na análise das INDC do grupo LDC.
Os dados apresentados na Figura 4 mostram que os países em desenvolvimento estão
preocupados e comprometidos com a sustentabilidade face sua vulnerabilidade às
nuances do clima. O multilateralismo quase sempre tem um preço elevado para a
periferia (Shadlen, 2003) e a eterna dependência faz com que estes países aceitem
qualquer promessa de ajuda. Os países da periferia não deveriam se posicionar de modo
a sacrificar sua soberania ao se comprometerem com as decisões de instituições
multilaterais, sendo que os países do centro nem sequer cumprem sua parte (ibidem).
Esta realidade também parece oportunamente aplicável a UNFCCC, em que países
periféricos, aceitando o discurso hegemônico parecem cumprir bem seu papel de
figurante ao manifestarem boa intenção em contribuir para um problema que não
causaram. Sem contar que são justamente os países pobres os mais vulneráveis aos
impactos das alterações climáticas (IPCC, 2013).
Como resposta aos desafios causados pelas mudanças do clima os países ricos se
comprometeram em estabelecer um fundo climático no o âmbito da UNFCCC, contudo, o
mesmo parece não estar a funcionar conforme o esperado. Durante as Conferências das
Partes de 2009 e 2010, realizadas em Copenhague e Cancun, os países do Norte
concordaram formalmente em mobilizar conjuntamente cerca de 100 bilhões de dólares
ao ano até 2020. Para tal, foi criado o Fundo Verde para o Clima, iniciativa para auxiliar
países em desenvolvimento na mitigação e adaptação às alterações climáticas
13
.
Entretanto, as doações feitas estão muito longe do prometido. De acordo com dados
13
Acesso em 15/09/2018. Disponível em https://www.greenclimate.fund
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oficiais do Fundo
14
arrecadou-se no período de 2010 a 2017 pouco mais de 10% do que
fora prometido para um único ano.
Considerações finais
Sendo a atmosfera um recurso natural público de toda humanidade (Salinas, 2018;
Randalls, 2011), a alocação desigual do orçamento global de carbono não pode servir de
veículo para restringir o desenvolvimento dos países da periferia (Teng et al., 2011). Os
gases acumulados na atmosfera, obra maioritariamente dos países desenvolvidos, levou
ao aquecimento global e nada mais justo que a responsabilidade recaia agora para o
centro (Mesík, 2016). Ao invés de consentir com o discurso hegemônico do
comprometimento de todos com a mitigação desde já, os países da periferia precisam
garantir, num primeiro momento, melhores condições de vida para sua população. A
partir do prisma da justiça climática, a imposição de lógicas injustas para a periferia deve
ser ignorada pelo grupo dos LDC, e estes devem exigir que os países desenvolvidos
adotem modelos menos poluentes de forma urgente para resolver a crise climática
gerada pelos países do centro.
É nosso entendimento que durante as negociações do orçamento global de carbono os
LDC reivindiquem a ampliação em várias vezes de sua cota, visto que sua contribuição
ao longo de quase seis décadas, desde 1960 até o presente, é de apenas 0,4% do total
gerado e acumulado na atmosfera. Os LDC deveriam abandonar a postura de
consentimento do discurso hegemônico das negociações da UNFCCC e não tomar ações
de mitigação a curto e médio prazo. É certo que as emissões globais precisam ser
reduzidas como um todo, mas nos parece que ainda não chegou o momento dos LDC
ajudarem a pagar essa conta. Isso porque o aumento na cota do orçamento global de
carbono servirá para auxiliar os LDC no arranque do desenvolvimento econômico e social
que tanto precisam, que as tecnologias tradicionais, embora carbono intensivas, ainda
são economicamente mais viáveis. Exigir que nesses países o desenvolvimento social e
econômico se dê, desde já, a partir de tecnologias limpas parece fugir ao bom senso e
ao realizável na prática.
Defende-se aqui, ainda, que os LDC ao terem participação alargada no orçamento global
de carbono partilhem a cota a qual tem direito entre seus integrantes, ou seja, em função
da heterogeneidade do grupo, se algum país necessitar emitir mais do que previsto é
recomendado que sejam feitas parcerias bi ou multilaterais entre os membros do próprio
LDC. Ademais, parcerias Sul-Sul com outros países da periferia ou da semiperiferia são
bem-vindas para evitar a perpetuação do processo de dependência do Norte. Mas se os
países ricos estiverem dispostos a instalar tecnologias mais limpas nos países LDC a
partir de investimentos totalmente financiados, subsidiados e pago pelo Norte é
obviamente interessante para fins de desenvolvimento sustentável. Deverão ser evitados
acordos em que o país recetor seja obrigado contratualmente a suportar parte dos
investimentos e, ainda, ter que pagar juros elevados da parte financiada pelo centro.
Ademais, o grupo dos LDC não deveria deixar-se seduzir pelo discurso hegemônico do
centro e permitir que parcela do orçamento global de carbono que cabe aos LDC seja
comprometido por meio da exportação de emissões do centro para a periferia, através
14
Acesso em 15/09/2018. Disponível em
https://www.greenclimate.fund/documents/20182/24868/Status_of_ Pledges.pdf
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da implantação de fábricas poluentes. Esse movimento migratório Centro-Periferia de
gases estufa sob o pretexto de gerar emprego, renda e desenvolvimento local, tem sido
muito comum na relação com a semiperiferia, que acabou por se tornar a locomotiva
fabril do sistema-mundo. Indústrias limpas podem ser exportadas, desde que instaladas
respeitando as normas ambientais, pagando salários dignos e gerando receita ao país
recetor a partir do pagamento integral de impostos. Os pioneiros dessas tecnologias
devem ser os ricos que, ao passo que as desenvolvem e baixam seu custo, poderão então
fomentar sua utilização nos países mais pobres do planeta.
Referências bibliográficas
BASIC Experts (2011). Equitable access to sustainable development: Contribution to the
body of scientific knowledge. BASIC expert group: Beijing, Brasilia, Cape Town and
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O PAPEL DA POLÍTICA E DO AMBIENTE INSTITUCIONAL NO
EMPREENDEDORISMO: EVIDÊNCIA EMPÍRICA DE MOÇAMBIQUE
Renato Pereira
rpereira@autonoma.pt
Investigador Integrado, OBSERVARE, Universidade Autónoma de Lisboa (UAL, Portugal).
Professor Associado da UAL. Professor convidado do ISCTE-IUL. Doutorado em Ciências da
Gestão pela Université Paris Dauphine.
Redento Maia
Investigador de pós-doutoramento, OBSERVARE, Universidade Autónoma de Lisboa. Professor
Catedrático da Faculdade de Economia da Universidade Agostinho Neto (Angola).
Doutorado em Economia pela Universidade de Economia de Sófia (Bulgária).
Resumo
Este trabalho investiga a relação entre o ambiente político e institucional e o desenvolvimento
do empreendedorismo em Moçambique. Com base numa revisão da literatura e com recurso
a dados empíricos recolhidos em entrevistas a 10 pessoas que desempenham funções
diferentes com impacto no cenário empresarial do país, os resultados apoiam a teoria
existente e sugerem que este país africano ainda tem um longo caminho a percorrer na
articulação entre a ação governamental e o desenvolvimento empresarial.
Palavras chave
Estado, Política, Empreendedorismo, Moçambique, África
Como citar este artigo
Pereira, R; Maia, R (2019). "O papel da política e do ambiente institucional no
empreendedorismo: evidência empírica de Moçambique". JANUS.NET e-journal of
International Relations, Vol. 10, N.º 1, Maio-Outubro 2019. Consultado [online] em data da
última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.1.7
Artigo recebido em 17 de Outubro de 2018 e aceite para publicação em 4 de Fevereiro
de 2019
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O papel da política e do ambiente institucional no empreendedorismo: evidência empírica de Moçambique
Renato Pereira, Redento Maia
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O PAPEL DA POLÍTICA E DO AMBIENTE INSTITUCIONAL NO
EMPREENDEDORISMO: EVIDÊNCIA EMPÍRICA DE MOÇAMBIQUE
Renato Pereira
Redento Maia
Introdução
O papel desempenhado pelo Estado, autoridades locais, governos, instituições e políticas
públicas sobre o desenvolvimento do empreendedorismo tem sido investigado por
estudiosos de diferentes áreas das ciências sociais.
No caso de África, compreender este tópico é de importância fundamental devido à
relação testada entre empreendedorismo e crescimento económico no continente (por
exemplo, Adusei, 2016) e o baixo nível de desenvolvimento económico em muitos países
africanos.
Alguns dos elementos-chave que relacionam a ação do Estadocom o empreendedorismo
são o ambiente institucional fornecido pelos governos, onde a burocracia desempenha
um papel desastroso, mas também o custo inicial, a falta de transparência das taxas
públicas, a inexistência de investimento em capital humano, a ausência de coordenação
entre formuladores de políticas governamentais e os funcionários públicos que
implementam políticas, e a suspeita/medo que os políticos sentem dos empresários,
entre outros fatores.
O objetivo deste trabalho é explorar empiricamente as principais relações identificadas
na literatura num dos países menos desenvolvidos de África, contribuindo assim para
avançar o nosso conhecimento sobre empreendedorismo e o papel do Estado em
Moçambique.
1. Empreendedorismo e política em África
1.1. Empreendedorismo, desenvolvimento económico e políticas públicas
Os governos de todo o mundo têm recorrido ao desenvolvimento do empreendedorismo
como resposta a uma das questões económicas que mais desafios coloca a qualquer
regime democrático: o desemprego (por exemplo, Mehari & Belay, 2017). Por causa
disso, os economistas têm testado extensivamente a relação entre empreendedorismo e
crescimento económico, o que constituiu uma base sólida para o aconselhamento de
governos e formuladores de políticas sobre o que podem e devem fazer a esse respeito.
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Num artigo muito provocador, Shane (2009) aponta dois elementos muito importantes
para o debate sobre o assunto:
(i) os países com a maior percentagem de empresários entre a população o países
pobres, não países ricos; e
(ii) (ii) apenas uma pequena percentagem de todas as startups, as designadas
‘gazelas’, têm realmente um impacto significativo na criação de emprego e riqueza.
Examinemos estas duas hipóteses testadas. Uma evidência económica marcante
é que quando o vel de educação das pessoas aumenta, e consequentemente os
seus salários, o custo da oportunidade de deixar o mercado de trabalho aumenta e
a motivação para correr o risco de começar um novo negócio diminui. Quando o
desemprego sobe, muitas pessoas sentem-se pressionadas para iniciar um negócio
porque não têm outra forma de ganhar a vida ou porque os governos lhes oferecem
incentivos e benefícios nesse sentido. Este facto conduz a um aumento significativo
da atividade empresarial no mercado, assente em empresários mal preparados com
um pequeno potencial de criação de empregos lucrativos, e a um enorme desvio
de recursos financeiros que poderiam ser utilizados para desenvolver
empreendedorismo efetivo através de instrumentos apropriados, como fundos de
capital de risco.
Mthanti & Ojah (2017) realizaram igualmente uma investigação económica interessante
sobre empreendedorismo. A orientação empresarial é importante para o crescimento
económico, não apenas para a atividade empresarial. Os governos devem,
prioritariamente, atrair projetos orientados para o empreendedorismo e empresários
orientados para o empreendedorismo. Os autores recordam a existência de investigação
significativa que apoia as causas políticas e institucionais com vista à redução da pobreza
em África, mas poucos estudos abordam o impacto real do empreendedorismo nesta
questão.
Naudé (2013) tinha referido que a política deve concentrar-se em encorajar a
capacidade empreendedora em vez da atividade empreendedora. ‘Melhorar a qualidade
da capacidade empreendedora significa não melhorar as competências e a educação
dos empresários, o seu capital humano, mas também concentrar-se nas capacidades
inovadoras dos empresários. O empreendedorismo inovador é o mais desejável para o
crescimento. A política de inovação deve, portanto, ser um foco central da promoção do
empreendedorismo nos países em desenvolvimento, assim como nas economias
avançadas. Os empreendedores nos países em desenvolvimento tendem muito mais à
inovação do que é frequentemente reconhecido na literatura ou pelos formuladores de
políticas’.
Embora demore algum tempo até que as políticas de inovação e investimento de capital
produzam impacto relevante no crescimento económico em África, a formação, a
aquisição de competências, a partilha do conhecimento, a facilidade de acesso ao capital,
o desenvolvimento de infraestruturas, especialmente a nível de telecomunicações, e
outras que conduzam ao aumento de patentes, são fatores que ajudam a ultrapassar
este desafio (Ojeaga, 2015).
A ligação entre o empreendedorismo inovador e o acesso à educação e gastos com
formação também foi confirmada por Robson et al (2009). Surpreendentemente, esta
investigação revela que os projetos mais antigos o mais inovadores do que os mais
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recentes e os mercados mais consolidados também o mais propensos a promover a
inovação do que os novos mercados, enfatizando a importância das variáveis
institucionais para o empreendedorismo orientado paras as oportunidades.
Schillo et al (2016) também confirmam a importância das variáveis institucionais para o
empreendedorismo. Entre as quatro dimensões consideradas, a regulamentação pesa
menos que as dimensões normativa, cognitiva e condutora.
Outra pesquisa económica interessante (Islam, 2015) revelou que a atividade
empreendedora e a dimensão do governo se correlacionam negativamente, o que parece
ser um proxy interessante sobre a forma como muitos governos africanos entendem o
empreendedorismo.
Juma et al (2017) resumiram o papel do governo (e órgãos públicos) no
empreendedorismo: facilitar (ou bloquear) o desenvolvimento empresarial através de
infraestruturas legais, desenvolvimento de capital humano e concessão de facilidades de
financiamento.
Kiss et al (2012) apontam o difícil acesso ao capital, a regulamentação governamental
inconsistente e a indisponibilidade de locais de negócios como questões em que o
governo poderia contribuir positivamente em países como o Quénia ou o Gana. Em países
pouco desenvolvidos com deficiências institucionais significativas, os empreendedores
não contam com o apoio do governo para transpor os obstáculos ao negócio.
Ao analisar a governança blica e os efeitos relacionados com a economia, Asongu &
Nwachukwu (2016) destacam três conceitos gerais:
(i) político (voz e responsabilidade, e estabilidade política/ausência de violência),
(ii) (ii) económico (eficácia do governo e qualidade da regulamentação), e
(iii) (iii) institucional (controlo da corrupção e estado de direito).
O modelo conceptual de promoção do desenvolvimento empreendedor em série de
Amankwah-Amoah (2018) coloca o governo como um fator exógeno, com impacto a dois
níveis:
(i) política governamental (restrições regulamentares); e
(ii) (ii) barreiras governamentais.
Baseando-se no estudo de caso do Gana, o autor refere que o período de 30 anos após
a independência, alcançada em 1957, foi caracterizado por políticas ativas para suprimir
o empreendedorismo, porque os empreendedores eram frequentemente considerados
‘potenciais ameaças políticas’. Portanto, fomentou-se uma política de investimento
estrangeiro representado por multinacionais ocidentais. Depois disso, houve uma
mudança em direção a um ambiente regulamentar simpático para com as pequenas
empresas e empresários autóctones, mas que o foi exatamente apoiado por uma ajuda
governamental apropriada, recursos financeiros e condições regulamentares realmente
favoráveis. Esta investigação refere o escasso apoio público ao desenvolvimento de
capacidades de gestão e competências empreendedoras até ao início deste século.
Consequentemente, as empresas locais não adquiriram confiança nem capacidades para
atrair a atenção dos investidores. As instituições encaram os projetos de
empreendedorismo com suspeita, por terem ‘proprietários estrangeiros’ e empresários
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‘corruptos’, ‘fraudulentos’ e ‘trapaceiros’. A burocracia do setor blico é uma questão
adicional. Combinados, esses fatores reduzem as hipóteses de obter uma atividade
empreendedora positiva. Sugere-se que o governo desenvolva políticas para
destigmatizar o insucesso empresarial entre os empresários locais e promover as
recuperações. A substanciação dos investimentos blicos em ‘desenvolvimento de
capital humano’, ‘boa governança’ e ‘desenvolvimento de infraestruturas para apoio à
tecnologia e inovação’ também são concedidas.
É importante frisar que o investimento estrangeiro o produzio resultado desejado
em África se não aumentar o empreendedorismo autóctone (Mota & Moreira, 2017). Daí
a importância de combinar políticas para atrair tanto os empreendedores externos como
os internos e os empresários.
McDade & Spring (2005) fornecem comprovativos adicionais sobre a angústia dos
governos africanos em relação ao desenvolvimento de negócios africanos, limitando as
suas possibilidades de crescimento. ‘Os deres governamentais receavam que um setor
privado forte, composto pelos seus próprios cidadãos, pudesse ameaçar os seus próprios
poderes e privilégios’. Consequentemente, depois de todos estes anos, os africanos ainda
detêm menos de um terço das grandes empresas industriais do continente. A nova
geração de empresários africanos exige ‘leis e regulamentações favoráveis aos negócios,
políticas governamentais e programas’, e procura dialogar com os formuladores de
políticas, mas rejeita o ‘clientelismo do governo’.
Baseando-se ainda nos dados do Gana, Hilson et al (2017), no âmbito do
empreendedorismo de mineração artesanal e em pequena escala, identificaram três
áreas-chave de preocupação das políticas públicas:
(i) licenciamento;
(ii) aparelho político; e
(iii) financiamento.
Na mesma linha de pensamento, Amankwah-Amoah et al (2018a) postulam a
importância crítica do governo para fins de adoção de tecnologia em África através da
‘promoção da identificação nacional’, do ‘envolvimento da sociedade’ e da ‘melhoria das
infraestruturas educativas’. A lacuna política foi identificada como sendo a deficiência
crítica da região no apoio ao desenvolvimento tecnológico. É necessário fazer escolhas
sobre as trajetórias de inovação a adotar, apoiadas por iniciativas dirigidas pelo Estado.
Por outro lado, Amankwah-Amoah et al (2018b) destacam algumas restrições
institucionais ao empreendedorismo assente na tecnologia. Embora recentemente a
democracia se tenha tornado mais difundida em África, a intervenção severa do governo
é banal, com excesso de emprego público e legado do socialismo em muitos países. Este
facto provocou um retrocesso em termos de orientação empreendedora quando
comparado com os últimos tempos do colonialismo e até mesmo antes disso. Os
problemas clássicos de excesso de burocracia e da ‘burocracia endémica’ são aqui
recordados. A falta ou mesmo total ausência de propriedade intelectual é outra fraqueza
da maioria dos empresários africanos. O exemplo do desenvolvimento das energias
renováveis é avançado como uma oportunidade para o desenvolvimento empresarial em
África, dadas as enormes deficiências infraestruturais e as atuais ineficiências
monopolistas.
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As instituições têm um impacto significativo no comportamento das empresas e, por
consequência, na competitividade das mesmas. Barasa et al (2017) referem o seu papel
na incerteza ambiental e nos custos de transação, mas também na forma como as
empresas se coordenam entre si. Outra sugestão significativa desta investigação é a
descrição da qualidade institucional, que inclui: (i) o processo de nomeação, controlo e
mudança governamental; (ii) a capacidade de gerar e manter políticas fortes; e (iii) a
forma como se relacionam com cidadãos e empresas. Quando comparada a outras
regiões do mundo, a África Subsaariana tem um desempenho pior na aplicação do estado
de direito, na qualidade da regulamentação, no vel de corrupção e na eficácia do
governo. Um bom funcionamento institucional é obrigatório para o empreendedorismo e
a inovação.
Outra linha de pensamento, desenvolvida por Brixiova (2010) e Brixiová et al (2015),
que reflete o trabalho do Banco Africano de Desenvolvimento, enfatiza a importância de
abrir caminho para a criação de empresas, diminuindo os impostos e os custos de
abertura das mesmas. Com base na constatação que esses países têm limitações
orçamentais significativas, a seletividade e o sequenciamento de políticas são de extrema
importância. Os subsídios para o arranque de projetos empresariais e o apoio a
programas de formação de empreendedorismo são identificados como constituindo
políticas importantes para estimular o empreendedorismo.
Em matéria de inovação, por exemplo, Cunningham (2015) identificou uma das principais
deficiências dos países africanos, que é a transmissão de informações entre os que
adotam políticas, geralmente os funcionários governamentais de topo, e os que devem
implementá-las, principalmente os funcionários públicos. O apoio do setor blico é
considerado fraco com base na opinião individual de que os empreendedores que
potencialmente beneficiam do apoio governamental são privilegiados quando
comparados com a população em geral, porque são elegíveis para apoio com base num
conjunto de competências superiores, incluindo o acesso prévio à educação.
No que concerne avaliar como as empresas podem ser informadas sobre o contexto
regulatório onde se inserem, Geginate & Saltane (2016) referem que em África esse
assunto é muito opaco. Na região Subsaariana, apenas 4 dos 46 países fornecem
informações decentes e estáveis sobre as tabelas de taxas nas seguintes categorias:
(i) abertura de empresas;
(ii) licenças de construção;
(iii) ligações elétricas; e
(iv) registo de propriedade.
Uma das razões para essa fraqueza institucional em África relaciona-se com uma
particularidade específica do seu legado histórico: antes do colonialismo, havia até
10.000 estados diferentes e grupos autónomos em África, o que deu origem à distância
cultural, dispersão da comunidade e falta de um objetivo comum. Por outro lado, a
recente integração internacional de muitos desses estados levou-os a desenvolver
sistemas de controlo orçamental e fiscal de acordo com todos os requisitos internacionais
de conformidade (George et al, 2016).
A literatura também refere alguns bons exemplos do impacto governamental positivo no
desenvolvimento empresarial africano. O M-Pesa, um caso de ‘investimento ex ante com
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justificação ex post, disponível em rios países, constitui um exemplo paradigmático
do bom empreendedorismo institucional (Kshetri, 2016).
1.2. Política e formulação de políticas em Moçambique
Moçambique é um dos países menos desenvolvidos do mundo (PMDs) e está muito mal
posicionado nos principais indicadores internacionais de desenvolvimento, como o Índice
de Desenvolvimento Humano e em todos os relatórios sobre ambientes de investimento/
condução de negócios.
‘Este facto prende-se com o acesso precário ao financiamento, a ideia da prevalência da
corrupção, a burocracia governamental ineficiente, infraestruturas inadequadas e o nível
de educação dos trabalhadores’, segundo Libombo & Dinis (2015). Como em muitos
países africanos, a ação governamental relativa ao empreendedorismo tem sido
orientada de forma a reduzir a exclusão económica e o para a capacitação.
Provavelmente devido a isso, os empreendedores continuam a ser um grupo profissional
com uma conotação negativa em termos de status social.
Neste tipo de contextos, os projetos empresariais ‘tendem a responder ao aumento da
burocracia fortalecendo o seu compromisso político com os burocratas e acentuando a
sua influência política na formulação de políticas assente na burocracia’ (Luo & Junkunc,
2008).
Em termos de regime político, Moçambique é, formalmente, uma democracia. Foi
classificado como uma ‘autocracia eleitoral’ por Lührmann et al (2018) desde o fim da
guerra civil a finais de 1992. O partido no poder desde 1975, a FRELIMO, é, pois, ‘o
partido’.
No que diz respeito ao empreendedorismo, o governo vem vindo a aumentar as
referências à importância dessa variável para a formulação de políticas e para a vasta
agenda económica. Algumas das medidas atuais do governo que visam impactar o
potencial empreendedor são:
A prioridade máxima do segundo governo, de acordo com o plano quinquenal de 2015-
2019, é ‘desenvolver o capital humano e social’. Dentro dessa prioridade, o objetivo
estratégico 1 é ‘promover um sistema educativo inclusivo, eficaz e eficiente, que
garanta a aquisição das capacidades necessárias em termos de competências, gestão e
atitudes que respondam às necessidades do desenvolvimento humano’.
Dentro desse objetivo estratégico, a ação prioritária l) é ‘estabelecer programas e
sinergias com instituições de ensino superior, técnico, tecnológico, profissional e de
investigação que contribuam para estimular a inovação e o empreendedorismo’.
A prioridade máxima do governo, de acordo com o mesmo plano quinquenal de 2015-
2019, é ‘promover a criação de emprego e aumentar a produtividade e a
competitividade’. Dentro dessa prioridade, o objetivo estratégico 1 é ‘aumentar a
produção e a produtividade em todos os setores da atividade económica, especialmente
na agricultura’. Dentro desse objetivo estratégico, a ação prioritária i) é 'consolidar e
expandir polos de investigação e disseminação de tecnologias e inovação para
comunidades, e a ação prioritária n) é 'promover financiamento para projetos de
inovação e investigação que abordem desafios de desenvolvimento socioeconómico'.
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2. Estudo empírico
2.1. Amostras de dados e métodos de investigação
O objetivo deste estudo é investigar o impacto do governo no empreendedorismo em
Moçambique, recorrendo à perspetiva de cinco atores diferentes, selecionados de acordo
com sua relevância teórica para o assunto: (i) formulador de política governamental - 1
pessoa; (ii) funcionário público implementador de políticas - 1 pessoa; (iii) financiador -
1 pessoa; (iv) especialista - 1 pessoa; (v) empreendedor - 6 pessoas; foi concebido um
estudo no terreno no país para esse fim.
A investigação é de natureza qualitativa. Esta amostra não tem relevância estatística
sobre a população e não há conclusões inferenciais.
Os atores das categorias (i), (ii), (iii) e (iv) provêm da província da Cidade de Maputo,
três homens e uma mulher. Os atores da categoria (v) são das seguintes províncias:
Cidade de Maputo, Província de Maputo, Sofala, Tete, Niassa e Nampula, um por
localidade, 4 homens, 2 mulheres.
Os entrevistados foram identificados através de dupla verificação individual e foram
devidamente informados sobre os objetivos, o âmbito e o processo da investigação.
Inicialmente, foram contatados por e-mail e, após confirmação da sua disponibilidade
para a investigação, foram novamente contatados, desta vez através de chamada
telefónica. Estabeleceram-se outros contatos por WhatsApp ou mensagens do Skype.
Todos os participantes exigiram o anonimato, que foi assegurado mediante um contrato
assinado de não divulgação designado ‘Declaração de Conduta Ética sob Compromisso
de Honra’.
Todas as entrevistas foram presenciais realizadas em ngua portuguesa e gravadas em
áudio no telemóvel do entrevistador. Realizaram-se na cidade de Maputo, entre os dias
17 e 23 de maio de 2018, no local escolhido por cada entrevistado, tanto no local de
trabalho ou escritório profissional do entrevistado ou no quarto de hotel do entrevistador.
Recorreu-se à abordagem de questões abertas, embora um guião básico de 12 tópicos
tenha sido usado para conduzir a discussão. Anotaram-se notas precisas e de memória
de cada entrevista. A entrevista mais longa durou 3h17m e a mais curta, 48m. A duração
média das entrevistas foi de 2h04m. Acordou-se que, em caso de dúvida, os
entrevistados seriam posteriormente contactados para esclarecimentos pontuais.
Os dados foram então tratados usando a análise de conteúdo de entrevistas. Cada
entrevista foi sujeita a repetidas audiências durante o dia 24 de maio de 2018, o primeiro
dia após a conclusão da recolha de dados, para garantir que o significado correto de cada
discussão fosse captado, e as seções principais foram transcritas. Dois entrevistados
foram contatados novamente no dia 25 de maio de 2018, por chamada do FaceTime,
para esclarecimentos diversos.
2.2. Análise de dados e resultados
Todas as entrevistas obedeceram ao seguinte encadeamento: o primeiro tópico discutido
foi o próprio processo de formulação de políticas e como ocorre no país; de seguida,
discutiu-se as restrições institucionais no processo de formulação de políticas, como a
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burocracia e a facilidade de acesso ao capital; o terceiro tópico debruçou-se sobre a
opinião geral sobre os empreendedores e as ameaças que sentiam à sua atividade.
(i) Entrevista com o formulador de políticas governamentais - 1 pessoa
A pessoa em causa tinha ocupado um cargo de topo no governo de Moçambique no
passado.
O entrevistado descreveu a formulação de políticas como um exercício que faz sentido
sujeito à iniciativa de alguém. Existem diferentes agendas que orientam esse processo,
não necessariamente contraditórias. Na maioria dos assuntos, os distintos órgãos têm
uma opinião convergente e a discussão incide mais sobre quem é o dono do processo e
não quem é o dono da ideia.
A única exceção são as iniciativas canalizadas através de instituições internacionais ou
da ‘comunidade internacional’. Neste caso, é necessário que uma posição oficial ou
orientação precisa seja inicialmente emitida pelo Presidente com o apoio formal do
partido.
O empreendedorismo ou o desenvolvimento empresarial é um dos tópicos que tem sido
objeto de recomendações constantes por parte das instituições internacionais, como o
Banco Mundial e o Banco Africano de Desenvolvimento.
O fenómeno parece não ser visto como uma ferramenta crítica para promover o
desenvolvimento. O problema é que a maioria dos políticos separa claramente o
‘empreendedor’ do ‘homem de negócios’, sendo o primeiro o ‘cidadão pobre’
indiferenciado e o segundo ‘a pessoa educada de classe média-alta’ com possibilidades
reais de prosperar. Muitos, se não a maioria desses indivíduos, têm influência (local)
política baixa-média.
Sobre a burocracia e as preocupações gerais em fazer negócios, há uma forte influência
por parte do partido de não desmantelar a estrutura administrativa das questões
empresariais. Quando se lhe perguntou sobre as razões por trás disso, o nosso
entrevistado respondeu que ‘dada a faixa salarial pública, pode especular-se que muitos
funcionários públicos de baixa condição ganham a vida com a burocracia’. O mesmo não
se aplica às tabelas de taxas oficiais. ‘Em Moçambique, você pode perder o seu emprego
se fizer batota com isso. Todos conhecem as taxas e as tarifas de todos os serviços
públicos’.
O acesso ao capital constitui um grande problema para o empreendedorismo no país. As
taxas de juros têm estado elevadas demasiado tempo, mas o Banco Central está a fazer
um bom trabalho. O sistema financeiro é eficiente e credível.
Os empreendedores são encarados como uma ameaça ao poder político? ‘Não, mas
ninguém está interessado em tornar a sua vida mais fácil neste país. Se você tiver
sucesso, será controlado e partilhará os seus ganhos...’
(ii) Entrevista com o funcionário público implementador de políticas - 1 pessoa
Este entrevistado é membro do conselho de administração ou equivalente numa
instituição pública com responsabilidades diretas nas pequenas
empresas/empreendedorismo.
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O processo de implementação de políticas foi revisto. Foi mencionado que na maioria dos
casos não transmissão formal de informações ou objetivos. A informação é recebida
através da legislação publicada. Se surgirem perguntas significativas por parte de
pessoas abaixo da hierarquia, são enviadas explicações formais ao gabinete do ministro
em causa. Se ocorrerem erros de interpretação, geralmente deve-se a ignorância ou
incapacidade. Não tradição de, ou abertura para, desobediência ou boicote. Ainda
menos para sabotagem. Em alguns departamentos blicos deste país, pode-se
observar, às vezes, passividade ou indiferença. ouviu o ditado? O Estado finge que
nos paga e fingimos trabalhar no duro…’
Empreendedorismo é um conceito de moda, um chavão. Ninguém acredita realmente
nisso, mas todos continuam a mencionar as suas virtudes. O governo está disposto a
mostrar algumas medidas para animar os pobres. Muitos estão apenas à procura de abrir
a sua ‘barraquinha’ e a livrar-se de um emprego mal pago. Mas sem expectativas ou
ambições significativas. Mas por que é que isso acontece? Porque as pessoas estão
conscientes do seu 'despreparo' (falta de competências), nada mais.
Sobre a burocracia, a ideia é que não nada que alguém possa fazer a esse respeito.
Ao mesmo tempo, para a maioria das pessoas, não constitui uma barreira real. É apenas
um desafio que requer tempo, um tipo de teste de seleção natural. A exceção?
Estrangeiros. Nesse caso, a burocracia poderá ser usada para desencorajar alguns
estrangeiros indesejados a ganhar dinheiro em Moçambique ou para mantê-los em
situação ilegal/ informal. Em casos extremos, os pedidos submetidos simplesmente
desaparecem, tantas vezes quantos o feitos, e nunca fim do processo para certos
pedidos.
Quanto às tabelas de taxas, se não estiverem claras, é porque não foram definidas e/ou
aprovadas. O funcionário blico comum não brinca com esse tipo de coisa. É muito
perigoso e as pessoas já perderam o emprego por causa disso.
Em termos de facilidades de financiamento, são muito caras e de difícil acesso, dadas as
exigências e a baixa credibilidade das contas da maioria das empresas. O governo poderia
fazer mais a esse respeito se reduzisse as taxas de juros para os programas empresariais.
O empreendedorismo não é algo que os políticos querem evitar. É simplesmente algo
considerado neutro para as suas agendas. Portanto, realmente o se comprometem
com isso, a menos que alguns discirnam nisso algum tipo de interesse real.
(iii) Entrevista com o financiador 1 pessoa
A pessoa entrevistada neste grupo era um executivo de topo de uma instituição financeira
líder responsável pelo financiamento de decisões relativas a projetos empresariais.
A discussão começou com a forma como a formulação de políticas é feita no país,
especialmente no que se refere ao empreendedorismo. Na perspetiva dessa pessoa, a
formulação de políticas em Moçambique ‘não é melhor nem pior do que em qualquer
outro país africano em que trabalhei antes’. De um ponto de vista puramente formal, o
processo de aprovação de contas parece ser comparável aos dos países europeus. É difícil
entender como algumas questões atingem o topo da agenda política e outras não. As
instituições internacionais desempenham um papel significativo neste país,
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especialmente em temas como o alívio da pobreza, o combate ao VIH, etc. O
empreendedorismo é identificado como parte dos objetivos no combate à pobreza.
Os funcionários públicos têm um nível de educação e de competências muito baixo. Não
parecem capazes de simplesmente entender as leis e regulamentos. Consequentemente,
são basicamente incapazes de pôr as coisas a andar. Na maioria dos casos, os programas
serão ativados depois de o próprio Ministro o mediatizar ou se envolver numa visita
no local.
A burocracia é sobre defender os ‘pequenos poderes’. Eventualmente, sempre uma
maneira de resolver essas restrições. Por exemplo, para as instituições financeiras, a
burocracia é ‘um mal necessário’ porque a integridade da informação e os registos em
papel simplesmente não são de confiar neste país.
Os governos em África não gostam do empreendedorismo mais do que qualquer outra
coisa que eles não controlam totalmente. O empreendedorismo impulsionado por
oportunidades é quase inexistente em Moçambique porque não existe uma base de
inovação/conhecimento no país. Até a incubação não tem significado real. É uma pena a
ausência de programas científicos e tecnológicos reais de iniciativas internacionais ou
nacionais. O último concurso nacional neste domínio foi, na verdade, par financiar
universidades públicas, não para fomentar a inovação...
Sobre as condições de financiamento para o empreendedorismo, são muito complicadas
e a maioria dos empresários não consegue obter nenhuma quantidade relevante de
capital. A maioria das empresas não possui sistemas de controlo e as suas contas são
‘uma completa ficção’. A inexistência de fundos de capital de risco revela um vazio de
oportunidades de investimento.
Por fim, as tabelas de taxas são um não-assunto.
(iv) Entrevista com o especialista 1 pessoa
O especialista identificado é um indivíduo muito experiente e com um nível de educação
muito elevado, que trabalha como consultor empresarial e governamental e como
professor universitário privado.
A formulação de políticas é um processo complicado. Envolve demasiadas pessoas: o
partido, o conselho de ministros, diferentes gabinetes governamentais, o presidente,
uma quantidade enorme de consultores e assessores e representantes parlamentares,
apenas para mencionar os mais importantes. O mais importante aqui? Não é um processo
eficaz e as decisões importantes são tomadas no último minuto, geralmente sob uma
significativa pressão internacional.
A cadeia de comando também funciona muito mal. Primeiro, porque os próprios ministros
nem sempre sabem exatamente os detalhes dos os ‘seus’ projetos de lei e, segundo,
porque muitos dos funcionários públicos que se lhes reportam, altamente posicionados,
não têm as qualificações e competências suficientes para implementar programas
sólidos. Além disso, muitos deles não estão totalmente empoderados relativamente aos
seus subordinados que foram nomeados por um alto funcionário.
A burocracia é impossível de erradicar neste país. Para muitas pessoas, o salário é uma
pequena percentagem do que fazem com o suborno relacionado com burocracia. Alguns
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deles não realizam nenhuma das tarefas descritas na descrição de funções, e recorrem
a isso como uma forma de ganhar dinheiro ilegal.
O governo não tem uma estratégia real para o empreendedorismo. o é um assunto
assim tão relevante. Nem mesmo a incubação, uma das coisas mais fáceis de fazer, tem
expressão. Talvez na altura em que alguns projetos empresariais à séria começarem a
ter sucesso, não apenas as 'barraquinhas', o governo passará a considerar o
empreendedorismo como algo sério. Outro pensamento importante sobre este tema é o
papel desempenhado pela juventude do partido. Eles desvalorizam o empreendedorismo
e apenas procuram oportunidades políticas. Se ao menos mudassem a sua mentalidade
em direção aos negócios de risco...
O acesso ao capital constitui uma grande preocupação. Os projetos são muito pequenos
e não têm poder de negociação sobre os bancos. Os business angels não têm expressão
devido a problemas de confiança. O microcrédito funciona bem para os
microempreendedores.
Quanto às tabelas de taxas, além de exceções muito limitadas, não motivo para
preocupação. No entanto, nos departamentos públicos locais/regionais, pode-se esperar
alguma aldrabice. Por outro lado, os serviços públicos responsáveis por transações
financeiras significativas foram sujeitos a medidas inovadoras: depósito bancário antes
da conclusão da transação e, mais recentemente, o uso de máquinas automáticas de
pagamento.
(v) Entrevistas com os empresários 6 pessoas
Como referido anteriormente, os atores desta categoria provêm das seguintes províncias:
Cidade de Maputo, Província de Maputo, Sofala, Tete, Niassa e Nampula, uma pessoa por
localidade, 4 homens, 2 mulheres, com habilitações literárias médias, a trabalhar nas
seguintes atividades económicas: agricultura, comércio de alimentos, hotelaria,
restauração, serviços comerciais e panificação. Obviamente, o objetivo era ter uma
representação nacional de experiências empreendedoras para avaliar também a
sensibilidade do contexto.
Sobre a elaboração de políticas, nenhum dos empresários expressou fortes sentimentos
sobre esse assunto. Os dois da cidade de Maputo e da província de Maputo pareciam
seguir a política mais de perto do que os outros. Os quatro empresários das regiões
centro e norte referiram que a formulação de políticas não teve relevância significativa
nas suas atividades empresariais, embora todos reconheçam que o governo é um ator
fundamental para o desenvolvimento económico do país.
Sobre os órgãos públicos responsáveis pelo apoio ao empreendedorismo, todos os seis
empresários não hesitaram em classificá-los como ‘quase inúteis’ ou simplesmente
‘secretárias burocráticas’. Como o identificam uma política empresarial clara, lutam
para avaliar a direção que segue. Nenhum deles tinha investigado qualquer programa
existente. O passa palavra parece ser a ferramenta mais eficaz para obter informação
sobre os apoios públicos. Os funcionários públicos que trabalham nesses órgãos o
igualmente vistos como ‘funcionários’, que não acrescentam qualquer valor específico.
Um dos exemplos dados foi a candidatura a uma incubadora pública na região de Maputo.
A candidatura não pôde ser concluída porque faltavam documentos. Mas nenhum
acompanhamento ou qualquer tipo de ajuda foram disponibilizados. Para os quatro
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empresários do Centro e do Norte, o havia quaisquer mecanismos de incubação blica
disponíveis na fase inicial.
A burocracia é a questão-chave para todos os seis empresários, especialmente para os
quatro do centro e norte do país. Começa com o registo da empresa e continua
incessantemente a cada interação administrativa. ‘É lenta e cara e não aporta nenhum
valor. Os funcionários estão sempre à caça de subornos e mesmo assim as coisas não
são feitas no tempo devido’.
As limitações de capital são uma preocupação para todos os seis empresários. As taxas
de juros tornam impossível solicitar empréstimos. O microcrédito é a única opção viável,
mas os valores são demasiado pequenos para desenvolver o negócio num prazo razoável.
Para esses entrevistados, private equity, capital de risco e business angels aparentam
ser conceitos estranhos.
O governo o teme o empreendedorismo. Simplesmente não se importa com isso.
Empreendedorismo em Moçambique significa economia informal, 'barraquinhas' e alívio
da pobreza. Qualquer coisa que não seja isso é puro negócio, não empreendedorismo.
Conclusão
Esta investigação apoia os pressupostos teóricos sicos descritos na revisão da
literatura.
Por exemplo, a hipótese de Juma et al (2017) que o papel positivo do governo no
empreendedorismo ocorre por meio da facilitação da infraestrutura legal e da prestação
de facilidades de financiamento foi mencionado por todos os entrevistados.
As ideias de Shane (2009) e Mthanti & Ojah (2017) sobre a importância do
empreendedorismo e da orientação empreendedora também são confirmadas por essas
entrevistas, de forma explícita e implícita.
As conclusões de Naudé (2013) sobre as políticas centradas na atração de capacidades
empreendedoras, ao invés de atividades empreendedorasm são igualmente confirmadas
nesta investigação.
A referência de Schillo et al (2016) à importância das variáveis institucionais para o
empreendedorismo é feita por todos os entrevistados, mas, curiosamente, devido à
ausência de uma política clara, os empreendedores não conseguem discerni-la.
As referências de Kiss et al (2012) às dificuldade de acesso ao capital, regulamentação
governamental inconsistente e indisponibilidade de locais de negócios também são
explicitamente referidas por todos os entrevistados.
A evidência de Amankwah-Amoah (2018) que os empresários são ‘potenciais ameaças
políticas’ no Gana não se confirma em Moçambique. Poderá especular-se que o baixo
nível de sofisticação empresarial explica essa perceção.
A sugestão de Mota & Moreira (2017) sobre a importância dos governos que atraem
empreendedores externos e internos não é apoiada por este estudo. Em Moçambique,
de acordo com uma das entrevistas, os estrangeiros não são especialmente bem-vindos.
Naturalmente, esse facto pode representar um problema para o desenvolvimento
empresarial, mas são necessárias mais provas que sustentem conclusões conclusivas.
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As conclusões de McDade e Spring (2005) sobre a nova geração de empreendedores
africanos que exigem ‘leis e regulamentos favoráveis aos negócios, políticas
governamentais e programas’ e governos que dialogam também não são apoiadas por
este estudo. Mais uma vez, a falta de uma verdadeira base empreendedora orientada
para a oportunidade pode explicar esse tipo de resposta.
Por fim, devemos enfatizar o caráter limitado desta investigação com base em 10
entrevistas. Qualquer investigação futura deverá ampliar o contexto da análise
bibliográfica e aumentar o mero de entrevistados e a sua representação territorial,
incluindo empreendedorismo rural versus urbano e empreendedorismo masculino versus
feminino.
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 10, Nº. 1 (Mayo-Octubre 2019), pp. 117-130
LA INVERSIÓN DE LAS EMPRESAS ESPAÑOLAS EN AMERICA LATINA,
PATRONES Y RASGOS DETERMINANTES
Gonzalo Solana González
gsolana@nebrija.es
Licenciado en Ciencias Económicas y Empresariales, Universidad Autónoma de Madrid. Licenciado
en Derecho, Universidad Nebrija. Doctor en Ciencias Económicas, Universidad de Castilla-La
Mancha. Director de la Cátedra Global Nebrija Santander en internacionalización de empresas,
Universidad Nebrija (España)
Rafael Myro Sánchez
rmyrosan@ucm.es
Licenciado en Ciencias Económicas y Empresariales, Universidad Complutense, Madrid. Doctor en
Ciencias Económicas, Universidad Complutense. Catedrático de Economía Aplicada, Universidad
Complutense (España).
Resumen
Este trabajo tiene como objetivo analizar la evolución reciente de la Inversión Extranjera
Directa de España en América Latina y los patrones de internacionalización de las empresas
españolas en estos países. Para ello, se ha explotado la estadística sobre los flujos de inversión
y se han revisado las principales investigaciones de los autores en el ámbito empresarial.
Como resultado, el interés inversor por América Latina no ha disminuido a pesar de la crisis
iniciada en 2008, debido a su dinamismo, el crecimiento de sus clases medias y las
necesidades de mejora de infraestructuras básicas. También es destacable el interés en
América Latina por las oportunidades que ofrecen estos países para abordar terceros
mercados y mejorar la capacidad competitiva.
Palabras clave
Inversión extranjera, empresas, España, Latinoamérica
Cómo citar este artículo
González, GS; Sánchez, RM (2019). "La inversión de las empresas españolas en America
Latina, patrones y rasgos determinantes". JANUS.NET e-journal of International Relations,
Vol. 10, N.º 1, Mayo-Octubre 2019. Consultado [online] en fecha de la última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.1.8
Artículo recibido el 16 de agosto de 2018 y aceptado para su publicación el 4 de febrero
de 2019
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La inversión de las empresas españolas en America Latina, patrones y rasgos determinantes
Gonzalo Solana González, Rafael Myro Sánchez
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LA INVERSIÓN DE LAS EMPRESAS ESPAÑOLAS EN AMERICA LATINA,
PATRONES Y RASGOS DETERMINANTES
1
Gonzalo Solana González
Rafael Myro Sánchez
Introducción
El fenómeno de la globalización se ha visto impulsado por la progresiva liberalización de
los movimientos de capitales a escala mundial, dando lugar a un notable dinamismo en
los flujos y stock de inversión extranjera directa (IED) durante las tres últimas décadas,
Fouquin y Hugot (2016).
En el año 2016, según datos de la United Nations Conference on Trade and Development
(UNCTAD), (2017), el stock mundial de IED ascendió a 26,7 billones de dólares,
representando el 35,5% del PIB mundial, frente a los 2,2 billones de dólares del o
1990 (10,1% del PIB mundial).
Las empresas españolas han participado en esta evolución de una manera muy activa.
Entre 1993 y 2016
2
, los flujos de Inversión Extranjera Directa (IED) bruta de España en
el exterior sumaron 691.000 millones de euros, un promedio anual de 28.790 millones
de euros. Como resultado, la economía española mantenía en el año 2015 un stock de
inversión en el exterior superior a los 433.000 millones de euros.
El perfil inversor de España en los mercados globales ha variado de modo sustancial en
función de la coyuntura nacional e internacional, con el periodo 2003-2007 como el más
dinámico al registrarse flujos medios anuales próximos a los 50.000 millones de euros.
Desde entonces, las inversiones en el exterior se han caracterizado por un perfil evolutivo
más moderado.
Para analizar los patrones de internacionalización empresarial hacia los países de América
Latina se analiza, en primer lugar, la evolución de la IED española en América Latina y,
a continuación, se presentan las principales pautas identificadas en sus procesos de
internacionalización en estos destinos.
1
El presente trabajo tiene su origen en el interés por conocer cuál ha sido la trayectoria inversora de la
empresa española en América Latina durante el siglo XXI, con el fin de conocer sus dinámicas y el impacto
potencia que ha supuesto la crisis iniciada en España en 2008 sobre el comportamiento inversor agregado
del país. El artículo combina la investigación con la reflexión sobre dicha materia. Dicha investigación se
integra en el marco de las actividades desarrolladas en colaboración entre la Cátedra Global Nebrija
Santander en internacionalización de empresas y la Universidad Complutense de Madrid.
2
Datos obtenidos del Registro de Inversiones Exteriores de España (Ministerio de Industria, Comercio y
Turismo).
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La inversión de las empresas españolas en America Latina, patrones y rasgos determinantes
Gonzalo Solana González, Rafael Myro Sánchez
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1. La inversión española en América Latina: características y evolución
América Latina se consolida gradualmente como el segundo destino prioritario de los
esfuerzos inversores de las empresas españolas en el exterior, tras el grupo de los países
desarrollados
3
(en particular, de la Unión Europea). En concreto, en el o 2015 el 28,8%
del stock de IED de España se concentraba en la región latinoamericana, tal y como
muestra la Tabla 1.
Tabla 1. Stock de IED bruta española en el exterior: posición inversora (millones de euros)
Nota: el término negativo en términos de stock revela dinámicas de desinversión.
Fuente: Ministerio de Industria, Comercio y Turismo.
La trayectoria inversora española, no obstante, ha sido desigual a lo largo del tiempo,
como puede comprobarse en el
Gráfico 1. La década de los años noventa del siglo XX se caracterizó por el protagonismo
de América Latina entre los destinos, con unos flujos de IED dirigidos a esta zona
superiores a los enviados hacia los países desarrollados (9.590 millones de euros frente
a 7.001 millones de euros en promedio anual entre 1993 y 2000). Tras esta dinámica se
encontraban los procesos de liberalización y privatización en ciertos sectores en América
Latina, el atractivo del tamaño de sus mercados, la incipiente vocación internacional de
la gran empresa española y, por supuesto, la existencia de unos fuertes vínculos
culturales.
3
Según el criterio de clasificación de los países en términos económicos señalado por Naciones Unidas:
http://unctadstat.unctad.org/EN/Classifications.html
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Gráfico 1. Flujos de IED bruta española en el exterior (millones de euros)
Fuente: Ministerio de Industria, Comercio y Turismo.
En los compases iniciales del siglo XXI se produjo un punto de inflexión, con una paulatina
pérdida del vigor relativo de la IED española en América Latina, si bien manteniéndose
esta zona en la segunda posición como destino inversor, tal y como revela la Tabla 2. El
avance en el proceso de integración económica y monetaria en el seno de la Unión
Europea, junto con ciertas inestabilidades e incertidumbres en el escenario mundial,
explican quizás en buena medida este comportamiento.
Tabla 2. Flujos de IED bruta española en el exterior (millones de euros)
Nota: el término negativo en términos de flujo revela dinámicas de desinversión.
Fuente: Ministerio de Industria, Comercio y Turismo.
No obstante, en el intervalo 2013-2016, la IED española en América Latina volvió a
aumentar, en contraste con su dinámica descendente en otras áreas
4
, alcanzando un
4
Nótese que el descenso en las cifras de inversión agregada de España en el exterior no significa que la
inversión no siga siendo positiva. Todo lo contrario, durante los años de crisis económica, la inversión bruta
de las empresas españolas en el exterior siguió su crecimiento, aunque a un ritmo más moderado que en
el período anterior, de intenso auge. También lo hizo la inversión neta, si bien de forma más limitada. El
efecto de la crisis económica se ha dejado notar en el aumento de la desinversión, sobre todo de medianas
0
50.000
100.000
150.000
200.000
250.000
300.000
1993-1997 1998-2002 2003-2007 2008-2012 2013-2016
Países desarrollados Latinoamérica TOTAL
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flujo promedio anual en el entorno de los 8.986 millones de euros (superior a los 5.801
y 6.595 millones de euros registrados en promedio anual en los periodos 2003-2007 y
2008-2012, respectivamente). Esta recuperación tuvo lugar, además, en un contexto de
reducción sostenida de los flujos de inversión extranjera del resto del mundo hacia
América Latina (de un 16% en 2016), como señala la UNCTAD (2017). Así pues, aún en
este escenario, la empresa española confía en la economía de la zona, mediante la
consolidación e incremento de su presencia de modo sostenido.
Esta es, por otra parte, una adecuada respuesta de las empresas a los importantes
resultados económicos obtenidos de sus operaciones inversoras en el área. En efecto,
como pone de manifiesto la Tabla 3, hasta 15.000 millones de euros sumaban en el año
2015 los resultados obtenidos por las empresas españolas vinculados a sus inversiones
en la zona. Por su parte, las inversiones en los países desarrollados tenían un
protagonismo también destacado en términos de resultados de la inversión, al sumar
28.872,3 millones de euros en el ejercicio.
Tabla 3. Resultados de la IED bruta española en el exterior (millones de euros)
Nota: el término negativo en términos de resultados revela pérdidas en la inversión.
Fuente: Ministerio de Industria, Comercio y Turismo.
El mayor valor nominal de las inversiones españolas en América Latina se acompañó de
un número creciente de empresas allí establecidas, información proporcionada por la
Tabla 4 e ilustrada por el Gráfico 2. En el año 2013, 2.619 compañías españolas contaban
con inversiones en América Latina, lo que supone un incremento del 27,3% respecto a
2007, superior al experimentado por el número de empresas españolas localizadas en
los países desarrollados y en todo el mundo (incrementos del 14,6% y 23,9%,
respectivamente).
La concentración geográfica es la tónica dominante en las relaciones inversoras de
España con América Latina, con el grupo formado por Brasil, México, Venezuela, Chile y
Argentina como protagonista indiscutible. Estos cinco países concentraban el 87,3% del
stock de IED española en América Latina en el año 2015. La lectura es similar si el análisis
se realiza en términos de los flujos medios emitidos a la zona desde el año 1993: los
cinco países citados sumaron más del 85% del flujo de IED dirigido por España a América
y grandes empresas, que necesitaron obtener fondos para reequilibrar sus balances y vendieron
participaciones en sus filiales exteriores.
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013 2014 2015
Países desarrollados 38.333,62 6.847,92 12.694,34 25.238,85 25.964,88 22.945,12 23.422,64 24.164,59 28.872,31
Países emergentes 18.927,84 32.793,33 27.385,17 32.650,87 39.617,89 38.857,56 34.834,51 35.147,36 34.642,34
África 1.077,65 3.334,30 597,45 715,99 481,43 842,54 710,92 617,86 487,76
Asia y Oceanía 8.263,94 1.085,67 1.175,41 1.417,37 1.438,08 1.807,28 1.213,28 1.041,98 313,65
Latinoamérica 9.632,95 9.657,85 11.791,23 16.821,80 18.459,39 15.488,03 14.391,44 17.089,11 15.086,51
Rusia -46,70 -212,33 -44,41 176,03 107,80 233,01 148,01 -65,24 70,71
Resto del mundo -9.675,93 -20.788,01 -16.025,89 -15.393,70 -20.876,71 -22.987,97 -22.116,21 -20.496,25 -22.820,63
Total 47.585,53 18.853,24 24.053,62 42.496,02 44.706,06 38.814,71 36.140,94 38.815,70 40.694,02
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Latina en el periodo 1993-2014. Durante el período de crisis, en concreto de 2007 hasta
2014, el stock de IED de España en Brasil y Venezuela creció de forma muy considerable,
casi duplicándose; también, lo hizo en el caso de Chile, aunque en una medida menor.
El stock de IED española en México no se alteró y, en cambio, el de Argentina disminuyó,
como subrayan Álvarez, Myro y Vega (2016)
5
.
Tabla 4. Empresas españolas inversoras en el exterior (número)
Fuente: Ministerio de Industria, Comercio y Turismo.
Desde el punto de vista del número de compañías presentes en los diferentes países
latinoamericanos en el año 2013 (último ejercicio disponible), de nuevo México (523
empresas españolas inversoras), Brasil (432), Argentina (359) y Chile (313) se
distinguieron como los focos de atracción más relevantes para el empresariado español.
En términos comparados con el resto de áreas, Latinoamérica ha experimentado
asimismo un aumento notable en la base de compañías inversoras españolas presentes
en el área. El avance desde 2007 del tejido español inversor en América Latina ha sido
el mayor en términos absolutos, a pesar de que las inversiones españolas en los países
desarrollados siguen manteniendo su relevancia relativa. Tras esta dinámica,
previsiblemente está la mayor propensión inversora durante los últimos os hacia
destinos menos maduros para la empresa española (tanto del resto del mundo, como de
los países emergentes, en especial, Latinoamérica), en sintonía con el intenso proceso
de internacionalización del tejido empresarial desde el año 2008.
5
Hay que tener en cuenta que la evolución del stock no es sólo consecuencia de la de la inversión neta, sino
también de los cambios en el valor de las acciones y de las variaciones en el tipo de cambio.
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
Países desarrollados 3.245 3.619 3.724 3.827 3.954 4.006 3.718
Países emergentes 2.493 2.776 2.898 3.025 3.260 3.419 3.273
África 229 258 254 274 293 308 294
Asia y Oc. 180 224 234 273 306 352 316
Latinoamérica 2.057 2.271 2.378 2.441 2.615 2.716 2.619
Rusia 27 23 32 37 46 43 44
Resto Mundo 467 546 612 649 672 699 698
Total 6.205 6.941 7.234 7.501 7.886 8.124 7.689
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Gráfico 2. Empresas españolas inversoras en el exterior (número)
Fuente: Ministerio de Industria, Comercio y Turismo.
Tabla 5. Posición inversora de España en América Latina - principales países de inversión Año
2015
Fuente: Ministerio de Industria, Comercio y Turismo y UNCTAD (2017).
0
1.000
2.000
3.000
4.000
5.000
6.000
7.000
8.000
9.000
2007 2008 2009 2010 2011 2012 2013
Países desarrollados Latinoamérica Total
Stock IED española
(mill. eur)
% total IED española
en Latinonamérica
% sobre stock IED
recibida del país
ARGENTINA 5.824,6 4,7% 7,6%
BOLIVIA 1.375,7 1,1% 13,1%
BRASIL 35.138,0 28,2% 8,3%
CHILE 15.031,9 12,0% 7,5%
COLOMBIA 3.969,5 3,2% 3,0%
COSTA RICA 468,7 0,4% 1,7%
ECUADOR 1.387,2 1,1% 9,8%
EL SALVADOR 104,0 0,1% 1,3%
GUATEMALA 317,2 0,3% 2,7%
GUAYANA 22,9 0,0% 0,9%
HONDURAS 35,6 0,0% 0,3%
MEXICO 31.662,5 25,4% 6,9%
NICARAGUA 17,6 0,0% 0,2%
PANAMA 1.783,3 1,4% 5,0%
PARAGUAY 237,5 0,2% 6,0%
PERU 3.543,6 2,8% 4,6%
REPUBLICA DOMINICANA 926,2 0,7% 3,4%
URUGUAY 1.279,8 1,0% 6,5%
VENEZUELA 21.313,9 17,1% 83,3%
TOTAL LATINOAMÉRICA 124.796,5 100,0% 8,0%
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Más allá de esta aproximación cuantitativa, es interesante analizar la importancia relativa
de la inversión española en cada uno de los países del área latinoamericana, información
proporcionada por la Tabla 5.
En este sentido, el stock de IED española representó el 83,3% del total de IED mundial
recibida por Venezuela en el año 2015, el 13,1% de la recibida por Bolivia, el 9,8% de
Ecuador, el 8,3% de Brasil, el 7,6% de Argentina y el 7,5% de Chile. La IED española ha
ejercido, en consecuencia, un papel muy relevante en la estructura productiva de
determinadas economías latinoamericanas durante la segunda década del siglo XXI.
Desde el punto de vista sectorial, como muestra el Gráfico 3, la IED española en América
Latina se ha dirigido de forma mayoritaria a actividades financieras y de seguros (40,3%
del stock total invertido en la zona en 2015), con un aumento del interés inversor español
por dicho sector desde el año 2007 (cuando suponía el 26,4% del stock de IED española
en América Latina). A continuación, destaca la presencia inversora de España en
suministro de energía eléctrica, gas y otros (9,5%) y telecomunicaciones (7,6%), si bien
en ambos casos descendió la participación sobre el conjunto de inversiones españolas en
el área (14,3% y 19,6% en el año 2007, respectivamente).
Gráfico 3. Stock de IED española en América Latina por principales ramas de actividad en destino
Año 2015
Fuente: Ministerio de Industria, Comercio y Turismo.
SERVICIOS
FINANCIEROS,EXCEP.SEGUROS Y
FONDOS PENSIÓN; 27,7%
SEGUROS,REASEGURO.FO
NDOS PENSIÓN; 12,6%
SUMINISTRO DE ENERGÍA
ELÉCTRICA, GAS, VAPOR Y
AIRE; 9,5%
TELECOMUNICACIONES;
7,6%
COMERCIO MAYORISTA
E INTERMEDIARIOS; 7,3%
METALURGIA;
PRODUCTOS HIERRO,
ACERO; 6,0%
INGENIERÍA CIVIL; 3,6%
EXTRACCIÓN DE
CRUDO DE
PETRÓLEO Y GAS
NATURAL; 2,7%
ACTIVIDADES
INMOBILIARIAS; 2,7%
FABRICACIÓN OTROS
PRODUCTOS MINERALES
NO METÁLICOS; 2,2%
RESTO SECTORES; 18,3%
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En términos de rentabilidad, contenidos en la Tabla 6, las inversiones dirigidas hacia las
actividades financieras y aseguradoras han sido las más lucrativas, al concentrar el
55,2% de los resultados totales de la IED española en América Latina en el año 2015. En
sentido inverso, otras actividades no obtuvieron resultados positivos, si bien en general
su relevancia sobre el stock acumulado de inversión por España en la zona fue limitada
en términos relativos.
Tabla 6. Stock y resultados de IED española en América Latina. Principales sectores de destino
Fuente: Ministerio de Industria, Comercio y Turismo.
Por ámbitos geográficos, las inversiones españolas en actividades financieras y de
seguros se han localizado en su mayor parte en México y Brasil; en las de información y
comunicaciones, en Brasil; en las industrias manufactureras de Brasil y México; y en los
suministros energéticos de Chile y Brasil, tal y como señalan Cerón et al. (2014).
2. Patrones empresariales: principales rasgos, determinantes y
estratégias desarrolladas
Diversos análisis se han realizado acerca de los determinantes de las inversiones
españolas en el exterior, a destacar los correspondientes a Ramírez, Delgado y Espitia
(2004), Ramírez, Delgado y Espitia (2006), Gordo y Tello (2008), Martínez Martín (2011),
Martí, Alguacil y Orts (2013), Fariñas y Martín Marcos (2013). Estos estudios destacan el
papel de los atractivos de localización de los mercados, con una distinción entre países
desarrollados y en desarrollo y, dentro de estos, de América Latina. Puede encontrarse
2007 2015 2007 2015
64 SERVICIOS FINANCIEROS,EXCEP.SEGUROS Y FONDOS PENSION
24,29% 27,66% 40,02% 46,14%
65 SEGUROS,REASEGURO.FONDOS PENSION, EXCEPTO S.SOCIAL
2,12% 12,60% 2,20% 9,08%
35 SUMINISTRO DE ENERGÍA ELÉCTRICA, GAS, VAPOR Y AIRE
14,25% 9,54% 11,35% 8,11%
61 TELECOMUNICACIONES
19,58% 7,56% 12,13% 3,11%
46 COMER.MAYOR E INTERME.COMERCIO,EXCEP.VEHÍCULOS MOTOR
2,16% 7,25% 1,45% 0,09%
24 METALURGIA; FABRICACION PRODUCTOS HIERRO, ACERO
2,34% 5,96% 3,66% -2,64%
42 INGENIERÍA CIVIL
1,72% 3,62% 1,72% 0,66%
06 EXTRACCIÓN DE CRUDO DE PETRÓLEO Y GAS NATURAL
8,63% 2,70% 9,91% 0,00%
68 ACTIVIDADES INMOBILIARIAS
0,37% 2,67% -0,04% 17,53%
23 FABRICACIÓN DE OTROS PRODUCTOS MINERALES NO METÁLICO
3,90% 2,18% 4,86% 3,21%
52 ALMACENAMIENTO Y ACTIVIDADES ANEXAS AL TRANSPORTE
2,38% 1,96% 1,72% 2,65%
55 SERVICIOS DE ALOJAMIENTO
3,00% 1,69% -0,15% -1,96%
20 INDUSTRIA QUÍMICA
1,31% 1,68% 2,08% 4,99%
41 CONSTRUCCIÓN DE EDIFICIOS
1,40% 1,35% 1,32% -0,52%
66 ACTIVIDADES AUXILIARES A LOS SERVICIOS FINANCIEROS
0,59% 1,22% 0,90% 1,85%
47 COMERCIO AL POR MENOR, EXCEPTO DE VEHÍCULOS DE MOTOR
1,05% 0,96% 0,87% 0,37%
43 ACTIVIDADES DE CONSTRUCCIÓN ESPECIALIZADA
0,92% 0,63% 1,01% 0,32%
10 INDUSTRIA DE LA ALIMENTACIÓN
0,33% 0,60% 0,23% 0,44%
RESTO SECTORES 9,68% 8,16% 4,77% 6,55%
Stock IED
Resultados
Sector de destino de la inversión
% total IED española en Latinoamérica
% total resultados IED española en
Latinoamérica
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Gonzalo Solana González, Rafael Myro Sánchez
126
una síntesis amplia de estos estudios en Myro (2014a) y Myro (2014b). Sus conclusiones
pueden resumirse en que las empresas españolas con mayores ventajas de tamaño,
rentabilidad y productividad han capitaneado el rápido proceso de acceso a los mercados
exteriores a través de la exportación y la IED. Las compañías de mayor tamaño, con
activos tecnológicos propios, imagen de marca y una más dilatada experiencia de
exportación, se han encauzado con preferencia a aquellos mercados menos
desarrollados, con superior dimensión y perspectivas de crecimiento, y con mejores
mercados circundantes, en los que lograr beneficios más elevados de sus ventajas
competitivas. Las grandes compañías han dirigido sus inversiones a un mayor número
de países y han alcanzado los mercados más lejanos y desconocidos.
Hay que destacar que en este proceso América Latina ha tenido un papel muy destacado.
En estos momentos, en los países latinoamericanos se localiza casi un tercio del stock de
la IED de empresas españolas en el exterior y fue el destino más relevante en el auge
reciente de la inversión de las empresas españolas en el exterior. Así, en el primer bienio
de fuertes inversiones de empresas españolas en el exterior (1999-2000) a América
Latina se dirigieron más de 56.000 millones de euros, lo que supuso el 61% del total de
la IED de España en el exterior y el 98,8% de la dirigida a destinos de los mercados
emergentes. En esta etapa los protagonistas de estas inversiones fueron las grandes
empresas. Chile y Argentina, y en menor medida México, fueron los primeros países
donde la presencia española se destacó.
Respecto a los principales determinantes y estrategias seguidas por las empresas
españolas en América Latina en este trabajo se resumen los resultados de los estudios
realizados por la Cátedra Global Nebrija Santander en internacionalización de empresas
6
.
Sobre esta base, los motivos principales de las empresas españolas para implantarse en
los países de América Latina se relacionaron con el potencial de sus mercados internos
(tanto en lo relativo a su tamaño como al dinamismo económico). En particular, el
crecimiento de las clases medias, con los servicios básicos que demandan, y la necesidad
de mejorar sus infraestructuras abrió numerosas oportunidades de negocio.
Los factores asociados a la seguridad jurídica y la estabilidad macroeconómica, aspectos
en los que muchos países latinoamericanos mejoraron desde comienzos del siglo XXI,
también fueron relevantes, como en el resto de destinos, para que las empresas
españolas se instalasen en América Latina.
En este sentido, de acuerdo con el estudio realizado por Gonzalo Solana (2017) sobre
localización de las empresas españolas en el exterior, los factores que más determinantes
para elegir su localización en el exterior por parte de las empresas españolas están
relacionados con la squeda de mayor eficiencia de la compañía mediante la
internacionalización, así como disponer de un marco político institucional seguro y un
entorno empresarial apropiado. En América Latina estos factores son muy importantes,
pero en términos diferenciales se constata que América Latina fue el destino en el que
para las empresas españolas los factores asociados al tamaño y potencial de mercado
destacaron como los más relevantes en estas decisiones.
Por otro lado, la proximidad cultural ha sido un aspecto crucial en la relevancia que tiene
América Latina en las inversiones realizadas por empresas españolas en el exterior. La
disposición de un mismo idioma ha facilitado este proceso, especialmente para las
6
Disponibles en el sitio web de la Cátedra Global Nebrija Santander en Internacionalización de empresas.
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127
compañías de menor dimensión. No obstante, en los estudios realizados se constata que,
en numerosas ocasiones, se confunde la cercanía con la identidad cultural, lo cual es
fuente potencial de conflictos y problemas.
Dentro de América Latina existen situaciones económicas y políticas muy diversas, que
explican que los procesos de entrada en estos mercados sean muy diferentes. No
obstante, en la mayoría de los mismos ha sido habitual, sobre todo entre las empresas
de menor dimensión, recurrir a la figura del socio local, en al menos los primeros años
del desarrollo de su actividad, y a la constitución de filiales o a la adquisición de
empresas, frente a fórmulas más complejas, como son las joint ventures, los cuales han
sido tradicionalmente menos habituales. Los empresarios españoles han recurrido en
numerosas ocasiones a llegar a un acuerdo con un socio local, lo que les ha permitido
conocer mejor y más rápidamente las singularidades locales y ha facilitado las relaciones
con distintos agentes e instituciones, aunque a veces estos acuerdos han generado
problemas pasado el tiempo. Por ello, las compañías resaltan la importancia de evaluar
con mucho cuidado y con tiempo el perfil del socio local y su compromiso empresarial a
largo plazo.
La mayoría de estas operaciones de inversión han sido financiadas con recursos propios
de las compañías. Las operaciones de implantación en otros países requieren mucho
tiempo de maduración y hay que asumir los costes hundidos existentes. Por ello es
preciso reducir, en la medida de lo posible, los costes financieros.
Otro aspecto destacado en las estrategias de internacionalización de las empresas
españolas en América Latina es el uso bastante generalizado de estructuras mixtas y
locales en la organización de las distintas áreas o departamentos de las empresas, en los
que según pasan los años prevalece el personal local sobre los españoles expatriados.
Respecto a los principales obstáculos encontrados por las empresas españolas en el
proceso de implantación en América Latina, destacan los relacionados con los trámites
burocráticos soportados o con el funcionamiento de la Administración Pública
correspondiente, la fuerte competencia o el elevado poder económico de determinados
grupos empresariales locales, o la dificultad de encontrar personal cualificado en
determinadas actividades. Sin duda, se trata de cuestiones que pueden resultar muy
diferentes en cada país, y que exigen un proceso de información y conocimiento previo
que puede derivar en tensiones, retrasos o, incluso, en suspender la operación de IED.
Por ello, es muy importante que toda compañía comprenda estos obstáculos y los
interiorice en su estrategia de estudio para instalarse en un país latinoamericano.
Por su parte, los resultados obtenidos por la mayoría de las empresas españolas
presentes en América Latina han sido satisfactorios. La gran mayoría destacan que
gracias a sus inversiones en América Latina han aumentado sus ventas, sus beneficios y
su cuota de mercado. Pero los aspectos más resaltados por los empresarios españoles
son el componente a largo plazo de estas inversiones, con claros beneficios en términos
de la mejora de la reputación empresarial y unas mejores perspectivas de negocio futuro.
Para las empresas españolas su presencia en América Latina ha aumentado su potencial
de crecimiento, destacando las posibilidades que se derivan del aprovechamiento de
determinados países de América Latina como plataforma para la expansión a terceros
mercados. En particular, se comienza a vislumbrar el interés por alcanzar acuerdos
estratégicos entre empresas españolas y de América Latina para el acceso conjunto a
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128
otros mercados, aspecto de especial relevancia para entrar en ciertos mercados
dinámicos como son los asiáticos.
En suma, las empresas españolas instaladas en América Latina resaltan su vocación de
permanencia en la zona, su deseo de arraigo en la sociedad latinoamericana y su firme
compromiso con la cultura y costumbres.
Por último, cabe destacar la existencia de instituciones de apoyo eficientes y de políticas
comerciales apropiadas como aspectos relevantes del proceso de internacionalización de
las empresas españolas hacia América Latina, sobre todo para las empresas de menores
dimensiones.
Conclusión
Desde finales del siglo XX América Latina es un destino prioritario para la empresa
española. De hecho, a pesar de la moderación experimentada durante los años de crisis
económica vividos en España entre finales de la década pasada y mediados de la actual,
y de las sombrías perspectivas manifestadas por la UNCTAD para el área, desde 2010 se
revela un crecimiento notable de la presencia española, tanto por volumen de inversión
como por el número de empresas allí instaladas. América Latina continúa siendo un
destino prioritario para las inversiones de las empresas españolas, manifestando su
compromiso con el desarrollo de este continente.
La IED española reciente es cuantiosa en América Latina (con particular presencia en
Brasil, México, Venezuela, Chile y Argentina) y en ciertos sectores económicos. Algunas
debilidades de la IED española se relacionarían con su excesiva concentración a escala
sectorial, empresarial y geográfica.
Desde el punto de vista de los patrones y motivaciones para la implantación de las
empresas españolas en América Latina, se constata el atractivo que estos mercados
ofrecen por su dinamismo, impulsados por el crecimiento de clases medias y las
necesidades de mejorar sus infraestructuras básicas. Todo ello, además, impulsado por
la relevancia de la cercanía cultural para acometer las inversiones en dicho destino.
También es importante resaltar la firme vocación de permanencia e integración de las
compañías españolas en el contexto de cada país de América Latina en el cual se
encuentran instaladas.
La IED española en América Latina se caracteriza por su mayor rendimiento relativo
frente al obtenido en otras partes del mundo, algo reconocido y valorado por las
empresas. Al tiempo, las compañías españolas han adquirido un conocimiento intangible
y una experiencia internacional, que les permite abordar la expansión a otros mercados
y mejorar su capacidad competitiva.
Ante ciertos obstáculos, las empresas españolas interesadas en la inversión productiva
en América Latina deben recabar información y conocimiento previo, contactar con socios
en destino, y acercarse a las instituciones y entidades de apoyo presentes en dichos
países, capaces de aportar apoyo y ayudar en la tramitación burocrática requerida.
De cara a futuras investigaciones, sería interesante analizar las dinámicas de
desinversión que se podrían estar produciendo en algunos destinos, patentes asimismo
en los resultados negativos del stock de inversión. A tal efecto, cabría profundizar en la
dimensión sectorial de la IED, así como en la influencia observada en otros países en
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Gonzalo Solana González, Rafael Myro Sánchez
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cuanto a la reversión de los procesos de deslocalización industrial, con la posible vuelta
al país de origen de las inversiones exteriores (vinculado a la influencia de la Industria
4.0).
En última instancia, los intensos vínculos culturales y económicos entre América Latina y
España abren numerosas oportunidades de colaboración entre las empresas de ambos
países para afrontar los retos de la globalización y el acceso a otros mercados, figurando
como una prioridad en las agendas políticas de los Gobiernos de ambas orillas del
Atlántico.
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OBSERVARE
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INTENÇÕES E MOTIVAÇÕES DE MOBILIDADE INTERNACIONAL DE UMA
COMUNIDADE DE ESTUDANTES DA UNIVERSIDADE DO ALGARVE
Margarida Viegas
mmviegas@ualg.pt
Professora-adjunta de Métodos Quantitativos Aplicados na Escola Superior de Gestão, Hotelaria e
Turismo da Universidade do Algarve (ESGHT-UAlg). É licenciada em Engenharia de Sistemas
Decisionais pelo ISMA-COCITE e pós-graduada em Gestão Financeira pela UAlg e em Direção
Estratégica e e-Business pela Universidade de Huelva. Possui mestrado em Estatística e Gestão
de Informação pelo ISEGI-Universidade Nova de Lisboa e doutoramento europeu em Gestão e
Economia de Pequenas e Médias Empresas pela Universidade de Huelva, que distinguiu a sua
tese com a atribuição do Premio Extraordinario de Doctorado
Rita Baleiro
rbaleiro@ualg.pt
Doutorada e mestre em Estudos Anglo-Portugueses pela Faculdade de Ciências Sociais e
Humanas da Universidade Nova de Lisboa (UNL). É professora-adjunta na Escola Superior de
Gestão, Hotelaria e Turismo da Universidade do Algarve. É membro integrado do Centro de
Estudos Comparatistas da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, colaboradora do
Centre for English, Translation and Anglo-Portuguese Studies da UNL e membro do Grupo de
Pesquisa Turismo, Espaço e Urbanidades da Universidade Federal do Rio de Janeiro. É coeditora
da revista Dos Algarves: A Multidisciplinar e-Journal, desde 2007.
Resumo
Neste estudo reúnem-se dados sobre a mobilidade de um grupo de estudantes do ensino
superior público português com o objetivo de compreender como estes jovens perspetivam o
seu futuro profissional e a hipótese de mobilidade internacional laboral e académica, numa
época de crise económica e social. A partir dos dados de um inquérito por questionário
aplicado a 425 estudantes da Universidade do Algarve, em 2016, analisa-se a sua
predisposição para a mobilidade em função das suas perspetivas profissionais, caraterísticas
demográficas e competências linguísticas. Os resultados mostram que a maioria (69.6%) dos
inquiridos considera a hipótese de vir a trabalhar no estrangeiro e que esta intenção é
motivada pela descrença de vir a alcançar, em Portugal, um trabalho que proporcione
estabilidade e segurança, boas condições remuneratórias e prestígio social. Enquanto a
possibilidade de efetuar uma experiência académica internacional, considerada por 60.7% dos
estudantes, não apresenta associação com a autoavaliação benevolente dos conhecimentos
linguísticos, no caso da mobilidade laboral verifica-se que esta predisposição é maior entre
aqueles que expressam uma maior confiança no seu domínio da língua inglesa.
Palavras chave
Mobilidade internacional; estudantes; Universidade do Algarve; crise económica; Portugal
Como citar este artigo
Viegas, M, Baleiro, R (2019). "Intenções e motivações de mobilidade internacional de uma
comunidade de estudantes da Universidade do Algarve". JANUS.NET e-journal of International
Relations, Vol. 10, N.º 1, Maio-Outubro 2019. Consultado [online] em data da última consulta,
https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.1.9
Artigo recebido em 16 de Janeiro de 2018 e aceite para publicação em 22 de Fevereiro
de 2019
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Intenções e motivações de mobilidade internacional de uma comunidade de
estudantes da Universidade do Algarve
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INTENÇÕES E MOTIVAÇÕES DE MOBILIDADE INTERNACIONAL DE UMA
COMUNIDADE DE ESTUDANTES DA UNIVERSIDADE DO ALGARVE
Margarida Viegas
Rita Baleiro
1. A crise económica e financeira de 2008 e a mobilidade internacional
dos estudantes universitários portugueses
No início da primeira década do século XXI, quando os portugueses ponderavam o tema
da emigração em Portugal, o mais provável seria concluir que esse tipo de movimento
migratório tivera o seu auge nos anos 50 e 60 do século XX e que no primórdio do século
XXI o foco da atenção seria exatamente o movimento oposto: o da imigração. De facto,
tal como refere Jorge Malheiros numa reflexão sobre este assunto, entre o começo da
década de 1990 e os meados do primeiro decénio do século XXI, sucedia que quer para
a classe política quer para a academia a emigração portuguesa havia adquirido “um
estatuto de quase invisibilidade na abordagem dos fenómenos migratórios” (2011: 133).
Tal sucedia pois Portugal beneficiava do estatuto de país economicamente próspero e
estável para onde se ambicionava imigrar
1
e não de país de onde se pretendia emigrar.
A crise de 2008 veio todavia alterar este facto e quando, em 2016, realizámos este
estudo, em Portugal ainda se sentiam os seus efeitos. De facto, a falência do banco de
investimento Lehman Brothers, em 15 de setembro de 2008, desencadeou ao jeito do
jogo da queda das peças do domi o colapso da bolha especulativa no mercado
imobiliário, por sua vez, potenciada pela enorme ampliação de crédito bancário e pela
criação e aplicação de novos instrumentos financeiros. Em consequência, a suspensão de
crédito provocou uma quebra aguda na produção industrial e no comércio internacional.
Em Portugal, estes efeitos juntamente com as políticas de austeridade (subida de
impostos, de preços, congelamento de ordenados, entre outras), a partir de 2010,
levaram à erosão das oportunidades de emprego para todos, mas com impactos
particularmente danosos nas camadas jovens, por serem estes os que em maior número
estavam a iniciar o percurso profissional (ver Carneiro, Portugal & Varejão, 2014).
Assim, se entre 2008 e 2013, em Portugal, a taxa de desemprego da generalidade da
população quase duplicara, passando de 7.6% para 16.2% (ver tabela 1), no grupo etário
“menos de 25 anos” registou-se uma alteração de 16.7%, em 2008, para 38.1 % em
2013. Em 2016, ano em que realizámos o nosso estudo, a mesma base de dados
estimava que a taxa de desemprego jovem (inferior a 25 anos) era de 28.0%. Ou seja,
1
Sobre o movimento de imigrantes para Portugal ver J.M. Malheiros & A. Esteves (2013). Diagnóstico da
população imigrante em Portugal: Desafios e potencialidades. Lisboa: Alto Comissariado para a Imigração
e Diálogo Intercultural.
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houve uma diminuição face aos anos precedentes, tal como aconteceu na zona euro,
onde a taxa de desemprego recuou de 22.2% (em 2015) para 20.7% (em 2016).
Tabela 1. Taxa de desemprego em Portugal: Total e por grupo etário (%)
Anos
Grupos etários
Total
<25
25-54
55-64
2004
6.6
15.4
6.0
5.5
2005
7.6
16.2
7.2
6.1
2006
7.6
16.5
7.3
6.3
2007
8.0
16.7
7.8
6.5
2008
7.6
16.7
7.2
6.6
2009
9.4
20.3
9.2
7.6
2010
10.8
22.8
10.7
8.9
2011
12.7
30.2
11.9
10.8
2012
15.5
37.9
14.7
12.7
2013
16.2
38.1
15.5
13.7
2014
13.9
34.8
12.7
13.5
2015
12.4
32.0
11.2
12.4
2016
11.1
28.0
10.0
11.6
Fonte: Pordata (última atualização em 22.03.2017).
Sucede que mesmo quando os números do desemprego descem para a generalidade da
população, a percentagem de desemprego jovem permanece alta, para além de que a
maioria das oportunidades de emprego para os jovens correspondem fundamentalmente
a empregos temporários (Silva & Abrantes, 2017: 1336). De facto, as investigações que
analisaram o tema da empregabilidade e dos jovens, no caso português, assinalaram
que, para além das taxas elevadas de desemprego, crescentes desigualdades salariais
(Carmo, Cantante & Alves, 2014) e muita precaridade (Alves, Cantante, Baptista &
Carmo, 2011). Este último estudo realizado pelo Observatório das Desigualdades
registou ainda que a precariedade não se circunscreve à questão laboral e afeta as
múltiplas dimensões e setores da vida social dos jovens.
Neste quadro nacional, emigraram, entre 2010 e 2016, cerca de 96.000 portugueses por
ano (sendo que o pico se registou em 2014, com a saída de 134.624 cidadãos
portugueses).
2
Em função dos dados que recolhemos no portal do Observatório da
Emigração (citando dados da Nações Unidas), sabemos que em 2015 a percentagem de
emigrantes portugueses a viver na Europa era de 62%, ao passo que em 1990 havia sido
de 53%. Para além deste repentino e elevado número de emigrantes, é de notar, tal
como refere Jorge Malheiros, que esta vaga é distinta da dos anos 60 e 70 do século
passado: (i) a Europa é agora um espaço de emigração diverso, pois é um espaço de
livre circulação e (ii) “uma parte substancial desta emigração assume uma lógica
temporária e não definitiva, facto que também é favorecido pelas possibilidades de livre
circulação.” (2011: 135).
2
Ver “Estimativas das saídas totais de emigrantes portugueses, 2000-2015” no Observatório da Emigração,
consultado em 18 de julho de 2017.
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Tal como referimos, esta nossa investigação realizou-se em 2016, o ano em que a maior
crise financeira, desde a grande depressão de 1929, ia no seu oitavo ano. Vivia-se um
quadro de crise económica e de efeito das consequências da aplicação de medidas de
austeridade impostas pela tríade do Fundo Monetário Internacional, Banco Central
Europeu e Comissão Europeia, e todos estes fatores causaram implicações sérias nas
vidas e na perspetiva de vida de muitos jovens licenciados portugueses: desânimo,
precaridade laboral e desemprego (Cairns, 2015: 10; Cairns, 2017: 340).
São diversos os estudos que, no início do século XXI, registam o impacto da crise
económica na vida dos jovens europeus (ver Cairns, 2017; Papadopoulos, 2014; Dietrich,
2013; Aassve, Cottini & Vitali, 2013; Bell & Blanchflower, 2011; Scarpetta, Sonnet and
Manfredi, 2010). De facto, se durante os anos da crise económica, na Europa a taxa
global de desemprego aumentou 3.3% entre 2007 e 2013, a percentagem de
desemprego jovem sofreu ainda maiores agravamentos, atingindo o valor de 7.3 % na
faixa etária 20-24 e 5.1 % na faixa 25-29 (ver OCDE, 2013). Ou seja, no Velho
Continente a percentagem de jovens (20-24 anos) desempregados alcançou veis
superiores ao dobro da percentagem global de desemprego. Esta tendência registou-se
em diversos países europeus (como, por exemplo, na República da Irlanda, na Grécia,
no Chipre, na Espanha). A exceção assinalou-se apenas na Alemanha onde a taxa de
desemprego jovem (20-24 anos) desceu 3.3% entre 2007 e 2012 (i.e. de 9.8% para
6.5%) (ver OCDE, 2013). Não obstante o impacto diferenciado da crise, os estudos
previamente indicados revelam que na grande maioria dos países a mobilidade laboral
internacional após o término das licenciaturas é uma das opções mais frequentes, mesmo
que transitória.
Por mobilidade entendemos o movimento geográfico entre fronteiras, para países que
não o de origem, com uma estada nima de duas semanas (Kmiotek-Meier, Carignani
& Vysotskaya, 2019: 32). Neste ponto, é também fundamental que reflitamos sobre a
distinção entre mobilidade e emigração, para concluir que, na senda de King, Lulle,
Morosanu e Williams (2016: 8), se verificou nos últimos anos uma alteração da
terminologia, no sentido de se preferir o primeiro termo ao segundo. Esta mudança deve-
se ao facto de mobilidade ser um termo politicamente mais neutro ao passo que
emigração tem um extenso passado sendo, em muitos países, perspetivada como uma
ameaça (King & Lulle, 2016: 30-31), implicando uma deslocação para um país onde se
permanece por períodos de tempo mais longos, por vezes até definitivamente, enquanto
que a mobilidade se caracteriza por ser um movimento mais transitório. Engbersen e
Snel (2013) sugerem o termo “mobilidade líquida” para se referirem a este tipo de
deslocações intrafronteiras, na Europa dos 28, que atualmente assume diversas formas
(viagens de trabalho, estágios académicos/profissionais, programas de estudos,
intercâmbios de vária ordem, entre outras). King, Lulle, Morosanu & Williams (2016: 9)
observam uma tendência, na Europa, para a utilização do termo mobilidade quando se
descrevem movimentos entre países europeus, pois este espelha melhor o lema da
“liberdade de circulação”, utilizando-se o termo emigração para indicar deslocações para
fora do espaço europeu.
Ainda neste ponto do trabalho cabe clarificar o conceito de juventude que, como as outras
categorias relativas à idade (infância, meia-idade ou velhice), é mais uma categoria social
e culturalmente construída e menos um conceito definido cronologicamente, que sobre
ele não unanimidade. Por outras palavras, juventude/jovem é um conceito plástico,
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contextual e situacional e acima de tudo relacional, que se define em relação a (ou à
transição entre) outra categoria etária (King, Lulle, Morosanu & Williams, 2016: 9).
Segundo os dados disponíveis na Pordata,
3
2012 registou o número mais elevado de
mobilidade jovem, nas idades compreendidas entre os 15-19 anos, os 20-24 e os 25-29.
De entre estas, a percentagem mais elevada corresponde à dos 25-29, sendo que a partir
de 2012 se verifica uma tendência de diminuição dos números (ver tabela 2).
Tabela 2. Números da mobilidade portuguesa por faixa etária (2008-2015)
Total
15-19
20-24
25-29
30-34
35-39
40-44
45-49
50-54
55-59
60-64
65+
2008
20.357
1.251
4.393
5.377
3.124
1.512
868
237
7
0
0
0
2009
16.899
1.039
3.649
4.465
2.593
1.256
720
196
6
0
0
0
2010
23.760
1.460
5.127
6.276
3.644
1.765
1.013
277
8
0
0
0
2011
43.998
3.277
6.237
6.097
5.075
3.952
3.044
3.032
1.520
611
118
553
2012
51.958
4.378
10.563
11.022
7.184
5.383
3.753
3.505
1.579
990
248
510
2013
53.786
2,775
9.722
8.917
6.303
5.821
5.499
4.898
3.047
1.774
942
1.827
2014
49.572
2.661
8.776
8.122
5.596
5.250
5.159
4.588
3.040
1.723
964
.776
2015
40.377
2.705
7.266
8.146
5.601
4.189
3.652
3.147
1.878
1.048
290
356
Fonte: Pordata (última atualização em 28.10.2016).
No livro Regresso ao futuro: A nova emigração e a sociedade portuguesa (2016), os
investigadores registam duas tendências: os que se deslocam para outros países
europeus (os mais jovens e os menos escolarizados) e os que o fazem para fora da
Europa (os menos jovens e mais qualificados). No mesmo estudo é referido que,
genericamente, Angola, Moçambique, Brasil e Reino Unido são destino dos indivíduos
mais qualificados e que, em 2015, o Reino Unido foi o país para onde emigraram mais
portugueses: 32.3 mil (ver portal do Observatório da Emigração). Já o fluxo para Angola
e Moçambique é mais apelativo para profissionais menos jovens e está muito associado
a transferências de empregados de empresas portuguesas. Neste mesmo livro,
desmente-se que Portugal tenha perdido meio milhão de pessoas para a emigração desde
o início da crise, como por vezes referem os meios de comunicação (veja-se Santos,
2016). De facto, apesar de o INE contabilizar 485 128 saídas entre 2011 e 2014, muitas
destas deslocações são inferiores a um ano (entre 2011 e 2016, este tipo de saída
ascendeu de 56% para 63%). Não obstante este aspeto, bem como o regresso de alguns
dos que haviam saído, a verdade é que os anos da crise financeira e económica assistiram
a uma inédita saída de recém-licenciados. Foi neste contexto e perante estas evidências
que realizámos este estudo.
Estruturámos o artigo em quatro secções. Nesta primeira, que corresponde também à
introdução, apresentamos genericamente o contexto europeu e português nos anos da
crise económica e financeira, no que respeita aos números do desemprego e da
emigração, por ter sido neste período que aplicámos o inquérito por questionário. Ainda
neste primeiro momento do artigo, referimos os principais estudos que analisaram os
3
Dados apurados em funções dos números disponibilizados pelo Instituto Nacional de Estatística (INE).
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efeitos da crise económica nos jovens europeus e definimos os conceitos de mobilidade
e de juventude. No segundo momento, descrevemos os objetivos do estudo, o desenho
da investigação, o instrumento de recolha de dados, o processo e o contexto de aplicação
do inquérito por questionário. Posteriormente, apresentamos e comentamos os
resultados e na secção quatro destacamos as principais conclusões e limitações deste
estudo, bem como propomos possibilidades de investigações futuras.
2. Metodologia
2.1. Os objetivos do estudo
Com este estudo pretendemos analisar as perceções dos alunos da Escola Superior de
Gestão, Hotelaria e Turismo da Universidade do Algarve (ESGHT-UAlg), sobre o seu
futuro profissional e as suas perspetivas de mobilidade internacional. Circunscrevemo-
nos a esta escola por ser aquela com o mais elevado número de estudantes desta
universidade pública (aproximadamente 2000 alunos). Assim, são objetivos desta
investigação:
analisar as perspetivas profissionais, quer em termos gerais, quer relativamente ao
mercado de trabalho nacional, e identificar em que aspetos estas se diferenciam;
averiguar a relação entre os vários aspetos profissionais considerados e a
predisposição para a mobilidade laboral internacional;
caraterizar a predisposição para a mobilidade internacional, tanto laboral como
académica, de acordo com as caraterísticas demográficas e as competências
linguísticas.
2.2. Desenho da investigação
A investigação realizada teve por base um desenho ex-post-facto, descritivo, utilizando-
se como método de recolha de dados primários um inquérito por sondagem. O
questionário foi elaborado para este estudo e as catorze questões nele incluídas,
resultantes da investigação bibliográfica e da consulta de estudos similares, encontram-
se agrupadas em quatro seções: perspetivas profissionais; mobilidade internacional
(laboral e académica); conhecimentos linguísticos e caraterização demográfica (idade,
género, curso, ano).
Relativamente às perspetivas profissionais, são utilizadas duas escalas tipo-Likert com
as quais pretendemos aferir quer a importância que, em termos gerais, os inquiridos
atribuem a determinados aspetos da vida profissional (1 - nada importante a 5 -
extremamente importante), quer a classificação que lhes atribuem na perspetiva de um
futuro trabalho em Portugal (1 - muito mau a 5 - muito bom). Os aspetos considerados
são: oportunidades de emprego; estabilidade e segurança; condições remuneratórias;
possibilidade de progredir na carreira; boa relação com colegas e superiores; flexibilidade
de horário; trabalho que salvaguarde a saúde e o bem- estar; trabalho com prestígio
social.
Na seção relativa à mobilidade internacional os inquiridos deveriam indicar se já
estudaram ou consideram vir a estudar no estrangeiro (mobilidade académica
internacional), bem como se ponderavam a hipótese de vir a trabalhar no estrangeiro
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(mobilidade laboral internacional). Em caso afirmativo deveriam hierarquizar os três
países preferidos e em caso negativo deveriam indicar a influência que os recentes
ataques terroristas, em cidades europeias, poderiam ter nessa decisão (nenhuma, pouca,
muita). Solicitava-se ainda que identificassem familiares com experiência de emigração
(atual ou passada), que associassem uma palavra ao vocábulo “emigração” e que
expressassem o seu vel de concordância com a afirmação “Daqui a dois anos a crise
terá terminado e a situação de emprego em Portugal será melhor do que hoje”, (1 -
discordo completamente a 5 - concordo completamente).
Quanto aos conhecimentos linguísticos, solicitava-se aos inquiridos que indicassem o
número de reprovações a unidades curriculares de línguas e a classificação obtida nas
que concluíram. Deveriam ainda autoavaliar os conhecimentos de inglês, alemão e
espanhol (insuficientes, suficientes, bons ou excelentes) e indicar a realização de algum
exame de certificação de língua inglesa.
2.3. Recolha de dados e caraterização da amostra
Como referimos, a população alvo foram os alunos da ESGHT-UAlg. Esta instituição
localiza-se em Faro, capital de distrito da província do Algarve: a província mais a sul de
Portugal e a região mais turística do país. A Universidade, uma das catorze universidades
públicas portuguesas, nasce em 1979 e reúne duas instituições pré-existentes: a
Universidade do Algarve e o Instituto Politécnico de Faro.
O questionário foi aplicado a uma amostra o probabilística, de conveniência, a 425
estudantes dos três anos das licenciaturas da ESGHT-UAlg (Gestão, Turismo, Marketing
e Gestão Hoteleira) (ver tabela 3). A aplicação decorreu em situação de sala de aula em
dois momentos distintos: em janeiro 2016 e em junho 2016. Os dados recolhidos foram
verificados individualmente e analisados através do programa SPSS vs. 23.
Tabela 3. Distribuição dos alunos inquiridos por licenciatura e por ano da licenciatura
Curso
Total de alunos inquiridos
Alunos / Ano
N.º Alunos
% Alunos
1.º
2.º
3.º
Gestão
143
33.6
33.3%
26.92%
44.71%
Turismo
121
28.5
31.43%
33.08%
14.12%
Marketing
72
16.9
13.81%
21.54%
17.65%
Gestão Hoteleira
89
20.9
21.43%
18.46%
23.53%
3. Apresentação dos resultados
4
3.1. Caraterização dos alunos inquiridos
A idade média dos alunos inquiridos é de 22 anos, não se registando diferenças
significativas entre os vários cursos (tabela 4). Para os primeiros anos, a idade média é,
para todos os cursos, de 21 anos e para os segundos é de 22 anos em Gestão e Turismo
e de 21 em Marketing e Gestão Hoteleira. Não se regista igualmente a existência de
4
Todos os testes apresentados são realizados com um nível de significância de 5%.
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138
diferenças significativas em ambos os casos (testes de Kruskall-Wallis com p=0.51 e
0.50, respetivamente).
Tabela 4. Idade média por curso
Curso
Idade média
Kruskall-Wallis
X
2
p
Gestão
22
6.13
0.11
Turismo
22
Marketing
21
Gestão Hoteleira
21
Quanto aos terceiros anos, os alunos da licenciatura em Gestão apresentam uma idade
média acima da média global e significativamente superior à dos cursos de Turismo e
Gestão Hoteleira (tabela 5).
Tabela 5. Idade média por 3.º ano do curso
Curso (3.º ano)
(𝑿=24)
Idade média
Kruskall-Wallis
LSD
X2
p
Gestão
25
9.96
0.02
Gestão ≠ Tur; GH
Turismo
22
Marketing
24
Gestão Hoteleira
23
Apesar de fraca (V de Crámer=0.2), uma associação entre o género dos estudantes
e a licenciatura frequentada (Chi-square=17.68; p=0.001), destacando-se o curso de
Gestão por ser o único a apresentar uma maioria de alunos do género masculino. Todas
as restantes licenciaturas são maioritariamente frequentadas por estudantes femininas,
registando-se a percentagem mais elevada no curso de Turismo (ver tabela 6).
Tabela 6. Distribuição dos alunos inquiridos por licenciatura e por género
Curso
Género
%
Gestão
Feminino
45.5%
Masculino
54.5%
Turismo
Feminino
69.2%
Masculino
30.8%
Marketing
Feminino
65.3%
Masculino
34.7%
Gestão Hoteleira
Feminino
52.8%
Masculino
47.2%
3.2. Perspetiva profissional e predisposição para a mobilidade laboral
internacional
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No contexto da sua vida profissional futura, os fatores mais valorizados pelos alunos,
quer em termos globais quer em cada um dos cursos, são as oportunidades de emprego
e a possibilidade de progredir na carreira, seguidas pela estabilidade e segurança e,
em quarto lugar, pelas condições remuneratórias. Os mesmos aspetos, quando avaliados
na perspetiva da vida profissional em Portugal, apresentam todos valores
significativamente inferiores. Entre eles, os mais bem classificados dizem respeito à boa
relação com colegas /superiores e à salvaguarda da saúde e do bem-estar (tabela 7).
Tabela 7. Valorização de aspetos profissionais
Perspetiva vida profissional futura
Valores médios
Teste t amostras
emparelhadas
Geral
(4.41)
Portugal
(3.24)
t
p
Oportunidades de emprego
4.54
3.19
25.30
0.00
Estabilidade e segurança
4.29
3.30
17.44
0.00
Condições remuneratórias
4.21
2.97
20.49
0.00
Possibilidade de progredir na carreira
4.43
3.13
23.12
0.00
Boa relação com colegas e superiores
4.19
3.70
10.93
0.00
Flexibilidade de horário
3.69
3.17
10.61
0.00
Trabalho que salvaguarde a saúde e o bem-estar
4.17
3.49
13.68
0.00
Trabalho com prestígio social
3.30
2.96
6.99
0.00
Ao passo que nenhum destes aspetos, quando avaliados na perspetiva do futuro
profissional, apresenta associação com a predisposição para a mobilidade laboral
internacional, o mesmo não acontece quando são concretizados relativamente a um
futuro profissional em Portugal. Nesta perspetiva, deteta-se a existência de relações de
dependência entre aquela predisposição e a avaliação dos aspetos “Estabilidade e
segurança”, “Condições remuneratórias e “Trabalho com prestígio social
(respetivamente: X
2
=10.81, p=0.03; X
2
=14.64, p=0.06; X
2
=12.95, p=0.01),
verificando-se que, quanto mais baixa é a classificação que os inquiridos lhes atribuem,
maior é a percentagem dos que dizem ponderar a possibilidade de vir a trabalhar no
estrangeiro.
Apesar de não se registar a existência de associação entre a possibilidade de mobilidade
e o género dos alunos, constata-se que, ao contrário dos resultados encontrados por
Cairns (2017), em que apenas 35% dos estudantes portugueses afirmam querer sair do
país, a maioria (69.6%) dos nossos inquiridos consideram essa possibilidade, facto que
se observa tanto para as raparigas (66.8%), como para os rapazes (73.2%). no estudo
de Cairns (2017: 342), são as estudantes do género feminino quem mais consideram a
mobilidade internacional (57% versus 43%).
Analisando a predisposição para a mobilidade laboral internacional de acordo com as
idades dos estudantes, verifica-se que esta é maior nos alunos mais jovens (tabela 8).
Tabela 8. Mobilidade laboral por idade
Faixas etárias
(X
2
=8.73; p=0.00)
Possibilidade de trabalhar
no estrangeiro
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Sim
Não
< 25 anos
71.7%
28.3%
≥ 25 anos
51%
49%
(% linha)
Mais concretamente, é naqueles que se encontram entre os 20 e os 24 anos que esta
predisposição é mais expressiva, sendo esta a faixa etária que, de acordo com a OCDE
(2013), sofreu o maior agravamento na taxa de desemprego entre 2007 e 2013 (tabela
9).
Tabela 9. Mobilidade laboral por faixas etárias
Faixas etárias
(X
2
=9.80; p=0.02)
Possibilidade de trabalhar
no estrangeiro
Sim
Não
< 20 anos
69.7%
30.3%
20-24 anos
74.8%
25.2%
25-29 anos
51.9%
48.1%
> 29 anos
50%
50%
(% linha)
Apesar de, em todos os cursos, a maioria dos alunos indicar que pondera a possibilidade
de vir a trabalhar no estrangeiro, a aplicação do teste Chi-quadrado indica que estas
variáveis não o independentes. Não obstante a associação entre elas ser fraca (V de
Crámer=0.23), pode concluir-se que os alunos de Gestão indiciam uma menor
predisposição para uma experiência laboral internacional, pois são os que registam uma
maioria menos expressiva (tabela 10). A esta situação poderá não ser alheio o facto de
este ser o curso da ESGHT que, de acordo com dados da Direção-Geral de Estatísticas
da Educação e Ciência (2016), regista o menor nível de desemprego (5.5%).
Tabela 10. Mobilidade laboral por curso
Curso
(X
2
=22.30; p=0.00)
Possibilidade de trabalhar
no estrangeiro
Sim
Não
Gestão
56.7%
43.3%
Turismo
80.2%
19.8%
Marketing
64.8%
35.2%
Gestão Hoteleira
79.5%
20.5%
(% linha)
Quer para estes cursos, quer para a generalidade dos alunos inquiridos, os países
preferenciais são o Reino Unido (32.8%), os EUA (12.3%) e a Alemanha (10.6%), países
não tão fortemente afetados pela crise económica de 2008, similarmente ao constatado
por Cairns (2017: 344). Face a estes países, e de acordo com a tipologia apresentada
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141
por Hemming, Schlimbach, Tilmann, Nienaber, Roman e Skrobanek (2019: 49), Portugal
classifica-se como um país “beneficiário da mobilidade”, apresentando uma reduzida
capacidade de produção de capital humano
5
mas beneficiando largamente do
desenvolvimento desse capital nos jovens que experienciam mobilidade.
Confrontando os resultados com os referidos por Cairns (2017: 343), verificamos que os
nossos inquiridos, ao ponderarem o país de destino preferencial, aparentam dar uma
menor importância ao facto de nele se falar inglês (54.0%), valor bastante inferior ao
indicado pelo autor acima referido (87%).
Uma das questões do questionário requeria aos alunos que associassem, livremente, um
vocábulo à palavra “emigração”. Todas as palavras que os alunos registaram são
positivas: “oportunidade” (22.6%), “trabalho” (8.4%) e “vida melhor” (8.1%), o que
pode ser entendido como sinal de uma postura otimista face à perspetiva de sair de
Portugal.
Dos 128 (30.1%) alunos que não consideram a possibilidade de vir a trabalhar no
estrangeiro, a maioria são do género feminino (62.5%), têm menos de 25 anos (81.3%)
e frequentam, na sua maior parte (47.7%), o curso de Gestão. A preocupação com os
recentes atentados terroristas não é um fator relevante para esta opção pois a
esmagadora maioria (82%) afirma ser este um fator com pouca ou nenhuma influência.
Quando questionados sobre a sua concordância com a afirmação “Daqui a dois anos a
crise terá terminado e a situação de emprego em Portugal será melhor do que hoje”,
verifica-se que apenas 17% dos alunos acreditam que a situação de crise e desemprego
virá a resolver-se num futuro próximo, resultado inferior aos 21.6% obtidos por Lobo,
Ferreira e Rowland (2015), para os residentes em Portugal acima dos 15 anos.
3.3. Predisposição para a mobilidade académica internacional
A área dos Estudos sobre Migrações ocupa-se da análise da circulação transfronteiriça de
jovens que frequentam ou frequentaram, recentemente, o ensino superior. Dentro desta
cabe o campo de investigação em Mobilidade Internacional de Estudantes (MIE), que
analisa as deslocações dos jovens, quer para estudar numa universidade estrangeira
quer para realizar um estágio fora do seu país. De um modo geral esta mobilidade é
realizada ao abrigo de programas de mobilidade europeus como por exemplo o Erasmus
da Comissão Europeia (ver Gonzalez, Mesanza & Mariel, 2011 e Oborune, 2013, por
exemplo). Um outro foco de análise das investigações em MIE são aqueles estudantes
que optam por estudar fora do país por períodos de tempo mais longos dos que
possibilitam os programas das agências europeias. Nestes casos, os estudantes contam
com a ajuda dos pais e/ou da família mais próxima ou viajam financiados por si mesmos
que frequentemente optam por trabalhar antes de estudar no estrangeiro (ver por
exemplo Altbach & Knight, 2007 e Smith, Rérat & Sage, 2014).
De acordo com o relatório da International Organisation for Migration (2018), a
mobilidade académica internacional dos estudantes aumentou globalmente de cerca de
3.9 milhões em 2011 para 4.8 milhões em 2017.
5
Hemming, Schlimbach, Tilmann, Nienaber, Roman e Skrobanek (2019: 46) definem capital humano como
um conjunto de competências que contribuem para a produtividade laboral e no qual os indivíduos podem
investir.
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No caso do presente estudo constata-se que a maioria (60.67%) dos alunos inquiridos
considera a possibilidade de vir a estudar no estrangeiro, o mesmo se verificando em
cada um dos cursos. Apesar da fraca associação (V de Crámer=0.16), o teste Chi-
quadrado indica, todavia, que a predisposição a estudar no estrangeiro não é
independente do curso, verificando-se que os alunos de Gestão são os que se apresentam
menos propensos a encarar uma experiência estudantil internacional (tabela 11); o
mesmo sucedendo com os alunos da faixa etária mais elevada (tabela 12).
Tabela 11. Mobilidade estudantil por curso
Cursos
(X
2
=11.00; p=0.01)
Possibilidade de estudar
no estrangeiro
Sim
Não
Gestão
50.7%
49.3%
Turismo
61.0%
39.0%
Marketing
68.6%
31.4%
Gestão Hoteleira
70.1%
29.9%
(% linha)
Tabela 12. Mobilidade estudantil por idade
Faixas etárias
(X
2
=6.10; p=0.01)
Possibilidade de estudar
no estrangeiro
Sim
Não
< 25 anos
63.1%
36.9%
≥ 25 anos
45,1%
54.9%
(% linha)
Embora com fraca associação (Phi=0,25), observa-se ainda que, dos alunos que
afirmaram considerar a possibilidade de vir a trabalhar no estrangeiro, a maioria (68.5%)
também pondera a possibilidade de estudar além-fronteiras (tabela 13).
Tabela 13. Mobilidade estudantil/profissional
Trabalhar no estrangeiro
(X
2
=24.91; p=0.00)
Estudar
no estrangeiro
Sim
Não
Sim
68.5%
31.5%
Não
42.5%
57.5%
(% linha)
3.4. A mobilidade internacional e as línguas
Relativamente à autoavaliação que os estudantes fazem dos seus conhecimentos em
Línguas, verifica-se que somente no Inglês se regista uma maioria (70.5%) de avaliações
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143
nos níveis bom e excelente, sendo essas percentagens de 44.3% e 3.6% no caso do
Espanhol e do Alemão (tabela 14).
Tabela 14. Autoavaliação de conhecimentos de Inglês, Alemão e Espanhol
Autoavaliação
conhecimentos
Inglês
Alemão
Espanhol
Insuficientes
5%
78.2%
13.8%
Suficientes
24.5%
18.2%
41.9%
Bons
48.0%
3.6%
34.8%
Excelentes
22.5%
0.0%
9.5%
(% coluna)
Analisando por curso as autoavaliações efetuadas em cada uma das línguas, observa-se,
para o inglês e o alemão, a existência de uma associação, embora fraca, entre estas duas
variáveis (coeficiente de contingência, respetivamente, de 0.23 e 0.37). No caso do
inglês, a maior parte das avaliações posiciona-se no bom, registando-se uma maior
percentagem de bons e excelentes nos cursos de Gestão Hoteleira e Turismo (tabela 15).
Tabela 15. Autoavaliação conhecimentos linguísticos de Inglês por Curso
Curso
(X
2
=23.62; p=0.00)
Autoavaliação conhecimentos Inglês
Insuficientes
Suficientes
Bons
Excelentes
Gestão
6.3%
33.8%
47.2%
12.7%
Turismo
6.7%
17.6%
46.2%
29.4%
Marketing
2.8%
25.0%
43.1%
29.2%
Gestão Hoteleira
2.3%
18.2%
55.7%
23.9%
(% linha)
O alemão não regista qualquer avaliação como excelente, classificando-se a maioria no
insuficiente. Mais uma vez, é nos cursos acima referidos que se encontram os melhores
resultados (tabela 16).
Tabela 16. Autoavaliação a Alemão por Curso
Curso
(X
2
=66.39; p=0.00)
Auto-avaliação conhecimentos Alemão
Insuficientes
Suficientes
Bons
Gestão
92.1%
5.7%
2.1%
Turismo
59.7%
31.9%
8.4%
Marketing
95.8%
2.8%
1.4%
Gestão Hoteleira
67.0%
31.8%
1.1%
(% linha)
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Quanto às reprovações às disciplinas de Línguas, verifica-se que a grande maioria
(79.4%) dos alunos inquiridos, quer em termos globais (tabela 17), quer em cada um
dos cursos (tabela 18), nunca reprovou.
Tabela 17. Reprovações a unidades curriculares de Línguas
Unidades curriculares de Línguas
Nunca reprovou
79.4%
Reprovou 1 vez
10.6%
Reprovou 2 vezes
5%
Reprovou mais de 2 vezes
5%
(% coluna)
Apesar de ser fraca a associação entre o curso e o número de reprovações (Coef.
Contingência=0.29), a aplicação do teste Chi-quadrado indica que as variáveis não são
independentes o que nos leva a concluir, com base na tabela de contingência abaixo
(tabela 18), que é nos cursos de Turismo e Gestão Hoteleira que se regista uma maior
frequência de duas ou mais reprovações.
Tabela 18. Reprovações a Línguas por Curso
Curso
(X
2
=17.73;
p=0.04)
Situação relativamente às disciplinas de Línguas
Nunca
reprovou
Reprovou 1
vez
Reprovou 2
vezes
Reprovou
mais de 2
vezes
Gestão
89.9%
7.2%
1.4%
1.4%
Turismo
74.5%
12.7%
7.3%
5.5%
Marketing
87.5%
9.4%
0.0%
3.1%
Gestão Hoteleira
62.8%
14.0%
11.6%
11.6%
(% linha)
A esmagadora maioria (91%) dos alunos declara nunca ter realizado nenhum exame de
certificação de língua inglesa. Apesar da existência desta certificação ser independente
do curso frequentado (X
2
=4.29; p=0.23), observa-se que é entre os alunos de Gestão
Hoteleira que se regista maior percentagem de certificações (tabela 19).
Tabela 19. Certificações de Língua inglesa
(% linha)
Cursos
Certificação língua inglesa
Não
Sim
Gestão
92.1%
7.9%
Turismo
92.4%
7.6%
Marketing
93.1%
6.9%
Gestão Hoteleira
85.4%
14.6%
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Analisando a relação entre a predisposição para a mobilidade laboral internacional e as
línguas, foi detetada a existência de associação, embora fraca (Phi=0.18), unicamente
para a autoavaliação à língua inglesa, observando-se uma maior predisposição para esta
experiência entre os alunos que melhor avaliam os seus conhecimentos nesta ngua
(tabela 20).
Tabela 20. Mobilidade laboral / Auto-avaliação Inglês
Auto-avaliação a inglês
(X
2
=24.44; p=0.00)
Possibilidade de trabalhar
no estrangeiro
Sim
Não
Insuficiente-Suficiente
52.4
47.6
Bom-Excelente
76.8
23.2
(% linha)
Quanto à mobilidade estudantil internacional, não foi detetada a existência de associação
entre a predisposição para estudar no estrangeiro e a confiança dos alunos nas suas
competências linguísticas, para nenhuma das línguas consideradas (Inglês: X
2
=4.13;
p=0.25; Alemão: X
2
=0.09; p=0.96; Espanhol: X
2
=1.34; p=0.72).
4. Conclusões
Os aspetos do trabalho mais valorizados pelos estudantes inquiridos, tanto em termos
globais como em cada um dos cursos, são as “oportunidades de emprego” e a
“possibilidade de progredir na carreira”, seguidas pela ”estabilidade e segurança” e,
em quarto lugar, pelas “condições remuneratórias”.
Os mesmos aspetos, quando avaliados na perspetiva de um futuro profissional em
Portugal, apresentam todos valores significativamente inferiores. Entre eles, os mais bem
classificados dizem respeito à “boa relação com colegas /superiores” e à “salvaguarda da
saúde e do bem-estar” não se encontrando estes, no entanto, entre os aspetos de maior
importância para os nossos inquiridos.
Apesar de, relativamente ao mercado de trabalho nacional, todos os aspetos serem pior
classificados, apenas a baixa expetativa relativa aos fatores “estabilidade e segurança”,
“condições remuneratórias” e “trabalho com prestígio social”, tem influência na
predisposição para a mobilidade laboral internacional.
Ao contrário dos resultados encontrados por Cairns (2017), a maioria (69.6%) dos
estudantes inquiridos afirma considerar a possibilidade de vir a trabalhar no estrangeiro,
facto que se observa tanto para as raparigas (66.8%), como para os rapazes (73.2%) e
sendo esta predisposição superior naqueles que se encontram entre os 20 e os 24 anos,
precisamente a faixa etária que, de acordo com a OCDE (2013), sofreu o maior
agravamento na taxa de desemprego entre 2007 e 2013. Dos destinos citados como
preferenciais, a maioria (54%) é de língua inglesa, surgindo em primeiro lugar o Reino
Unido. A esta preferência poderá não ser alheio o facto de esta ser a única língua em que
se regista uma maioria (70.5%), de avaliações nos níveis bom e excelente.
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Considerando o facto de que os principais vocábulos, associados à palavra emigração,
têm uma conotação positiva (“oportunidade”, “trabalho”, “vida melhor”), e tendo em
conta que as palavras que escolhemos são esclarecedoras da visão que detemos sobre
dada realidade, é possível concluir que, para os estudantes inquiridos, a perspetiva da
mobilidade é fundamentalmente positiva e promissora de quase tudo aquilo que um
jovem deseja quando termina uma licenciatura: uma oportunidade para arranjar um
trabalho que lhe proporcione uma vida melhor.
O mesmo otimismo não se manifesta quando questionados relativamente à evolução do
emprego em Portugal, sendo apenas 17% dos inquiridos a perspetivar uma evolução
positiva para os próximos dois anos, resultado inferior aos 21.6% obtidos por Lobo,
Ferreira e Rowland (2015), para os residentes em Portugal acima dos 15 anos.
Para os alunos que não consideram a possibilidade de vir a trabalhar no estrangeiro
(30.1%), a preocupação com os recentes atentados terroristas não é um fator relevante,
pois a esmagadora maioria (82%) afirmou ser este um fator com pouca ou nenhuma
influência nessa decisão.
Tal como se verifica relativamente à mobilidade laboral, a maioria (60.67%) dos alunos
inquiridos considera a possibilidade de vir a estudar no estrangeiro, sendo igualmente
nos alunos mais velhos (25 ou mais anos) e no curso de Gestão que se verifica uma
menor apetência por este tipo de experiência estudantil. Apesar de fraca, regista-se uma
associação entre estes dois tipos de mobilidade sendo que, dos alunos que ponderam
uma experiência profissional internacional, a maioria (68.5%) considera igualmente a
possibilidade de estudar no estrangeiro. Ao passo que a predisposição para uma
experiência académica internacional não apresenta qualquer relação com os
conhecimentos linguísticos dos alunos, no caso da mobilidade laboral verifica-se que esta
predisposição é maior entre os alunos que expressam uma maior confiança no seu
domínio da língua inglesa.
Apesar de a maioria dos nossos inquiridos demonstrar predisposição para a mobilidade
internacional laboral e académica, de acordo com Kmiotek-Meier, Carignani e Vysotskaya
(2019: 32), muitos jovens europeus estão ainda relutantes em realizar este tipo de
experiência quer seja para fins académicos ou profissionais. Na verdade, apesar de, no
contexto europeu, a mobilidade poder ser entendida como um instrumento para
ultrapassar desigualdades e para garantir os objetivos de coesão social e territorial da
União Europeia (Hemming, Schlimbach, Tilmann, Nienaber, Roman & Skrobanek, 2019:
45), autores que alertam para o facto de, pelo contrário, a mobilidade contribuir
potencialmente para a manutenção das desigualdades, pois o indivíduo que se desloca
encontra-se muitas vezes numa posição de desvantagem devido, por exemplo, à
desvalorização das suas competências académicas (Bilecen & Van Mol, 2017: 1246).
Apesar da natureza essencialmente exploratória e descritiva do presente estudo,
consideramos que este pode contribuir para um melhor conhecimento das expetativas
profissionais dos estudantes universitários e das suas perspetivas de mobilidade
internacional.
Dada a natureza não probabilística da amostra utilizada, o estudo apresenta limitações
no que se refere à leitura dos resultados, que não devem ser extrapolados fora do
contexto em análise. A ampliação do estudo a outras unidades de ensino, e com recurso
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à amostragem aleatória, permitiria uma leitura generalizável a todos os jovens
universitários portugueses. A segunda limitação a destacar diz respeito à utilização de
dados de corte transversal, o que inviabiliza analisar a evolução das variáveis
consideradas. Dada a sua natureza dinâmica, e as alterações entretanto ocorridas no
quadro socioeconómico nacional, teria especial interesse aprofundar a investigação numa
perspetiva longitudinal.
No entanto, esta investigação permite oferecer dados que poderão servir como ponto de
partida para a realização de estudos nos quais se avalie a relação entre a decisão de
mobilidade profissional, e/ou académica, internacional e o conhecimento/domínio de
línguas estrangeiras.
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Notas e Reflexões
A COOPERAÇÃO TRANSFRONTEIRIÇA NA EURORREGIÃO
GALIZA-NORTE DE PORTUGAL
1
Vera Ferreira
veralsf.vf@gmail.com
Doutoranda em Alterações Climáticas e Políticas de Desenvolvimento Sustentável no Instituto de
Ciências Sociais da Universidade de Lisboa (Portugal) e investigadora júnior no Centro de Estudos
Sociais da Universidade de Coimbra, onde integra o Núcleo de Estudos sobre Ciência, Economia e
Sociedade. Mestre em Relações Internacionais (Especialidade de Estudos da Paz e da Segurança)
pela Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra (2017), com a dissertação “Migrações
climáticas e segurança humana”. Licenciada em Relações Internacionais pela Faculdade de
Economia da Universidade de Coimbra (2015).
Introdução
Após séculos de desconfiança e rivalidade, as relações de cooperação territorial e, mais
concretamente, de cooperação transfronteiriça entre Portugal e Espanha caracterizam-
se, na atualidade, por um dinamismo crescente. Com efeito, desde a segunda metade
da cada de 1970, tem-se assistido a uma evolução e consolidação paulatina destas
relações. O estabelecimento de Eurocidades, Eurorregiões, Comunidades de Trabalho e
Agrupamentos Europeus de Cooperação Territorial ao longo do Espaço Transfronteiriço
de Espanha e Portugal
2
ilustra bem essa vitalidade.
De acordo com Araújo e Varela (2014: 807), “a cooperação territorial surge como um
objetivo político para promover o desenvolvimento e a coesão a nível local, regional,
nacional ou mesmo transnacional”. Neste contexto, a Eurorregião Galiza-Norte de
Portugal destaca-se pela sua “longevidade institucional” (Araújo e Varela, 2014: 805),
pelo que merece ser objeto de uma reflexão mais aprofundada. Alguns autores referem
mesmo que “o território conjunto constituído pela Galiza e a Região Norte é
1
O presente texto é resultado de um dos estudos do projecto de investigação ‘Cidades e Regiões: a
paradiplomacia em Portugal’, coordenado pelo Professor Doutor Luís Moita, no âmbito da unidade de
investigação OBSERVARE da Universidade Autónoma de Lisboa, beneficiando de financiamento da FCT
Fundação para a Ciência e a Tecnologia, com a referência UID/CPO/04155/2013
2
O Espaço Transfronteiriço de Espanha e Portugal abrange 37 NUT III (Nomenclatura das Unidades
Territoriais para Fins Estatísticos) de ambos os lados da fronteira.
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[provavelmente] o espaço transfronteiriço mais bem definido da Europa” (Pardellas e
Padín, 2017: 32).
Situada no noroeste da Península Ibérica, a Eurorregião Galiza-Norte de Portugal inclui a
Região Norte de Portugal (que integra as NUT III do Alto Minho, Cávado, Ave, Alto
Tâmega, Tâmega e Sousa, Terras de Trás-os-Montes, Douro e Área Metropolitana do
Porto) e a Comunidade Autónoma da Galiza (constituída pelas províncias de Pontevedra,
Ourense, Corunha e Lugo), ocupando uma superfície de 51 mil km
2
.
Na perspetiva de Cancela (2013: 89-90), para além dos elementos tangíveis (como a
construção de pontes e a requalificação das vias de comunicação), a aproximação entre
o Norte de Portugal e a Galiza é portadora de um extraordinário património intangível,
designadamente a criação de um contexto que encorajou a cooperação entre diversos
atores político-administrativos e socioeconómicos, numa tentativa de fundar um território
socialmente e economicamente atrativo e coeso e de reduzir o seu caráter periférico
(relativamente aos principais centros políticos e económicos) originando, no fundo,
uma verdadeira Eurorregião.
Segundo a conceção de Medeiros (2010: 6), uma “Eurorregião” pode ser definida como
uma região ou sub-região, normalmente como um área inferior a
200.000 km
2
, que se estende para além das fronteiras que separam
um ou mais países Europeus e que: (i) está a ser alvo de uma
estratégia de desenvolvimento comum, com carácter de atuação
permanente e reforçado, e que conte com uma importante
participação e colaboração de vários atores dos níveis local ao
regional, e em particular da sociedade civil. […] (ii) o efeito barreira
em todas as suas dimensões é bastante reduzido, permitindo a
passagem intensa de fluxos transfronteiriços que ajudem a
estruturar o território e a proporcionar efeitos socioeconómicos
positivos em ambos os lados da fronteira; (iii) a partilha de
equipamentos sociais e culturais seja uma realidade; (iv) se
verifique uma cooperação intensa e em rede entre principais os
polos de investigação, centros urbanos e entidades empresariais
transfronteiriças.
Como sublinham Varela et al. (2015: 82-83), com a entrada de atores subnacionais nas
relações internacionais
gera-se um novo espaço paralelo aos espaços diplomáticos formais
e centrais, criando uma rede que é formal, mas também periférica
e paradiplomática, em que as interdependências e a cooperação se
enriquecem a si próprias, multiplicando e, em alguns casos,
produzindo impactos através de iniciativas sucessivas de
cooperação transfronteiriça, inter-regional e territorial.
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Deste modo, a adoção do conceito de “paradiplomacia” remete para “o estudo do
relacionamento externo de atores sociais distintos dos poderes centrais dos Estados
nacionais” (Curto et al. 2014: 115). Por conseguinte, para além da contextualização e
caracterização da cooperação entre a Região Norte e a Galiza, pretendemos igualmente
compreender se a Eurorregião Galiza-Norte de Portugal se apresenta como um ator
relevante nesta diplomacia não-estatal.
Assim, em primeiro lugar serão explicitados os fatores que motivaram a cooperação entre
o Norte de Portugal e a Galiza; em segundo lugar, serão identificadas as etapas de
institucionalização da cooperação transfronteiriça entre as duas regiões; de seguida,
serão evidenciadas as áreas estratégicas de cooperação, bem como as iniciativas e
projetos implementados na Eurorregião; posteriormente, proceder-se-á a uma avaliação
da cooperação entre a Região Norte e a Galiza, antecipando alguns desafios para o
futuro; finalmente, procuraremos aferir se é possível falar de uma paradiplomacia da
Eurorregião Galiza-Norte de Portugal.
Fatores que motivaram a cooperação entre o Norte de Portugal e a Galiza
Historicamente, a convivência e os intercâmbios entre o Norte de Portugal e a Galiza têm
beneficiado da contiguidade geográfica e das afinidades culturais e linguísticas (Cancela,
2010: 152). Ademais, tal como explicam Trillo e Lois (2011: 129), “a procura de
benefícios pelas diferenças de salário, os preços da habitação, solo, matérias primas,
produtos manufaturados ou atividades de ócio explicam movimentos transfronteiriços
diários ou frequentes, o que pode ocorrer em áreas afetadas pela fronteira”. Não
obstante, existem outros fatores de cariz político e institucional que favoreceram esta
cooperação.
A transição democrática de Portugal e Espanha na segunda metade da década de 1970
influenciou decisivamente a reorientação das respetivas políticas externas, o que
impulsionou a cooperação transfronteiriça entre os dois Estados. Com efeito, em 1977
foi assinado o Tratado de Amizade e Cooperação entre Portugal e Espanha, com o
propósito de “fortalecer os vínculos de amizade e solidariedade que existem entre os dois
países”. Considerava-se que o reforço da cooperação entre os Estados ibéricos e a
prossecução de uma prática de boa vizinhança contribuiriam para a paz e segurança
internacionais, assim como para o “desenvolvimento harmonioso das relações que
decorrem de um património histórico e cultural compartilhado”. Pretendia-se, portanto,
estimular relações económicas mutuamente vantajosas especialmente nos sectores da
indústria, comércio, mineração, agricultura, pesca, transportes e turismo , desenvolver
novas áreas de cooperação e “promover a proteção e aproveitamento racional dos
recursos naturais de uso comum” (Artigos 3.º, 4.º e 7.º).
Revela-se imprescindível assinalar, igualmente, a descentralização do Estado espanhol
(na sequência da aprovação da Constituição de 1978), que conduziu ao estabelecimento
de comunidades autónomas. Efetivamente, a Galiza é, desde 1981, uma Comunidade
Autónoma, cujos poderes políticos emanam do seu Estatuto de Autonomia. Possui as
suas próprias instituições políticas um Parlamento, um Governo Regional e um
Presidente e o seu território está dividido em províncias e municípios.
Por outro lado, para Pardellas e Padín (2017: 12), “o processo de integração europeia
constituiu um ponto de inflexão na história das fronteiras”, desde logo, pela abolição das
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barreiras fronteiriças e pela participação no mercado único europeu (que permite a livre
circulação de pessoas, bens, serviços e capitais). Portugal e Espanha aderiram à então
Comunidade Económica Europeia em 1986, e em 1988 e 1990 ratificaram,
respetivamente, a Convenção-Quadro Europeia para a Cooperação Transfronteira entre
as Comunidades ou Autoridades Territoriais (de 1980), de acordo com a qual os Estados
signatários se comprometiam a “facilitar e a promover a cooperação transfronteiriça
entre as comunidades ou autoridades territoriais sob a sua jurisdição” (Artigo 1.º). Por
conseguinte, entende-se por cooperação transfronteiriça
qualquer tipo de concertação visando o reforço e o desenvolvimento
das relações de vizinhança entre as comunidades ou autoridades
territoriais sob a jurisdição de duas ou mais Partes contratantes,
bem como a celebração de acordos e de concertações que se
mostrem úteis à consecução desse fim (Artigo 2.º).
Além disso, a Política de Coesão da União Europeia cujo principal objetivo consiste em
reduzir as disparidades económicas, sociais e territoriais entre regiões (Artigo 174 do
Tratado de Funcionamento da União Europeia) tem vindo a incentivar a cooperação
regional, designadamente no que concerne à cooperação transfronteiriça. Destaca-se,
neste âmbito, o INTERREG. Esta iniciativa comunitária consiste num conjunto de
programas financiados pelo Fundo Europeu de Desenvolvimento Regional, que visam
fomentar a cooperação entre regiões da União Europeia. Iniciado em 1989, encontra-se
atualmente no seu quinto período de programação (2014-2020)
3
.
Etapas de institucionalização da cooperação transfronteiriça entre a
Galiza e o Norte de Portugal
Recorrendo à sistematização de Cancela (2010), é possível distinguir duas fases na
institucionalização da cooperação entre a Região Norte e a Galiza: uma fase informal, de
1981 a 1991, e uma fase formal, que o autor situa entre 1991 e 2008, mas que pode ser
prolongável até à atualidade. Deste modo, a fase informal caracterizou-se pelos
contactos preliminares entre a Junta da Galiza e a Comissão de Coordenação e
Desenvolvimento Regional do Norte (CCDR-N) os dois principais atores e dinamizadores
dos processos de cooperação , que culminaram na celebração de Jornadas Técnicas
entre a Galiza e o Norte de Portugal (em 1988 e em 1990). A partir das II Jornadas
Técnicas, constatou-se a necessidade de estabelecer uma estrutura que favorecesses a
continuidade, coerência e incremento da cooperação transfronteiriça, enquadrada num
programa de trabalho estruturado a nível funcional e institucional (CTGNP, 2019).
Principiou, assim, a fase formal de cooperação. Com efeito, em outubro de 1991, o
Presidente da Junta da Galiza, Manuel Fraga Iribarne, e o Presidente da CCDR-N, Luís
3
No âmbito do INTERREG V-A Espanha-Portugal (POCTEP) 2014-2020, a estratégia de cooperação territorial
entre os dois Estados assenta nos seguintes objetivos temáticos: reforçar a investigação, o desenvolvimento
tecnológico e a inovação; melhorar a competitividade das pequenas e médias empresas; promover a
adaptação às alterações climáticas e a prevenção e gestão de riscos; preservar e proteger o ambiente e
promover a utilização eficiente dos recursos; e reforçar a capacidade institucional.
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Braga da Cruz, assinaram o Acordo Constitutivo da Comunidade de Trabalho Galiza-
Região Norte de Portugal. Neste acordo reconhecia-se que “a cooperação transfronteiriça
é um dos meios mais eficazes para assegurar a aproximação das populações fronteiriças,
a superação das dificuldades que comporta toda a fronteira e o impulso ao
desenvolvimento das zonas fronteiriças”. Nesse sentido, a fundação da Comunidade de
Trabalho Galiza Norte de Portugal (CTGNP) visava reforçar as relações de boa
vizinhança, “com a tripla finalidade de contribuir para o desenvolvimento de ambas as
regiões, para a construção europeia e para melhorar a situação das populações
fronteiriças”. Assim, através da atuação de Comissões Setoriais, a Comunidade de
Trabalho privilegiaria o desenvolvimento económico e o desenvolvimento rural; os
transportes, as comunicações e o turismo; a cultura, a educação e a inovação; a
agricultura e a pecuária; o meio ambiente e o ordenamento do território.
Em 2006, este Acordo foi adaptado, de modo a integrar as disposições da Convenção
entre a República Portuguesa e o Reino de Espanha sobre Cooperação Transfronteiriça
entre Instâncias e Entidades Territoriais (Convenção de Valência), assinada em 2002. A
referida Convenção tem por objeto “promover e regular juridicamente a cooperação
transfronteiriça entre instâncias territoriais portuguesas e entidades territoriais
espanholas” (Capítulo I, Artigo 1.º). Deste modo, em 2006 foi assinado o Convénio de
Cooperação Transfronteiriça entre a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento
Regional do Norte de Portugal e a Junta da Galiza, que desde então tem vindo a reger o
funcionamento da CTGNP. De acordo com as disposições plasmadas no Convénio
(Capítulo Primeiro, Artigo 3), a ação da CTGNP deveria centrar-se nos seguintes âmbitos
de cooperação: desenvolvimento económico; transportes e comunicações; agricultura,
meio ambiente, recursos naturais e ordenamento do território; pesca; saúde e assuntos
sociais; desenvolvimento local; administração regional e local; educação, formação e
emprego; investigação científica e universidades; cultura, património e turismo.
Também em 2006, e com o objetivo de eliminar os obstáculos à cooperação territorial, a
União Europeia criou instrumentos de cooperação territorial dotados de personalidade
jurídica os Agrupamentos Europeus de Cooperação Territorial
4
. Perante este cenário,
em 2008 foi fundado o Agrupamento Europeu de Cooperação Territorial Galiza-Norte de
Portugal (GNP-AECT), através do Convénio de Cooperação Territorial Europeia entre a
Xunta de Galicia e a Comissão de Coordenação e Desenvolvimento Regional do Norte
inaugurou-se uma nova etapa histórica na cooperação transfronteiriça entre o Norte de
Portugal e a Galiza, designada por cooperação de “segunda geração” (Cancela, 2010:
155).
Segundo Cancela (2010: 151), esta cooperação pressupõe “o aprofundamento e a
institucionalização da cooperação e a renovação do compromisso político da Junta da
Galiza e da CCDR-N para com este empreendimento comum”. O GNP-AECT iniciou
funções em 2010 e tem como missão facilitar e promover a cooperação territorial entre
a Galiza e o Norte de Portugal em diversas áreas de atuação, produzindo um espaço
eurorregional cada vez mais integrado. Deste modo, o GNP-AECT assume como principais
objetivos: fomentar e simplificar as relações transfronteiriças; ampliar a competitividade
do território e do tecido empresarial; promover as transferências de competências,
conhecimento e inovação; desenvolver o acesso a sistemas de transportes sicos;
incrementar a coesão social e institucional da Eurorregião; assegurar um
4
Regulamento (CE) N.º 1082/2006.
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A cooperação transfronteiriça na Ecorregião Galiza-Norte de Portugal
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desenvolvimento sustentável; racionalizar os equipamentos transfronteiriços,
incentivando a sua utilização conjunta. No fundo, trata-se de um agente encarregue de
estabelecer pontes de comunicação, investimento e convergência entre instituições,
empresas e cidadãos de ambos os lados da fronteira (GNP-AECT, 2019).
Por conseguinte, atualmente coexistem dois instrumentos institucionais no espaço de
cooperação eurorregional: a CTGNP, que atua enquanto entidade política e estratégica,
e o GNP-AECT, que funciona enquanto executor efetivo dos projetos de cooperação
(Cancela, 2013: 97).
Áreas estratégicas de cooperação, iniciativas e projetos
No que diz respeito às medidas que consolidam as relações entre o Norte de Portugal e
a Galiza, verifica-se que o GNP-AECT implementa um plano anual de atividades e está
atualmente a executar o Plano de Investimentos Conjuntos (PIC) para o período 2014-
2020 (Quadro 1).
Quadro 1 - Plano de Investimentos Conjuntos da Eurorregião Galiza Norte de Portugal 2014-2020,
com os seus respetivos eixos de atuação e prioridades estratégicas
Eixos
Prioridades estratégicas
Investigação e transferência
de conhecimento
Consolidação e potenciação de polos de investigação;
Potenciação da transferência de resultados para o setor
produtivo.
Competitividade e emprego
Atração de investimento produtivo;
Fomento da internacionalização económica da Eurorregião.
Qualidade do meio ambiente
e património
Valorização e proteção do património natural e cultural;
Valorização do sistema urbano policêntrico;
Promoção da eficiência dos recursos ambientais.
Capacitação institucional ao
serviço da cidadania
Promoção da cooperação transfronteiriça entre
administrações públicas como instrumento eficaz para
melhorar a qualidade de vida dos cidadãos.
Fonte: elaboração própria com dados do PIC.
O PIC previa a elaboração de uma Estratégia de Especialização Inteligente eurorregional,
que se concretizou em 2015, com a adoção da Estratégia de Especialização Inteligente
Transfronteiriça Galiza-Norte de Portugal (RIS3T). O RIS3T enquadra-se na nova Política
de Coesão 2014-2020 da União Europeia, que impulsiona o desenvolvimento económico
através do apoio à investigação e à inovação, tendo em vista uma especialização
económica competitiva de cada região. Nesse sentido, o RIS3T Galiza-Norte de Portugal
define seis áreas estratégicas de colaboração: i) aproveitamento da energia proveniente
da biomassa e do mar; ii) potenciamento da competitividades das indústrias
agroalimentar e biotecnológica; iii) reforço da competitividade do sector industrial
(indústria 4.0); iv) fomento da competitividade das indústrias de mobilidade; v)
modernização das indústrias turísticas e criativas, incluindo o recurso às TIC; vi)
desenvolvimento de soluções avançadas para uma vida saudável e um envelhecimento
ativo.
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Avaliação da cooperação entre o Norte de Portugal e a Galiza e desafios
para o futuro
Mediante um conjunto de entrevistas realizadas com representantes da CCDR-N e do
GNP-AECT, é possível afirmar que o impacto global da Eurorregião Galiza-Norte de
Portugal é deveras positivo.
Contudo, no que concerne à perceção da população da fronteira relativamente à
Eurorregião, os representantes da CCDR-N e do GNP-AECT reconhecem que existe uma
dificuldade em comunicar os resultados das ões empreendidas. Tal não tem invalidado,
contudo, a participação ativa da população da Eurorregião nas iniciativas e programas
lançados pelo GNP-AECT. Consta-se, em suma, que “a cidadania está muito a favor da
Eurorregião”, até porque, se pensarmos em cidades como Valença e Tui separadas
apenas por 3 km , o quotidiano das populações é vivido de ambos os lados da fronteira.
No que diz respeito à avaliação do impacto global das ações realizadas, verifica-se que
esta tem sido maioritariamente de base qualitativa (sobretudo entrevistas). Segundo os
representantes da CCDR-N e do GNP-AECT, a avaliação é dificultada porque no mesmo
território concorrem rias políticas, sendo difícil isolar os resultados que decorrem de
cada uma (e, consequentemente, dos instrumentos de cooperação transfronteiriça). Na
perspetiva dos entrevistados, revela-se premente delinear indicadores de avaliação de
impacto territorial de natureza transfronteiriça, com o intuito de selecionar os programas
que têm mais significado a nível do território, avaliar os seus efeitos e reformulá-los (se
assim se justificar).
Finalmente, relativamente aos desafios para o futuro, constata-se que a principal
fragilidade da cooperação entre a Região Norte e a Galiza é de caráter institucional e
deriva da assimetria de competências entre a Comunidade Autónoma da Galiza
governada por uma Junta mandatada politicamente e que detém autonomia e orçamento
para aplicar políticas e a Região Norte em que a CCDR-N representa um governo
central (não é uma entidade legal per se), não possuindo, por isso, autonomia para uma
intervenção política de maior alcance. Tal significa que muitas das questões associadas
à cooperação transfronteiriça têm de ser tratadas diretamente com o Governo de
Portugal, o que pode constituir uma desvantagem, na medida em que existe um maior
distanciamento de Lisboa face às especificidades da cooperação entre a Região Norte e
a Galiza.
Conclusão: será possível falar de uma paradiplomacia da Eurorregião
Galiza-Norte de Portugal?
No que se refere à coordenação das relações externas da Região Norte com as prioridades
da política externa portuguesa (definidas pelo poder central), constatou-se, na sequência
das entrevistas efetuadas, que convivem duas dinâmicas paradoxais:
i) Existe uma dependência face ao poder central, resultante da carência de autonomia
por parte da CCDR-N. No entanto, “há determinadas experiências que são vividas
pelas áreas que sofrem o impacto da fronteira que não são imediatamente visíveis, de
forma alguma, para pessoas, entidades e organismos que pensam do ponto de vista
central há um distanciamento muito grande”. A entrevistada conclui, assim, que “a
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regionalização pode ser defensável a rios veis, mas do ponto de vista da resolução
de interesses de natureza transfronteiriça é um elemento óbvio”. Na sua opinião, tal
propiciaria uma interlocução idêntica entre a Região Norte e a Galiza, bem como a
concretização de ações que foram pensadas e orçamentadas, mas cuja execução
tem vindo a ser obstaculizada.
ii) Verifica-se uma vontade explícita de autonomia na condução das relações de
cooperação da Eurorregião. Nas palavras da representante da CCDR-N, “muitas das
ações que nós fazemos até acabam por descrever pretensões, desejos e intenções
mais sentidos do ponto de vista do território, quer ao vel dos municípios, por
exemplo, quer ao nível das NUTS III, e não tanto de cima para baixo”. Já ao nível da
estratégia de internacionalização, a Eurorregião participa em redes que “não se
inscrevem numa lógica central”. A entrevistada acrescenta ainda que essa atuação se
pauta pelo reconhecimento da “importância que estas ações têm no âmbito da nossa
própria Eurorregião, autonomamente, de acordo com o nosso interesse e daquilo que
nós percebemos como sendo um interesse […] de projetar a região, ainda que com os
constrangimentos institucionais que tenhamos”.
Em suma, é possível concluir que o dinamismo e vitalidade que caracterizam os processos
de cooperação transfronteiriça na Eurorregião Galiza-Norte de Portugal não se traduzem
numa verdadeira diplomacia não-estatal, ou paradiplomacia. Efetivamente, ainda que em
alguns fóruns europeus entre regiões a Região Norte e a Galiza se apresentem enquanto
Eurorregião, atuando de um modo concertado, tal não significa que a Eurorregião
constitua um ator unitário ou um agente de internacionalização autónomo. Pelo contrário,
a inserção internacional Eurorregião continua dependente das políticas externas dos
Estados português e espanhol.
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Como citar esta Nota
Ferreira, Vera (2019). "A cooperação transfronteiriça na Eurorregião Galiza-Norte de
Portugal". Notes, JANUS.NET e-journal of International Relations, Vol. 10, N.º 1, Maio-Outobro
2019. Consultado [online] em data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-
7251.10.1.01
OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
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Recensão Crítica
Sá, Tiago Moreira de; Soller, Diana (2018). Donald Trump: O
Método no Caos. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 227 páginas
Patrícia Caetano
a53710@campus.fcsh.unl.pt
Licenciada em Estudos Europeus pela Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa em 2017
com distinção de mérito. Mestranda em Ciência Política e Relações Internacionais, especialização
em Dinâmicas Regionais na Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de
Lisboa, 2º ano.
Uma história antiga como tempo: Um jacksoniano na Casa Branca
As presidenciais americanas de 2016 foram marcadas por vários acontecimentos atípicos.
O primeiro e mais importante deles foi a vitória de um candidato com promessas
singulares e com um percurso honorifico que nada tinha que ver com política, mas, sim
com negócios. Ao contrário da sua opositora democrata, Hillary Clinton, cuja vida política
esteve sempre no cerne da sua carreira, Donald Trump, pelo lado dos Republicanos,
empresário e self made man, tinha promessas populistas e difíceis de concretizar entre
elas o facto de edificar um muro em toda a fronteira com o México e fazer o México pagá-
lo.
Foi com um certo espanto
1
que os próprios EUA e o mundo receberam a sua vitória em
Novembro de 2016. Como tinha chegado um demagogo à Casa Branca? Como é que os
EUA, o país da liberdade, deixa algo assim acontecer? Eram exemplos das questões que
se ouviam nas ruas, nos media e claro entre o eleitorado. Começaram imediatamente a
surgir testemunhos de insiders e em poucos meses vários livros chegaram às livrarias.
Tais como o provocador FIRE AND FURY por Michael Wolff e até mesmo A HIGHER
LOYALTY por James Comey ex-director do FBI despedido por Donald Trump. O que
faltava ao estado da arte que surgia era compreender a figura Trump, as suas acções
que muitos consideravam aleatórias e sem fundamento e a sua visão política, muito
mais do que limitar-se a descrever as mirabolantes façanhas que ocorriam em DC. É,
neste contexto, e suprimindo esta lacuna, que Donald Trump: O Método no Caos por
Tiago Moreira de doutorado em História das Relações Internacionais e especialista
1
https://www.scientificamerican.com/article/explaining-donald-trump-s-shock-election-win/
https://www.washingtonpost.com/gdpr-consent/?destination=%2fpolitics%2felection-day-an-
acrimonious-race-reaches-its-end-point%2f2016%2f11%2f08%2f32b96c72-a557-11e6-ba59-
a7d93165c6d4_story.html%3f&utm_term=.154915d3cea7
www.abc.net.au%2Fnews%2F2016-11-09%2Fdonald-trump-wins-us-election-defeats-hillary-
clinton%2F8006776&usg=AOvVaw2vepkEhm1hdA2Ji0E7Vobr
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em política norte-americana e Diana Soller doutorada em Estudos Internacionais e
bolseira Fullbright surge. A obra insere-se na tendência explicativa do fenómeno
Trump, procurando deter uma visão imparcial e sem preconceitos alicerçando-se a
movimentos sociais próprios da sociedade americana. Uma das primeiras obras em língua
portuguesa sobre o tema e uma das mais importantes para o estado da arte quer nacional
quer internacional.
A chegada de Trump
Para entender a ascensão de Trump, a presente obra, delimita-se em quatro capítulos.
O primeiro deles procura compreender: Porquê Trump?, contextualizando espácio-
temporalmente. E os outros em enquadrá-lo na visão das relações internacionais
confrontando-o com as suas limitações e dinâmicas regionais.
Os autores começam por plantear três questões mestre que irão conduzir o livro. São
elas:
Como é que Donald Trump alguém que põe em cheque a “narrativa fundadora” tem
grande aceitação pelo eleitorado americano?
Como foi possível aos media e eleitorado diabolizar” a figura ao passo de tentar
compreender porquê ?
Como é possível haver espanto ao chamar à vitória “imprevisível”?
Desde modo, os autores começam por ir ao encontro dos preconceitos criados pelos
media e sociedade e discutiam-nos. A grande tese do livro debruça-se sobre a
possibilidade de traçar Trump como um candidato expectável e com método. É, então,
possível determinar que houve condições conjecturais e estruturais para a sua eleição.
Se alguns afirmam que os EUA deixaram de ter um presidente como referência para o
mundo livre e nação essencial para temas como multilateralismo e organizações
internacionais
2
, Donald Trump: O Método no Caos começa por traçar quando é que os
EUA começaram assim a ser vistos e como nem sempre assim o foi. Antes de mais parte
para a compreensão do populismo jacksoniano, pelo qual teoricamente Donald Trump se
alinha. Enfatizando questões como o contexto de crise no qual toma sempre forma
identitária, social e económica combinada com narrativas de um passado glorioso que
não existiu. Exposição patente, tal como os autores referem, no discurso inaugural de
aceitação de presidência mas também discurso que ainda domina a retórica Trump
3
,
make America great again. Ainda no primeiro capítulo os autores voltam a focar a questão
da sociedade americana alicerçada numa mitologia vica tal como referem também
autores como Adam Smith em A Identidade Nacional contudo, dão primazia a esta
questão aquando combinada com os princípios jacksonianos (honra, igualdade,
individualismo, espírito financeiro, coragem e perseverança, nacionalismo e o complexo
de inferioridade). Isto permite antever alguma retórica do ora presidente dos Estados
Unidos, seja pelo individualismo ou sobreposição da vertente económica e financeira às
causas humanitárias. Os autores propoem, então, compreender Trump pela significativa
2
Almeida, G., 2018. Isto não é bem um presidente dos EUA. 1st ed.: Prime Books
3
Veja-se, por exemplo, o discurso de Trump em Tampa, em 31 de Julho de 2018.
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parte da população que se alinha pelos princípios jacksonianos mas também pela
comunidade folk.
A comunidade folk é para Moreira de e Soller um elemento basilar para a vitória de
Donald Trump. Esta comunidade tinha as razões essenciais parta receber o candidato
republicano de braços abertos eram elas o seu isolamento geográfico, fraco poder
económico e repressão social. Donald Trump era o expoente máximo de um self made
man, de um verdadeiro americano. Alguém com os ideais roubados pela Administração
Obama que começava a utilizar o Estado como uma figura interventiva e dava primazia
a questões sociais e a minorias.
Donald Trump: O Método no Caos defende também que a crise do partido republicano
era propicia a um candidato como Trump. A “inexistência de uma narrativa coerente” pós
Ronald Reagan, o legado de George W. Bush e a vitória de Obama deixaram o partido
republicano quebrado e sem rumo, no dilema de compactuar com Trump e “vender a
alma ao diabo” ou “denunciar o presidente como um falso republicano”, isto são tudo
razões apontadas pelos autores para emergência de Trump dentro do próprio partido e
do leque de candidatos.
Segundo Moreira de e Soller foram estas as condições para que Trump conseguisse o
sucesso eleitoral de 2016, i.e, o ressurgimento folk, crise política, económica e
identitária.
Trump e as dinâmicas internacionais
A nível da política externa e relação com os outros países os autores optam por dividir
em duas partes, por um lado o enquadramento teórico da visão de Trump e por outro a
análise de Trump antagonicamente com a Europa, Ásia e Médio Oriente.
Começam, então, por dar ênfase ao tal pregado pelos media que a Administração Trump
seria imprevisível. Nisto, como algo basilar para desconstruir o pensamento Trump,
definem o porquê dessa percepção. A instabilidade do staff da Casa Branca e os
consecutivos despedimentos da Administração Trump juntando-se ao conjunto de ideias
do presidente, criam a ideia de que Trump acaba por não ter um rumo ideológico. O que
os autores advogam não ser verídico.
A nível da política externa Moreira de e Soller defendem que Trump tem se afastando
da estratégia internacional de Obama e tentando criar algo novo, sublinhando que as
estratégias clássicas se encontravam desactualizadas, uma política externa jacksoniana.
Este realismo jacksoniano com tendência “pessimista, proteccionista” e com a bandeira
da eficiência económica, leva a uma visão prática das relações EUA-Mundo. Essa visão,
defendem os autores, fez o mundo ver uma mudança radical nos EUA que abandonam
alguns dos princípios pelos quais era símbolo (internacionalismo, liberalismo, obrigações
democráticas para com o mundo).
Para mais, traçam quatro pontos que Trump tem como definidos aquando a Política
Externa: 1) Que tragam resultados económico-sociais para os EUA; 2) Tornar novamente
os EUA numa “República Comercial”; 3) Fazer face às potências: China e Rússia; 4)
Isolamento do “Eixo do Mal”, Irão e Coreia do Norte.
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Após a análise dos objectivos da Administração Trump, bem como da sua política
jacksoniana, Moreira de e Soller advogam que Trump é um presidente revisicionaista.
Para o actual presidente o declínio dos EUA começou quando estes se imiscuem na ordem
internacional nos anos 40 do século XX. Coloca o seu slogan “America First” como
estandarte da sua política, essencial para compreender a persona, e para traçar uma
política da Administração. Concluindo, deste modo, que os EUA não abdicam da sua
posição na política mundial, apenas a transferem para um outro espectro político.
Relativamente às regiões, as estratégias mudam um pouco, ignorando o modelo de
convergência que tinha primazia, por exemplo, na relação com a Europa e adopta
vias realistas. Perfilha a estratégia carrots and sticks com a Coreia do Norte e declara
guerra ao “Islão Radical”.
Conclusão
O Método no Caos é inovador, na medida compreensiva e no enquadramento teórico que
proporciona a Trump e respectiva Administração. O enquadramento histórico permite-
nos traçar o rumo que levou à eleição de um candidato com características populistas e
jacksonianas mas também oferece uma visão ampla de como a sociedade americana
compreendeu este fenómeno.
A vel da dos silêncios é de destacar a relação Trump com os seus parceiros NAFTA,
nomeadamente a questão do México e do Canadá. E ainda as dinâmicas regionais que
poderá alterar ou tentar na América do Norte, particularmente na fronteira sul dos
EUA com o México. Poderia ainda ter havido menção à relação EUA com a América Latina
como um todo, uma vez que o caso de Cuba continua em aberto após os avanços da
Administração Obama e a relação com os países da América do Sul como parceiros
económicos ou ainda a Colômbia com a guerra ao narcotráfico, na qual os EUA sempre
desempenharam um papel fundamental.
Em suma, uma obra fundamental para compreender um dos maiores eventos da política
americana da segunda década do século XXI, com peso e medida na teoria e visão
pragmática do mundo.
Como citar esta Recensão Crítica
Caetano, Patrícia (2019). Sá, Tiago Moreira de; Soller, Diana (2018). Donald Trump: O Método
no Caos. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 227 páginas. Recensão Crítica, JANUS.NET e-
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data da última consulta, https://doi.org/10.26619/1647-7251.10.01.1