OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 11, . 2 (November 2020-April 2021)
Vol 11, Nº. 2 (Novembro 2020-Abril 2021)
DOI: https://doi.org/10.26619/1647-7251.11.2
ARTIGOS
A securitização e dessecuritização dos recursos energéticos: Perspetivas da Alsácia-Lorena para a Ilha
de Chipre Rahman Dag, Mehmet Ferhat Firat pp 1-19
Avaliação da estratégia russa para contrastar o terrorismo e a propaganda jihadista no Norte do Cáucaso
Giuliano Bifolchi pp 20-33
Crisis, tensiones, inseguridad y más fracturas: ¿Sigue vigente la idea de UNASUR? Rogelio
Plácido Sánchez Levis, Diego Pérez Enriquez pp 34-61
Giros políticos y percepciones en las políticas exteriores de Argentina y Brasil (2003-2019) Gisela
Pereyra Doval pp 62-75
Política externa, desenvolvimento e estratégias internacionais em relação à Ásia-Pacífico: os casos
da Argentina e do Chile Florencia Rubiolo, Paola Andrea Baroni pp 76-91
A construção da cooperação em intelligence na União Europeia João Estevens pp 92-107
La Unión Europea ante la paradoja del Brexit Rafael Garcia Pérez pp 108-128
Le fonctionnaire aux Nations Unies : Un rôle important aux relations internationales Safwan
Maqsood Khaleel pp 129-148
Beyond reporting. Media agency and accountability in Transitional Justice processes Amaia Álvarez
Berastegi pp 149-163
O impacto da cibersegurança no quadro jurídico regulatório da segurança marítima Duarte Lynce
de Faria pp 164-186
A segurança nacional. Uma nova abordagem face ao terrorismo marítimo em África Damião Ginga
pp 187-201
A Caracterização dos Processos de Gestão nas Instituições de Ensino Superior em Moçambique A
Colegialidade, o Managerialismo e Outros Fatores Conjugados Maomede Naguib-Omar, Renato
Pereira pp 202-222
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A SECURITIZAÇÃO E DESSECURITIZAÇÃO DOS RECURSOS ENERGÉTICOS:
PERSPETIVAS DA ALSÁCIA-LORENA PARA A ILHA DE CHIPRE
RAHMAN DAG
rdag@adiyaman.edu.tr
Doutoramento em Filosofia, Universidade de Exeter, Mestrado em Artes na School of Orient and
African Studies, Curso de Inglês Académico Eurocenters em Londres. Professor assistente na
Universidade de Adiyaman, Departamento de Gestão Pública (Turquia). Chefe de redação do The
Rest Journal: Política de Política e Desenvolvimento (Journal of Global Analysis). Diretor do
Gabinete Turco da Cesran.
MEHMET FERHAT FIRAT
mehmetfirat@adiyaman.edu.tr
Adiyaman Üniversitesi (Turquia). Doutorando em Relações Internacionais, Universidade Kadir
Has. Mestrado em Relações Internacionais, Universidade Macquarie, Sydney. B.A., Administração
Pública, Universidade de Selcuk.
Resumo
Os recursos energéticos, desde a revolução industrial, têm sido primordiais tanto para os
países em desenvolvimento como para os países desenvolvidos. Assim, a necessidade urgente
e o controlo dos recursos energéticos, de forma a ter uma vantagem contra as rivalidades,
tornaram-se uma parte significativa da segurança nacional. Do final do século XVIII ao início
do século XX, o carvão e a gasolina foram importantes recursos energéticos para tornar as
máquinas operacionais, mas têm sido gradualmente substituídos pelos combustíveis fósseis,
petróleo e gás. Enquanto a transformação está a acontecer, a dependência dos recursos
energéticos nos campos que vão desde o aquecimento doméstico até aos combustíveis a jato
aumentou drasticamente. Ter recursos energéticos adequados, neste sentido, proporciona
vantagens estratégicas industriais e económicas a um país, pelo que as lutas militares ou
políticas sobre os recursos energéticos têm sido uma questão saliente nas relações
internacionais. Este documento procura examinar a luta pelos recursos energéticos à luz do
caso Alsácia-Lorena e comparar os resultados com o caso de Chipre. Ao fazê-lo, os estudos
de securitização facilitam a fundamentação teórica sobre a forma como os recursos
energéticos são securitizados, o que leva um país a tomar precauções extremas, incluindo
conflitos armados, e sobre a forma como os recursos energéticos são dessecuritizados, o que
leva a mudanças nas políticas externas de conflito para cooperação.
Palavras-chave
Securitização, Dessecuritização, Recursos Energéticos, Alsácia-Lorena, Questão de Chipre,
Alemanha-França, Turquia-Grécia
Como citar este artigo
Dag, Rahman; Firat, Mehmet Ferhat (2020). “A securitização e dessecuritização dos recursos
energéticos: Perspetivas da Alsácia-Lorena para a Ilha de Chipre. In Janus.net, e-journal of
international relations. Vol. 11, 2 Consultado [online] em data da última consulta, DOI:
https://doi.org/10.26619/1647-7251.11.2.1
Artigo recebido em Novembro 17, 2019 e aceite para publicação em Setembro 3, 2020
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A securitização e dessecuritização dos recursos energéticos:
Perspetivas da Alsácia-Lorena para a Ilha de Chipre
Rahman Dag, Mehmet Ferhat Firat
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A SECURITIZAÇÃO E DESSECURITIZAÇÃO DOS RECURSOS
ENERGÉTICOS: PERSPETIVAS DA ALSÁCIA-LORENA PARA A
ILHA DE CHIPRE
1
RAHMAN DAG
MEHMET FERHAT FIRAT
Introdução
O aumento da procura de energia e a diversificação das fontes de energia fizeram com
que o gás natural ganhasse importância e prioridade nas últimas décadas. As recentes
descobertas de uma quantidade significativa de gás natural no Mediterrâneo Oriental
diversificaram as opções dos países de origem no mercado internacional do gás; três
grandes campos foram descobertos por Israel e Chipre offshore entre 2009 e 2011. Estes
desenvolvimentos recentes suscitaram discussões sobre a relação entre a geopolítica
regional e a energia. Muitos analistas expressaram a esperança de que o Mediterrâneo
Oriental se possa tornar uma região exportadora de gás (Christou & Adamides, 2016).
Além disso, esta fonte de s recentemente descoberta poderia abrir o caminho para
uma nova era de cooperação que tem potencial para resolver conflitos na região.
Contudo, a história mostra que os desacordos sobre a partilha de recursos energéticos
são mais propensos ao conflito. Os desacordos sobre a Alsácia-Lorena podem ser
tomados como um exemplo flagrante. Embora existissem inúmeras razões para colocar
o mundo à beira da Segunda Guerra Mundial, os desacordos entre a Alemanha e a França
sobre a partilha de recursos energéticos na região trouxeram uma dimensão global ao
conflito (Garloch, 1946: 268). As condições políticas e militares do pós-guerra obrigaram
as rivalidades históricas, alemãs e francesas, a cooperar em termos de partilha de
recursos energéticos, especialmente na Alsácia-Lorena. É um facto que os recursos
energéticos em Chipre e no Mediterrâneo Oriental têm o mesmo potencial tanto de
conflito como de cooperação. Portanto, uma comparação entre a Ilha de Chipre e as
regiões da Alsácia-Lorena pode ser um exemplo importante para a análise do conflito e
do potencial de cooperação dos recursos energéticos.
Um quadro analítico das bases do documento sobre a securitização dos recursos
energéticos na Alsácia-Lorena durante a Primeira e Segunda Guerras Mundiais e a
dessecuritização dos recursos energéticos após a Segunda Guerra Mundial. No caso da
questão cipriota, este documento argumenta que a securitização dos recursos
energéticos está agora a tornar-se mais forte e sugere que as semelhanças entre a
questão da Alsácia-Lorena e a questão cipriota podem ser tomadas como lições antes da
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Artigo traduzido por Cláudia Tavares.
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securitização dos recursos energéticos conduzir ao conflito. Para tal, o processo de
dessecuritização do caso Alsácia-Lorena entre a Alemanha e a França após a Segunda
Guerra Mundial deveria ser examinado.
Um argumento de tal envergadura tem de ser tratado com eloquência devido aos atuais
diferendos no Mar Mediterrâneo Oriental estarem a tornar-se furiosos. A fim de subsidiar
o potencial dos recursos energéticos que trazem conflitos (securitização) ou cooperação
(dessecuritização) na região do SME, as semelhanças entre a Alsácia-Lorena e Chipre
têm de ser apresentadas. Estes dois casos devem ser comparados a fim de aumentar a
robustez do argumento principal.
Seguindo uma secção do documento, explica-se porque é que estes dois casos são
comparáveis. A secção seguinte fornece um quadro teórico para compreender como os
recursos energéticos poderiam conduzir a conflitos e depois à cooperação na Alsácia-
Lorena. Logo a seguir, o documento descreve o caso da questão cipriota sobre a qual o
processo de securitização está em funcionamento. Na secção final, o processo de
dessecuritização da região da Alsácia-Lorena é tomado como base para a questão
cipriota.
O que torna a Alsácia-Lorena e a Questão de Chipre comparável?
A região da Alsácia Lorena, que possui minas de carvão e minérios de ferro, teve um
lugar estratégico durante ambas as Guerras Mundiais. Isto porque no início do século XX
o carvão e o ferro eram importantes fontes de energia que eram utilizadas na vasta gama
de setores, incluindo a indústria bélica. Por outro lado, as reservas de hidrocarbonetos
recentemente descobertas pelo offshore de Chipre fizeram da ilha o centro do conflito
energético entre os Estados garantes: a Turquia e a Grécia. A analogia entre as questões
Alsácia-Lorena e Chipre permite-nos analisar o conflito e o potencial de cooperação das
fontes de energia. Será um argumento ousado que a questão da Alsácia-Lorena e a
questão de Chipre são de análise semelhante, pelo que as causas e os resultados de
ambos os casos seriam semelhantes. Para o cair sob um fardo tão grande, é melhor
enumerar as semelhanças entre os dois casos. Desta forma, analisar o caso Alsácia-
Lorena com a teoria da securitização faria muito mais sentido. As semelhanças serão
categorizadas em três subtítulos: antecedentes históricos de permanência entre dois
atores principais, argumentos étnicos, linguísticos e culturais dos atores que reivindicam
a soberania sobre as regiões, e que possuem recursos naturais ricos.
Antecedentes históricos: Mudança de Soberania entre Dois Atores Principais ao Longo
dos Anos
A região da Alsácia-Lorena, anexada à França em 1648 pelo Tratado de Vestefália, foi
posteriormente anexada pela Alemanha em 1871 no final da Guerra Franco-Prussiana e
regressou a França após a Primeira Guerra Mundial, graças ao Tratado de Versalhes.
Excluindo a anexação de facto de 1940-45, tinha sido mais uma vez território francês
(Glenn, 1974). Por outro lado, a Ilha de Chipre foi conquistada pelos otomanos no século
XVI e tornou-se um centro do comércio marítimo. Esteve sob o domínio otomano durante
quase quatro séculos, e os residentes turcos estabeleceram-se ali e viveram juntos com
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os cipriotas nativos. O Império Britânico assumiu a soberania no século XIX. Após a
decadência do Império Otomano, a ilha permaneceu sob o domínio do Império Britânico
como um mandato. Com a anexação da ilha pelo Império Britânico, o "Conflito de Chipre"
foi identificado como o conflito entre o povo de Chipre e a Grã-Bretanha relativamente à
exigência de autodeterminação dos cipriotas. Várias campanhas contra a Grã-Bretanha
foram organizadas pela EOKA (Ethniki Organosis Kyprion Agoniston). Em 1950, como
resultado da propaganda da Grécia, o cipriota grego foi a um referendo no qual cerca de
97% da população votou a favor da "enose" (União com a Grécia) (Yalçın, 2018). O
resultado do referendo foi utilizado pela Grécia para obter apoio internacional para a
unificação. A Grécia utilizou os resultados do referendo (cerca de 97% dos votos a favor
de ENOSİS) para obter apoio internacional para a unificação. Para que a propaganda
internacional começasse a funcionar, a Turquia decidiu apoiar a reivindicação dos
cipriotas turcos de Taksim (divisão da ilha entre gregos e turcos). Enquanto os gregos
em Chipre liderados pelo EOKA atacavam a presença britânica, começaram a organizar
ataques contra os cipriotas turcos. Sobre estes acontecimentos, a disputa cipriota passou
de uma disputa colonial para uma disputa étnica entre os turcos e os ilhéus gregos
(Erkem, 2016).
O processo de descolonização mudou a soberania da região, e a ilha tornou-se um país
independente com o acordo entre o Reino Unido, a Turquia e a Grécia, que ainda atuam
como Estados garantes (Karakasis, 2017: 8). Para a Turquia, a importância de Chipre
aumentou durante a Guerra Fria devido à sua localização geográfica ao longo das rotas
energéticas. Além disso, a recente descoberta de recursos de hidrocarbonetos ao largo
da costa sul de Chipre aumentou a importância estratégica da ilha para a Turquia e outras
partes (Soysal, 2004). Ambas as regiões têm estado no centro de disputas políticas e
económicas entre os atores que têm interesses nacionais sobre as regiões. Enquanto a
Alemanha e a França reivindicavam a sua soberania sobre a Alsácia-Lorena, a Turquia e
a Grécia são agora os principais atores sobre a questão de Chipre.
Ambos os territórios têm vindo historicamente a mudar de mãos entre dois grandes
atores. Por conseguinte, sempre que o controlo da região mudou, o partido derrotado
articulou argumentos linguísticos, culturais e étnicos nos seus esforços para a retomar.
Argumentos étnicos, linguísticos e culturais dos Atores de ambas as regiões.
A fronteira entre a França e a Alemanha foi contestada desde a Idade Média até ao fim
da Segunda Guerra Mundial. Grande parte desta contestação envolveu a região da
Alsácia-Lorena que se situa no lado francês do rio Reno e se estende para noroeste até
à fronteira entre a França e o Luxemburgo. A sua população está dividida entre os
falantes de francês e alemão. A Alsácia e a Lorena foram sujeitas a tentativas de
assimilação mais intrusivas, primeiro pelos governos centrais alemão e depois francês.
Levou até aos anos 50 para que as tensões se acalmassem. Com o regresso da região a
França, o uso de dialetos alemães foi suprimido e as pessoas foram mandatadas para o
uso do francês nas escolas e para as empresas governamentais (Glenn, 1974). Neste
ponto, é necessário considerar as abordagens distintas do conceito de nação pela
Alemanha e França. É por isso que as diferenças de perceção do conceito de nação
revelam a forma como ambos os atores associam as suas relações à região e às pessoas
que ali vivem. Como exemplo inicial de nacionalismo na Europa, a França enveredou pelo
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caminho de um nacionalismo centrado no Estado e territorial que inclui a assimilação de
pessoas que vivem na terra sob a autoridade francesa ou que afirmam estar sob a
autoridade francesa. Em contrapartida, a Alemanha concentra-se sobretudo na
compreensão etnocultural, na qual a origem linguística e étnica são determinantes
fundamentais (Brubaker, 2010). Como resultado, a França tentou reformular a mente
das pessoas que vivem na Alsácia-Lorena pelo facto de serem francesas e os alemães
enfatizaram as pessoas de língua alemã na região.
Para Chipre, como uma ilha dividida em duas partes desde 1974, à semelhança da
Alsácia-Lorena, muito que é vista em grande parte através do prisma das duas
comunidades étnicas, grega e turca. Com o processo de descolonização, a criação da
República de Chipre e a aquisição da independência da G-Bretanha não estabeleceu a
paz e a estabilidade, mas, em vez disso, o conflito escalou, e os atos de violência nos
anos 60 puseram fim ao recém-formado Estado bicomunitário. As principais questões da
disputa foram: a organização do exército, contratos públicos proporcionais, lei fiscal, e
municípios separados (Erkem, 2016). O surgimento do Estado-nação grego e depois
turco e também o processo de modernização tiveram um grande impacto nas sociedades
muçulmanas e cristãs tradicionalmente coexistentes. É agora uma realidade política que
a era da modernidade e do nacionalismo em Chipre transformou comunidades
tradicionais pré-modernas em duas comunidades políticas separadas (Kızılyürek, 2002:
223). A autoridade da República de Chipre estende-se sobre a parte grega no sul,
enquanto a República Turca do Norte de Chipre governa sobre a parte turca no norte,
que é constituída por 36,2% da ilha. Como Estados garantes, a Grécia e a Turquia, os
seus laços étnicos, linguísticos, culturais e por vezes religiosos, foram instrumentalizados
para reivindicar os seus limites históricos, o que serve os seus interesses.
Capacidade das Regiões em Recursos Naturais Ricos
A região da Alsácia-Lorena foi um ponto de interceção entre a França e a Alemanha e é,
consequentemente, de grande importância estratégica; foi também importante devido
aos seus valiosos recursos. A região possuía florestas importantes e minerais valiosos.
Os depósitos de sal tinham sido extraídos desde os tempos antigos e, entre duas guerras,
foi a base para a importante indústria química. A região da Alsácia-Lorena continha 46
por cento das valiosas reservas de minério de ferro da Europa. O carvão e o aço tinham
proporcionado tanto capacidade militar para ocupação, como uma causa para a aquisição
territorial alemã e francesa. A Alsácia-Lorena e o seu depósito de carvão e minério de
ferro mudaram de mãos entre a França e a Alemanha em 1871, 1918, 1940 e 1945. Os
depósitos de ferro da Alsácia-Lorena foram os segundos maiores depósitos descobertos
no mundo em 1918. Durante a Primeira Guerra Mundial, a Alemanha tinha 2,800 milhões
de toneladas de minério de ferro. Só a Lorena foi responsável por 2.000 milhões dessas
toneladas. Após o processo de desfosforização ter sido descoberto antes da Primeira
Guerra Mundial, o valor destes depósitos de minério tornou-se abundantemente claro
tanto para a Alemanha como para a França. Para a bacia do Reno, onde se situavam a
Alsácia, a Lorena e o Sarre alemão, existiam depósitos de ferro e carvão que constituíam
recursos estratégicos críticos para a indústria na era industrial (pois eram as exigências
básicas da produção de aço). Ainda hoje, a Alsácia e a Lorena estão entre as regiões
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mais ricas de França, não sendo uma pequena parte devido às indústrias siderúrgica e
automóvel envolvidas nesta área
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Em redor das minas cresceram importantes centros industriais especializados na
produção de ferro e aço bruto. Outra riqueza mineral da região é constituída por minas
de potássio e minas de carvão. Especialmente as minas de potássio foram os segundos
maiores depósitos deste mineral no mundo (Garloch, 1946). A exploração do petróleo à
escala comercial começou na Alsácia, o que levou a indústrias modernas em grande
escala na região.
A recente descoberta de gás natural ao largo da costa sul de Chipre veio acrescentar
uma nova dimensão aos debates sobre o "valor" do país. De acordo com as descobertas
preliminares, a quantidade de gás natural encontrada no poço Glaucus-1 (10º bloco de
Chipre) está estimada entre 5 triliões e 8 triliões de metros cúbicos, o que significa que
poderia satisfazer as necessidades energéticas da ilha durante até 200 anos. A
descoberta é a maior quantidade alguma vez encontrada na Zona Económica Exclusiva
reivindicada por Chipre. As descobertas têm atraído o interesse dos países europeus e
da Turquia, bem como das empresas energéticas, que procuram alternativas de
abastecimento fora da Rússia (Özekin, 2020). Por conseguinte, a importância geopolítica
e económica de Chipre muda radicalmente e isto tem inevitavelmente impacto no
conflito, bem como nos termos da sua resolução; pode aprofundar a divisão, ou pode
tornar-se um fator impulsionador da cooperação. Pode afirmar-se que o significado
estratégico de Chipre é redefinido em diferentes períodos históricos.
Resumindo, o ponto inicial do artigo começa com a experiência histórica que ambas as
regiões viveram. Têm estado sob a soberania de diferentes atores ao longo do tempo, e,
ao trocarem entre si, estas regiões têm estado sob um domínio político, social e cultural
diferente. Este intercâmbio de soberanias revelou-se primordial devido aos recursos
naturais que tinham/têm. Por exemplo, no início do século XX, devido às minas de carvão
estrategicamente importantes que a Alsácia-Lorena continha, a região tinha sido uma
zona problemática que desencadeou conflitos entre os dois países vizinhos: a França e a
Alemanha. Por outro lado, nos primeiros anos do século XXI, Chipre tem potencial para
ser a Alsácia-Lorena da Turquia e da Grécia na região do Mediterrâneo Oriental, devido
à recente descoberta de reservas de hidrocarbonetos. Estas duas semelhanças críticas
autorrefletem outro ponto que é que estas regiões são direta ou indiretamente
reivindicadas pelos dois principais atores que lutam para partilhar os recursos naturais
que tinham/têm. A semelhança de ser comprimido entre os dois atores principais leva
também a um outro. Os principais atores (França e Alemanha sobre a Alsácia-Lorena e
Grécia e Turquia sobre Chipre) fundamentam as suas reivindicações sobre argumentos
étnicos, linguísticos e culturais que tinham/estabeleceram ao longo dos séculos.
Em geral, a região da Alsácia-Lorena e a Ilha de Chipre refletem bastante semelhanças,
o que se pode afirmar que podem ser comparadas em termos de capacidades
energéticas. A região da Alsácia-Lorena mudou o curso dos acontecimentos na altura e
a questão cipriota pode mudar agora. Para ver isso, a importância da Alsácia-Lorena
durante as duas guerras mundiais como questões conflituosas sobre os recursos
2
https://www.cvce.eu/en/recherche/unit-content/-/unit/5cc6b004-33b7-4e44-b6db-
f5f9e6c01023/ee53b53d-cdfa-4b9f-a760-6339c851af9d/Resources#d27b6708-a15d-448a-891b-
1158bafe023a_en&overlay.
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energéticos e também durante a formação da Comunidade Europeia do Carvão e do Aço
(CECA) como questão comprometedora sobre a energia deve ser examinada de perto à
luz das teorias da securitização e da dessecuritização.
Enquadramento Teórico: Securitização e Dessecuritização da Alsácia-
Lorena e das Questões de Chipre
O conceito de segurança foi redefinido por B. Buzan, como um dos membros fundadores
da Escola de Estudos de Segurança de Copenhaga nos anos 90. Segundo a escola de
pensamento, a "segurança" não é considerada uma consequência direta da ameaça, mas
sim definida como o resultado da interpretação política da ameaça, um processo chamado
securitização. Os autores desta escola apontam a necessidade de construir uma
concetualização da segurança que signifique algo muito mais específico do que qualquer
ameaça ou problema. Portanto, a segurança é definida como uma reação não linear à
ameaça. Após o trabalho seminal de Barry Buzan, Ole Wæver, e Jaap de Wilde (1998),
intitulado "Segurança": Um Novo Quadro de Análise", a própria teoria da securitização e
os seus conceitos fundamentais foram enormemente estudados para criticar e assim
desenvolver novas dimensões. A maioria dos estudos enfatiza basicamente o
subdesenvolvimento da teoria da titularização e, assim, a fim de tornar a teoria da
titularização mais explicativa das questões internacionais atuais, pelo que sugerem o
desenvolvimento de conceitos básicos da teoria da titularização (Stritzel, 2007; Wæver,
2011 e 2015; Vuori, 2008; Balzacq, onardo & Ruzicka, 2015). Apesar dos esforços
maciços e salientes para satisfazer o défice da teoria, este documento não pretende
mergulhar na fraqueza ou força da mesma. Pensa-se que o pressuposto básico de como
uma questão é securitizada proporcionaria um terreno adequado para compreender os
casos da região da Alsácia-Lorena e a questão de Chipre.
O argumento central da teoria da securitização é que ao rotular algo como uma
questão de segurança que se torna um" (Wæver, 2004: 13). Desta forma, cada questão
ou assunto possível pode ser transformado numa questão de segurança e o haverá
qualquer limitação. Para evitar essa securitização interminável, a teoria sugere três
passos que estão a definir as ameaças, as ações necessárias emergentes e os efeitos nas
relações entre as unidades (Taureck, 2006: 55). Relativamente ao primeiro passo, uma
questão tem de ser explicada através das palavras-chave de segurança. As afirmações,
incluindo estas palavras-chave de segurança, dão prioridade a uma dada questão e visam
apresentar a importância vital da mesma. Este primeiro passo é na realidade chamado
de um ato de discurso realizado por políticos ou por aqueles que são influentes no
processo de tomada de decisão (Shipoli, 2018: 72). A função do ato da fala é sensibilizar
para uma questão crítica que tem de ser tratada imediatamente e por meios
extraordinários.
Para Buzan e Wæver (2003), para a securitização, é essencial um ato de discurso,
"através do qual se constrói um entendimento intersubjetivo dentro de uma comunidade
política para tratar algo como uma ameaça existencial a um objeto de referência valioso
e para permitir um apelo a medidas urgentes e excecionais para lidar com a ameaça”
(491). Esta definição da teoria da securitização abre a porta a mais debates sobre se a
segurança é objetiva (ameaças reais) ou (inter)-subjetiva (construída) (Balzacq, 2019;
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Baele & Thomson, 2017; Stritzel, 2007), regimes democráticos e não democráticos
(Vuori, 2008; Wæver, 2011), e o próprio conceito de segurança (Šulović, 2010; Aradau,
2018; Baele & Thomson, 2017).
Como este artigo não tem a intenção de testar a fraqueza e a força da teoria, mas sim
de se concentrar no estudo de caso de securitização da exploração dos recursos
energéticos entre a Alsácia-Lorena e as questões cipriotas, serão aplicados os
pressupostos fundamentais da teoria em ambos os casos examinados no artigo. No
processo de securitização, começando com o ato de discurso, tem de haver um
securitizador e a audiência cuja aprovação é necessária. Uma vez alcançado o equilíbrio
entre eles, então podem ser aplicadas medidas e políticas extraordinárias para lidar com
uma questão securitizada. A aprovação pela audiência é também outra questão discutível
na literatura da teoria da securitização como autoridade para agir e seguir uma certa
política ainda está nas mãos de políticos ou oficiais militares que podem tentar eliminar
o que é considerado uma ameaça existencial à segurança do Estado ou da sociedade
(Mcdonald, 2008: 564; Roe, 2008: 632). Esta crítica da teoria da securitização enquadra-
se realmente nas condições políticas durante as duas guerras mundiais, enquanto a
França não era uma democracia de pleno direito e a Alemanha era governada por uma
monarquia constitucional e depois por um regime fascista liderado por Adolf Hitler. Por
conseguinte, o consentimento da audiência não parece imperativo para um processo de
securitização bem-sucedido.
Além disso, os conceitos básicos de securitização (ato de discurso, securitizador e
audiência), o contexto (Mcdonald, 2008: 564) ou enquadramento (Shipoli, 2018: 76) em
que um ato de discurso de securitização é proferido é também bastante significativo para
o processo de securitização. Tanto Mcdonald como Shipoli enfatizaram, em obras
separadas, o significado das condições e do momentum a partir dos quais o processo de
securitização faz muito mais sentido sem mencionar o objeto de referência juntamente
com a palavra de segurança. Em ambos os casos em que o trabalho se concentra, tem
havido um simbolismo histórico, social e cultural que reforça o processo de securitização.
Assim, o contexto ou o enquadramento podem ser fatores facilitadores para se chegar a
um consenso entre um securitizador e uma audiência. Concordando com os seus críticos,
é melhor descrever o contexto em que ambos os casos foram securitizados. Desta forma,
um ato de discurso empregado por um securitizador faria mais sentido do processo de
securitização.
Contextos de Securitização da Alsácia-Lorena e a Questão de Chipre
A necessidade de manter o abastecimento de carvão (uma fonte de energia primária)
tinha figurado em ambas as guerras mundiais. Para além do abastecimento energético,
o carvão tornou-se uma questão muito política. Até meados dos anos 50, o carvão ainda
era o principal combustível do mundo, mas depois deste tempo o petróleo e o gás
rapidamente tomaram o seu lugar. Tem-se argumentado que a energia é a chave "para
o avanço da civilização", que a evolução da capacidade humana está dependente da
conversão da energia para uso humano. Por conseguinte, a energia desempenha um
papel fundamental na formação das relações de estado.
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Perspetivas da Alsácia-Lorena para a Ilha de Chipre
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A capacidade de um país aceder ao abastecimento energético e a forma como utiliza essa
energia determina o estado da sua economia, sociedade e segurança nacional. O
mecanismo de produção de um país, os assuntos internacionais e o estilo de vida são
todos determinados pelos combustíveis fósseis. A energia que é tão importante para os
países causa inevitavelmente problemas. No direito internacional, muitas fronteiras
foram delimitadas através de tratados; contudo, após a descoberta de novas fontes de
energia mais próximas da fronteira, essa fronteira torna-se disputada. Por outro lado, os
Estados têm o direito de extrair recursos dentro dos seus territórios. Contudo, quando
uma bacia de recursos se estende através das fronteiras de vários países, torna-se difícil
para um único país afirmar a sua soberania sobre o campo (Yergin, 2006).
Tomando a teoria como ponto de partida, a necessidade de encontrar, assegurar e
diversificar o abastecimento energético tem sido interpretada como uma preocupação de
segurança para os atores ou entidades que vêm a segurança energética como os seus
interesses nacionais. Ao termos um quadro crítico sucinto para análise, estamos mais
aptos a compreender as ações, reações e necessidades dos Estados que consideram a
sua segurança energética ameaçada. Utilizando casos da Alsácia-Lorena e de Chipre,
descobriu-se que certas regiões onde os recursos naturais enterrados por baixo têm sido
uma parte significativa dos interesses nacionais. Para assegurar os interesses nacionais,
independentemente de serem construídos por audiências ou securitizadores, os atores
internacionais determinam uma política para lidar com quaisquer questões. A importância
de qualquer possível questão no âmbito da segurança nacional revela o nível de
securitização da questão. Os recursos naturais têm sido vitais para a sobrevivência e o
desenvolvimento de um país. É por isso que o carvão e o minério de ferro na Alsácia-
Lorena foram submetidos à grande luta entre a França e a Alemanha. Confiando nas
semelhanças entre a região da Alsácia-Lorena e a Ilha de Chipre, este documento
argumentaria que a questão cipriota tem um potencial significativo para ser submetida
a uma grande luta através da securitização. Como os alemães e franceses securitizaram
a questão do controlo sobre os recursos naturais, a Grécia e a Turquia parecem
considerar a questão de Chipre como uma questão de segurança através da securitização
dos recursos energéticos nos offshores da ilha. Nestas circunstâncias, a securitização dos
recursos energéticos abre uma nova janela para compreender as relações entre a Grécia
e a Turquia em relação aos recursos energéticos na ilha de Chipre.
Securitização dos Securitizadores da Alsácia-Lorena e da Questão de
Chipre através da Lei do Discurso
O caso Alsácia-Lorena
Os atores securitários, para a Escola de Copenhaga, não estão limitados aos políticos,
mas incluem intelectuais e oficiais e atores internacionais (Stritzel, 2007). Nesta secção
do documento, deveria ter havido pesquisa de arquivo para obtenção de documentos e
declarações, tanto franceses como alemães. Embora a extensão do artigo seja limitada,
os recursos secundários que descrevem a compreensão e as declarações dos atores de
securitização parecem adequados. Para começar,
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“Já no Outono de 1914, os membros do governo francês definiam os objetivos
de guerra como a destruição do poder industrial alemão através da ocupação
e mesmo anexação das regiões carboníferas da Renânia. O Sarre seria
adequado para a anexação, enquanto a região do baixo Reno do Ruhr seria
colocada sob proteção internacional administrada pela França, com tropas
presentes se necessário. A França poderia de uma vez destruir a hegemonia
económica e militar da Alemanha, enquanto se restabeleceria como a maior
potência continental. Um ministro francês chegou mesmo a sugerir a remoção
da população do Palatinado, que odeia a França, de modo a criar uma vasta
área de expansão para a raça latina" (Henze, 2005).
3
Um historiador proeminente, Georges-Henri Soutou, que assumiu várias posições oficiais
no governo francês, sugeriu que, na Primeira Guerra Mundial, o principal objetivo da
França era destruir a capacidade industrial da Alemanha para ganhar a guerra e sublinhou
também o significado dos recursos de carvão e minério de ferro da Alsácia-Lorena para
as indústrias pesadas. Desta forma, as capacidades económicas e militares dos alemães
seriam eliminadas. Esta declaração e o objetivo do documento não implicam que a
Primeira Guerra Mundial tenha sido desencadeada por causa da luta pelos recursos
energéticos, mas ter, manter e controlar os recursos energéticos tem sido uma grande
sobrevivência numa ordem mundial anárquica para proteger os interesses nacionais. No
lado alemão, Baron von Kiihlmann, o Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, afirmou
no Reichstag, 9 de outubro de 1917:
"Após uma investigação muito aprofundada de toda a situação, segundo
informações provenientes das mais diversas fontes, estou convencido de que
a grande questão em torno da qual a luta das nações se centra, e pela qual
estão a derramar o seu sangue, não é, em primeira instância, a questão belga.
A questão em torno da qual a Europa se está a transformar cada vez mais
num monte de ruínas é a questão do futuro da Alsácia-Lorena" (Hazen, 1919:
154).
No início da Primeira Guerra Mundial, o vel de securitização da Alsácia-Lorena contendo
carvão e minérios de ferro, que eram primordiais para a economia, o exército e a
indústria, foi também considerado vital devido ao facto de Baron von Kiihlmann, o
Ministro dos Negócios Estrangeiros alemão, ter feito corresponder as lutas políticas e
militares entre as potências europeias com a questão da Alsácia-Lorena. As palavras-
chave na sua declaração de "fontes mais diversas" e "a luta das nações" indicam o nível
de securitização dos recursos energéticos na região e, assim, os alemães estavam
prontos a dispor de tudo o que tinham para conseguir o controlo da região ou impedir
que qualquer outro Estado europeu controlasse a região. Karl Marx também articula outro
ato de discurso securitizador dizendo que "Se a Alsácia e a Lorena forem tomadas, então
a França fará mais tarde uma guerra contra a Alemanha em conjunto com a Rússia. É
3
https://mandalaprojects.com/ice/ice-cases/saar.htm.
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desnecessário entrar nas consequências profanas" (Marx, 2019:862). A sua expectativa
de que a França entrasse em guerra contra a Alemanha, alinhada com outra potência
europeia (Rússia), indica que a securitização dos recursos energéticos não foi restringida
com os dois Estados rivais (França e Alemanha), mas também inclui outros Estados
europeus.
A procura de controlo sobre os recursos energéticos entre as duas guerras mundiais foi
securitizada por quase todos os estados envolvidos nas guerras. Através de atos de
discurso, cada um deles salientou a importância da Alsácia-Lorena, se não a única razão,
mas um dos fatores significativos que foram críticos para determinar os resultados das
guerras. A este vel de titularização, como a teoria sugere, todas as normas
democráticas poderiam ser deixadas para trás e tomadas medidas extraordinárias para
alcançar o controlo do objeto de referência, neste caso, os recursos energéticos. Os
movimentos de securitização para obter o que os estados queriam durante as guerras
podem ser listados em demasiadas páginas, mas as próprias guerras mostram o nível de
securitização.
O caso de Chipre
Como explicado acima, a dimensão energética da questão cipriota tem estado na agenda
das partes desde o início dos anos 2000. Desde que a ilha conquistou a independência
do Reino Unido e emergiu como um Estado separado como a República de Chipre, o
estatuto de garante da Grécia e da Turquia deu-lhes o direito de dizer algo a vel
nacional e internacional. Tendo em conta que a Grécia e a Turquia estão direta ou
indiretamente envolvidas na questão de Chipre, a questão energética o pode ser
compreendida e analisada separadamente dos problemas crónicos da ilha. As disputas
de soberania, que a Grécia e a Turquia reivindicaram historicamente tanto na ilha como
no Mediterrâneo Oriental, assumiram uma nova dimensão com as descobertas de gás
natural.
Embora a questão cipriota tenha muitas dimensões históricas, a data de 2011 - em que
as partes começaram a discutir em voz alta com a descoberta do gás natural - é tomada
para fazer uma comparação saudável com a região da Alsácia-Lorena. Isto porque, em
ambos, as discordâncias sobre as fontes de energia têm sido centradas no conflito.
Enquanto franceses e alemães atuavam na Alsácia-Lorena, hoje em dia turcos e gregos
fizeram da energia um assunto de soberania, por outras palavras, um objeto de
referência de acordo com a teoria da securitização. Por sua vez, isto traz dificuldades na
resolução da questão e a tensão está a aumentar. Devido à recente descoberta de zonas
costeiras de gás natural da ilha de Chipre, a importância geopolítica e económica de
Chipre está a mudar radicalmente e isto tem um impacto inevitável tanto no potencial
de conflito como nos termos da sua resolução. Por outras palavras, a recente descoberta
de gás natural pode aprofundar o conflito ou pode fazer com que as partes se empenhem
na cooperação.
Tais descobertas maciças no Mediterrâneo Oriental despertaram o apetite dos cipriotas
gregos para a procura de recursos energéticos na sua zona económica. Assim, decidiu
juntar-se a estas atividades de exploração. Neste primeiro período, embora tenham
negociado com muitas empresas energéticas sediadas nos EUA, não conseguiram iniciar
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atividades de exploração em resultado da pressão da Turquia até à segunda metade da
primeira década do século XXI. O Chipre grego pôde mais tarde assinar um acordo com
o Egipto, bano e Israel, relativo à Zona Económica Exclusiva (ZEE). A Turquia alega
que Chipre obteve interesses injustos ao ignorar as regras sicas do direito marítimo
através de acordos bilaterais. Chipre assinou pela primeira vez um acordo para a
delimitação da ZEE com o Egipto a 17 de fevereiro de 2003 e comunicou as coordenadas
da região acordada à ONU. A Turquia declarou que o acordo assinado entre Chipre e o
Egipto não foi feito com a participação de todos os países limítrofes do Mediterrâneo
Oriental, que não seria apropriado que o Egipto celebrasse um acordo de delimitação da
ZEE com Chipre sem um acordo de limitação com a Turquia com base na linha do meio,
e que não aceitou o desrespeito da TRNC (Yaycı, 2012). Apesar das objeções da Turquia
a estes acordos, Chipre declarou imediatamente 13 locais de licença de exploração
petrolífera no Mediterrâneo Oriental em 2007 para exploração de recursos de
hidrocarbonetos. Contudo, 8 destes 13 sítios anunciados coincidem com o TRNC e 5 com
a plataforma continental turca.
Desta forma, delinearam as parcelas no Mediterrâneo Oriental, de modo a controlarem
todos os recursos energéticos no offshore da ilha. A assinatura unilateral de contratos
com companhias petrolíferas e de perfuração internacionais pela República de Chipre é
reagida pela Turquia com a assinatura de um "acordo de limitação da Plataforma
Continental" com a TRNC a 21 de setembro de 2011, e a concessão de licenças de
exploração à TPAO (Turkish Petroleum Corporation) na sua própria região económica no
Mediterrâneo Oriental e no norte e leste do norte de Chipre (Karakasis, 2017: 11). Por
acordo no caso de a reserva de hidrocarbonetos ser encontrada na região, será partilhada
entre a Turquia e o TRNC.
O início do ponto de titularização começa aqui, uma vez que a Zona Económica Exclusiva
é uma extensão da soberania nacional. A violação da soberania do Estado,
independentemente do continente ou do mar, é vista como um modus operandi que
conduz ao conflito. O lado grego da ilha tem agido em nome de toda a ilha ao assinar
acordos com as empresas internacionais e os outros Estados, excluindo assim a Turquia
e a República Turca do Norte de Chipre (TRNC). Em resumo, o argumento do Chipre turco
é que o lado grego não é o único representante de toda a ilha e a Turquia argumenta
que algumas das parcelas em que as atividades de perfuração estão em funcionamento
caem nas Zonas Económicas Exclusivas da Turquia, que se situa em torno do noroeste
da ilha. Neste caso, o objeto de referência é o mesmo que o caso Alsácia-Lorena, recursos
energéticos.
Os discursos mais recentes de ambas as partes, realizados pelos políticos e decisores,
fornecem conotações de securitização nas suas declarações. Por exemplo, o Presidente
da Turquia, Recep Tayyip Erdogan, articulou que "como fizemos os terroristas na Síria
pagar, não deixaremos a cena aos bandidos do mar" (4 de novembro de 2018, The
Guardian).
4
Ele, ao construir semelhanças entre os terroristas na Síria e as companhias
de perfuração e as iniciativas unilaterais gregas de Chipre, enfatiza a importância da
partilha de recursos energéticos na região. O movimento de securitização da Turquia tem
sido uma intervenção militar em operações terroristas na ria, o que implica que a
4
https://www.theguardian.com/world/2018/nov/04/turkey-warns-oil-companies-against-drilling-near-
cyprus.
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Turquia está pronta para o envolvimento militar no caso de qualquer movimento
excluindo a Turquia ou o que é considerado como sobrevivência na região. Na mesma
declaração, salientou também que o haveria resolução sem excluir a Turquia da
dinâmica regional, dizendo que "Aqueles que pensavam poder tomar medidas no
Mediterrâneo Oriental ou no Egeu, desafiando a Turquia, começaram agora a
compreender o grande erro que estavam a cometer. É absolutamente inaceitável usurpar
os recursos naturais do Mediterrâneo oriental, ao mesmo tempo que se exclui a Turquia
e o TRNC" (4 de novembro de 2018, The Guardian). A este respeito, a política da Turquia
sobre os recursos energéticos nos offshores da ilha indica o vel de securitização e a
Turquia poderá assim tomar quaisquer precauções para manter intactos os seus
interesses. Os movimentos de securitização da Turquia são autorreflexivos para a
securitização dos recursos energéticos. A Turquia não enviou os seus próprios dois
navios de perfuração (chamados Fatih e Yavuz, que eram os sultões otomanos), como
também foram acompanhados pelos navios de guerra, nomeados com Barbaros Hayrettin
Pasha, que era um grande almirante no Império Otomano, para evitar possíveis
interferências por parte de terceiros (Adamides & Christou, 2016: 90). Inclusive uma
vez, um dos navios de guerra bloqueou Saipem 12000, que pertencia à Companhia
Internacional Italiana de Perfuração (ENI), das parcelas que o Chipre grego declarou.
5
Após a intervenção da Turquia, a empresa italiana suspendeu as suas atividades de
perfuração; o Chipre grego assinou um acordo com a empresa americana ExxonMobil e
a Qatar Petroleum. Após este acordo, os Estados Unidos levantaram o embargo de armas
que tinham imposto a Chipre desde 1974. A Turquia argumenta que o levantamento do
embargo teria um impacto negativo nos esforços para resolver a questão de Chipre.
Tanto assim que o histórico "problema cipriota", que existia devido a disputas de longa
data entre a Turquia e a Grécia e o Chipre grego, foi recarregado para se estender para
além das fronteiras da ilha até uma grande área marítima. De facto, as consequências
desta disputa afetaram diretamente outros atores regionais, tais como o Egipto, a
Palestina, Israel, o Líbano e a ria, que também estavam preocupados com os benefícios
políticos de atores globais como a Rússia, a União Europeia (UE) e os Estados Unidos.
Tal como a Alsácia-Lorena, as divergências sobre a Ilha de Chipre deixaram de ser um
problema regional para se tornarem um problema global.
Por outro lado, o argumento da Grécia sobre a questão cipriota está na sua maioria
associado às violações legais da Turquia e queixou-se principalmente da Turquia às
organizações internacionais, especialmente à UE e à ONU e também à OTAN. Como
objeto de referência permanece o mesmo, a titularização dos recursos energéticos pela
Grécia e pelo lado grego de Chipre não parecia ser tão grande como a Turquia no início.
Ao defenderem o direito internacional enquanto articulam os seus argumentos implica
que consideraram a questão dentro do domínio político e que não sugeriram que
tomariam medidas militares em relação à questão. Uma das declarações do lado grego,
articuladas pelo Ministério dos Negócios Estrangeiros da Grécia, criticou a Turquia por
violar os direitos soberanos de Chipre, argumentando que "uma rie de violações"
contra a soberania e os direitos soberanos de Chipre, o direito internacional e o acervo
europeu e está a desafiar os apelos da UE e da comunidade internacional para respeitar
5
https://www.energy-reporters.com/opinion/turkeys-first-drilling-vessel-heads-to-mediterranean/
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os direitos de Chipre e desanuviar as tensões" (4 de outubro de 2019, Ekathimerini).
6
No
entanto, a partir do final da Grécia e da participação da República de Chipre em vários
exercícios militares conjuntos com os Estados como Israel
7
e Egito
8
na região pode ser
considerada como um movimento de securitização porque pode implicar e representar
uma coligação regional contra a Turquia. Embora mais tarde do que a Turquia, a Grécia
começou agora a articular opções militares. Neste contexto, a Grécia armou 18 ilhas no
Mar Egeu desde o início de 2020, em violação dos Acordos de Lausanne e Paris. Os
exercícios militares operacionais da Grécia e de Chipre com a França e a assinatura de
acordos de defesa aérea poderiam ser considerados como uma operação de
securitização. Do mesmo modo, o acordo francês de exercícios militares conjuntos com
a Administração cipriota grega e a instalação de aviões militares na ilha em violação dos
acordos de 1959-60 indicam que o problema está a caminhar para a internacionalização
e a securitização dos recursos energéticos aumentou pelos lados gregos, como no caso
dos lados turcos.
Em geral, a questão de Chipre já está securitizada pela Turquia e pela Grécia. Para o
cair na armadilha do anacronismo, é preciso admitir que as condições sociopolíticas dos
períodos de tempo em que a Alsácia-Lorena foi securitizada e dois grandes rivais
acabaram com duas grandes guerras subsequentes na história mundial. No equivalente
a isto no caso de Chipre, movimentos extraordinários que estão acima da política não
foram muito prováveis devido a esse lado grego - não securitizaram totalmente a questão
antes. Contudo, a securitização de uma emissão por um lado, os recursos energéticos,
neste caso, poderiam acelerar o processo de securitização do objeto de referência pelo
lado rival. Em termos práticos, a Turquia parece convencida a tomar medidas militares
para proteger as suas reivindicações de soberania, com os últimos desenvolvimentos a
Grécia e o Chipre grego começaram a seguir o mesmo caminho. A fim de evitar possíveis
conflitos futuros sobre os recursos energéticos, é urgentemente necessário um processo
de dessecuritização. Após guerras dramaticamente destrutivas, a França e a Alemanha
concordaram em partilhar os recursos energéticos nos seus benefícios comuns em vez
de lutarem pelo controlo total sobre os mesmos. Por outras palavras, a securitização e a
dessecuritização do caso Alsácia-Lorena para os recursos energéticos apresentam tanto
potenciais de conflito como de cooperação, respetivamente.
Dessecuritização da Alsácia-Lorena e suas implicações para o caso do
Chipre
Ole Wæver (1993: 53-54) trouxe a securitização e o processo de securitização para a luz
através do fornecimento de quatro estudos de caso e sugeriu que, para a
dessecuritização, as questões de segurança deveriam ser "normalizadas" por políticos e
intelectuais através do ato de discurso. Tal como no processo de securitização, o ato da
fala não é apenas palavra, mas conota a importância vital dos objetos de referência, no
processo de dessecuritização, o ato da fala pode ser instrumentalizado para reduzir as
tensões sobre uma questão específica. Desta forma, a questão da securitização é
6
http://www.ekathimerini.com/245180/article/ekathimerini/news/greece-turkeys-drilling-plan-in-cyprus-
eez-contrary-to-any-notion-of-legality
7
https://www.jpost.com/Israel-News/Israel-Air-Force-in-Greece-as-part-of-Iniohos-2019-585993
8
https://www.israeldefense.co.il/en/node/38302
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nivelada ao domínio político. Isto significa que a resolução de uma dada questão não
requer precauções extraordinárias e pode ser resolvida no âmbito de mecanismos
democráticos. Por outras palavras, "a dessecuritização das relações políticas não
permite a colaboração, como também aumenta a probabilidade de que os
desenvolvimentos relacionados com a energia reforcem o seu estatuto de
dessecuritização... Eles [o hidrocarboneto e o petróleo] são também utilizados como
instrumentos políticos para reforçar a influência política externa e fortalecer a posição
política do Estado face aos adversários, quer através da formação de relações de
dependência, quer através da formação de alianças" (Adamides e Christou, 2016: 87).
No caso da Alsácia-Lorena, há três pontos marcantes que têm de ser tidos em conta. É
o facto, o primeiro, de a securitização ter levado a Europa a uma devastação maciça e
depois a destitularização ter sido seguida. É porque as grandes potências rivais, França
e Alemanha, se desfizeram de todo o seu poder na guerra. Por conseguinte, era
imperativo concordar com a cooperação em termos de partilha de recursos energéticos.
Em segundo lugar, havia poder externo que obrigava à cooperação em troca de ajuda
externa, apoios políticos e económicos, os EUA. Em terceiro lugar, os intelectuais e os
políticos estão a encorajar a cooperação em vez de políticas revanchistas entre os dois
rivais.
Em associação com o primeiro ponto, quase todas as potências europeias destruíram as
infraestruturas dos seus rivais, que tiveram de ser reconstruídas. Para isso, todas elas
precisavam de recursos energéticos para processar matérias-primas como o ferro e o
aço. A este respeito, uma parte razoável dos recursos naturais era essencial para que
todas as partes revitalizassem as suas próprias infraestruturas e indústrias. O segundo
ponto é sobre fatores externos. Os EUA precisavam de uma Europa revitalizada como
mercado para as exportações americanas, e a segurança continental europeia era
também primordial para o sistema internacional do pós-guerra contra a União Soviética.
Era também bastante importante para a França e para a Alemanha receber ajuda externa
ao abrigo do Plano Marshall, iniciado em 1948 pelos Estados Unidos (Petzina, Stolper &
Hudson, 1981). Quanto ao terceiro ponto, tentativas de intelectuais e políticos para
convencerem ambos os rivais de que o seu interesse nacional estava estabelecido na
partilha das minas e dos recursos energéticos. Por exemplo, o governo francês superou
a oposição dos revanchistas e propôs o que é conhecido como a Declaração Schuman a
9 de maio de 1950. A Declaração foi proposta pelo ministro francês dos Negócios
Estrangeiros Robert Schuman, com base num plano desenvolvido pelo ministro francês
do planeamento da reconstrução Jean Monnet. O próprio Robert Schuman era originário
do território disputado da Alsácia-Lorena. Combateu no exército alemão em 1914-18,
teve o alemão como primeira ngua e tornou-se cidadão francês em 1919. O seu plano
ofereceu uma resposta específica à luta pelo controlo do carvão e do ferro: a formação
de uma comissão supranacional para regular o comércio dos dois recursos vitais para a
guerra. Além disso, o aço foi o principal elemento na reconstrução económica do pós-
guerra dos Estados (necessário para os caminhos-de-ferro, edifícios, navios, veículos,
maquinaria, etc.). Estes três pontos ajudaram a pôr fim a uma luta entre a Alemanha e
a França sobre a Alsácia-Lorena e a ser os garantes da estabilidade e prosperidade na
Europa.
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À luz de todos estes desenvolvimentos do pós-guerra, o plano de Robert Schuman para
a organização abrangente da "totalidade das produções franco-alemãs de carvão e aço
sob uma Alta Autoridade comum" levou à criação da CECA. Foi formalmente estabelecida
em 1951 pelo Tratado de Paris, assinado pela Bélgica, França, Itália, Luxemburgo, Países
Baixos e Alemanha Ocidental (Spierenburg & Poidevin, 1993). Através desta CECA, o
desenvolvimento e comércio de carvão e ferro/aço seria determinado pelo mercado e
não pelos interesses nacionais (Gillingham, 1991). Isto aumentaria a eficiência de uma
indústria vital para a reconstrução da Europa, ao mesmo tempo que aliviaria as tensões
criadas pela concorrência para o controlo dos recursos. O precedente da CECA pode ser
considerado como um exemplo de como a cooperação prática no domínio da energia
pode abordar as necessidades mútuas, bem como o reforço da confiança e do comércio
entre Estados vizinhos (mesmo adversários) (Hassan & Duncan, 1994).
A CECA foi o resultado de uma reflexão prática sobre a forma de alcançar a segurança
através da cooperação económica. A transformação nas relações franco-alemãs do
conflito sobre recursos naturais para o comércio cooperativo de carvão e aço reflete uma
transformação paralela na forma como os recursos naturais eram vistos. A partilha dos
recursos naturais como causa da guerra foi substituída pela segurança do comércio
interdependente destes recursos. Enquanto uma das principais causas de ambas as
guerras mundiais foi um conflito entre a França e a Alemanha sobre a Alsácia-Lorena, a
solução reside na resolução da questão do controlo dos recursos naturais. A CECA foi
assim o primeiro passo para um novo mundo.
A experiência dos franceses e alemães, particularmente no caso Alsácia-Lorena, não pode
fornecer respostas diretas ou um plano exato para a resolução ou prevenção de conflitos
futuros, mas permite compreender o que a securitização dos recursos energéticos causou
e como se poderia conseguir a sua dessecuritização, evidentemente, sem lançar uma
guerra.
Observações finais e conclusão
Os objetivos fundamentais do artigo o os de conter desde o primeiro ponto que é
considerado o motivo do processo de dessecuritização dos recursos energéticos na
Alsácia-Lorena e de destacar os outros dois pontos para a dessecuritização dos recursos
energéticos na questão cipriota. Tal como no caso da Alsácia-Lorena, as disputas sobre
recursos energéticos entre dois rivais reuniram terceiros envolvidos na guerra, de acordo
com os seus interesses nacionais. Desta forma, foram estabelecidas alianças e, por
conseguinte, revelaram-se guerras a nível mundial. O caso de Chipre assemelha-se ao
caso da Alsácia-Lorena porque ambos os atores, Grécia e Turquia, estão em vias de fazer
aliados para a utilização e distribuição de recursos energéticos no Mar Mediterrâneo
Oriental. Desta forma, um possível conflito entre os dois atores principais pode prolongar-
se e causar pelo menos um conflito a nível regional, se não global.
O segundo ponto do caso Alsácia-Lorena, o reforço do poder externo a incluir, parece
crucial para o processo de dessecuritização. As relações de poder entre o poder externo,
encorajando um acordo entre os dois rivais, é bastante prejudicial. Desta forma, surgiu
uma ideia de cooperação transnacional, o que deu origem à CECA. Tal tentativa foi
efetivamente tentada pelo lado turco, mas a proposta foi rejeitada pelo lado grego. No
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entanto, a proposta não pode ser considerada como tendo sido feita por força externa,
porque aqueles que a propuseram faziam efetivamente parte da questão. A UE deveria
ser a primeira a vir à mente, mas a Grécia e a República de Chipre, que representa toda
a ilha, são membros de pleno direito da organização e a Turquia ainda está em processo
de ajustamento como candidato. O possível papel da UE como potência externa forçando
duas partes a fazer um acordo de partilha de recursos energéticos poderá ser possível
no caso de a Turquia ser concedida com plena adesão. Caso contrário, a securitização
dos recursos energéticos em torno da ilha transcende as fronteiras e pode transformar-
se na rivalidade entre a UE e a Turquia. Com base nos recentes desenvolvimentos, existe
outra opção relativamente ao envolvimento de terceiros em possíveis conflitos como
mediador externo, a OTAN. Tanto a Grécia como a Turquia serem o parceiro igual desta
organização internacional pode conduzir a um caminho de compromisso, e parece
funcionar melhor do que a UE, na qual a Grécia e a Turquia têm um estatuto diferente.
Para o último ponto, o facto de haver políticos e intelectuais, facilitando o nível de
segurança da questão energética em Chipre entre os dois lados, é outra ausência para o
processo de dessecuritização. Especialmente no lado turco, os direitos de soberania são
tomados como linhas vermelhas e não se abrem para discussão, uma vez que estão na
sua maioria associados à integridade territorial nacional. O lado grego, incluindo a Grécia
e o Chipre grego, desenvolveu uma aliança regional com o Egipto e Israel e obteve agora
privilégios militares dos Estados Unidos e da França. Se se argumentar que os políticos
e intelectuais poderiam ter uma oportunidade de levantar a voz é possível após uma
guerra destrutiva, este terceiro ponto poderia ter sido inválido. Contudo, a fim de evitar
uma guerra tão destrutiva, os políticos e intelectuais que normalizem a questão e a levem
de volta ao domínio político (Zikos, Sorman, & Lau, 2015: 311) devem tomar o terreno
e ser influentes no processo de tomada de decisões. Isso seriam lições exatas a retirar
do caso Alsácia-Lorena para a questão de Chipre.
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AVALIAÇÃO DA ESTRATÉGIA RUSSA PARA CONTRASTAR O TERRORISMO E A
PROPAGANDA JIHADISTA NO NORTE DO CÁUCASO
GIULIANO BIFOLCHI
giuliano.bifolchi@gmail.com
Departamento de História Tor Vergata da Universidade de Roma, Património Cultural, Educação e
Sociedade (Itália). Associação de Estudos, Investigação e Internacionalização na Eurásia e África
Resumo
O terrorismo, os ataques violentos e o islamismo político têm afetado o Norte do Cáucaso
desde a desintegração da União Soviética. Se no passado o Emirado do Cáucaso era a principal
organização terrorista da região desde 2014, o Estado islâmico ganhou popularidade e
estabeleceu o Vilayat Kavkaz (província do Cáucaso) como parte do Califado, explorando a
condição socioeconómica crítica local e promovendo a propaganda jihadista em língua russa
(ou seja, a revista 'Istok') também graças à presença considerável de combatentes
estrangeiros do Cáucaso do Norte entre as fileiras de Abu Bakr al-Baghdadi. Embora
atualmente as forças da coligação internacional tenham derrotado principalmente o Estado
islâmico na Síria e no Iraque, esta organização ainda compromete o Norte do Cáucaso,
frequentemente identificado como a zona mais volátil e empobrecida da Federação Russa,
caracterizada por conflitos étnicos, o aumento do salafismo, a estagnação e a corrupção. Este
estudo visa salientar que o governo russo elaborou uma estratégia baseada principalmente
em operações militares especiais e investimentos maciços no turismo e na logística que podem
exacerbar ainda mais o precário status quo da região, favorecendo a difusão da propaganda
jihadista porque não considera o contexto histórico, sociocultural, étnico e religioso. A região
não está isenta da propaganda jihadista e do terrorismo e, se o governo russo não puder
apoiar financeira e economicamente os líderes regionais ou não quiser mudar a sua
abordagem, o terrorismo e o islamismo político poderiam influenciar de forma crítica o
Cáucaso do Norte, colocando uma perigosa ameaça à estabilidade e segurança da Federação
Russa e de toda a Eurásia.
Palavras-chave
Norte do Cáucaso, Rússia, contra-terrorismo, segurança, Islão
Como citar este artigo
Bifolchi, Giuliano (2020). Avaliação da estratégia russa para contrastar o terrorismo e a propaganda
jihadista no Norte do Cáucaso. In Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 11, 2
Consultado [online] em data da última consulta, DOI: https://doi.org/10.26619/1647-
7251.11.2.2
Artigo recebido em Julho 20, 2019 e aceite para publicação em Fevereiro 26, 2020
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Avaliação da estratégia russa para contrastar o terrorismo e a propaganda jihadista
no norte do Cáucaso
Giuliano Bifolchi
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AVALIAÇÃO DA ESTRATÉGIA RUSSA PARA CONTRASTAR O
TERRORISMO E A PROPAGANDA JIHADISTA NO NORTE DO CÁUCASO
1
GIULIANO BIFOLCHI
Introdução
O Norte do Cáucaso é um território geopolítico estratégico no Sul da Rússia que liga a
Europa e a Ásia e divide o mundo cristão e o mundo muçulmano. Devido à sua posição
geográfica e ao seu historial sociocultural, a região tem ligações com o Médio Oriente, a
região do Mar Cáspio, a Ásia Central e o mundo árabe-muçulmano. As superpotências
internacionais (Estados Unidos, Rússia e China) e os principais atores regionais (Irão,
Turquia, Azerbaijão, Geórgia) estão envolvidos na dinâmica do Norte do Cáucaso para
controlar este centro de interligação e influenciar o desenvolvimento da arena
internacional (Abtorkhanov & Broxup, 1992; Bifolchi, 2018; Gazhiev, 2003, p. 44). A
região é também uma zona tampão que protege o sul da Rússia de uma invasão militar
externa e proporciona ao Kremlin o acesso ao comércio marítimo internacional graças ao
Mar Negro (Friedman, 2008).
Após a desintegração da União Soviética, o Norte do Cáucaso sofreu conflitos inter-
étnicos, problemas económicos, o aumento do salafismo em contraste com a comunidade
sufi local, terrorismo, militarismo local, desemprego e corrupção. Desde o Primeiro
Conflito Checheno (1994 1996) o terrorismo e as micias locais têm sido as questões
regionais centrais: durante a primeira década do século XXI Imarat Kavkaz (Emirado do
Cáucaso) foi a principal organização terrorista local, enquanto que em 2014 o Estado
islâmico ganhou popularidade e criou Vilayat Kavkaz (Província do Cáucaso) como parte
do Califado explorando a situação socioeconómica crítica regional e promovendo a
propaganda jihadista em língua russa (i.e. a revista Istok’).
Em 2010, a Federação Russa elaborou e desenvolveu uma estratégia antiterrorista
baseada em operações militares e amplos investimentos em turismo e logística cujos
objetivos deveriam ter pacificado toda a região, impulsionando o desenvolvimento
socioeconómico local e contrastando o recrutamento terrorista entre as jovens gerações.
1
Artigo traduzido por Cláudia Tavares.
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Embora o Kremlin tenha descrito enfaticamente o impacto positivo da sua estratégia, o
terrorismo é uma ameaça no Norte do Cáucaso e Imarat Kavkaz e a propaganda do
Estado islâmico ainda podem influenciar a população local porque as forças militares
russas ainda não derrotaram totalmente os grupos jihadistas locais.
Método de investigação e revisão da literatura
Esta investigação procura demonstrar por que razão a estratégia regional de luta contra
o terrorismo do Kremlin poderá ter um impacto positivo limitado a curto prazo na
segurança e estabilidade do Norte do Cáucaso sem lidar com todos os problemas que
encorajam os residentes, principalmente as gerações jovens, a juntarem-se aos grupos
terroristas e ao movimento islamista. Se o governo russo não conseguir manter os líderes
locais ou não ajustar a sua estratégia, o terrorismo e o islamismo político poderão
interessar seriamente ao Norte do Cáucaso, ameaçando a estabilidade e segurança da
Federação Russa e de toda a Eurásia.
Este artigo analisa a literatura académica sobre geopolítica, história, segurança,
etnografia e comunicação estratégica, bem como relatórios de ONGs e meios de
comunicação social sobre o Norte do Cáucaso, terrorismo na Rússia e propaganda
jihadista em língua russa.
Académicos e peritos regionais descrevem frequentemente o Cáucaso do Norte como o
"interior do estrangeiro" ou "nacional do estrangeiro" russo e diferenciam esta região do
resto da Federação Russa e da blizhnie zarubezhnye (perto do estrangeiro)
2
devido às
suas peculiaridades. De facto, o Norte do Cáucaso tem sido descrito como "uma região
estrangeira" na Rússia, onde as leis tribais locais e o Islão são mais importantes na vida
quotidiana do que a lei federal russa. Devido ao seu contexto sociocultural, histórico e
religioso, as pessoas de etnia russa têm frequentemente visto o Cáucaso do Norte como
uma área "estrangeira" dentro do país, mais próxima do Médio Oriente e do mundo
árabe-muçulmano (Halbach, 2010; Malashenko, 2011; ‘Chechnya: The Inner Abroad’,
2015).
Em termos de geopolítica, o Norte do Cáucaso desempenha um papel fundamental na
política interna e externa russa mas, ao mesmo tempo, a região é um dos elementos
mais desestabilizadores da soberania territorial russa. Os problemas etnoculturais e
etnolinguísticos, que têm caracterizado a região desde a queda da União Soviética e o
nascimento da Federação Russa, têm sido utilizados como instrumentos para fomentar o
conflito e interferir na área macro Mar de Azov - Mar Negro - o Mar spio que Haushofer
e Mackinder delinearam como as áreas de contraste mais importantes do mundo. O
confronto Estados Unidos - Rússia ainda afeta esta macro-área e, de acordo com o
conceito de "eixos geopolíticos" elaborado por Zbigniew Brzezinski, a Casa Branca iniciou
2
O termo Russo blizhnie zarubezhnye (Ближнее зарубежье) é o nome coletivo das antigas repúblicas da
União Soviética, atualmente a Comunidade de Estados Independentes (CEI), bem como das repúblicas
bálticas (Letónia, Estónia, Lituânia), Ucrânia e Geórgia. Entre os países referidos como "estrangeiro
próximo" encontram-se aqueles que não têm uma fronteira comum com a Federação Russa (Arménia,
Moldávia, Turquemenistão, Tajiquistão, Uzbequistão, Quirguizistão), enquanto alguns Estados que fazem
fronteira direta com a mesma não incluem (Finlândia, Noruega, Polónia, Mongólia, RPC, RPDC). ROSSTAT
refere-se aos países da CEI próximos do estrangeiro, exceto a Rússia, referindo-se aos países longínquos
da Geórgia, Abcásia, Ossécia do Sul, Transnístria, Nagorno-Karabakh e os países bálticos, mas esta
abordagem não é geralmente aceite.
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a prevenção da expansão russa para o Sul e para os eixos geopoticos na segunda década
do século XXI através do Norte do Cáucaso e a exploração das diferenças étnicas,
culturais e religiosas como um elemento de instabilidade (Avksentyev, 2016).
Existe uma tendência geral na literatura académica russa para sublinhar a possibilidade
de um país estrangeiro, especialmente os Estados Unidos, poder explorar as minorias
étnicas do Norte do ucaso e os problemas socioculturais para desestabilizar o Sul da
Rússia, prejudicando, assim, a autoridade do Kremlin (Babayan, 2012; Eneev, 2014;
Kolossov & Sebentsov, 2014). A preocupação russa sobre uma interferência dos EUA na
dinâmica regional do Norte do Cáucaso enquadra-se no que a agência de informação
Stratfor dos EUA escreveu sobre a região e a população muçulmana do Norte do Cáucaso
definida como uma das frentes mais vulneráveis da Rússia (Goujon, 2016).
O Norte do Cáucaso não é apenas parte do tabuleiro de xadrez geopolítico que se opõe
à Rússia e ao Ocidente porque a região é também o campo de batalha onde as forças de
segurança russas combateram os militantes locais e os grupos terroristas. Com efeito,
desde a desintegração da União Soviética, os movimentos independentes e o
etnonacionalismo têm caracterizado o Norte do Cáucaso que, durante os anos 90,
conheceu a Primeira Guerra da Chechénia (1994-1996), a radicalização da causa
chechena e a sua transformação num movimento terrorista cujo objetivo final era
estabelecer um emirado ou ido Norte do Cáucaso sob a lei islâmica e independente
da autoridade central russa (Vendina et al., 2007).
Embora o terrorismo do Norte do Cáucaso tenha as suas características específicas, não
é um fenómeno meramente regional porque a militância local e o terrorismo afetaram
todo o solo russo e os grupos jihadistas do Norte do Cáucaso estabeleceram algumas
ligações com a rede terrorista internacional. As raízes do terrorismo do Norte do Cáucaso
pertencem ao processo de radicalização e a propagação da ideologia jihadista começou
desde a queda da União Soviética e aumentou durante a luta chechena pela
independência contra a autoridade central russa durante a Primeira Guerra da Chechénia,
quando todo o país enfrentava a debilidade das instituições nacionais, a crise económica,
o aumento das atividades criminosas e um fluxo migratório incontrolável (A. Yarlykapov,
2010).
O terrorismo no Norte do Cáucaso
Devido ao conflito checheno e à instabilidade após o colapso da União Soviética, o Norte
do Cáucaso conheceu ondas de radicalização, militarismo, ataques terroristas e a
formação de grupos jihadistas (Pokalova, 2017).
Em 2007, Doku Umarov criou Imarat Kavkaz (Emirato do Cáucaso) cujo objetivo era
estabelecer um emirado no Norte do Cáucaso com base na lei sharīʿa. Os Emirados do
Cáucaso organizaram alguns dos ataques mais mortíferos em toda a Federação Russa e
ganharam popularidade entre a população local (Roggio, 2007). As forças e autoridades
militares russas consideraram Imarat Kavkaz como a principal ameaça para a segurança
nacional e regional e a sua preocupação surgiu especialmente após o ComiOlímpico
Internacional a Federação Russa como o país anfitrião dos Jogos Olímpicos de Inverno
de 2014 em Sochi. É possível sublinhar uma ligação entre Sochi 2014 e o declínio de
Imarat Kavkaz devido a um grande envolvimento e atividade militar das forças especiais
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russas no Norte do ucaso nos anos 2013-2015 que permitiu a eliminação de Doku
Umarov e dos líderes mais representativos da organização (Hann, 2014; ‘Imarat Kavkaza
/Caucasus Emirate’, 2014; Jasutis, 2016).
Enquanto as forças especiais russas eliminavam alguns dos líderes mais influentes dos
Emirados do Cáucaso, o Estado islâmico começou a ganhar popularidade no Norte do
Cáucaso. Em 2014, alguns deres de Imarat Kavkaz prometeram fidelidade a Abu Bakr
al-Baghdadi abrindo a porta da região ao Estado Islâmico que criou Vilayat Kavkaz
(Província do Cáucaso) como parte do "novo Califado" (Borshchevskaya, 2015; Flood,
2015). A criação de Vilayat Kavkaz no Norte do Cáucaso pode ser a conclusão de um
processo que consistiu na divulgação de propaganda jihadista em ngua russa através
da revista 'Istok' e dos relatos dos meios de comunicação social para promover a
ideologia ISIS e recrutar combatentes estrangeiros no espaço pós-soviético. Na
realidade, segundo o Presidente russo Vladimir Putin, cerca de 4.000 - 5.000 cidadãos
russos juntaram-se ao Estado islâmico e, entre eles, havia um grupo considerável de
norte-caucasianos (North Caucasian Fighters in Syria and Iraq & IS Propaganda in
Russian Language, 2015; Parazsczuk, 2015).
Desde 2010, o Cáucaso do Norte registou uma diminuição significativa de ataques
violentos e atividades terroristas, embora a região não seja imune à propaganda e
militância jihadista. Considerando os dados comunicados por Kavkaz Uzel, durante o
período 2010-2017, o Cáucaso do Norte registou 6.536 ataques violentos: Daguestão,
Chechénia e Inguchétia foram as repúblicas mais afetadas pelo terrorismo, seguidas por
Kabardino-Balkaria, Norte-Ossetia-Alania, Stavropol Krai e Karachay-Cherkessia.
Durante estes sete anos, o número de mortos diminuiu de 1.705 em 2010 para 175 em
2017.
Em 2018, o Daguestão registou os ataques mais violentos no Norte do Cáucaso, embora
o número total de vítimas tenha diminuído em 10,9% em comparação com 2017. Entre
as 49 pessoas envolvidas na violência regional, os militantes tiveram as principais vítimas
(Chislo Zhertv Vooruzhennogo Konflikta v Dagestane Za 2018 God Sokratilos’ Pochti Na
11%, 2019).
A República Chechena não estava imune à violência, embora o Kremlin tenha promovido
o país como o seu sucesso na luta contra o terrorismo: em 2018, 26 pessoas foram
mortas e nove ficaram feridas. Em comparação com 2017 (75 timas), o número total
de vítimas diminuiu 53,3%, mas o número de incidentes armados aumentou 37,5%.
(Chislo Zhertv Konflikta Na Territorii Chechni Umen’shilos’ Na Fone Aktivizacii Boevikov
v 2018 Godu, 2019). A terceira república mais violenta do Norte do Cáucaso foi a
Inguchétia, que reduziu o número de vítimas em 58%, embora o governo local não tenha
conseguido evitar os ataques violentos que causaram dez vítimas, oito pessoas mortas e
dois feridos (Chislo Zhertv Vooruzhennogo Konflikta v Ingushetii Za 2018 God Snizilos’
Na 58%, 2019).
Em Stavropol Krai, ataques violentos resultaram na morte de seis pessoas e dois feridos.
A república do Norte do Cáucaso registou um aumento de 33,3% das vítimas em
comparação com a de 2017 (Chislo Zhertv Vooruzhennogo Konflikta Za 2018 God Na
Stavropol’e Vyroslo Na 33,3%, 2019). No ano passado, no território de Kabardino-
Balkaria, seis pessoas tornaram-se vítimas do conflito armado em curso entre os
militantes locais e as autoridades. O número de timas na república foi 500 por cento
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superior ao de 2017, quando apenas uma pessoa foi morta (Za 2018 God Chislo Zhertv
Konflikta v Kabardino-Balkarii Vyroslo Na 500%, 2019). A Ossetia-Alania do Norte era
imune a ataques terroristas mostrando o seu sucesso na desradicalização e segurança.
Se em 2018 a república não sofreu qualquer forma de ataques violentos, em 2017 os
quatro incidentes armados causaram a morte de cinco pessoas e quatro feridos
(Severnaja Osetija v 2018 Godu Vernula Poziciju Mirnogo Regiona v Zone Vooruzhennogo
Konflikta, 2019). Também em Karachay-Cherkessia, não houve vítimas em 2018, uma
tendência positiva em comparação com as cinco pessoas mortas em 2017 por causa do
conflito armado (Zhertv Vooruzhennogo Konflikta v Karachaevo-Cherkesii v 2018 Godu
Ne Bylo, 2019).
No primeiro trimestre de 2019, pelo menos 21 pessoas (16 mortas e cinco feridas) foram
vítimas de ataques violentos e terrorismo no Norte do Cáucaso. Kabardino-Balkaria era
a república do Norte do Cáucaso mais afetada, seguida do Daguestão, Inguchétia,
Stavropol Krai e Chechénia (“Infografika. Statistika zhertv na Severnom Kavkaze v
pervom kvartale 2019 goda po dannym Kavkazskogo Uzla,” 2019).
O confronto entre o "islamismo oficial tradicional" e o salafismo
emergente
A autoridade central russa considera necessário melhorar a segurança na região e presta
predominantemente atenção às operações militares e ao número total de vítimas.
Embora a coexistência entre as comunidades Sufi e Salafi tenha gerado confrontação e
uma nova onda de violência e radicalização, Moscovo e os governos locais parecem
subestimar este problema cujas raízes pertencem ao período de dissolução da União
Soviética, quando o ucaso do Norte experimentou um "renascimento islâmico" e o
Islão deu a sua contribuição para a nova identidade regional após o fracasso da ideologia
soviética. Durante os anos 70 e 80 e após o colapso da URSS, jovens gerações de
muçulmanos viajaram para o Médio Oriente, o Golfo e o Norte de África com o objetivo
de receber uma educação em ortodoxia e práticas islâmicas nas madrasas locais ou nas
instituições mais prestigiadas do mundo muçulmano para preencher a falta de figuras e
conhecimentos religiosos muçulmanos que o Norte do Cáucaso experimentou devido à
"Sovietização", à "Russificação" e à campanha anti-religiosa do Kremlin durante a era
soviética. Simultaneamente, estudiosos e imãs muçulmanos do Médio Oriente, do Golfo
e do Norte de África chegaram à região apoiando o "renascimento religioso" e
promovendo o que consideravam o "verdadeiro Islão" com base nas ideologias dos
Irmãos Muçulmanos, do Salafismo, do Wahhabismo e do Hizb ul-Tahrir. Estes
académicos, apoiados pelos seus governos, estabeleceram uma rede de associações e
organizações envolvidas no financiamento de projetos sociais, construção de novas
mesquitas e recrutamento de futuros estudantes para os seus madrasa (Berezhnoj et al.,
2003; A. Yarlykapov, 2010; A. A. Yarlykapov, 2015). A propaganda ideológica islâmica
promovida por países estrangeiros e pelos jovens muçulmanos que estudaram no
estrangeiro gerou a propagação do Islão radical no Norte do Cáucaso durante os anos
90, quando a região enfrentava o conflito de independência da Chechénia entre Grozny
e Moscovo e os conflitos inter-étnicos locais, como o do Prigorodny oriental herdado dos
czaristas e da administração do passado soviético. Assim, a região começou logo a
experimentar a ascensão da ideologia jihadi Salafi frequentemente rotulada pelo governo
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russo e pelos meios de comunicação estatais como "Wahhabismo". Grupos armados
locais sunitas extremistas empenhados na luta contra a autoridade central russa
adoptaram esta ideologia como o seu quadro (Chifu, 2011; Sagramoso, 2012;
Sokirianskaia, 2007).
A difusão de novas ideologias, a ascensão do Salafismo e dos grupos terroristas provocou
um confronto entre os apoiantes do "tradicional Islão oficial" (Sufi) e a nova geração de
muçulmanos (Salafi), o que agravou acentuadamente a situação de segurança e a
coabitação no Norte do Cáucaso. Cada república do Norte do Cáucaso (particularmente
na parte oriental da região) registou diferentes tendências e peculiaridades e existe uma
estratégia não homogénea relativamente ao aumento do Salafismo e ao apoio ao Sufismo
(Abdulagatov, 2013; V. Akaev, 2008; V. H. Akaev, 2010; Makarkin, 2016):
Na Chechénia, existe um conflito entre o sufismo tradicional sustentado pelas
autoridades locais e o salafismo das jovens gerações promovido como o "único
verdadeiro Islão" e purificado pelas tradições locais (por exemplo ziyāra). Após o
processo de " Chechenização" adotado pelo Kremlin para ultrapassar os problemas
causados pelo conflito e iniciar o processo de reconstrução, o líder checheno
Ramzan Kadyrov iniciou a "islamização" da sociedade chechena apoiando o sufismo
e lutando contra qualquer forma de salafismo (Chechnya Encourages Islamic-Style
Customs, 2011; Vatchagaev, 2014; Barak, 2016).
No Daguestão, os Salafistas são contra o tukhum (identidade do clã tribal) e a 'ādāt
(lei tribal), e aceitam apenas o umma muçulmano como um elemento central das
suas vidas. A ascensão do Salafismo no Daguestão provocou um choque com o
"tradicional Islão oficial" (Sufismo) devido a diferentes pontos de vista sobre o papel
do código tribal na religião. De facto, enquanto a comunidade sufista considera vital
o elemento étnico, o "novo Islão" (Salafismo) visa estabelecer uma sociedade
purificada pela etnicidade e baseada apenas na religião. Há também uma luta pelo
controlo das mesquitas onde os salafistas rezam porque a comunidade de Salafi
desempenha um papel importante no país (Rozanova-Smith & Yarlykapov, 2014;
Roshchin, 2018).
As novas gerações de muçulmanos de Kabardino-Balkaria que estudaram no Médio
Oriente e no Golfo colidiram com as autoridades locais relativamente ao conceito
de "verdadeiro Islão" e "Islão tradicional". Em 2005, um grupo armado de Salafi
organizou um ataque em Nalchik (capital de Kabardino-Balkaria) que causou 130
vítimas e mais de 200 feridos. Em março de 2010 as forças de segurança russas
mataram Anzor Astemirov, líder do movimento militante (Salafi), exacerbando o
confronto entre as comunidades sufi e Salafi e os salafistas com o governo local.
Esta hostilidade está na base da propagação da propaganda jihadista e do
recrutamento do Estado islâmico na República do Norte do Cáucaso (Hahn, 2005;
Fagan, 2014).
Na Ingúchia, o confronto entre muçulmanos sufistas e salafistas envolveu Issa
Khamkhoev, o der do muftiado nacional ou Dukhovniy Zentr Musul'man Respubliki
Ingushetii (Centro Espiritual dos Muçulmanos da República da Ingúchia, DZM) e
membro da Irmandade Qādiriyya, Khamzat Chumakov, desde 2008 o iSalafi da
mesquita da aldeia Nasir-Kort, na cidade de Nazran, que sobreviveu a três
diferentes tentativas de assassinato e renunciou ao seu cargo em 2018, e Yunus-
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Bek Yevkurov que, desde que foi nomeado chefe da República Ingush, adotou uma
política interna baseada em operações militares contra os grupos rebeldes islâmicos
locais, um diálogo aberto com as comunidades Salafi locais e uma tentativa de
promover um processo de desradicalização (Kvakhadze, 2018; Ramazanov, 2018).
Estratégia anti-terrorista russa
Desde a criação do Distrito Federal do Norte do Cáucaso em 2010, o Kremlin elaborou
uma estratégia baseada no Kontrterroristicheskoj Operacii (operações anti-terrorismo,
KTO) contra os militantes locais e as pessoas acusadas de serem terroristas ou ligadas à
rede terrorista, a adoção de leis nacionais, federais e locais contra o terrorismo, o
islamismo político, o extremismo religioso e o "wahhabismo", e um programa de
desenvolvimento socioeconómico para melhorar as condições de vida regionais e abrir o
Norte do Cáucaso ao investimento direto estrangeiro.
O desenvolvimento socioeconómico baseou-se na reorganização administrativa da região
e numa estratégia baseada em aglomerados turísticos e logísticos. Em 19 de janeiro de
2010, o Presidente Dmitri Medvedev assinou o decreto N. 82 que criou o Severo-
Kavkazskij Federal’nyj Okrug (Distrito Federal do Norte do Cáucaso, NCFD), separou o
Norte do Cáucaso pelo Juzhnyj Federanlij Okrug (Distrito Federal Sul, SFD) onde o
Kremlin organizou Sochi 2014, e lançou o Strategija Socianl’no-Jekonomicheskovo
Razvitija Severo-Kavkazkovo Federal’novo Okruga do 2025 (Estratégia de
Desenvolvimento Socioeconómico da NCFD até 2025, Estratégia 2025) para contrastar
os problemas económicos e melhorar as condições de vida locais. Em 14 de outubro de
2010, o Primeiro-Ministro Vladimir Putin assinou o decreto N. 833 O sozdanii
turisticheskovo klastera v Severo-Kavkazskom federal’nom okruge, Krasnodarskom krae
i Respublike Adygeja(Sobre a criação de aglomerados turísticos no Distrito Federal do
Norte do Cáucaso, o Krasnodar Kray e a República de Adygea) que estabeleceu um
aglomerado turístico no NCFD, Krasnodar Krai e Adygea.
Em 2 de dezembro de 2010, o decreto N. 833 instruiu o AO Kurortiy Severnovo Kavkaza
(Open Joint-Stock Company Northern Caucasus Resorts, JSC NCR) para gerir as zonas
económicas especiais turísticas e recreativas na NCFD com o objetivo de conceber,
construir e colocar em funcionamento novas estâncias de esqui para atrair os IDEs e o
fluxo turístico internacional e transformar o Norte do Cáucaso num dos principais destinos
no turismo recreativo. A última ação da autoridade central russa no Norte do Cáucaso foi
em 12 de maio de 2014, quando o Presidente Vladimir Putin assinou o decreto N. 636
para estabelecer o Ministerstvo po Delam Severnovo Kavkaza (Ministério dos Assuntos
do Norte do Cáucaso, Minkavkaz).
Graças a esta configuração administrativa e a este plano económico, o Kremlin visava
melhorar as condições socioeconómicas da região, impulsionar o desenvolvimento
económico, proporcionar cerca de 400 mil empregos aos habitantes locais, atrair IDC,
ligar a região às rotas comerciais mais importantes e contrastar o Norte do Cáucaso
jamāʿat (grupos terroristas) e as suas atividades de recrutamento (Vatchagaev, 2011;
Tappaskhanova et al., 2015).
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Conclusões
Embora o governo russo tenha financiado fortemente as repúblicas do Norte do Caucaso,
a NCFD arrisca-se a permanecer uma das regiões russas mais instáveis e uma das
ameaças predominantes à segurança e estabilidade nacionais. A estratégia de
concentrar todos os esforços no desenvolvimento económico sem considerar as
peculiaridades locais, o contexto histórico e os atuais sentimentos negativos da
população que vê sempre a contraposição entre russkij e russiyane pode tornar-se o
maior erro do governo russo na gestão das minorias étnicas na região.
Os russos étnicos sempre viram o Norte do Cáucaso como uma área desafiante, e durante
séculos desenvolveram sentimentos populares contra os russos não étnicos,
especialmente em relação ao povo do Norte do Cáucaso. Kavkazofobija (o medo do
Cáucaso) é um sentimento negativo da sociedade russa em relação aos caucasianos do
Norte alimentado pelas duas guerras chechenas, a insurreição local e as ondas de
ataques terroristas em solo russo. Kavkazofobija resultou no slogan 'xvatit kormit
Kavkaz' (pare de alimentar o Cáucaso) frequentemente utilizado no discurso político
russo para acusar o Kremlin de financiar grandes projetos de investimento regional
utilizando fundos estatais (Bifolchi, 2019). Na sua investigação, Andrew Foxall mostrou
que os motins em massa contra os caucasianos do Norte em Kondopoda (2006),
Stavropol (2007), Moscovo (2010 e 2013) e Pugachyov (2013) exacerbaram o confronto
com os de etnia russa. Este clima de medo infunde desilusão e desconfiança entre os
norte-caucasianos que não se consideram parte da sociedade russa e encaram a causa
islamista e a militância local como a solução dos seus problemas (Foxall, 2014).
Na NCFD não há eleições diretas de líderes regionais nomeados pelo Kremlin. A ausência
de um processo democrático afasta a população local da vida política e gera desconfiança
em relação às autoridades (The North Caucasus: The Challenges of Integration (III),
Governance, Elections, Rule of Law, 2013). Na NCFD há duas tendências principais sobre
a estratégia de governação baseada na sua centralização: o primeiro é o da Chechénia
onde Kadyrov não tem oposição política direta, gere as atividades comerciais mais
significativas e baseia o desenvolvimento económico do seu país em subsídios federais e
programas de desenvolvimento cujo objetivo é melhorar o nível de segurança e
impulsionar a recuperação económica. O segundo modelo de governação poderia ser o
de Karachay-Cherkessia ou Dagestan onde o chefe da república emerge de um acordo
entre os diferentes grupos étnicos que lutam pelo acesso aos subsídios financeiros do
Estado.
Embora nos últimos anos o nível de segurança na região tenha aumentado graças à KTO
e à estratégia socioeconómica do Kremlin, o Norte do Cáucaso não é uma região segura
e estável como o governo russo promoveu porque a propaganda jihadista provou que
pode influenciar a população local, especialmente as gerações jovens, e uma ameaça
tanto para os habitantes locais como para as autoridades (Falkowski, 2014).
Além disso, no Norte do Cáucaso a vida e a coabitação entre diferentes grupos étnicos e
religiosos não melhorou. Hoje em dia, as tensões étnicas e religiosas estão na base dos
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problemas socioeconómicos. Certamente, o Norte do Cáucaso é uma região multi-étnica
e cada abordagem para contrastar o terrorismo e gerir as repúblicas locais deve
considerar o contexto histórico e sociocultural e a peculiaridade distintiva de cada grupo
étnico (The North Caucasus: The Challenges of Integration (I), Ethnicity and Conflict,
2012).
Estes sentimentos de desconfiança em relação à autoridade central misturados com
tensões étnicas, a luta pela terra e a falta de oportunidades de emprego são as razões
da importância crescente do salafismo que oferece um Estado islâmico virtuoso baseado
na lei sharīʿa como um modelo alternativo. Assim, o Estado Islâmico e os Emirados do
Cáucaso continuam a ser as principais ameaças à estabilidade e segurança da região
porque as gerações jovens não acreditam no governo local e nas políticas que não deram
soluções para melhorar o seu estatuto socioeconómico e preferem aderir à causa
islamista.
O desenvolvimento económico é fundamental no Norte do Cáucaso, mas depende
significativamente do orçamento estatal russo e do desempenho económico nacional.
Assim, uma crise económica na Federação Russa, como a que o país viveu nos últimos
anos devido à queda dos preços do petróleo, pode afetar a segurança e a situação social
do Norte do Cáucaso, porque a região ainda não é capaz de atrair os IDE e a atenção dos
empresários russos. Os empresários estrangeiros e russos estão relutantes em participar
no desenvolvimento económico do Norte do ucaso porque consideram que a região é
volátil e não lucrativa. Isto torna as repúblicas do Norte do Cáucaso dependentes dos
subsídios financeiros do Kremlin e do orçamento do Estado. Inegavelmente, a situação
regional é complicada e apresenta duas realidades diferentes: por um lado, o persistente
elevado vel de pobreza e desemprego pode empurrar algumas pessoas, especialmente
os jovens adultos, para a causa islamista e o radicalismo. Por outro lado, os investidores
e elites locais não têm o estímulo e as razões para investir dinheiro e esforços para
melhorar o desenvolvimento socioeconómico regional e manter a ordem social,
principalmente depois de Moscovo ter perdido a sua capacidade de apoiar os governos
locais (Kazenin & Starodubrovskaya, 2015).
Em conclusão, a Federação Russa precisa de controlar o Cáucaso do Norte devido ao seu
papel geopolítico e estratégico, mas o Kremlin deve elaborar uma estratégia sociocultural
- económica para contrastar o terrorismo e a propaganda jihadista. Quando o Estado
islâmico for completamente derrotado na região do MENA, existe o risco de os
combatentes estrangeiros do Norte do Cáucaso regressarem a casa, aplicarem ticas de
guerrilha e promoverem a ideologia jihadista na região, ameaçando a segurança local e
arruinando a estratégia de desenvolvimento socioeconómico do Kremlin, centrada em
aglomerados turísticos(Hedenskog & Holmquist, 2015; The North Caucasus Insurgency
and Syria: An Exported Jihad?, 2016).
A política russa deve avaliar os grupos étnicos e religiosos para evitar que as tensões
explodam em conflitos locais, e a causa islamista se espalhe entre as gerações jovens.
Embora a criação da NCFD, Minkavaz e a Estratégia 2025 possa ser um ponto de partida,
especialmente na economia, o Norte do Cáucaso necessita de uma abordagem mais
orientada para a diminuição do uso da violência pelas forças militares e pela polícia local,
cujo objetivo principal deve ser o combate à corrupção.
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É fundamental estabelecer processos eleitorais livres que permitam à população indígena
eleger os seus representantes e chefe de estado e garantir a responsabilidade e
transparência ao governo. Relativamente à sociedade local, a melhoria da qualidade de
vida através de investimentos na área da saúde e o apoio ao papel da educação são uma
das principais ferramentas na integração e gestão de conflitos na região.
Além disso, a Rússia deveria estar mais empenhada num diálogo com as comunidades
Salafi tentando evitar um confronto entre o "tradicional Islão local" representado pelo
Sufismo e os Salafistas e distinguindo entre o Salafismo jihadi e o Salafismo. Portanto,
os salafistas sentem-se perseguidos pelas autoridades locais apoiadas pela liderança
sufista, enquanto os sufistas se sentem em perigo porque os grupos jihadistas de Salafi
os identificam como alvos potenciais.
Segurança e estabilidade no Norte do Cáucaso são também uma preocupação para a
União Europeia porque a região desempenha um papel estratégico no continente euro-
asiático. Embora a crise ucraniana tenha congelado a cooperação entre Moscovo e
Bruxelas no combate ao terrorismo e à desradicalização, é aconselhável um envolvimento
decisivo dos países europeus na região, através de investimentos e intercâmbios de boas
práticas na luta contra o terrorismo e na gestão das minorias étnicas. Caso contrário, a
desestabilização do Cáucaso do Norte corre o risco de ameaçar a segurança de toda a
Europa e poderá criar uma plataforma logística para os grupos jihadistas e terroristas
divulgarem as suas ideologias e organizarem ataques violentos em todo o continente.
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OBSERVARE
Universidade Autónoma de Lisboa
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 11, Nº. 2 (Noviembre 2020-Abril 2021)
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CRISIS, TENSIONES, INSEGURIDAD Y MÁS FRACTURAS:
¿QUÉ SUCEDIÓ CON EL CONSEJO SUDAMERICANO DE DEFENSA?
ROGELIO PLÁCIDO SÁNCHEZ LEVIS
rogeliosl68@yahoo.com
Docente y investigador del Instituto de Altos Estudios Nacionales (Ecuador). Conferencista,
analista internacional, ex diplomático y embajador de carrera y experto en Negociación y Teoría
de Conflictos
DIEGO PÉREZ ENRÍQUEZ
diego.perez@iaen.edu.ec
Doctor en Ciencia Política por la Universidad de Belgrano. Magíster en Relaciones Internacionales
por la Universidad Andina Simón Bolívar, Quito, becario para la elaboración de tesis de maestría:
“La construcción del libro blanco de la defensa del Ecuador”. Licenciado en Ciencia Política y
Derecho por la Universidad Internacional del Ecuador. Director Académico de la Escuela
Legislativa de la Asamblea Nacional (Ecuador). Previamente se desempeñó como coordinador del
área de Seguridad, Paz y Defensa del IAEN, donde también fue decano de la Escuela de Estudios
Estratégicos y Seguridad, y de la Escuela de Política Internacional y Seguridad
Resumen
El impase y crisis en los que se encuentra UNASUR han generado una gran diversidad de
lecturas acerca de sus causas y consecuencias. En dicho contexto, la situación del Consejo de
Defensa Sudamericano merece una particular atención, por su relevancia en la construcción
de mayores márgenes de autonomía de América del Sur frente a los procesos y actores
hegemónicos globales. El presente artículo se propone abrir algunas líneas de reflexión sobre
las causas del débil impacto y el estancamiento del mencionado Consejo.
Palabras-clave
Crisis, Regionalismo, Seguridad, Sudamerica, Institucionalidad
Cómo citar este artículo
Levis, Rogelio Plácido Sánchez; Enríquez, Diego Pérez (2020). “Crisis, tensiones, inseguridad
y más fracturas: ¿Qué sucedió con el Consejo Sudamericano de Defensa?. In Janus.net, e-
journal of international relations. Vol. 11, 2 Consultado [en línea] en fecha de última
consulta, DOI: https://doi.org/10.26619/1647-7251.11.2.3
Artículo recebido en Julio 23, 2019 y aceptado para su publicación el Marzo 20 de 2020
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Vol. 11, Nº. 2 (Noviembre 2020-Abril 2021), pp. 34-61
Crisis, tensiones, inseguridad y más fracturas: ¿qué sucedió com el Consejo Sudamericano de Defensa?
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CRISIS, TENSIONES, INSEGURIDAD Y MÁS FRACTURAS:
¿QUÉ SUCEDIÓ CON EL CONSEJO SUDAMERICANO DE DEFENSA?
ROGELIO PLÁCIDO SÁNCHEZ LEVIS
DIEGO PÉREZ ENRÍQUEZ
Introducción
Este artículo partió de las discusiones llevadas a cabo en el marco del proyecto de
investigación acerca de la identidad sudamericana de seguridad y defensa que tuvieron
lugar entre los años 2017 y 2018 en el Instituto de Altos Estudios Nacionales (IAEN) del
Ecuador.
La creación del Consejo de Defensa Sudamericano (CDS) y su intención expresa de
“Construir una identidad suramericana en materia de defensa, que tome en cuenta las
características subregionales y nacionales y que contribuya el fortalecimiento de la
unidad de América Latina y el Caribe” (UNASUR, 2009), suscitó expectativas en círculos
políticos, gubernamentales, sociales y académicos que recibieron con entusiasmo y
esperanza la iniciativa que recuperaba y contemporizaba los anhelos y esfuerzos
desplegados a través momentos de la historia política de América del Sur, para contar
con un ámbito autónomo de discusión, análisis y decisión sobre temas asociados al
referido ámbitos.
La intención de fortalecer los lazos regionales en materia de defensa no es nada nuevo.
Desde el Tratado de No Agresión de Saavedra Lamas de 1933 hasta el propio Tratado
Interamericano de Asistencia Recíproca (TIAR) de 1947, hubo varias propuestas para
avanzar en tal sentido. Algunas pretendían excluir a Estados Unidos como fue el propósito
originario de Saavedra Lamas, mientras que otras buscaban incluirlo como fue el caso
del TIAR (Comini, 2010).
En el origen de este artículo, la crisis en la que estuvo sumida la Unión de Naciones
Suramericanas (UNASUR) y las diversas lecturas y enfoques de la que esta coyuntura ha
sido objeto, nos llevó a plantear una reflexión acerca del espacio que, dentro de esta,
acogió las discusiones y decisiones comunes en los ámbitos de seguridad y defensa. Aún
y cuando las circunstancias, las prioridades y los actores, han mutado
considerablemente, se trata de un tema de particular relevancia, pues mantiene en el
centro de la discusión el problema de la integración en el ámbito de la defensa.
El presente análisis se propone abrir una discusión acerca del CDS, en un contexto en el
que UNASUR, el espacio que le dio origen, se halla en pleno proceso de regresión,
deslegitimación y debilitamiento, por no afirmar que su desaparición, constituye una de
las pocas opciones que tiene ante sí en la actual coyuntura.
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La Unión de Naciones Suramericanas (UNASUR) suscitó desde sus inicios, entusiasmo y
no pocas expectativas en líderes, gobiernos y sectores diversos de la región. Para el
presidente venezolano Hugo Chávez, la organización constituía “un cuerpo político, un
gran salto adelante(Chávez, 2010). De su lado, Cardoso de Brasil, la percibía como la
antesala de los "Estados Unidos de América del Sur" (Cardoso 2000, citado en Gudynas,
2006); mientras que su sucesor Luis Ignacio da Silva, insistía en que una Suramérica
unida movería “el tablero del poder en el mundo” (Lula, 2008 citado en Visca, 2008).
La UNASUR surge en un contexto dominado por los procesos de reestructuración del
poder global acompañado de ascensos, declives, conflicto y concertación entre las
principales potencias mundiales - alternancias políticas de signo progresista en países
clave de la región; la fuerza desplegada por Brasil en un momento en el que se renovaba
su proyecto histórico de gran potencia; la disminución relativa de la influencia
estadounidense sobre los asuntos regionales; el incremento significativo de los precios y
por consiguiente, de los ingresos por concepto de materias primas (“commodities boom”)
que tendía a ensanchar los márgenes para políticas (internas y externas) mucho más
autónomas frente a los centros hegemónicos globales; y un discurso que enfatizaba en
la necesidad de superar la dispersión e inefectividad de los modelos estratégicos de
integración regional, y de instalar políticas de Estado de largo aliento que construyeran
capacidades institucionales sólidas, y a prueba de clivajes, crisis y vaivenes políticos.
El repliegue sufrido por la mayoría de las fuerzas políticas progresistas de la región por
lo general más propensas a la autonomización, coordinación, concertación y
diversificación de sus políticas exteriores - la retirada y desaparición sica de sus
principales inspiradores, y la ausencia de resultados convincentes en favor de la
integración, sumieron a UNASUR en una severa crisis, que de acuerdo con los discursos
y los hechos, parece colocarla en el camino de su desaparición. Sin embargo, sería
apresurado plantear que la conveniencia del referido espacio haya desaparecido, si se
consideran objetivos que por el momento no parecen ser renunciables, al menos en el
ámbito discursivo: la soberanía y defensa de los recursos naturales, el fomento de la
integración de las infraestructuras físicas y energéticas, el impulso del comercio
intrarregional, la diversificación de los vínculos extrarregionales, y la coordinación de las
políticas exteriores en temas de interés común, entre otras.
Una similar consideración merece los temas asociados a la seguridad que también han
constituido ámbitos de intervención de la UNASUR, y que no forman parte del objeto de
estudio de este artículo: la lucha contra el crimen organizado, el terrorismo y las
amenazas transnacionales, entre otros fenómenos. En el ámbito de UNASUR, estos
contaron con órganos institucionales para su atención, como el Consejo Suramericano
sobre el Problema Mundial de las Drogas (CSPMD), y el Consejo Suramericano en materia
de Seguridad Ciudadana, Justicia y Coordinación de Acciones contra la Delincuencia
Organizada Transnacional.
Cuando se presencian y discuten los problemas de seguridad asociados al flujo masivo y
descontrolado de migrantes venezolanos, de las tensiones y la criminalidad en la frontera
norte ecuatoriana, de las suspicacias que genera el estatus colombiano de “socio global”
de la Organización para el Tratado del Atlántico Norte (OTAN) (NATO, 2018), de las
amenazas de intervención militar en Venezuela, o de la mantenida producción y tráfico
de sustancias ilícitas (UNODC, 2018), se constata el desaprovechamiento de capacidades
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instaladas en la UNASUR, desde donde se pudieran discutir, tratar y construir políticas y
soluciones comunes. El presente artículo se propone trazar algunas líneas de discusión
sobre los factores que limitaron la maduración institucional del CDS y que pudieran
tomarse en cuenta, en caso de que se decida, en algún momento, su recuperación y
readecuación.
La producción académica acerca del tema de estudio ha sido diversa en materia de
enfoques. Las disputas por el control de la agenda hemisférica y la hegemonía sobre las
representaciones estratégicas de seguridad (Padula, 2015; Sánchez-Levis, 2019;
Teixeira, 2010; Sanahuja & Verdes-Montenegro, 2010); la influencia de los factores
políticos, ideológicos y geopolíticos sobre la maduración del CDS (Paladines, 2017); y las
particularidades de su construcción institucional (Ugarte, 2009); cuentan entre los
numerosos los esfuerzos de aproximación.
¿Qué explica las limitaciones del CDS en cuanto al cumplimiento de sus objetivos y
propósitos? He aquí la pregunta directriz principal de la investigación. Asimismo, se
formulan dos de tipo secundario. ¿Qué papel juegan los rasgos que determinan la
particularidad del complejo regional de seguridad (CRS) en el cual se fundó y existió el
CDS? ¿En qué medida las falencias de su construcción institucional pudieron
comprometer la consecución de sus declarados objetivos?
A modo de hipótesis se formula lo siguiente: el estancamiento y los escasos resultados
del CDS se deben a determinados rasgos que particularizan al CRS sudamericano
(penetración estadounidense, temores a una futura superposición de intereses
brasileños, y fracturas en la construcción social de las amenazas), y a las debilidades
propias de su construcción institucional.
Se presenta acá un estudio de naturaleza empírica enfocado en la descripción de los
procesos entrelazados que dieron forma al desarrollo del CDS, orientaron su discurso y
estuvieron presentes en la aparición y resolución de las crisis enfrentadas por el
mencionado organismo. La estrategia metodológica se diseñó considerando, primero, la
amplitud y riqueza de las contribuciones de fuentes orales directas (funcionarios de la
UNASUR, el Centro de Estudios Estratégicos de Defensa (CEED), gobiernos de la región,
etc.); segundo, el acceso a documentos oficiales de las citadas instituciones; y tercero,
la posibilidad de entablar discusiones con expertos, investigadores y funcionarios. Por
otra parte, las entrevistas, debates y consultas de fuentes secundarias, contribuyeron a
sustanciar y ampliar la perspectiva inicial del trabajo.
La mirada combinada al objeto de esta investigación, desde los prismas teóricos
neoinstitucionalistas y de los Complejos de Seguridad Regional (CRS), se justifican ante
la necesidad de una doble mirada a un fenómeno insuficientemente estudiado desde
enfoques similares, y la posibilidad de producir un análisis de cierta originalidad que
indague en las razones por las cuales se dan avances tan tímidos en la desarrollo de un
foro regional de seguridad y defensa, pese a la confluencia de factores políticos, histórico-
estructurales e institucionales que pudieron haber actuado en favor de su consolidación.
Las aportaciones teóricas de la Escuela de Copenhague
1
fueron esenciales en la
consecución de este trabajo. Dos de sus exponentes, Barry Buzan y Ole Waever, definen
1
Foro académico que nació de las discusiones acerca del libro “Pueblo, Estado y Miedo: El Problema de la
Seguridad Nacional en las Relaciones Internacionales, publicado en 1983. La orientación de sus análisis se
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el CRS como una subestructura del sistema internacional con relativa interdependencia
entre sus unidades en el campo de la seguridad, e indiferencia frente a las unidades del
entorno. Una primera línea de debate se abre aquí ante las evidencias que indican la
relevancia de Estados Unidos en los cálculos de seguridad de los países suramericanos,
y en el diseño y aplicación de sus políticas públicas, lo cual reubica las discusiones sobre
el fenómeno de la “penetración” del CRS, que forma parte del citado modelo teórico.
Los mencionados autores incluyen en la estructura esencial del CRS cuatro variables:
diferenciación con sus vecinos, estructura anárquica, polaridad, y construcción
social. Según los teóricos, Suramérica constituye una "anomalía sub-conflictual" habida
cuenta del carácter secundario de las dinámicas de seguridad interestatal con respecto a
los asuntos domésticos, el bajo uso de la fuerza militar, las guerras limitadas, el alto
grado de violencia política, la relación intensa con la superpotencia vecina, y la posibilidad
de división del CRS en dos subcomplejos, entre otros rasgos. De la anterior
caracterización, se desprenden algunos elementos que para nosotros ejercen una
influencia considerable en la evolución del Complejo, y en particular en la creación de
condiciones propicias para su institucionalización, y que se corresponden con las
siguientes líneas de debate.
Primera, la diferenciación del CRS sudamericano con respecto a sus vecinos. Aún y
cuando Buzan & Waever (2003) definen a Sudamérica como un CRS, basados en la tesis
de la indiferencia con respecto a las dinámicas de otros CRS, las evidencias que indican
la “penetración” y la relevancia de Estados Unidos en los cálculos de seguridad de los
países suramericanos, conducen a la discusión de hasta qpunto, esta pudiera limitar
la institucionalización del Complejo hacia un marco autónomo de tratamiento y solución
de sus conflictos y peligros externos. Según la teoría mencionada, los problemas de
seguridad se resuelven dentro de la región con alianzas circunscritas a su espacio físico,
mientras la acción de los actores globales externos, aunque influye en la dotación de las
capacidades de las unidades, no da forma a la estructura sustancial de este. Sin embargo,
en el caso de Washington habría que considerar que no se trata de una potencia externa
que simplemente se alinea a un Estado o grupo de estos, sino que se trata de un actor
central del sistema internacional que percibe a la región, como zona de influencia en la
que despliega masivamente, recursos y capacidades. Se suman además su proximidad
geográfica, las dimensiones de su poderío material y capacidades, así como sus redes y
mecanismos de influencia (OEA y el Sistema Interamericano). El otro elemento para
considerar es la respuesta estadounidense frente al desarrollo del proyecto “global
player” brasileño que podría contribuir a profundizar la penetración, y por ende, acentuar
el perfil anómalo del CRS sudamericano.
En estas condiciones específicas, se identifican obstáculos interpuestos ante los esfuerzos
de autonomización de los discursos y prácticas espaciales comunes de política exterior y
seguridad externa. Por consiguiente, un CRS que sea objeto de una alta penetración,
encontrará serios mites para su desarrollo, corriendo el riesgo de estancarse, en la
medida en que necesite de actores relevantes de otros complejos para resolver parte de
sus preocupaciones y problemas de seguridad.
dio en dirección a las cuestiones no militares de la seguridad lo que significó un punto de quiebre con
respecto a los enfoques tradicionales.
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Segunda, la polaridad constituye uno de los rasgos que distingue al CRS sudamericano,
que se refiere a la inexistencia de una hiperconcentración de recursos y capacidades que
pudiera estimular dinámicas de “superposición” dadas por las relaciones asimétricas, y
la voluntad de imposición, de un lado, y de aceptación de planteamientos hegemónicos
en términos de concepciones, representaciones y políticas espaciales, de otro. Sin
embargo, resulta obvio que el proyecto brasileño de potencia global genera suspicacias,
reservas y temores desde no pocas capitales y estados mayores regionales, en
consideración de las necesidades de acumulación de poderío material e ideológico que
dicho proceso conlleva, y sus consecuencias sobre la distribución y la estructura de poder
regional. De hecho, el lanzamiento de la iniciativa del CDS, exigió a Brasilia, un enorme
despliegue de iniciativas y esfuerzos diplomáticos en pos de su aceptación y consiguiente
materialización. Un CRS encontraen estas circunstancias no pocas dificultades para
expresarse en términos institucionales.
Tercera, la construcción social de las amenazas y peligros, así como las formas diversas
en las que se representan los discursos, las políticas espaciales y las redes materiales
destinados a su enfrentamiento, se sumergen y encuentran sus nexos causales en las
profundidades de la historia de la región: la descolonización, su fundación como sujeto
político, la formación de sus Estados y la construcción de sus muy diversos modelos
estratégicos de integración. Mientras los principales impulsores del CDS-UNASUR
especialmente Brasil y Venezuela - articulaban un discurso que defendía la idea de la
pertinencia y oportunidad de un espacio de discusiones autónomas en materia de
seguridad y defensa como a para incrementar el peso y la relevancia de la región en el
tablero mundial; las naciones más próximas a las posiciones y dependientes de la
cooperación militar con Estados Unidos, tendieron a mostrar resistencia ante la iniciativa
y a mantener el discurso proclive a conservar los lazos con Washington en este ámbito,
insistiendo en que estos constituyen la única alternativa viable para reducir sus
vulnerabilidades y enfrentar las amenazas externas. Se trata entonces de una dualidad
de mitos que sigue impidiendo la unificación de visiones y la consolidación del proyecto.
Por tanto, se reconoce el peso indiscutible de las particularidades de la historia política
de Sudamérica sobre los esfuerzos de construcción de una institucionalidad regional en
materia de seguridad, confrontada a la ancestral y persistente pugna entre el monroísmo
(panamericanismo) y el bolivarismo (regionalismo autónomo) (Vasconcelos, 1937); a las
rivalidades incesantes entre los Estados; a la interpretación de las amenazas por parte
de sus élites civiles y militares en clave nacional (Nolte & Wehner, 2015); y a la influencia
de los ejércitos en la conformación de imaginarios nacionales enraizados que se asocian
a la soberanía y el control territorial (Manero, 2007), con una marcada tendencia a
importar modelos foráneos de lectura, análisis y tratamiento de los desafíos y peligros
externos.
La asunción de América del Sur, como Complejo Regional de Seguridad (CRS), en
consideración de la fuerte interdependencia entre sus unidades, para la resolución de sus
problemáticas de seguridad, se combina con la identificación del CDS como una de sus
expresiones institucionales. Los hallazgos obtenidos por la investigación que da origen
al presente artículo permiten constatar que el desarrollo y la configuración particular de
un CRS moldean e influyen el comportamiento de las instituciones existentes en su seno,
con independencia del grado de interacción e interdependencia entre sus integrantes.
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Tomando en cuenta que de los procesos intersubjetivos no sólo resultan la construcción
de las amenazas, sino también las acciones y decisiones para su enfrentamiento,
reducción y/o eliminación, se considera que: (1) la "penetración" persistente de un CRS,
pone en dudas la “indiferencia” de uno con respecto al otro (una de sus premisas
fundamentales), facilitando la introducción de ideas, representaciones y redes materiales
que pueden abrir dinámicas competitivas y fragmentadoras dentro del Complejo; (2) el
ascenso en términos de rango, poderío e influencia de miembros del Complejo pudiera
introducir en el futuro elementos de asimetrías muy pronunciadas y “superposición”, con
capacidad para comprometer la anarquía e independencia de sus unidades, y por
consiguiente, la propia existencia del mismo; y (3) la construcción social de las amenazas
a la seguridad no logra superar la dispersión y diversidad de sus lecturas.
A modo de generalización, dentro de un CRS con rasgos anómalos como el sudamericano,
se puede tornar difícil el desarrollo de formas institucionales autónomas, considerando
las consecuencias de la persistente “penetración” desde un Complejo ajeno; las
suspicacias que suscita la profundización de las asimetrías frente a actores de mayor
poderío relativo y pretensiones hegemónicas, y el temor de ver introducidos, en el futuro,
algunos rasgos de “superposición”; y la diversidad en las construcciones sociales acerca
de las amenazas y peligros, que tienden a inhibir la unificación de sus mitos.
Aún y cuando se reconoce la utilidad de la Teoría de los CRS para abordar el objeto de
estudio del presente artículo, lo cierto es que no resulta del todo suficiente para completar
el análisis y una mirada interior más exhaustiva, a sus expresiones institucionales, como
fenómeno diferenciado. Por tal motivo, se acudió a una de las tantas perspectivas
neoinstitucionalistas que, en sentido general, abordan la cuestión de la institucionalidad,
con énfasis en su marco normativo (formal e informal), y su influencia en el
comportamiento de grupos e individuos. Dentro de este amplio campo del conocimiento,
se optó por el institucionalismo sociológico de John Meyer y Brian Rowan (1977), habida
cuenta de su interés en el acoplamiento (isomorfismo) de las organizaciones con sus
ambientes institucionales externos, como garantía de supervivencia y éxito.
Para nosotros, en el ambiente institucional en el que se desenvuelven las organizaciones
internacionales, dominan las constituciones y los sistemas políticos, estatales y jurídicos
que de estas emanan. El mismo se define como dual, en la medida en que combina la
aceptación y promoción de los relacionamientos externos, con la defensa de los atributos
soberanos, casi siempre con mayor rango constitucional y valorización política. Es decir,
que resulta posible, bajo circunstancias específicas, que las organizaciones se sometan a
las consecuencias derivadas de un ambiente externo hostil, renuente a aportar
legitimidad y recursos para su funcionamiento.
Según Meyer y Rowan (1977), las organizaciones que se “desarrollan en ambientes
institucionales altamente elaborados y logran incorporar y reflejar las formas de dichos
ambientes, ganan legitimidad y recursos necesarios para sobrevivir. Esto depende en
parte de los procesos ambientales y de la capacidad de los liderazgos para lidiar con
estos” (352). Acá merece la pena delinear algunas consideraciones:
1) El desarrollo de las estructuras y ámbitos de discusión y decisión externos a los
Estados, ya sea a través de fórmulas de cooperación externas, explicadas a través
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del intergubernamentalismo liberal de David Moravcsik, o mediante esquemas
supranacionales más completos, argumentados desde el funcionalismo de David
Mitrany, o el neofuncionalismo de Ernst Haas, dependerá única y exclusivamente de
la voluntad de estos, que continuarán siendo a decir de Cassese (1986), “la espina
dorsal de la sociedad internacional” (73), con independencia de la proliferación de
actores transnacionales y la reestructuración del poder a los que refieren las diversas
nociones poswestfalianas. La decisión de los miembros del CDS de concebir un foro
limitado al intercambio de ideas e información, sin resoluciones vinculantes ni una
estructura que comprometiese el control absoluto sobre sus políticas y decisiones,
pareciera inscribirse en dicha lógica.
2) Diez de Velazco (1997) define las organizaciones internacionales como asociaciones
voluntarias de Estados establecidos por acuerdo internacional, dotados de órganos
permanentes, propios e independientes, encargados de gestionar unos intereses
colectivos y capaces de expresar una voluntad jurídicamente distinta de la de sus
miembros (41). Sin embargo, la evidencia encontrada hasta el momento no apunta
hacia una voluntad, dentro del CDS, de desarrollar su personalidad jurídica propia e
independiente, ni los alcances de su actuación política más alde discusiones acerca
de temas puntuales y el pulso de proyectos de cooperación.
3) A diferencia de las instituciones que se someten a normas constitucionales y legales
domésticas, las internacionales no cuentan otro marco externo de referencia
institucional y jurídica que no sea el Estado, que constituye a su vez la fuente de
legitimación y apropiación de los recursos para su supervivencia. Por consiguiente,
su existencia y desarrollo dependerá de la percepción y los acuerdos entre las fuerzas
y actores que colisionan y cooperan al interior del entramado estatal, sobre las
formas en que las mismas, alcanzan sus expectativas y satisfacen los intereses
particulares y generales.
Los factores anteriormente apuntados sugieren una insuficientemente desarrollada
institucionalidad del CDS, resultante de la debilidad y laxitud de sus normas, de la pobre
autonomía que consigue alcanzar para la consecución de sus objetivos y propósitos, y de
las reticencias persistentes al interior de los Estados sobre su viabilidad y razón de existir.
Además de la introducción, discusión de los resultados y conclusiones, el artículo cuenta
con tres capítulos: el primero está dedicado a los CRS y a las discusiones sobre la
penetración; el segundo se orienta hacia el análisis de la “superposición” y los recelos
que suscita el liderazgo brasileño; un tercero se dedica a las fracturas de la construcción
social en torno a las amenazas a la seguridad estatal; y el cuarto se encarga del
escrutinio del CDS, como forma institucionalizada del CRS sudamericano.
Los Complejos Regionales de Seguridad y la discusión acerca de la
“penetración”
Resulta evidente el interés de Estados Unidos en la rica biodiversidad sudamericana, las
conexiones bioceánicas para la diversificación y ampliación del acceso a la Cuenca del
Pacífico, a la Antártida y a las zonas transpolares (de los océanos Atlántico Sur, Índico y
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Pacífico), la “franja interpolar”, el empleo de la topografía, los recursos hídricos y
energéticos, los corredores marítimos y fluviales, y el control de la reproducción social,
entre otros activos regionales. La geopolítica clásica nunca dejó de tener en su radar a
la región. Para Mackinder (1904), el desarrollo de las grandes potencialidades de América
del Sur puede tener una influencia decisiva en el sistema hegemónico de Estados Unidos
(Mackinder, 1904). Mientras tanto, y de acuerdo con Alfred Mahan, con el dominio
estratégico del Canal de Panamá, la costa atlántica competiría con Europa, en igualdad
de condiciones en cuanto a distancia, que con los mercados del este de Asia (Mahan,
1912).
El respaldo e impulso del CDS-UNASUR, se acompañó de una esmerada labor diplomática
de Brasilia por evitar en lo posible que se percibiera como una iniciativa anti-
estadounidense. De hecho, los aspectos más radicales de la propuesta venezolana fueron
moderados o eliminados (Cardoza, 2010; García, 2010; Montenegro, 201; Padula, 2015;
Teixeira, 2010; Sánchez-Levis, 2019). El 22 de marzo de 2008, el ministro de Defensa
de Brasil, entregó la propuesta de la CDS a la Junta Interamericana de Defensa (JID),
órgano dependiente de la Organización de Estados Americanos (OEA). El funcionario
brasileño se reunió además con los secretarios de Defensa, Robert Gates, y de Estado,
Condolezza Rice, a quienes aclaró que en ningún caso sería una alianza militar al estilo
de la OTAN. Para Brasilia, se trataba de echar los cimientos de una identidad
sudamericana de defensa apoyada en tres áreas (amazónica, rioplatense, y andina) y en
tres principios comunes (soberanía, integridad territorial y no intervención) (Grupo de
Trabajo del CDS, 2009).
De acuerdo con Buzan & Waever (2003), es la “penetración” la que enlaza el patrón
general de distribución de poder entre las potencias globales y la dinámica regional de
CRS. Según los autores, esta tiene lugar cuando las potencias externas construyen
alianzas de seguridad con Estados dentro de un Complejo. Según los citados estudiosos,
una rivalidad regional puede proporcionar oportunidades o demandas para que las
grandes potencias penetren la región, mientras que la lógica del equilibrio de poder
funciona para alentar a los rivales locales a pedir ayuda externa, y por esto, los patrones
locales de rivalidad regionales se vinculan a los globales (pág. 46). n y cuando la TCRS
declara entre sus propósitos, el de deconstruir el énfasis en el papel de las grandes
potencias, y realzar el peso de los factores locales en los análisis de seguridad de la
región, para nosotros resultan discutibles aún algunos aspectos señalados por los
mencionados teóricos acerca de la penetración externa. Entre estos se encuentran la
afirmación que “el patrón de conflicto proviene de factores internos de la región”, y por
otro lado, el planteamiento que asegura que las potencias externas no pueden aunque
estén muy involucradas - definir, desecuritizar o reorganizar la agenda de seguridad de
la región (47).
La importancia estratégica de la cuenca de la Amazonas en los discursos,
representaciones, y cálculos geopolíticos brasileños ha sido ampliamente documentada
en la literatura (Padula, 2015, 2013; Manero, 2007; Teixeira, 2010; Kersffeld, 2010). Al
mismo tiempo se asegura que dicho espacio geográfico se constituirá en ámbito clave de
rivalidades y pugnas globales (Rodríguez & Plazas, 2012; Pastor, 2017; Navarro & Bessi,
2017; Guevara, 2017). El interés expresado por las cúpulas militares estadounidenses
en su control y empleo; las declaraciones del ex Vicepresidente y candidato presidencial
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Albert Gore afirmando que la Amazonías “contrariamente al sentir de los brasileños,
pertenece a todos nosotros”; las palabras que en similar sentido pronunciara el ex
secretario de Justicia de ese país, Romeu Tuma (Barrionuevo, 2018); las dimensiones de
la arquitectura de la militar desplegada en la región; y la realización de ejercicios
castrenses como el “AmazonLog 17- con presencia activa de tropas estadounidenses -
sirven de evidencia empírica para el replanteamiento y la discusión de las definiciones de
la TCRS acerca de la autonomía del CRS sudamericano, y de su hipótesis que descarta la
implicación directa de Washington en un conflicto armado por el control de la zona en el
futuro
2
.
Estados Unidos tiene cerca de 800 bases militares a lo largo del mundo, de ellas más de
76 en América Latina. Entre las más conocidas resaltan: 12 en Panamá, 12 en Puerto
Rico, 9 en Colombia y 8 en Perú, concentrándose la mayor cantidad en Centroamérica y
el Caribe. Por otra parte, el Comando Sur norteamericano, en marzo del 2018, hizo
pública una información sobre su estrategia para nuestra región en los próximos diez
años, señalando los principales “peligros” o “amenazas” identificadas y el modo de
enfrentarlas. (Capote, 2018).
El almirante Kurt W. Tidd, comandante del Comando Sur se dirigió al Comité de los
Servicios Armados del Senado, después de señalar que la corrupción, el crimen violento,
el atraso económico, el fundamentalismo islámico, la migración ilegal y descontrolada, la
inestabilidad, el tráfico de armas, drogas y seres humanos, el lavado de dinero, y la
presencia de competidores globales como Rusia y China, formaban parte del ambiente
de seguridad del hemisferio; afirmó que se precisaba de “un enfoque integrado que
aproveche las capacidades de las autoridades en comunidades conjuntas,
interinstitucionales, internacionales y no gubernamentales.” Asimismo declaró que
necesitaban “movilizar, organizar y unificar las fortalezas propias y las de sus socios y
aliados, para ampliar el intercambio de información y la colaboración, y para alinear las
actividades de seguridad y desarrollo de capacidades de tal modo que se puedan traducir
los éxitos a corto plazo en logros a largo plazo, sustentados en una red de seguridad
regional adaptativa e inclusiva (Tidd, 2018)
3
.
De su lado, la Visión Conjunta 2020 del Comando Conjunto de las Fuerzas Armadas de
Estado Unidos señala que “la fuerza conjunta debe ser capaz de lograr el dominio
completo del espectro, con las fuerzas estadounidenses, operando unilateralmente o en
combinación con otros países e instituciones. Socios, para derrotar a cualquier adversario
y controlar. Al mismo tiempo, el documento insistía
2
La historia de las bases militares construidas por el gobierno de Estados Unidos en Latinoamérica se
relacionó en un principio con la intención de tener presencia ante movimientos potencialmente conflictivos
y estratégicos para su política exterior, como la construcción del canal de Panamá, iniciada en 1903, la
independencia de Cuba, en 1902, y la de Puerto Rico, en 1898. A partir de tales hechos, esta forma de
protección de los intereses estadounidenses se expresó en la creación de una red de bases en Latinoamérica,
durante el siglo XX (Bitar, 2016). Ahora se justifica el mantenimiento de las bases militares estadounidenses
por la guerra contra las drogas y el terrorismo (Bitar, 2016).
3
Estas declaraciones tuvieron lugar en un contexto marcado por la utilización de bases colombianas por parte
de tropas estadounidenses, la reactivación de la IV Flota, la promulgación del White Paper del Comando de
Movilidad Aérea de Estados Unidos y la emisión del documento «Desarrollo y Planificación Estratégica» del
Comando Sur Norteamericano (Comini, 2010).
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en la neecsidad de “mantener en el extranjero la presencia de fuerzas con la capacidad
de despliegue inmediato que logre el dominio del espectro completo” (Joint-Chiefs-of-
Staff, 2018).
La penetración es igual de masiva y contundente en el plano institucional. La OEA cuenta
con una arquitectura articulado alrededor de los temas de seguridad y defensa. Como
foros, destacan las reuniones ministros de Defensa, Seguridad Pública, y de Justicia
(Procuradores Generales); y las conferencias especializadas de los Estados Parte de la
Convención Interamericana contra la Fabricación y el Tráfico Ilícito de Armas de Fuego,
Municiones, Explosivos, y otros Materiales Relacionados (CIFTA), las Sesiones del Comité
Interamericano Contra el Terrorismo (CICTE), así como los Períodos Ordinarios y
Extraordinarios de Sesiones de la Comisión Interamericana para el Control del Abuso de
Drogas (CICAD). Existe al mismo tiempo una Comisión de Seguridad Hemisférica. Al
mismo tiempo, se han firmado en el seno del organismo convenciones y tratados sobre
seguridad hemisférica, armas, terrorismo y casos de desastre (OEA, 2019).
Como un fenómeno que destaca en el ámbito de la penetración del CRS sudamericano,
está el concepto de seguridad hemisférica. La Declaración sobre Seguridad en las
Américas, adoptada OEA en octubre de 2003, amplió la definición tradicional de defensa
de la seguridad de los Estados a partir de la incorporación de nuevas amenazas,
preocupaciones y desafíos, que incluyen aspectos políticos, económicos, sociales, de
salud y ambientales, considerados a partir de ese momento como potenciales amenazas
a la seguridad. (Griffiths, 2007). En este sentido, el riesgo de aumento de la
securitización de los problemas de la región, y de la militarización como una respuesta
para confrontarlos, no resulta descartable, si se considera la tendencia histórica de
intervención política de las fuerzas armadas durante la vigencia de regímenes autoritarios
o en el contexto de conflictos armados o inestabilidad social, las estrategias
estadounidenses anti-drogas y anti-terrorista que promueven un papel s amplio de
las fuerzas armadas en el cumplimiento de la ley, así como las crisis y la inoperancia de
los sistemas de seguridad pública de la región (Freeman, 2005; Martínez Á. , 2016;
Fernández, 2012).
Hasta aquí se evidencia una masiva penetración de parte de Estados Unidos en el CRS
que queda n lejos de la definición de la "superposición", considerando, según la
perspectiva teórica citada, factores como la autonomía de sus unidades para definir sus
políticas de seguridad, los patrones amistad-enemistad, y la distribución del grueso de
los recursos y capacidades entre un grupo de potencias regionales que convergen y
discrepan. Sin embargo la influencia estadounidense sobre los ámbitos de gestión y
transformación de los conflictos y las amenazas a través de las ideas, capacidades e
instituciones, evidencia una anomalia con respecto a la propuesta teórica en cuestión, y
pone en entredicho el problema de la “indiferencia”, tal y como lo manifiestan los datos
obtenidos.
Las pugnas globales que se avisoran por el acceso y control de la Amazonía constituye
otro punto de debate con la TCRS, habida cuenta de la posibilidad de que se desate, en
el futuro, un conflicto militar con la participación directa de Estados Unidos, cuyo interés
en la zona se viene expresando desde hace varias décadas, y se ratifica con la persistente
y amplia presencia en su entorno, de tropas, bases y ejercicios.
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¿Superposición: escenario descartable a futuro?: Proyecto brasileño de
gran potencia ante percepciones asimétricas, rivalidades y desconfianza
Aún y cuando la región llega a la fundación de UNASUR, y a la creación de su CDS,
habiendo superado un pasado de guerras y conflictos que comprometieron la paz, la
estabilidad y el desarrollo en su conjunto, se puede afirmar que persisten las asimetrías
y recelos, acomo una percepción de estos fenómenos que se mantiene poniendo signos
de interrogación ante la idea de consolidar un proyecto como el CDS, que en alguna
medida resulta de la voluntad de Brasil de concebir un modelo autónomo cooperativo de
seguridad y defensa, bajo su liderazgo. Por tal razón, se considera que más allá de
convertiste en un factor de impulso a la institucionalidad del CDS, de acuerdo con la
lógica de la TCRS, la asimetría percibida de poderío material de los países vecinos frente
a Brasil, ha devenido obstáculo de cierta relevancia, superado temporalmente por
afinidades y coyunturas favorables, pero latente desde las visiones, intereses,
experiencias y percepciones específicas de sectores de las élites de estos países.
4
Aparecían con cierta lógica, reticencias y reservas frente a una iniciativa que se entiende
como soporte del proyecto brasileño de gran potencia.
La ambición de las élites brasileñas de elevar su rango y peso en el ámbito, subregional,
regional e internacional constituye un proceso en construcción iniciado hace varias
décadas. Al gobierno de Getulio Vargas, le correspondió la modernización y centralización
del Estado, el impulso de la industria y el acercamiento a Estados Unidos, que se
acompañó de su participación en la Segunda Guerra Mundial, y el reconocimiento de
Washington de su derecho a integrar como miembro permanente el Consejo de Seguridad
de la ONU (Cardoza, 2010). Un proyecto que continúa bajo gobiernos de diferentes signos
y tipos incluyendo los militares y coyunturas políticas y económicas que lo ponen a
prueba.
El Libro Blanco de la Defensa de Brasil reconoce “una clara tendencia de cooperación en
cuanto a la defensa”, reforzada con “la creación de la Unión de las Naciones
Sudamericanas (UNASUR) y especialmente de su Consejo de Defensa (CDS)”, y la
formación de una “comunidad de seguridad, motivada por el hecho de que los países
vecinos comparten experiencias históricas comunes, retos de desarrollo semejantes y
regímenes democráticos, que facilitan la comprensión recíproca y favorecen una
acomodación pacífica de los diversos intereses nacionales” (Gobierno-Brasil, Libro Blanco
de la Defensa de Brasil , 2012: 33). Asimismo, reitera el interés prioritario en el Atlántico
4
Las pugnas, rivalidades y recelos entre unidades que ganaban o pretendían cierta autonomía en la región,
se remontan a mucho antes de la independencia. Resultaba notorio el distanciamiento y recelo de Chile,
Asunción y Montevideo hacia Buenos Aires; de Guayaquil hacia Lima y Colombia; de Charcas y el Alto Perú
hacia Lima; la suspicacia Quito con el proyecto de anexión a la Gran Colombia, etc. (Demélas, 2010, citada
en Paladines, 2017, pág.39). Tras años de vida republicana e independiente, la madurez del sujeto político
que se constituía no resultaba suficiente para aplacar las pugnas y suspicacias, que mucho tiene que ver
con la herencia hispánica y las condiciones específicas de tipo cultural, social y política en la que surgieron
los estados nacionales sudamericanos. Una nada despreciable influencia fue ejercida por los conceptos y
lineamientos geopolíticos generados en Europa, y especialmente aquellos que tienen un origen alemán,
decantaron en América del Sur por medio de los Oficiales de enlace de los países latinos en Europa. Es
decir, fueron las Fuerzas Armadas las receptoras directas del conocimiento geopolítico, y especialmente en
las Escuelas Superiores o Academias de Guerra de los ejércitos. Y derivado de la estigmatización de la
geopolítica por parte de los aliados, dicho conocimiento estuvo circunscrito de manera casi exclusiva a
dichos cuerpos y estamentos, adquiriendo una connotación nacional a través de la aplicación de los
lineamientos geopolíticos a las circunstancias propias de cada país (Toledo, 2017).
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Sur (38), y en la Amazonía, destacando el lanzamiento en 2010 de la Nueva Agenda
Estratégica de Cooperación Amazónica (50).
Con una visión prospectiva del proyecto de liderazgo global brasileño, el texto “Brasil en
3 Tempos” identifica la preservación del territorio nacional con la integración con América
del Sur, como una de sus necesidades y objetivos (Presidencia-Brasil, 2004: 18).
Asimismo, cita consideraciones del Consejo de Inteligencia Nacional, adscrito a la Agencia
Central de Inteligencia (CIA) de Estados Unidos en el sentido de que Brasil no consegui
el liderazgo regional en Sudamérica por el escepticismo de sus vecinos y por la
desconfianza que genera el énfasis en sus propios intereses (117). El documento enfatiza
en “la integración económica, política, social y cultural de los pueblos de América Latina”,
en favor de la formación de una comunidad latinoamericana de naciones (pág. 15)
La Estrategia Nacional de Defensa, por su parte, insiste en la importancia de la
integración de la América del Sur para la defensa de Brasil, el fomento de la cooperación
militar regional y la integración de las bases industriales de defensa. Señala a su vez al
CDS como mecanismo consultivo que permiti prevenir conflictos y fomentar la
cooperación y la integración “sin que de ello participe país ajeno a la región” (17).
También otorga prioridad a la región amazónica, afirmando que “representa uno de los
centros de mayor interés para la defensa (14).
Los documentos anteriormente mencionados se integraban a una plataforma de acción
del gobierno brasileño que incluía la reactivación y modernización de su complejo
industrial de producción para la defensa, la aprobación del Decreto de Reglamentación
de la Ley de Movilización Nacional (2008), la realización de los Ejercicios Frontera Sur, y
la exigencia del derecho a incrementar su producción de energía nuclear (Comini, 2010).
La creación del CDS-UNASUR, en 2008, fue una iniciativa de la política exterior brasileña.
El entonces ministro del gobierno brasileño Nelson Jobim, siguiendo la orientación del
presidente Lula da Silva, viajó a los países de la región promoviendo
la adhesión de los países sudamericanos. En dicho contexto, Brasilia se mantuvo
insistiendo en las posibles amenazas interestatales a la soberanía sobre los ricos recursos
naturales brasileños y sudamericanos, especialmente en contextos de crisis política y
conflictos internacionales. En esta dirección, se predicaba la necesidad de una fuerza
disuasiva de la región, acordada en el marco de la CDS, y adecuada a la defensa de los
recursos naturales y al papel autónomo y protagónico que Brasil y la región desean lograr
en el sistema internacional (Padula, 2015: 243). Para Comini (2010) se buscaba un
esquema de cooperación flexible entre miembros desiguales, y determinado por ltiples
y hasta contradictorias tendencias.
Resultaba evidente la clara impronta de los intereses nacionales brasileños que
impulsaron el CDS. Veamos entonces las apreciaciones de actores relevantes de la región
como Argentina, Colombia y Chile.
Argentina, de su parte, mantuvo desde los inicios su insistencia en conservar a
MERCOSUR como el espacio privilegiado para discutir y dirimir sobre los asuntos
vinculados a la seguridad regional. La ley argentina de “Reestructuración de las Fuerzas
Armadas”, definió que:
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Art. 7. Los niveles de conducción estratégica y de planeamiento estratégico
analizarán, a nivel internacional el probable desarrollo de un sistema de
defensa en el marco del MERCOSUR, a los efectos de considerar en la
reestructuración de las fuerzas armadas los requerimientos, que de dichos
acuerdos pudieran surgir (Congreso de la Nación, 1998, pág. 65).
Sus reticencias se fundan, según Ugarte (2009), en que el ente subregional, ya había
sido escenario de una cooperación intensa y fructífera en el ámbito de la seguridad
pública, organizada en el mecanismo de reuniones especializadas ministeriales sobre
aspectos de la integración subregional diferentes a lo económico, incluyendo la seguridad
y la defensa, acompañada de la construcción de propuestas y proyectos, que fueron
desplazados por el surgimiento de la idea del CDS.
Más allá de la seguridad, para García (2010), la posición frente a la Unasur ha sido
ambigua en el caso argentino, ya que en las burocracias de ese país se mantiene aún un
sentimiento de desconfianza frente al liderazgo brasileño en asuntos regionales,
percibiendo a la Unasur como parte del proyecto de hegemonía regional de Brasil, y
abrigando el temor de que al prestar menor atención al MERCOSURs importante para
Buenos Aires en términos estratégicos - Argentina perderá el poder relativo de
negociación internacional (Giacalone, 2007 citado en García, 2010, pág. 36). Sin
embargo, las reticencias iniciales se fueron disipando con el apoyo de Brasil al renovado
reclamo argentino en torno a Las Malvinas, la elección de Néstor Kirchner como secretario
de Unasur (Cardoza, 2010), y los acercamientos económicos con Venezuela desde 2005
en los ámbitos de cooperación energética, industrial y agrícola, los mecanismos de
financiamiento público regional como el Banco del Sur, y la compra venezolana de buena
parte de los bonos de la onerosa deuda externa argentina (García, 2010).
El Libro Blanco de la Defensa de Argentina de 1998 expresaba que la comprensión del
estado actual de maduración de las cuestiones de defensa y de seguridad en la subregión,
requería de una detención en el origen y evolución de esta histórica iniciativa
(MERCOSUR) (…) (Gobierno-Argentina, 1998: 27). En su edición de 2010, se reconoce
la existencia y los objetivos del CDS-UNASUR aunque se enfatiza en la existencia de
“dinámicas subregionales diferenciadas”, con un Cono Sur, que en los ámbitos de
“defensa y seguridad internacional se encamina a niveles de apertura y transparencia
que se asemejan a los de la temprana experiencia de integración europea” (Gobierno-
Argentina, Libro Blanco , 2010: 34, 37, 38).
En la edición de 2015, aparece una postura más resuelta en favor de la consolidación y
progreso cualitativo de la cooperación entre las naciones de América Latina, en general,
y de Suramérica en particular, con la creación del CDS y los proyectos de
complementación científica, tecnológica y de producción para la Defensa. (Gobierno-
Argentina, Libro Blanco de la Defensa 2015, 2015, pág. 217). La profundización del
compromiso con la instancia regional se pudiera asociar con las simpatías de las
administraciones Kirchner hacia los procesos de autonomización regional, así como su
afinidad ideológica con sus principales impulsores. Sin embargo, Ugarte (2009), Luongo
(2018) y Livoti (2019), hacen referencia a las reticencias y críticas existentes en
funcionarios de carrera de los ministerios de Relaciones Exteriores y Defensa,
fundamentalmente, sobre la prioridad otorgada al CDS-UNASUR por encima del
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MERCOSUR. Lo cierto es que hay un temor extendido de que la apuesta brasileña por la
UNASUR termine flexibilizando hasta la vacuidad al MERCOSUR desde sus objetivos más
ambiciosos, en particular como “unión aduanera” (Gandásegui, Martins, & Vommaro,
2015).
Pese a todo lo dicho hasta acá, coincidimos con el planteamiento de Schenoni, (2014)
con respecto a los factores que terminaron con la rivalidad argentino-brasileña: la
conducta de ambos actores, el carácter de la economía política de cada país, y su
participación relativa en el poder regional. En la misma dirección, Gandásegui, Martins,
& Vommaro (2015) enfatizan en que ya no existe pugna de liderazgos entre las dos
potencias. Sin embargo, hasta ahora nada indica que estén despejadas todas las
preocupaciones, dudas y hasta temores frente a un país que se distingue en el ámbito
regional no sólo por sus capacidades, sino también por una complicada historia de
inserción y relacionamiento.
Colombia, en su condición de potencia secundaria, también buscará preservar los niveles
de autonomía posible frente al ascenso brasileño. La ecuación pudiera ser más compleja
aún, cuando parte de las respuestas se articulan dentro de la alianza con Estados Unidos,
que para Bogotá resulta esencial. Las reticencias iniciales de este país para integrar el
CDS son conocidas (Álvarez & Ovando, 2009; Kersffeld, 2010; Flemes, Nolte, & Wehner,
2011). En sentido general, la actitud de las autoridades colombianas se pudiera explicar
por el temor a afectar la alianza estratégica con Washington, la presencia de actores
solidarios con los grupos armados a los que enfrenta en un conflicto interno, así como el
temor a quedar entrampada en un foro en el que pueda verse disminuida en el escenario
de conflictos con países como Venezuela y Ecuador.
Ante la hipótesis de la construcción hegemónica brasileña, Colombia mantuvo los
presupuestos militares relativamente s altos de la región, los s bajos niveles de
interdependencia económica con su vecino emergente, y estrechas relaciones
comerciales y estratégicas con Estados Unidos y otras potencias (Schenoni, 2014).
Desde Bogotá, persiste la preocupación del país por proteger sectores económicos y
construir alternativas al liderazgo brasileño en la región, entre ellas, la firma de tratados
de libre comercio con Estados Unidos y la Unión Europea, así como el proyecto de
integración triangular por fuera de los bloques regionales que devino Alianza del Pacífico.
Los sectores s conservadores de la política colombiana siempre se tornaron
desconfiados hacia la entente venezolano-brasileña y su interés en el conflicto
doméstico, mostrándose escépticos acerca de la real determinación del CDS de apoyar a
Colombia en su enfrentamiento a los inmensos desafíos internos. Asimismo se
mantuvieron los recelos ante una realidad estructural de poder que le brinda a Brasil una
mayor autonomía en sus posturas internacionales (Pastrana, 2011).
Veamos el caso de Chile. Para las élites civiles y militares de ese país, el proyecto de
ascenso brasileño no parece resultar indiferente. Aún y cuando el prusianismo dominante
en los sectores castrenses chilenos les hace asumir una especie de “destino manifiesto”,
con una nación rodeada de enemigos verdaderos y potenciales (Maldonado, 1998 citado
en Montenegro, 2011: 117); y que su condición de potencia secundaria regional, lo obliga
a tomar ciertas precauciones para conservar un margen de autonomía aceptable; lo cierto
es que la narrativa oficial de Chile no tiende a expresar una gran preocupación ante el
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ascenso brasileño, ni su voluntad de liderar el proceso de construcción de un foro de
discusión regional sobre problemáticas vinculadas a la seguridad.
La adhesión de Santiago a UNASUR contó con un consenso bastante amplio al interior de
la sociedad chilena, influido por las percepciones respecto de la naturaleza transnacional
de algunos problemas y, por lo mismo, la existencia de intereses comunes a causa de
una mayor interdependencia. Cuenta también el hecho que la organización regional no
es percibida como un peligro, dado que no interfiere con la estrategia de apertura
económica del país. Recordemos que en el seno de UNASUR, se decidió dejar de lado la
implementación de los tratados comerciales y la cesión de soberanía, por falta de
consenso entre los miembros en estos temas (Serrano, 2017).
Para Chile, UNASUR ha sido un marco para atenuar el potencial de inestabilidad y
conflicto con Bolivia y Argentina, mejorar su seguridad energética y el acceso al gas
suramericano sorteando la difícil relación con La Paz, y facilitar el acceso de sus
exportaciones al mercado regional, sin someterse a las disciplinas del MERCOSUR (Borda,
2012). “En la aceleración de los tiempos geopolíticos en la región hay alianzas que se
podrían alterar desde su inmediatez y aparecer distanciadas de su historia larga. Pero en
el caso de Chile y Brasil los acomodos y ajustes no negarán hasta donde se puede prever
la unidad orgánica y de fondo entre estas dos naciones” (Rivas, 2019).
El Libro de la Defensa Nacional de Chile (2017), deja, a nuestro modo de ver, constancia
de la voluntad de ese Estado, de diversificar sus intervinculaciones, foros y espacios para
la discusión de problemáticas asociadas a la seguridad. A todas luces, el CDS no es “la
opción” para Santiago, sino una de las tantas, en la que su gobierno se inhibe de
desaprovechar las posibilidades que le ofrece cada alternativa para fortalecer sus
capacidades defensivas frente a amenazas tradicionales y no tradicionales. Siguiendo
esta lógica, se podría expresar que si bien las prácticas espaciales y el discurso chilenos,
intentan producir adecuados márgenes de autonomía y maniobra frente a las dinámicas
hegemónicas regionales, en el caso específico de Brasil, se pudiera pensar en que la
densa relación, colaboración y entendimiento existente entre los dos países, es empleada
activamente en la complementación de las capacidades y la reducción de sus
vulnerabilidades. Veamos qué afirma el citado documento:
“Desde una perspectiva institucional, el continente se ha ido dotando
gradualmente de una arquitectura compleja y multinivel de regímenes de
cooperación en las diversas áreas geográficas en materia de seguridad y
defensa. En el nivel continental, Chile participa en las instituciones de
seguridad y defensa del Sistema Interamericano. (…). En el ámbito específico
del nivel continental de la defensa, la Conferencia de Ministros de Defensa de
las Américas se ha ido desarrollando gradualmente como el foro político más
importante del ámbito de defensa del sistema interamericano, de naturaleza
cooperativa, (…)” (Gobierno-Chile, 2017, pág. 87).
“Un segundo nivel de la práctica de la seguridad en el continente corresponde
al de la región de América Latina y el Caribe, que gradualmente se ha ido
dotando de instituciones y cuya situación general contrasta positivamente con
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el contexto global de creciente incertidumbre e inestabilidad que se ha
resumido en las secciones previas (…). La práctica del regionalismo
latinoamericano también ha dado pasos importantes en años recientes, con
la creación de la Comunidad de Estados Latinoamericanos y Caribeños
(CELAC), de la Unión de Naciones Suramericanas (UNASUR) y su Consejo de
Defensa Suramericano (CDS) y, s recientemente, de la Alianza del Pacífico”
(Gobierno-Chile, 2017, pág. 88).
Bajo la perspectiva de la TCRS, fuimos más allá del nivel de la unidad (Estado/Gobierno),
abarcando otros objetos referentes de seguridad existentes a su interior, como es el caso
de los “grupos influyentes”, definidos en la misma. A los efectos de este estudio, se
trabajó con las burocracias y los altos mandos militares, habida cuenta de aporte a las
construcciones de imaginarios en términos de amenazas y peligros externos. Los datos
recolectados hasta el momento evidencian actitudes y grados de lealtad diferenciados de
parte de las élites de los países seleccionados hacia el CDS, con consecuencias directas
sobre sus procesos de maduración institucional. Las tensiones en la estructura discursiva
5
del órgano mencionando, se fueron disipando, en el nivel político, en la medida en que
actuaban las afinidades ideológicas - la aproximación de los Kirchner a Caracas, la
presencia del gobierno socialista en Chile, etc. - los cambios en la potica regional -
modificación de la postura internacional de Colombia con la diversificación e
intensificación de los vínculos del gobierno de presidente Juan Manuel Santos con su
entorno regional - y global - cambios de prioridades de la política exterior
estadounidense, ascenso de China y otras potencias emergentes con interés crecientes
en la región, etc.
Sin embargo, en un segundo nivel correspondiente a las élites burocráticas y cúpulas
militares la posición no era la misma. Así lo demuestran las fuentes primarias y
secundarias consultadas, y en particular, los contenidos de los libros blancos de la
defensa de estas naciones, que sin dejar de mencionar su pertenencia y compromisos
con el CDS, planteaban con diferentes matices y énfasis, la necesidad de diversificación
de los ámbitos y procesos de concertación y tratamiento de los conflictos y amenazas a
nivel regional. Queda abierta entonces la investigación y la discusión acerca del papel de
las rivalidades y percepciones asimétricas en la construcción del CDS y de una identidad
regional de seguridad.
La fragmentada construcción social de las amenazas en Sudamérica:
diversidad de mitos, representaciones, y discursos de seguridad
Aún y cuando los esfuerzos en Sudamérica por regionalizar las visiones, lecturas y
prácticas espaciales de seguridad datan de muchos años atrás, por lo general, los
problemas y peligros de este ámbito, se interpretan y tratan de resolver en clave
nacional, tal y como lo plantean Manero (2007), Nolte & Wehner (2015), y Sánchez-Levis
(2019), y lo evidencian las sucesivas ediciones de los libros blancos de la Defensa
5
El término “estructuras discursivas” es empleado por (Barnes & Duncan, 2001), y se refieren según los
autores a “los marcos que acogen combinaciones particulares de narrativas, conceptos, ideologías y
prácticas de significación, cada una de ellas asociada con un ámbito particular de la acción social.
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revisados para el presente trabajo. He aquí una de las razones que pudiera explicar las
dificultades para lograr la unificación de los mitos que plantea la perspectiva
neoinstitucionalista como condición para la supervivencia y buen funcionamiento de las
organizaciones.
Por otra parte, se encuentra la diversidad de modelos de discusión, gestión e integración
en el campo de la seguridad y la defensa, con foros y órganos de perfil diferenciado en
UNASUR, la ALBA, y la OEA fundamentalmente. La citada proliferación de iniciativas y
modelos de regionalización y cooperación, tan diversos, y con competencia,
superposición y funcionalidad superpuesta, se considera un proceso de "complejización"
de las instituciones internacionales de defensa y seguridad en América del Sur. Un
proceso que refleja la pluralidad política e ideológica en la región, con impactos en las
organizaciones que actúan en este ámbito particular. Estas, en su labor de definición de
los objetivos y las respuestas ante los desafíos comunes, intentan diferenciarse de las
instancias hemisféricas y extrarregionales, y adaptarse a las necesidades específicas,
riesgos y amenazas, así como a los intereses propios de la región (Bragatti, 2019: 71).
La macrosecuritización de la agenda que intentó imponer Estados Unidos, a partir del
concepto de multidimensionalidad de las amenazas, generó ambigüedad, desacuerdos y
discrepancias en los enfoques nacionales y la inexistencia de un sistema de jerarquías
para estructurar los problemas de defensa en función de su desagregación zonal, vecinal,
subregional y regional (Comini, 2010). De hecho, el CDS pareció intentar un enfoque
diferenciado al introducido en la OEA, donde se creó una Secretaría de Seguridad
Multidimensional (SSM), con el mandato de promover y coordinar la cooperación entre
los Estados Miembros de la OEA, y de éstos con el Sistema Interamericano y otras
instancias del Sistema Internacional, para evaluar, prevenir, enfrentar y responder
efectivamente a las amenazas a la seguridad, con la visión de ser el principal referente
hemisférico para el desarrollo de la cooperación y el fortalecimiento de las capacidades
de los Estados Miembros de la OEA, teniendo como marco conceptual la “Declaración
sobre Seguridad en las Américas” (OEA, 2019). Como se puede apreciar, durante la vida
del CDS, no dejaron de existir pugnas entre representaciones estratégicas de seguridad
(Padula, 2015; Sánchez-Levis, 2019).
Algunos países que adhirieron a UNASUR lo hicieron con intereses divergentes al de su
núcleo inspirador (Brasil y Venezuela) (Bragatti, 2019). Brasil, de su lado, procuraba una
base que redujera sus vulnerabilidades en medio del impulso a su proyecto de liderazgo
global, y también contener la penetración estadounidense. Venezuela, lo impulsó, como
parte de su plataforma contrahegemónica y antimperialista. Colombia, tras su reticencia
inicial a incorporarse, modificó su postura s tarde al asegurarse que tendría apoyo
político regional para el manejo de sus conflictos internos, con el propósito probable de
ganar cierta autonomía y capacidad de negociación en su estrecha, prioritaria y
asimétrica relación con Washington. Argentina, a pesar de sus preferencias por dirimir
las cuestiones de seguridad en MERCOSUR, se adhirió a la iniciativa en la perspectiva de
fortalecer su visibilidad regional, ganar respaldo a causas nacionales como la
reivindicación de las islas Malvinas, y quizás como parte del enfrentamiento político
interno. Chile, al parecer, lo entendió como una oportunidad para evitar su aislamiento,
y profundizar la diversificación los ámbitos y espacios en los que discute sobre dichos
temas. Y otros países más pequeños (Ecuador, Uruguay, Surinam, Guyana, etc.)
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aprovecharon el espacio para el fortalecimiento de sus capacidades en el enfrentamiento
a vulnerabilidades y amenazas.
Para Comini (2010) la asignación de nuevas funciones a las Fuerzas Armadas debe evitar
la militarización de ciertas áreas y el desplazamiento del eje de fijación de políticas y su
puesta en práctica, en un contexto en el que las relaciones asimétricas entre los
miembros del CDS persisten en términos de normas, organización, presupuestos,
capacidad operativa, y potencialidad de los sistemas de producción industrial e
investigación y desarrollo para la defensa con una clara superioridad de Brasil.
Ugarte (2009) insiste en la necesidad de buscar coincidencias y consensos en favor de
una nomenclatura común y que cada país definiera la estructura que emplearía
en cada caso. Afirma que tal proceso resultaba clave con vistas al mejoramiento de las
relaciones civiles-militares entre los países miembros. Hizo referencia a las reticencias
en la adopación de un concepto tan inclusivo como el adoptado en la Conferencia Especial
de Seguridad de México, dado que con tal concepto de seguridad multidimensional, se
había seguritizado en la práctica la agenda del desarrollo. Señaló asimismo el caso de
Colombia, su adhesión a la agenda de seguridad estadounidense, a diferencia de otros
países andinos y del Cono Sur, más proclives a la construcción de una agenda autónoma
de carácter regional (11).
Al mismo tiempo coincidimos con las apreciaciones de Labadi (2018), Ugarte (2009),
Sanahuja & Francisco Verdes-Montenegro (2010), en el sentido de que el Informe
preliminar del CEED al CDS acerca de los términos de referencia para los conceptos de
seguridad y defensa en la región suramericana” (CEED, 2016), se caracterizó por su
laxitud y la ausencia de definiciones más detalladas en correspondencia con las
necesidades del CDS de unificar sus posturas y visiones frente a las principales amenazas
y desafíos en términos de seguridad . Cabe destacar, sin embargo, que el mencionado
trabajo, constituye el reflejo de una realidad regional en la que compiten y se superponen
discursos y representaciones, resultantes entre otros factores, de los espacios y límites
impuestos por la propia dinámica del Complejo, y del largo camino que enfrenta todo
proceso de construcción institucional.
La limitada Institucionalidad del CRS sudamericano: la laxitud normativa
y el peso de la cultura westfaliana
Buzan & Waever (2003) aluden, dentro de su planteamiento acerca del CRS, a la
unidades autónomas que operan en este sistema anárquico, en franca referencia a los
Estados, cuyo comportamiento en el mencionado ámbito de interrelación responde,
primeramente a la percepción de sus vulnerabilidades internas, en segundo lugar, a las
oportunidades y desafíos que emanan de sus nculos con otros Estados, y las
posibilidades que le ofrecen los nexos con potencias extrarregionales en el manejo de las
amenazas y los problemas de seguridad que enfrentan.
La diplomacia presidencial de UNASUR y de los cancilleres que han actuado en su
nombre y representación - jugó un papel central en la resolución de las crisis, mismo que
tuvo consecuencias directas para el desarrollo de la arquitectura institucionalidad del
CDS. En ausencia del despliegue automático de mecanismos institucionales de análisis,
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acción, decisiones, recompensas y castigos - que pudieron considerar la intervención de
niveles técnicos, burocráticos y políticos; la evidencia indica que fueron los propios líderes
de la región, quienes actuaron bajo la influencia no tanto o no sólo de las necesidades
de desarrollo y fortalecimiento de las capacidades de gestión del Consejo, sino de las
presiones y demandas de sus políticas internas respectivas. Esto se combina con el
criterio de Vargas (2018) en el sentido de una regla formal puede estar acompañada por
una creencia intersubjetiva fuerte en su legitimidad (50).
Lo anterior puede ser perfectamente sintonizado con las afirmaciones de Powell &
Bromley (2015), en el sentido de que la construcción social de las organizaciones
internacionales tiene lugar en el entorno externo, desde donde estas se dotan de pautas
para sus estructuras y políticas formales. En este marco, es el Estado, el ámbito en el
que se produce el grueso de las representaciones, que conducen a la institución como
red material, a la cual dota de legitimidad y de los recursos necesarios para su
funcionamiento (Meyer & Rowan, 1977).
Como fuentes de la legitimidad y los recursos con los que ha contado el CDS, resulta
explicable las presiones, demandas y exigencias en sentidos diversos para que este se
alinee a las creencias, mitos y expectativas de cada uno de sus Estados miembros, y de
los grupos, actores y sectores influyentes al interior de estos.
Ante la ausencia de marcos normativos e institucionales definidos, medios e instrumentos
específicos para el manejo de las crisis, estas cayeron en el ámbito de competencias de
los presidentes y cancilleres quienes se encargaban directamente de las mismas, sin
procedimientos, ni procesos normalizados que pudieron haber actuado con mayor
eficacia y coherencia. Pese a ello, la Cumbre de Guyana en 2010, decidió dar impulso a
una propuesta hecha previamente en Argentina, sobre el “Protocolo Democrático”, contra
las “intentonas golpistas” (Erazo, 2010), que con contó con mayor seguimiento. En
similar sentido, la situación de inestabilidad política en Bolivia de 2008, el golpe de Estado
en Honduras en 2009 y el intento en Ecuador de 2010, la instalación de las bases militares
en Colombia en 2009, la ruptura de las relaciones colombo-venezolanas de 2010, y el
derrocamiento del presidente paraguayo Fernando Lugo en 2012, estuvieron entre los
acontecimientos que contaron con la atención y las capacidades de medicación de
UNASUR, que se mantuvo desprovista de mecanismos institucionales sólidos para
enfrentarlos. El protagonismo de los líderes y funcionarios, si bien daba fuerza e impulso
al discurso en favor de la resolución de los diferendos, hacía poco favor a la maduración
de la arquitectura institucional del CDS.
La información sobre las crisis y procesos de negociación circulaba con dificultad. En
ocasiones se confrontaban hasta tres o cuatro versiones del mismo asunto. Detalles e
informaciones de gran relevancia, en muchas ocasiones se conocían en las reuniones, sin
un mecanismo expreso para captarlas, analizarlas y construir una base sólida para la
toma de decisiones (Acosta, 2016).
Al mismo tiempo, el CDS se inscribe dentro de los comúnmente denominados “esquemas
de seguridad cooperativos”, definidos como sistemas de interacciones interestatales que,
coordinando políticas gubernamentales, previenen y contienen las amenazas a los
intereses nacionales y evitan que las percepciones que de estas tienen los diversos
Estados se transformen en tensiones, crisis o abiertas confrontaciones (Comini, 2010).
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Para Mijares & Nolte (2018), UNASUR sembró, desde su creación, el germen de su actual
crisis y autodestrucción, debido a su diseño laxo de organización, la preeminencia de las
autonomías nacionales sobre los intereses de la integración regional, y la falta de una
institucionalidad supranacional que los autores denominan “paradoja de autonomía”
(Citados en Bragatti, 2019: 70).
Los países que integran el organismo mantienen relaciones bilaterales en materia de
defensa con países extrarregionales, en áreas que corresponden a intereses regionales y
en los cuales aún no existe una coordinación intrarregional. Temas tales como el
intercambio de experiencias en el campo de las acciones humanitarias, el establecimiento
de mecanismos de respuesta inmediata frente a situaciones de catástrofe o desastres
naturales, así como el fomento de la defensa soberana de los recursos naturales, son
algunos aspectos estratégicos que, si bien están enmarcados en el CDS, cada país
continúa abordando paralelamente con otras naciones. Se evidencia entonces una falta
de correspondencia entre los sistemas de defensa invocados como comunes y las
dinámicas de los procesos (Comini, 2010).
Discusión de los resultados
El empleo de la perspectiva de la TCRS nos ofreció la oportunidad de discutir algunos de
sus aspectos centrales a partir de la evidencia empírica que ha venido produciendo la
investigación. En este sentido, queda abierta la discusión acerca de la definición, alcances
y consecuencias del fenómeno de la “penetración” que para Buzan & Waever (2003),
constituye uno de los elementos de conceptualización s relevantes de un CRS. Si bien,
este trabajo, hasta el momento, no replantea este aspecto puntual de la mencionada
teoría, abre una reflexión acerca del grado de influencia que puede tener la penetración
de una potencia externa, en el diseño y desarrollo de los modelos de gestión de la
seguridad dentro de un Complejo.
Un debate mucho s álgido se suscita ante la cuestión de la “indiferencia”como factor
de diferenciación el CRS sudamericano frente aquel al que pertence Estados Unidos. Los
datos recolectados confirman que en los cálculos y representación de las amenzas por
partes de los países miembros del CDS, los movimientos, énfasis, decisiones y
orientaciones discursivas de Washington, resultan más que relevantes. Esto quedó
demostrado, cuando se analizaron las condicionantes del abandono de la Política de
Seguridad Democrática (PSD) por parte del gobierno de Colombia - tras la elección de
Juan Manuel Santos - entre las que se incluyen los ajustes de la política de seguridad
externa de la administración del presidente Barack Obama, y la decisión de aproximarse
más a la región, a través de su participación activa en los mecanismos y procesos de
vinculación multilateral y bilateral.
De partida, este análisis tendió a sobredimensionar la cuestión de las rivalidades y los
recelos frente al ascenso brasileño y sus ambiciones hegemónicas regionales y globales.
Más tarde, y en la medida en que se desarrolló la aplicación de las dos perspectivas
teóricas principales, estas nos permitieron distinguir dos niveles de reacción y apreciación
diferenciados (político y burocrático) que colocaron la balanza del análisis justamente en
el medio: de una parte, las afinidades ideológicas actuando en favor del CDS, y de otra,
los criterios y las lecturas de las cúpulas militares y civiles de los países, resistiendo la
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regionalización de los análisis y las las decisiones, poniendo énfasis en la forma en que
se incrementaban las vulnerabilidades y desafíos, con la integración de sus respectivos
Estados a la iniciativa regional.
Queda pendiente la profundización acerca de la problemática de la la maduración de los
procesos institucionales del CDS. Las limitaciones de acceso a fuentes primarias orales y
escritas dificultaron en buena medida, una aproximación más fina y acabada sobre el
particular. Consideramos que el distanciamiento cronológico de la etapa de mayor auge
del Consejo, pudiera ayudarnos a obtener mucha más información.
Aún y cuando resul arriesgado el ejercicio de “futurología” asociado al potencial
conflictual de la Amazonía, y sus carácter disrruptor sobre el CRS sudamericano, lo cierto
es que la abrumadora cantidad de datos obtenidos y estudios consultados, tienen a poner
a pruebas las afirmaciones teóricas de Buzan & Waever (2003), que transmiten, al menos
momentáneamente, la idea de permanencia del Complejo, sobre la base de la hipótesis
de que Estados Unidos no se vea implicado directamente en un conflicto bélico futuro en
la región.
Conclusiones
La masiva penetración de parte de Estados Unidos en el CRS que queda n muy lejos
de la lógica de la "superposición" planteado por Buzan & Waever (2003), considerando
factores como la autonomía de sus unidades para definir sus políticas de seguridad, los
patrones amistad-enemistad, y la distribución del grueso de los recursos y capacidades
entre un grupo de potencias regionales que convergen y discrepan. Sin embargo la
influencia estadounidense sobre los ámbitos de gestión y transformación de los conflictos
y las amenazas a través de las ideas, capacidades e instituciones, evidencia una anomalia
con respecto a la propuesta teórica en cuestión, y pone en entredicho el problema de la
“indiferencia”.
El proyecto de liderazgo global brasileño presupone una extraordinaria acumulación de
recursos y capacidades para su materialización. Aún y cuando este fenómeno no
compromete la “polaridad” por el momento, considerando la existencia de otros actores
con el suficiente poderío para gravitar sobre la política regional, lo cierto es que este
acentúa las percepciones asimétricas que tienden a suscitar no pocas reservas e
inquietudes acerca del futuro del Complejo, que pudiera asomar en plazos s mediatos,
algunos rasgos de “superposición” que pondrían en entredicho su propia existencia. Lo
anterior se pudiera asociar con otras problemáticas como el fomento de la “penetración”,
la adhesión a otras representaciones y redes materiales, y la reticencia a aportar
legitimidad y respaldo político al CDS.
Aún y cuando los esfuerzos en Sudamérica por regionalizar las visiones, lecturas y
prácticas espaciales de seguridad datan de muchos años atrás, por lo general, los
problemas y peligros de este ámbito, se interpretan y tratan de resolver en clave
nacional, resultando en una fragmentación de la construcción social de las amenazas.
Esto pudo estar en el origen de los escollos que impidieron la unificación de las
representaciones, lecturas y enfoques dentro del CDS. A este problema, se incorporó la
influencia de la diversidad de modelos de discusión, gestión e integración en el campo
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de la seguridad y la defensa, con foros y órganos de perfil diferenciado en UNASUR, la
ALBA, y la OEA fundamentalmente.
La ausencia de normas explícitas y mecanismos para la resolución de varias de las crisis
que irrumpieron en la región, tuvo consecuencias directas en el estancamiento del
desarrollo de la arquitectura institucionalidad del CDS. En ausencia del despliegue
automático de mecanismos institucionales que pudieron considerar la intervención de
niveles técnicos, burocráticos y políticos, fueron los propios líderes de la región, quienes
actuaron bajo la influencia no tanto o no sólo de las necesidades de desarrollo y
fortalecimiento de las capacidades de gestión del Consejo, sino de las presiones y
demandas de sus políticas internas respectivas.
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GIROS POLÍTICOS Y PERCEPCIONES EN LAS POLÍTICAS EXTERIORES DE
ARGENTINA Y BRASIL (2003-2019)
GISELA PEREYRA DOVAL
gpdoval@gmail.com
Doctorada en Relaciones Internacionales. Investigadora del Consejo Nacional de Investigaciones
Científicas y Tecnológicas (CONICET-Argentina). Profesora Adjunta de Problemática de las
Relaciones Internacionales en la Facultad de Ciencia Política y Relaciones Internacionales de la
Universidad Nacional de Rosario (UNR-Argentina).
Resumen
En el devenir de la política internacional contemporánea, los giros ideológicos son factores
importantes que inciden sobre la (re)configuración de las agendas externas de los gobiernos,
de los vínculos intrarregionales y extra regionales. Todos ellos se ven afectados por las
cosmovisiones de los líderes políticos que ocupan un lugar destacado en los gobiernos y por
los tipos de liderazgos que los presidentes escogen desempeñar en el ejercicio de su función.
Esto nos obliga a analizar y reflexionar sobre las vías de inserción internacional de los países
sudamericanos en el escenario regional, continental y global en función de las percepciones
de estos líderes. En función de ello, el desafío que asumimos consiste en analizar las
percepciones preexistentes y emergentes entre Argentina y Brasil en el período 2003-2019 y
como las mismas configuraron los procesos de integración regional. Al mismo tiempo,
examinar sus tendencias en función del operational milieu; es decir, del contexto internacional
y regional y la evaluación de las alternativas integracionistas. La hipótesis es que las
mutaciones que tuvieron lugar en el operational milieu fueron un factor determinante en la
configuración del psychological milieu; y que la reconfiguración de la agenda respecto de la
integración regional muestra tanto un cambio de percepciones como un esfuerzo por
adaptarse a los giros políticos externos e internos. Así, entre las varias percepciones
existentes, rescatamos como s relevantes tres modelos/tipos ideales que van hacia dos
extremos para lograr un tercero que los sintetiza: la alianza estratégica; el pensamiento
nacionalista-militar (o la suspicacia tradicional); y la Confianza Mutua Asegurada. La creación
de conceptos como el de CMA supone avanzar en un modelo relacional que quite
incertidumbre a la relación bilateral.
Palabras-clave
Giros Políticos, Percepciones, Política Exterior, Argentina, Brasil
Cómo citar este artículo
Doval, Gisela Pereyra (2020). Giros políticos y percepciones en las políticas exteriores de
Argentina y Brasil (2003-2019). In Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 11, 2
Consultado [en línea] en fecha de última consulta, DOI: https://doi.org/10.26619/1647-
7251.11.2.4
Artículo recebido en Deciembre 23, 2019 y aceptado para su publicación el Septiembre
21 de 2020
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Giros políticosy percepciones en las políticas exteriores de Argentina y Brasil (2003-2019)
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GIROS POLÍTICOS Y PERCEPCIONES EN LAS POLÍTICAS
EXTERIORES DE ARGENTINA Y BRASIL (2003-2019)
1
GISELA PEREYRA DOVAL
I. Introducción
El año 2003 presenta una inflexión en la política mundial. La invasión a Irak marca las
relaciones de Medio Oriente con el mundo, la renovación de la alianza de Estados Unidos
y Reino Unido y, necesariamente, la redefinición de la agenda externa de la Unión
Europea (Paredes Rodríguez 2013; Marnez 2019; de Castro Ruano 2015). Al Sur del
mundo los procesos políticos también comenzaron a redefinirse durante la primera
década del Siglo XXI. A partir del ciclo electoral regional iniciado en 1998 con el triunfo
de Hugo Chávez en Venezuela, los procesos fueron caracterizados como ‘giro a la
izquierda’, ‘progresismos’, ‘ascenso de la marea rosa’, ‘posneoliberalismos’,
‘neopopulismos’, etc. (Panizza 2006, Moreira 2017, Dubesset 2017). Una década
después, el debate cobró nuevos bríos a partir de los resultados de los ciclos electorales
en los que fueron triunfando deres políticos etiquetados de derecha, los cuales están
promediando sus mandatos en los años finales de esta segunda década del Siglo XXI.
Esta doble reactivación del debate ideológico nos convoca a repensar el derrotero político
de los gobiernos de América del Sur, y nos brinda un recorte temporal. Los gobiernos
que inauguraron el nuevo siglo Kirchner en Argentina, Lula en Brasil, Chávez en
Venezuela, zquez en Uruguay, Morales en Bolivia- fueron comprendidos por parte de
la comunidad académica como representantes de un giro a la izquierda (Pereyra Doval y
Lorenzini 2019; Lesgart y Souroujon, 2008; Dabène 2012). Desde 2015 en adelante, los
resultados electorales Argentina, Venezuela, Brasil, Chile- nos invitan a pensar en el
transito de un nuevo ciclo político, a partir del avance de las fuerzas políticas de las
derechas a través de diversos mecanismos -victorias electorales, institucionales y para-
constitucionales, incluyendo un golpe de Estado
2
en Bolivia- así como también por el
creciente rol que desempeñan dichos actores en la oposición social y política
(Middlebrook, 2000; Beltrán, 2005; Anselmi 2017).
1
Este artículo es el resultado de la investigación para optar al título de Posdoctora en Relaciones
Internacionales, otorgado por la Universidad Nacional de Rosario (Argentina).
2
Las distintas referencias a Golpes de Estado de diferente naturaleza en este trabajo reseñan, en términos
generales, a un cambio de gobierno operado con trasgresión de las normas constitucionales (Borja, 1997).
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En el devenir de la política internacional contemporánea, los virajes ideológicos (derecha-
centro derecha- centro-centro izquierda-izquierda) son factores importantes que inciden
sobre la (re)configuración de las agendas externas de los gobiernos, de los vínculos
intrarregionales y extra regionales. Todos ellos se ven afectados por las cosmovisiones
de los líderes políticos que ocupan un lugar destacado en los gobiernos y por los tipos de
liderazgos que los presidentes escogen desempeñar en el ejercicio de su función. Esto
nos obliga a analizar y reflexionar sobre las vías de inserción internacional de los países
sudamericanos en el escenario regional, continental y global en función de las
percepciones de estos deres
3
. En este sentido, los giros transcurridos en Sudamérica
desde el año 2003 hasta la actualidad significan no sólo una mudanza del signo político,
sino de lo que Jervis (1976) llamó psychological y operational milieu. Es decir, el mundo
como lo ve un actor (psychological milieu) y el escenario en el cual la política se lleva a
cabo (operational milieu). Así, el pensamiento de los policy makers contiene información
y patrones complejos, tales como creencias, valores, experiencias, conceptos; al mismo
tiempo, opera un contexto determinado. Por lo tanto, la percepción consiste en la
sumatoria de imágenes, creencias e intenciones de un actor de acuerdo a una coyuntura
determinada. La percepción que tienen las clases políticas sobre el rol de la nación,
impulsan a un Estado a orientarse hacia un tipo específico de política exterior. En función
de ello, el desafío que asumimos consiste en analizar las percepciones preexistentes y
emergentes entre Argentina y Brasil en el período 2003-2019 y como las mismas
configuraron los procesos de integración regional. Así la relación bilateral entre Brasil y
Argentina, la integración sudamericana y la relación entre ideología y política externa se
constituyen en nuestro objeto de estudio. Al mismo tiempo, examinar sus tendencias en
función del operational milieu; es decir, del contexto internacional y regional; la
redefinición del lugar que ocupan en la agenda los socios tradicionales y la evaluación de
las alternativas integracionistas. La hipótesis es que las mutaciones que tuvieron lugar
en el operational milieu fueron un factor determinante en la configuración del
psychological milieu; y que la reconfiguración de la agenda respecto de la integración
regional muestra tanto un cambio de percepciones como un esfuerzo por adaptarse a los
giros políticos externos e internos. Así, entre las varias percepciones existentes,
rescatamos como más relevantes tres modelos/tipos ideales que van hacia dos extremos
para lograr un tercero que los sintetiza: la alianza estratégica; el pensamiento
nacionalista-militar (o la suspicacia tradicional); y la Confianza Mutua Asegurada. Estas
tres percepciones conviven en mismos momentos históricos, pero también se solapan
entre sí, pudiendo identificar a la más sobresaliente en cada ciclo. También afirmamos
que, a pesar de visos de desconfianza, los dos últimos modelos fueron los que primaron
en la construcción de la política exterior de los dos países bajo estudio y que la suspicacia
aumenta mientras más a la derecha se sitúen las ideologías de los gobiernos de turno.
En este punto, cabe hacer dos aclaraciones, la primera es que nuestra intención no es
comprender políticas exteriores específicas, sino encontrar patrones generales de
3
En este sentido cabe aclarar dos cuestiones. La primera es que, en este texto, hay una ausencia de discusión
del rol de las elites económicas de los dos países. Entendemos que es una pieza central para explicar las
posiciones y definiciones de política externa, así como la percepción y acciones de los poderes ejecutivos,
pero excede el objetivo de este trabajo. Al respecto, se recomienda ver González Bustamante, 2016;
Donatello, 2015; Diniz et. al, 2012. La segunda es que también se observará la ausencia de la capacidad
de los ministerios de Relaciones Exteriores (particularmente de Itamaraty) en la toma de decisiones; esta
también es una decisión deliberada de la autora respecto del objetivo del texto. Sin embargo,
recomendamos leer Pereyra Doval, 2013; Schenoni y Ferrandi Aztiria, 2014; Rizzo, 2012.
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interacción. La segunda es que, según Jervis (1976), no hay forma de determinar las
percepciones con exactitud, por eso, delineamos esos tres modelos tipos ideales-
distintos. El marco teórico más general es el constructivismo ya que compartimos que
los roles se delimitan a partir de las percepciones -interpretaciones dominantes- que los
Otros tengan de nosotros y viceversa; es decir, que nuestras acciones hacia los Otros se
planean y delimitan a partir de la percepción que se tenga de ese Otro. En este contexto,
las percepciones terminan jugando un rol central en el armado y en las decisiones sobre
las estructuras políticas. La forma en que el gobernante de turno perciba la realidad y el
escenario en donde esté inmerso será determinante en la elección de la acción externa
a seguir. Por tanto, sostenemos que las percepciones son la variable fundamental para
la formulación de las medidas de política exterior. De aquí se deriva nuestro objetivo.
Como puede observarse, uno de los principales supuestos es que la percepción está en
estrecha relación con el diseño de las políticas. Por otra parte, la creación de conceptos
como el de Confianza Mutua Asegurada supone avanzar en un modelo relacional que
quite incertidumbre a la relación bilateral. Creemos que el pasado, el presente y el futuro
de las relaciones argentino-brasileñas demandan un permanente esfuerzo categorial que
cuenta de ellas. Como diría Deleuze (2007), la tarea de pensar la realidad que nos
compromete no es otra cosa que una permanente creación de conceptos que no solo
expliquen sino que tengan destino de ser la realidad misma. Detallar y conceptualizar el
futuro próximo de la relación Argentina Brasil, de su entorno contiguo, y con ella
también la integración-concertación sudamericana, en términos de Confianza Mutua
Asegurada surge de dicho emprendimiento. De esta manera, es preciso definir no solo el
modelo de relaciones bilaterales y regionales sino también avanzar en una discusión que
suponga el acercamiento a propuestas comunes de orden global. Para ello, en primer
lugar, y bajo el concepto de alianza estratégica, describiremos la relación bilateral; en
segundo lugar, con el pensamiento militarista, haremos hincapié en el último giro político
y cómo éste afectó el binomio; por último, creamos el concepto de Confianza Mutua
Asegurada para demostrar que el aumento en la institucionalización de los esquemas
regionales le brinda previsibilidad a la relación bilateral. Este trabajo privilegia una visión
argentina sobre la aproximación Argentina-Brasil; sin embargo, respaldaremos las
hipótesis con bibliografía producida en Brasil sobre la temática.
II. Alianza Estratégica
Antes de comenzar con este apartado deben hacerse dos aclaraciones. En primer lugar,
en esta sección se relevan datos de varias encuestas realizadas a la población. La fuente
principal es el programa de investigación “La Opinión Pública Argentina sobre Política
Exterior y Defensa” (CARI 1998, 2002, 2006 y 2010) que es una serie de encuestas
realizadas a la población y a líderes argentinos respecto a las relaciones internacionales
de este país. Las mismas se utilizan con fines puramente instrumentales y como
indicadores de la percepción que sólo será respecto de las elites políticas (puntualmente
de los poderes ejecutivos). En segundo lugar, no se desconoce que el término alianza
estratégica surgió oficialmente a partir de la firma de la Declaración de Río de Janeiro de
1997 por los presidentes Cardoso y Menem. Sin embargo, en este trabajo sostenemos
que la década del noventa no fue relevante en términos de las relaciones bilaterales con
Brasil ya que la importancia de las “relaciones carnales” políticas de la Argentina con
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Estados Unidos no dieron espacio para mayores contactos con otros países -salvo la
aproximación a Brasil en el aspecto económico-comercial- (Cervo, 2000; Russell y
Tokatlian, 2011). Como plantean Russell y Tokatlian (2011, pp. 289-290) “nunca se trató
de relaciones equivalentes por más que el discurso oficial así las presentara; la alianza
con Estados Unidos tenía un carácter político-estratégico mientras que el vínculo con
Brasil fue pensado económicamente necesario pero políticamente inconveniente”.
De este modo, esta segunda percepción se fundamenta en la consolidación de los
modelos trazados por los poderes ejecutivos en ambos países a partir del 2003 y en un
esfuerzo del gobierno brasileño de ejercer tanto de mediador como de “socio benefactor”
de la región. En este sentido, divorciaremos la alianza estratégica, que implica una
relación exclusivamente bilateral, de la asociación solidaria la cual está caracterizada por
acciones unilaterales brasileñas o multilaterales lideradas por Brasil.
Con respecto a la alianza estratégica, fue a partir de los gobiernos de Néstor Kirchner y
Lula da Silva que esta amistad bilateral comenzó a estrecharse, independientemente del
acercamiento en las relaciones a partir de mediados de la década del ochenta y de la
implementación del MERCOSUR en la década del noventa (Lessa, 2010; Gomes Saraiva
y Briceño Ruiz, 2009; Pereyra Doval, 2014). Si bien el concepto de alianza estratégica
es algo vago y generalizado, entendemos por la misma a “(…) un tipo de relación
interestatal que por diversos motivos y factores, se distingue en cuanto a consideración
e importancia del resto de las relaciones bilaterales que componen el universo
diplomático de un país” (Cortés & Creus, 2009, p. 120). Es decir, la relación bilateral
establecida o anunciada por Néstor Kirchner a comienzos del nuevo milenio otorgaría
mayor importancia a Brasil que a cualquier otro país como socio privilegiado.
Es un dato significativo que parte de la campaña para el ballotage de las elecciones
presidenciales del 2003 haya sido la reunión entre Kirchner y Lula en el Planalto, en
donde ambos volvieron a ratificar su posición favorable al proceso de integración y a la
relación bilateral. Al mismo tiempo, el presidente brasileño reforzó este gesto de recibir
a un ‘candidato’ a través de indirectas futbolísticas que marcaban su oposición al
entonces contrincante de Kirchner, el neoliberal Carlos Menem.
En cierta forma, el encuentro mostraba que Kirchner iba a seguir la misma dirección que
estaba siguiendo Lula en Brasil. Esto era para la población muy importante ya que, en
general, según las encuestas del CARI se consideraba que Argentina había perdido
presencia internacional, mientras que Brasil se consideraba el país latinoamericano que
iba a cumplir el rol más importante en el mundo. Por lo tanto, líderes de opinión y público
en general consideraban que la integración regional debía ser la temática considerada
más relevante para el gobierno en política exterior -90% de los líderes de opinión y 77%
de la población general consideraba importante que Argentina formara parte del
MERCOSUR-.
Esto último se fortaleció cuando Brasil se constituyó en el primer destino en el exterior
del ya electo presidente argentino y, sobre todo, a partir de la firma del Consenso de
Buenos Aires firmado unos meses después, en contraposición al Consenso de
Washington. Sin entrar en detalles, el nuevo consenso significó varias cosas: el
agotamiento del paradigma de los años noventa; una supuesta convergencia ideológica
entre ambos gobiernos; y, en el caso argentino, una vuelta aggiornada a la Tercera
Posición peronista y también a una posición teórica que transluce una versión actualizada
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de la Teoría de la Autonomía del rosarino Juan Carlos Puig en clave más liberal: la
autonomía relacional. Esta última, necesitaba de un aliado de confianza y Néstor Kirchner
se inclinó por su vecino inmediato. Prueba de ello fueron las firmas posteriores del Acta
de Copacabana y el Consenso de Rio.
La alianza estratégica volvió a reafirmarse en innumerables ocasiones y se trasladó al
gobierno posterior. Pareciera que la relación simbiótica que establecieron Néstor y Lula,
basada en la convergencia ideológica, tuvo un patrón de continuidad entre Cristina y
Dilma ahora basada en una cuestión de género y de política pro derechos humanos
(Vitale, 2014; Rivarola y Moscovich, 2018).
Esta percepción se sustenta en algunos indicadores que tienen su origen en la izquierda
latinoamericana o el neopopulismo surgido a partir del siglo XXI. Lo primero que hay que
decir es que estos gobiernos no son tanto de izquierda como opositores al discurso
neoliberal de la década anterior y a los estragos que el neoliberalismo causó en los países
de la región. De cualquier forma, la base ideológica fue la plataforma de la simbiosis
entre los gobiernos de este corte en América Latina, del cual Lula y Kirchner fueron
exponentes importantes. Como veremos más adelante, los hitos de institucionalización
más importantes de los esquemas de integración como el Mercosur y la UNASUR
surgieron durante los liderazgos de estos exponentes.
III. La historia cada vez más presente, el pensamiento nacionalista
militar
Esta primera percepción deriva de algunas tendencias profundas que prevalecen. Es un
posicionamiento minoritario pero creciente al interior de Brasil, y también de Argentina,
sobre todo a partir del ascenso de Jair Bolsonaro. Responde a ciertos sectores vinculados
al viejo nacionalismo, ligado a las Fuerzas Armadas nacionales, desde mediados del siglo
pasado y se sustenta en una lectura histórica de disputas geográficas no dirimidas
convenientemente desde la disolución del imperio hispano lusitano. Así, se observa en
Brasil un heredero directo del imperio portugués aliado a la potencia hegemónica de
entonces, Gran Bretaña. Por otra parte, se insiste en la idea de Argentina como país hijo
de una nación fracturada, pos independencia de España. La continuidad histórica coloca
a Brasil en épocas de las independencias nacionales como aliado del nuevo hegemón
regional, Estados Unidos, y a la Argentina como contrapeso aliado a Gran Bretaña, en el
sur del hemisferio (Bernal Meza, 1999; Russell & Tokatlian, 2011).
Esta perspectiva, en definitiva, percibió al otro país como un enemigo de los intereses
nacionales y, por lo tanto, como un aliado de las potencias que atentaban contra el
destino de un Estado con proyecciones internacionales de gran escala. Como resulta
lógico en un pensamiento anclado en dimensiones objetivas de poder (geografía,
demografía, etc.), la integración era observada como parte de una clara intencionalidad
imperial de Brasil y de aprovechamiento de Argentina.
La versión aggiornada de este pensamiento aún está presente en aquellos herederos de
lo que da en llamarse el pensamiento militar. Esta exégesis sostiene que la integración
latinoamericana no tiene que ver con una integración históricamente necesaria ni con las
nuevas condiciones de la economía global, ni a una asociación solidaria, sino que obedece
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a un proyecto histórico de expansión y consolidación de la hegemonía brasileña en
América Latina.
También debemos resaltar que, tanto el círculo académico como el político -que es la
plataforma de todos los partidos con presencia electoral- niegan este pensamiento. La
base de esa negación obedece a una triple crítica que proviene de distintos lugares. La
primera crítica es que el pensamiento militarista predica un modelo de imperialismo o
hegemonía brasileña que está fuera de la estructuración del orden internacional actual,
algo así como un pensamiento demodé (Lanús, 1984). La segunda crítica está vinculada
al pensamiento teórico de la democracia que sostiene que la consolidación del sistema
democrático en la región anula, en ambos países, las categorías de pensamiento con las
que se enfocaba el escenario internacional y especialmente el regional; es decir, el
ascenso en la agenda del soft power y de la democratización construye vínculos
transfronterizos que hacen imposible pensar en un imperialismo geográfico (O’Donell,
1994); al mismo tiempo, existe un desprestigio generalizado de ese pensamiento por
considerarlo ligado a los gobiernos militares. La tercera y última crítica está basada en
que el avance de la integración describe nuevos actores económicos que tienen intereses
trasnacionales, lo que haría imposible pensar la relación en términos militaristas
tradicionales (Escudé, 1992, 1995).
Sin embargo, esta negación no impide que las viejas percepciones no hayan sido
anuladas definitivamente con el claro peligro de que puedan ponerse en evidencia ante
las turbulencias del actual escenario binacional. Particularmente en el plano regional, la
crisis por la que atraviesa Mercosur, el reemplazo de UNASUR por PROSUR y el
surgimiento de instancias regionales más laxas como el Grupo de Lima (Van Klaveren
2018; Caetano y Sanahuja 2019; Birle 2018), generan algunos interrogantes acerca del
lugar que la integración y la concertación ocupan como temas de agenda de los gobiernos
de la región. Las relaciones internacionales en el ámbito continental, parecen haber
adquirido un nuevo perfil a partir de las elecciones presidenciales en Estados Unidos en
las que triunfó Donald Trump. La redefinición y el redireccionamiento de los vínculos de
varios gobiernos sudamericanos con Estados Unidos, también, pueden ser abordados a
partir de los indicios, de las decisiones y de las posiciones adoptadas en las negociaciones
sobre el libre comercio en los distintos vínculos bilaterales.
Por tanto, a pesar de que las hipótesis de conflicto se han desactivado desde la
redemocratización, no se puede desconocer que este tipo de percepciones formen parte
de ambas dirigencias nacionales. Así, existe tan presente como en el pasado un
inconsciente colectivo que seguirá pensando en un Brasil imperialista y en una Argentina
contrapeso respectivamente.
IV. El momento de la Confianza: Incertidumbre del futuro, entre el temor
y el amor
Antes de Bolsonaro que cambia todo-, la extensa lista de gestos y hechos políticos
producidos en la última década y media (incluso con Temer) habilitaría un análisis en
términos de continuidad de tales escenarios. En definitiva ¿por qué sospechar de un
posible cambio político de Brasil en la Región? ¿Por q recuperar las sospechas aún
presentes en los imaginarios de las elites argentinas del viejo nacionalismo, si la alianza
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estratégica y la cooperación solidaria desmentían tales profecías? Nuestra respuesta, ya
con el diario del lunes, apunta a consolidar las percepciones del presente avanzando
sobre la disminución de la incertidumbre que provoca un escenario global en profundo
cambio. Ante ello, quizás como salto ascendente, pero sin dejar de tomar las
contradicciones, nos parece interesante avanzar en la necesidad de inaugurar un nuevo
momento en las relaciones bilaterales: la integración y cooperación como Confianza
Mutua Asegurada (CMA).
La propuesta de inaugurar un modelo de relaciones basado en lo que damos en llamar
CMA apunta a recuperar percepciones contradictorias de doble standard- del pasado y
proyectarlas en el futuro para actuar en el presente. Así, la CMA supone avanzar en un
modelo relacional que quite incertidumbre a la relación bilateral. Una asociación
controlada sustentada en la confianza mutua y desplegada en un conjunto de
herramientas jurídicas y políticas al interior del proceso integracionista y cooperativo. El
pasado, el presente y el futuro de las relaciones argentino-brasileñas demandan un
permanente esfuerzo categorial que cuenta de ellas. Como diría Deleuze (2007), la
tarea del pensar la realidad que nos compromete, no es otra cosa que una permanente
creación de conceptos que no solo expliquen sino que tengan el destino de ser la realidad
misma. Definir el futuro próximo de la relación Argentina-Brasil y con ella también la
integración- concertación sudamericana, en términos de CMA surge de dicho
emprendimiento.
Se trata de generar confianza al otro a través del fortalecimiento institucional de
instancias bilaterales o colectivas. Es un acuerdo en el cual ambos se constriñen para
evitar problemas en el futuro; de forma tal de que ambos saben que el otro no va a
romper unilateralmente o por lo menos va a tener altos costos si lo hace-. Y de esa
forma se genera confianza en el vínculo independientemente de quien gobierne.
De esta forma, la CMA: propone previsibilidad independientemente del signo político; es
un concepto pragmático que requiere, paradójicamente, una mirada conjunta sobre las
prioridades bilaterales/regionales; puede establecer marcos de cooperación sobre temas
sensibles (ejemplo, recursos dricos o acuerdos nucleares o de defensa). En suma,
propone establecer políticas de Estado a nivel regional.
El problema en el presente es que en las democracias "iliberales" hay una relación
inversamente proporcional entre la construcción de CMA a nivel institucional y el
estrechamiento de las relaciones bilaterales que atentan contra estos instrumentos
4
. La
confianza es una categoría de uso habitual y extendido. Se desarrolla hasta convertirse
en una apelación corriente para caracterizar diversos modelos relacionales. En el campo
de las relaciones internacionales también ha tenido un gran despliegue. Los estudios
vinculados a los análisis de seguridad regional o global encuentran en la confianza una
manera de dar cuenta de un conjunto de relaciones preventivas. Los ltiples reaseguros
4
Aunque el concepto es aplicado en Argentina y Brasil, el ejemplo más claro es el de la Unión Europea, en
donde un ejercicio de proto CMA tal vez haya excedido las intenciones de sus fundadores. La construcción
de medidas de confianza para que Alemania y Francia estén en paz tomó forma en esto que conocemos
como UE, que también a su manera rompe con institucionalidades, esta vez locales. Esto da lugar a
supranacionalidades que legislan sobre temas que superan las competencias locales como el Parlamento
Europeo y la Comisión Europea. En este sentido, a mayor institucionalización supra, más se rompe la
institucionalización basal.
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de la confianza por el balance o el acuerdo- incrementan las perspectivas de paz entre
las naciones.
Para observar en términos institucionales- que gobiernos generaron confianza en la
relación y cuáles no, compilamos algunos hitos institucionalizantes
5
de la UNASUR, desde
sus antecedentes inmediatos hasta su desaparición en 2018. Algunos de ellos son la
creación de la Comunidad Sudamericana de Naciones (2004), del Consejo Energético
Sudamericano (2007), de la UNASUR en la Cumbre de Brasilia (2008), del Consejo de
Defensa Sudamericano y el Consejo de Salud Sudamericano (2008), del Consejo
Sudamericano de Infraestructura y Planeamiento antes IIRSA (2009), entre otros.
La institucionalidad generada en la UNASUR al definir sus distintos niveles de
funcionamiento, y sobre todo el papel asignado a sus diferentes consejos sectoriales, dan
cuenta de la diversidad de campos de acción que se consideraba necesario atender para
un efectivo avance de la integración sudamericana. Independientemente del abandono
de los estados miembro (especialmente de Argentina y Brasil), el papel que ha jugado la
UNASUR, como espacio de diálogo, mediación política y definición de posiciones comunes
por parte de la región, ante situaciones tales como: los intentos separatistas en Bolivia;
la emergencia por el terremoto en Haití; el intento de golpe de Estado en Ecuador; el
golpe parlamentario en Paraguay; los conflictos en Venezuela; la retención del avión
presidencial boliviano en Viena; el bloqueo económico a Cuba; el golpe de Estado en
Honduras; la declaración estadounidense de que Venezuela es una amenaza para su
seguridad nacional; y, la reivindicación Argentina de soberanía sobre las Islas Malvinas,
no puede ser olvidado. Nos preguntamos si hubiera sido efectiva en situaciones como las
de Ecuador, Chile, Bolivia.
Respecto al Mercosur, también pueden observarse algunos hitos institucionalizantes en
este período de tiempo. Algunos pocos ejemplos son la regulación del Pacto de Olivos
creándose el Tribunal Permanente de Revisión (2003); la creación del Protocolo de
Asunción sobre Derechos Humanos (2005); del Fondo para la Convergencia Estructural
del Mercosur (2005); del Protocolo Constitutivo del ParlaSur (2005); del Instituto Social
del Mercosur (2007); de la Unidad de Apoyo a la Participación Social (2010); del Protocolo
de Cooperación y Facilitación de Inversiones Intra-Mercosur (2017). Estos hitos dentro
del Mercosur fueron lanzados y reforzados como una retroalimentaciónde la relación
bilateral entre Argentina y Brasil que, también, tuvo hitos de fortalecimiento como ser la
posición conjunta en el G-20 Comercial en la Conferencia Ministerial de la OMC (2003),
el Consenso de Buenos Aires (2003), la articulación de posturas en el G-20 Financiero
para la reforma del Sistema financiero internacional, el Acta de Copacabana (2004), el
Proyecto Gaucho (2004, entra en producción en 2006) de desarrollo de vehículo militar
(cooperación militar), la negociación conjunta en el ALCA (2005), la Primera Misión
Espacial Conjunta (2007), el establecimiento de la Comisión Binacional para perseguir el
enriquecimiento conjunto de uranio con fines de energía nuclear (2008), el desarrollo del
KC-390, avión de transporte militar (2011), la creación del “Diálogo de Integración
Estratégica” (2012), la firma del Memorando de Entendimiento entre Brasil y Argentina
sobre Reglamentos Técnicos del Sector Automotriz (2018), la firma de la Declaración de
5
Llamamos hitos institucionalizantes a aquellas instancias que pueden mostrar resultados concretos en la
gestación de un proceso que conduzca a algo superior que un discurso.
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Montevideo sobre Cooperación Nuclear Empresarial Argentina-Brasil (2018), el Acuerdo
comercial Brasil-Argentina para el sector automotriz (2019), entre otros
6
.
Estos hitos, a primera vista, nos ofrecen un par de reflexiones. La primera es que es la
percepción de Alianza Estratégica la que genera mayor cantidad de hitos que refuerzan
la institucionalidad de los procesos, y, como consecuencia, a medida que la percepción
se acerca al pensamiento militarista, los hitos van decayendo. La segunda es que, a
riesgo de destruir una relación bilateral construida a través de los años con mucho
esfuerzo, a los gobiernos que se acercan al pensamiento militarista no les importa
demasiado romper la institucionalización y con ella la CMA- unilateralmente.
Esto también nos confirma que las percepciones de la integración aluden a la preferencia
de los actores respecto de la forma en la que los procesos de integración se desarrollan,
y al modo en el que deciden su participación. En este sentido, existe cierto consenso con
respecto a que los gobiernos de derecha, tienen una visión individualista y liberal,
mientras que los de izquierda, buscan formas más profundas con tintes solidarios
7
. Los
primeros preferirían que los estados diversifiquen sus nculos comerciales a TLC o ACE
con escasas restricciones, optando por formas menos comprometidas de integración
como las zonas de libre comercio (ZLC); en este sentido, una institucionalización más
rígida sería interpretada como una debilidad más que como una fortaleza. Por su parte,
los gobiernos de izquierda referiría a formas de integración que demanden mayores
compromisos y, que recorten rgenes de acción a los estados miembros en
negociaciones con terceros (Lorenzini y Pereyra Doval, 2019). Es en este sentido, que
nos pareció interesante constatar las líneas de institucionalización de los procesos de
regionalización.
V. A modo de conclusión
Pasado imperial, presente de asociación y futuro de incertidumbre, entre el temor y el
amor. Las tres imágenes confundidas o reformuladas son parte de la conciencia colectiva
de las elites argentina y brasileña. Actualmente, las percepciones nacionales sobre el
principal socio político y económico atraviesan un momento de re-definición. Lo primero
que hay que aclarar es que, en el período bajo estudio existió una tendencia de los
gobiernos progresistas o de izquierda o posliberales a acercarse a la percepción de alianza
estratégica, que se va alejando a medida que se gira a la derecha y se acerca al
pensamiento militarista. La propuesta planteaba que los gobiernos progresistas debían
establecer vínculos institucionalizados para evitar que el pensamiento militarista opaque
la relación bilateral a través de medidas unilaterales. Por tanto, debe tenerse en cuenta
que la aplicación de las variables se hizo pensando en esta tendencia.
La incertidumbre que esta relación bilateral viene generando desde hace un par de años
revive viejos fantasmas nacionalistas en los que una hipótesis de conflicto preside el
6
Estos hitos y la confianza fueron reforzados por las visitas presidenciales oficiales que fueron
decreciendo con el tiempo (Lula da Silva realizó 18 viajes oficiales a Argentina y Néstor Kirchner 5 a Brasil;
Dilma Rousseff 5 viajes a Argentina y Cristina Fernández 8 a Brasil; Michel Temer y Bolsonaro realizaron
sólo un viaje oficial a la Argentina cada uno, mientras que Mauricio Macri realizó 4 a Brasil).
7
Para ver la relación entre procesos de integración e ideología política se recomienda leer: Lorenzini y Pereyra
Doval, 2019; Pereyra Doval, 2019; Gomes Saraiva y Granja Hernández, 2019; Caetano et. al, 2019;
Sanahuja y López Burian, 2020; Lorenzini y Pereyra Doval, 2020; entre otros.
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análisis. Algunas fuerzas profundas del pasado tienden a prevalecer; este es el caso del
pensamiento nacionalista militar que, basado en disputas de antaño, colocan a Brasil en
un lugar de imperialista contrario a los intereses argentinos. En este sentido, la
integración es parte de ese imperialismo, casi como un plan macabro del vecino país para
aumentar su potencia y seguir perjudicando los intereses argentinos. Según este modelo,
el proceso de integración obedece a un proyecto histórico de expansión y consolidación
de la hegemonía brasileña en América Latina; en el reverso de la relación representa
para Brasil un ancla que no lo deja avanzar en sus pretensiones económicas y
comerciales. Claramente, este modelo rechaza la integración regional.
El modelo de Alianza Estratégica apunta a una adoración mutua que casi no reconoce las
diferencias que, de hecho, existen entre todos los binomios. Las similitudes sobre todo
discursivas- entre los gobiernos inaugurados a principios del milenio anunciaron a Brasil
como socio privilegiado, al tiempo que establecieron una posición extremadamente
favorable al proceso de integración basado en la reestrenada relación bilateral. Tal es así
que, las encuestas realizadas por el CARI en este período consideran que la integración
regional debe ser la temática más relevante para el gobierno en política exterior. Esta
integración regional también sería apoyada por la llamada Asociación Solidaria, que
indica una especie de benignidad por parte de Brasil hacia el resto de los países de la
región, la cual fue apoyada y reforzada por Argentina.
Por último, planteamos un tercer tipo ideal el de la Confianza Mutua Asegurada- para
el cual los cambios internacionales, los debates acerca del orden, la diversidad de
pretensiones son, entre otros, factores de incertidumbre. Por eso, inaugurar un nuevo
momento bilateral y regional en clave de CMA puede ser un interesante camino por
recorrer.
Este último concepto, de CMA, es considerado un aporte que brinda una nueva forma de
estudiar a futuro esta relación bilateral tan revisitada. La incertidumbre respecto al futuro
del Mercosur y el abandono de la UNASUR son demostraciones claras de la debilidad del
proceso en términos de confianza. La baja densidad institucional sujeta todo el proceso
político a una lógica de concertación constante en todas las instancias decisorias. Las
consecuencias son claras: los compromisos son siempre coyunturales. El incremento de
la desconfianza es inversamente proporcional a la creación de instituciones: a mayor
desconfianza menor institucionalización y viceversa.
Por este último motivo la integración basada en la CMA es, en definitiva, un programa
de trabajo que persigue el objetivo de avanzar a mayores grados de institucionalización.
Las instituciones comunes debilitan el juego siempre presente de los intereses y las
percepciones y establecen reglas de juego claras para los países. Se abren aquí dos
debates importantes que, a nuestro criterio, marcan la agenda estratégica. El primero
está dado por la voluntad -o no- de ambos países en avanzar en la creación de instancias
de gobierno comunes en los procesos de integración. El segundo refiere a cuál será el
formato que las mismas asumirán dada la necesidad de garantizar un justo equilibrio de
poder entre los estados. Las “percepciones desconfiadas” seguirán presentes sin
garantías institucionales que vuelvan menos reversibles los avances y pongan fecha de
realización a los enunciados de la agenda común. La CMA propuesta supone un camino
de avance institucional. Por tanto, se trata también de analizar estas propuestas comunes
en el escenario internacional; en definitiva, la visión del mundo compartida es la que
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permite una reconfiguración de las relaciones en clave de perspectiva. Como veremos,
la Confianza Mutua Asegurada demanda así un punto de partida común (visión de mundo)
que recupera el pasado y diseña el juego compartido de la política futura en clave única.
En conclusión las percepciones nacionales actuales sobre el principal socio político y
económico argentino atraviesan un momento de re-definición. La incertidumbre revive
viejos fantasmas nacionalistas en los que el conflicto preside el análisis. El presente
cercano aportó conceptos como alianza estratégica o cooperación solidaria para
inaugurar una nueva época. Sin embargo, los cambios locales, regionales e
internacionales, los debates acerca del orden internacional, la diversidad de pretensiones
son, entre otros, factores de incertidumbre. Inaugurar un nuevo momento bilateral y
regional en clave de Confianza Mutua Asegurada puede ser un interesante camino por
recorrer.
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POLÍTICA EXTERNA, DESENVOLVIMENTO E ESTRATÉGIAS INTERNACIONAIS
EM RELAÇÃO À ÁSIA-PACÍFICO: OS CASOS DA ARGENTINA E DO CHILE
FLORENCIA RUBIOLO
frubiolo@gmail.com
Investigadora Associada do Conselho Nacional de Investigação Técnica e Científica (CONICET,
Argentina). Doutorada em Relações Internacionais (Universidade Nacional de Rosário). Diretora
do Programa de Doutoramento em Relações Internacionais e Professora de História das Relações
Internacionais na Universidade Católica de Córdoba (UCC)
PAOLA ANDREA BARONI
paobaroni@yahoo.com.ar
Investigadora e Professora da Universidad Siglo 21 (Córdoba, Argentina). Doutorada em
Relações Internacionais pela Universidad Nacional de Rosario (Argentina
Resumo
No século XXI, os nculos entre a América do Sul e a região asiática têm sido mais constantes,
e estes vínculos têm tido interpretações distintas de acordo com as consequências que têm
tido nas economias nacionais sul-americanas, assim como a sua relação com os atuais
processos de integração na região e as diferentes estratégias de inserção económica. Existem
diferenças na forma como os países sul-americanos se inserem na Ásia, pelo que o objetivo
deste trabalho é analisar as características da política externa e as estratégias de inserção
internacional da Argentina e do Chile em relação à China, Sudeste Asiático e à Índia, com
destaque para a articulação entre as estruturas económicas e produtivas, os modelos de
inserção internacional e algumas implicações económicas. Os estudos de caso selecionados
representam dois modelos de desenvolvimento distintos que optaram por estratégias de
inserção internacional diferenciadas, que resultaram em relações diversas com a região
asiática. A investigação teve por base uma metodologia qualitativa e uma perspetiva teórica
sul-americana.
Palavras-chave
Região asiática, modelo de desenvolvimento, estratégia de inserção internacional, política
externa, América do Sul
Como citar este artigo
Rubiolo, Florencia; Baroni, Paola Andrea (2020). Política externa, desenvolvimento e
estratégias internacionais em relação à Ásia-Pacífico: os casos da Argentina e do Chile. In
Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 11, 2 Consultado [online] em data da
última consulta, DOI: https://doi.org/10.26619/1647-7251.11.2.5
Artigo recebido em Outubro 14, 2019 e aceite para publicação em Agosto 3, 2020
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e-ISSN: 1647-7251
Vol. 11, Nº. 2 (Novembro 2020-Abril 2021), pp. 76-91
Política externa, desenvolvimento e estratégias internacionais em relação à Ásia-Pacífico:
os casos da Argentina e do Chile
Florencia Rubiolo, Paola Andrea Baroni
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POLÍTICA EXTERNA, DESENVOLVIMENTO E ESTRATÉGIAS
INTERNACIONAIS EM RELAÇÃO À ÁSIA-PACÍFICO:
OS CASOS DA ARGENTINA E DO CHILE
1
FLORENCIA RUBIOLO
PAOLA ANDREA BARONI
Introdução
No século XXI, o Leste Asiático emerge como uma região de crescimento e
desenvolvimento económico mundial devido, em parte, à deslocalização da produção
como consequência das vantagens competitivas que a região asiática proporciona, como
os baixos custos de produção, que são consequência da mão de obra barata e dos
incentivos ao investimento. A consolidação da China como principal produtora de
produtos fabricados e, recentemente, como fonte de investimentos, assim como a
consolidação do Sudeste Asiático (SEA)
2
e da Índia como mercados de exportação de
matérias-primas, tornaram a região uma alternativa económica para países em busca de
diversificação.
A América do Sul e o continente asiático tiveram ligações ocasionais ao longo das suas
histórias por razões culturais, geográficas, históricas e políticas. Os vínculos aumentaram
com o fim da Guerra Fria; com o boom de crescimento económico da China, do SEA e da
Índia, e com a abertura comercial e liberalização de medidas económicas nos países sul-
americanos, que favoreceram a procura de novos mercados para a exportação de
matéria-prima e seus derivados. Nesse contexto, a América Latina passou a valorizar a
região Ásia-Pacífico na sua agenda externa num contexto de diversificação (Mols e Faust,
1998).
No século XXI, as ligações entre estas duas regiões têm sido mais constantes devido ao
crescente multilateralismo do sistema internacional, ao aumento da interdependência
comercial, à globalização das finanças, e ao avanço das comunicações e dos transportes,
entre outros. No entanto, esses vínculos tiveram diferentes interpretações de acordo com
as consequências que tiveram nas economias internas sul-americanas, a sua relação com
os atuais processos de integração da região e as diferentes estratégias de inserção
económica que resultam na capacidade de obter participações de mercado e
investimentos inter-regionais.
1
Artigo traduzido por Carolina Peralta.
2
Para efeitos deste artigo, serão considerados os países que fazem parte da ASEAN-6: Indonésia, Tailândia,
Filipinas, Malásia, Vietname e Singapura, por serem o principal parceiro comercial da região sul-americana.
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As ligações entre a América do Sul e o leste e o sul da Ásia não têm sido profundamente
exploradas na investigação académica, uma vez que as relações bilaterais e multilaterais
ainda estão em processo de consolidação. A maioria dos trabalhos académicos do Leste
Asiático sobre a América Latina têm-se focado na comparação de políticas económicas,
distinto desempenho económico e nas causas e consequências para ambas as regiões.
3
Da mesma forma, poucos trabalhos
apresentam análises para além da análise estatística das ligações e que, ao mesmo
tempo, permitam comparar casos distintos.
4
Dada a necessidade de aprofundar as diferenças intrínsecas na forma como os países
sul-americanos se inserem na Ásia, o objetivo deste trabalho é analisar as características
da política externa e as estratégias de inserção internacional da Argentina e do Chile na
China, Sudeste Asiático e na Índia, com destaque para a articulação entre as estruturas
económicas e produtivas, os modelos de inserção internacional e as principais
implicações económicas.
Para tal, consideramos o efeito da crescente dependência dos mercados do Leste Asiático,
principalmente nos seguintes aspetos: a) características e implicações das políticas
bilaterais da Argentina e do Chile nas suas relações com a Ásia Pacífico; b) o vel de
diversificação de parceiros e/ou mercados para as exportações; c) as mudanças na
estrutura exportadora que podem impactar as estruturas produtivas (concentração nos
produtos primários e manufaturados de origem agrícola [MOA]).
Os casos selecionados são a Argentina e o Chile porque representam dois modelos de
desenvolvimento distintos que optaram por estratégias internacionais diferentes,
traduzindo-se em relações diversas com a região asiática. Por um lado, o país andino
optou por um modelo de desenvolvimento neoliberal, com uma estrutura produtiva
voltada para o setor primário e uma estratégia internacional baseada no regionalismo
aberto, com uma densa rede de tratados de livre comércio (TLC). A Argentina, desde
2003, implementou um modelo de (neo) desenvolvimento baseado numa estrutura
produtiva mais diversificada e numa estratégia internacional assente num regionalismo
semifechado.
3
Nesse sentido, Lee & Kim (2018) analisam os sistemas de inovação e a relação com o desempenho
económico na América Latina e no Leste Asiático, a partir de uma perspetiva do desenvolvimento; Zhang
(2007) examina a relação entre investimento estrangeiro direto e crescimento económico em ambas as
regiões; e Lin (1989) também compara o desempenho económico e as políticas de desenvolvimento no
Leste Asiático e na América Latina.
4
Antes do século XXI, os estudos sobre a Ásia e os países da América Latina (PAL) concentravam-se no
Japão, Coreia do Sul e alguns aspetos da China (por exemplo, Taiwan). Desde 2000, os estudos sobre os
vínculos entre os PAL e a Ásia-Pacífico foram inicialmente conduzidos por organismos internacionais como
a CEPAL, o Banco Interamericano de Desenvolvimento e o Banco Mundial, entre outros, devido à
complementaridade económica das regiões e às possibilidades que esse fato significou para o crescimento
e desenvolvimento económico. A análise concentrou-se nas dimensões económica, comercial e de
infraestrutura. Quando os vínculos começaram a crescer, os estudos sobre a China dispararam e os estudos
sobre o Sudeste Asiático e a Índia começaram a florescer, incluindo outros aspetos como política, cultura,
diplomacia, cooperação, etc. Devido ao aumento do impacto desses países na política externa dos países
PAL, a última década assistiu a um maior número de iniciativas académicas realizadas a partir de diferentes
marcos analíticos, como a análise da política externa. Este artigo inclui-se nesta última categoria.
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Conceitos a partir de uma perspetiva teórica sul-americana
Modelos de desenvolvimento e estratégias internacionais
Para compreender as implicações económicas das relações comerciais com a Ásia-Pacífico
no Chile e na Argentina, devemos basear-nos em conceitos locais relacionados com a
política externa e a articulação entre modelos de desenvolvimento e estratégias
internacionais.
Em primeiro lugar, partimos de uma definição ampla de política externa, entendida como
uma política de Estado “que é planeada e concebida tendo em consideração os objetivos
nacionais, as instâncias internas e as condições que surgem do quadro externo”
(Colacrai, 2006: 25) É a combinação de decisões e ações do Estado projetadas no exterior
que reúnem condicionamentos ltiplos dos veis interno e externo. Segundo Van
Klaveren (1992), como as economias latino-americanas fazem parte de um mundo em
desenvolvimento, o desenvolvimento é o imperativo interno que determina as decisões
externas dos Estados. Não se trata apenas de avaliar a política externa em termos do
seu contributo para a promoção das exportações e da estabilidade comercial e financeira,
mas também em termos da capacidade de transformar as variáveis internacionais “de
uma forma mais favorável à concretização de uma estratégia de desenvolvimento” (Van
Klaveren, 1984:36).
Concordamos que existe uma condição comum na influência dos imperativos de
desenvolvimento na política externa latino-americana. No entanto, a forma como essas
metas são projetadas no plano internacional não é homogénea. Assim, distinguimos os
diferentes modelos de abordagem à Ásia, e essas distinções serão baseadas nas
capacidades materiais - principalmente nas estruturas económicas dos países em estudo
- e nos compromissos regionais preexistentes, que moldaram, de diferentes formas, a
política externa e decisões de estratégia económica.
Como premissa principal, acreditamos na ligação entre as estruturas produtivas e
exportadoras de um país, a sua estratégia internacional e a sua política externa. Essa
conexão nem sempre é linear, uma vez que a estrutura produtiva de um país impõe
condições internas não só à política económica internacional, mas também à política
externa, em termos de parceiros comerciais e de integração regional.
Bernal Meza (2000) afirma que a análise da política externa não pode ser separada do
modelo de desenvolvimento ou da economia internacional. O modelo de desenvolvimento
inclui “a forma como a política e a economia se articulam, entre o Estado e o mercado,
em determinado contexto. Cada modelo possui a sua própria forma de acumulação,
produção e distribuição de riqueza, além de uma estratégia de inserção estrangeira. Por
isso, os padrões cambiais, as regulamentações do comércio externo e as exigências nas
negociações externas serão diferentes” (Zelicovich, 2012: 6). Ou seja, as condicionantes
internas da ação externa dos países sul-americanos em relação à região asiática, a
influência do modelo produtivo e os papéis do Estado e do mercado, devem ser
considerados centrais na definição das decisões económicas.
Cada modelo de desenvolvimento possui uma estratégia internacional específica, que
pode ser entendida como a estratégia utilizada pelos Estados na sua interação com o
sistema internacional. Segundo Lorenzini (2011), essa estratégia traduz as escolhas
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feitas por um Estado quanto às orientações e diretrizes de política externa que
implementa para se relacionar com outros atores em diferentes esferas, como a política,
a económica e a de segurança.
Um elemento altamente determinante nas estratégias económicas internacionais dos
países em estudo é a preexistência de um modelo exportador primário que, no caso da
Argentina, se combina com um modelo industrial baseado em acordos regionais (Mercado
Comum do Sul [MERCOSUL, na sigla espanhola]) e principalmente orientado para o
mercado interno e latino-americano. Este último também pressupõe “uma estratégia
gradual, na qual a proteção e a ação económica do Estado desempenham um papel
central, com o objetivo de ter mais autonomia do centro” (Guillén, 2008: 25).
Em conclusão, os dois países apresentam estruturas produtivas heterogéneas que afetam
diretamente o modo como a inserção económica internacional ocorre, recorrendo assim
às condições materiais sobre as quais as estratégias externas são construídas, e
refletindo diferentes formas de interação e intervenção entre Estado e mercado, que
apresentam um modelo de desenvolvimento distinto.
Diversificação, neoextrativismo e o papel das economias emergentes
No icio do século XXI, e principalmente a partir da crise de 2008, os Estados sul-
americanos optaram por ampliar os seus parceiros comerciais para aumentar sua
autonomia, melhorar a sua inserção internacional e mitigar os efeitos da crise,
diversificando parceiros e atraindo investimentos. A combinação de condições internas,
um contexto económico internacional instável e a concorrência crescente entre os países
em desenvolvimento por participações de mercado e investimentos favoreceram a
aproximação da América do Sul à China e, em menor medida, às principais economias
do Sudeste Asiático e à Índia.
A diversificação tornou-se uma ferramenta para alcançar níveis mais elevados de
autonomia reduzindo a dependência económica e política, e também para evitar a
discriminação dos processos de integração e melhorar a participação na economia
mundial de forma a não acabar na periferia (Olivet, 2005). A Ásia Pacífico, com as suas
elevadas taxas de crescimento económico, surgiu como a melhor opção de inserção
económica alternativa aos parceiros tradicionais. O resultado, aliado às condições
regionais asiáticas, tem sido a multiplicação de parceiros comerciais na maioria dos
países da região tornando-se os países asiáticos importantes destinos das exportações
sul-americanas, com a China como protagonista.
Nesse sentido, observamos que, no caso da Argentina, houve uma redução da
concentração das exportações nos cinco primeiros destinos entre 2003
5
e 2019:
enquanto em 2003 representava 51%, em 2019 caiu para 41% (Brasil, China, Estados
Unidos, Chile e Vietname). No caso do Chile, observamos uma concentração crescente
das vendas no mesmo período para os seus cinco principais parceiros de destino, mas
um envolvimento crescente dos mercados asiáticos mais importantes. Em 2003, 47%
5
Selecionamos o ano de 2003 porque o consideramos o início do impacto do boom das commodities
aumento rápido dos preços das commodities devido à crescente procura por parte das economias
emergentes - na América Latina, iniciado em 2002, o que permitirá ver a mudança durante a diversificação.
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das exportações do país foram para os seus principais parceiros, enquanto em 2019 essa
participação aumentou para 66% (China, Estados Unidos, Japão, Coreia do Sul e Brasil)
(UN Comtrade, 2020).
Observa-se que o processo de diversificação dos destinos das exportações revela
resultados positivos no caso da Argentina, enquanto no caso do Chile ocorreu o contrário.
Entendemos que a assinatura de TLCs bilaterais com economias como os Estados Unidos
e a China tem levado a uma maior concentração de parceiros comerciais para as
exportações chilenas.
Relativamente à composição do cabaz de exportações, observa-se uma concentração
crescente de produtos primários e derivados nas exportações sul-americanas. Esta
concentração está ligada à divisão internacional do trabalho, que tem levado ao
crescimento económico dos países asiáticos e à melhoria do nível de vida dos seus
cidadãos, conduzindo ao aumento no consumo de commodities (Frechero, 2013),
impulsionando assim as exportações de produtos primários sul-americanos.
Apesar desse fenómeno, notamos que, nos casos escolhidos, houve uma distribuição
constante da participação de cada uma das grandes áreas nas exportações entre 2005 e
2015. No caso da Argentina, em 2005 as exportações de produtos manufaturados
representaram 30,7% do total, e de produtos primários 69,3%; enquanto em 2015, os
manufaturados representavam 29,4% e os produtos primários 70,6% da participação.
No caso do Chile, o cenário é semelhante no que diz respeito à estabilidade, embora a
composição do cabaz apresente maior concentração de matéria-prima. Em 2005, os
produtos manufaturados respondiam por 13,7% do cabaz, enquanto os produtos
primários representavam 86,3%. Em 2015, as participações foram de 14,4% e 85,6%,
respetivamente, no total das vendas do Chile para o mundo (CEPAL, 2016)
6
.
Em ambos os casos, o cabaz da exportação possui um elevado componente de produtos
primários e de subprodutos, o que está relacionado com as condições internacionais
referidas anteriormente e com a significativa alta dos preços internacionais das
commodities.
Nacht (2013) e Bittencourt (2012) explicam algumas das implicações que a concentração
das vendas de commodities pode ter no desenvolvimento interno dos países sul-
americanos. Em primeiro lugar, o comércio da América do Sul com a China destaca o
papel da região como fornecedora de matéria-prima. Este facto indica a fragilidade da
estratégia de inserção económica, que é condicionada pelas “oscilações entre boas e más
colheitas (no caso dos produtos agrícolas), bem como pela volatilidade e deterioração
dos termos de troca” (Nacht, 2013: 151). Em segundo lugar, Bittencourt (2012) afirma
que o elevado peso dos produtos primários nas economias sul-americanas e a crescente
concorrência com a China em áreas industriais - em particular com o MERCOSUL -
representam um problema para o desenvolvimento sul-americano a longo prazo.
Estas mudanças voltaram a colocar o fenómeno das industrias extrativas em evidência,
juntamente com as respetivas consequências para o desenvolvimento dos países em que
6
Em 2019, as tendências foram semelhantes: no caso da Argentina, os produtos primários representaram
27% do total das exportações; combustível e energia 7%; MOA 37% e Manufaturas de Origem Industrial
(MOI) 29% (INDEC, 2020). No caso do Chile, os produtos minerais representaram 52% do total das
exportações; agricultura, pecuária, silvicultura e pesca 10% e bens industriais 38% (SUBREI, 2020).
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representa um traço central nas suas estruturas produtivas (Gudynas, 2012). Gudynas
(2009) recorre ao neoextrativismo progressivo para descrever o fenómeno do século XXI
na América do Sul, onde se combinam diferentes premissas: a) o desenvolvimento é
concebido a partir de setores extrativos; b) há maior presença e atuação ativa do Estado,
que procura a legitimação através da redistribuição do excedente obtido; c) inserção
internacional dependente de matérias-primas e subordinada aos centros de poder; d)
aumento da fragmentação territorial, impactos socioambientais, entre outros.
Na América do Sul, esse fenómeno manifesta-se nas atividades extrativas, como o
desenvolvimento e aprofundamento da mineração a céu aberto já existente e na
prospeção e exploração de petróleo. Também houve uma mudança na prática da
agricultura, e as monoculturas de exportação, como a soja, foram encorajadas (Gudynas,
2009). Slipak (2012) acrescenta que os preços das commodities geram um alto custo de
oportunidade se os fatores de produção não forem destinados a essas atividades,
facilitando a continuidade desse modelo. Além disso, até meados de 2014, houve uma
valorização da moeda nacional, o que aumentou o incentivo à importação de bens médios
e finais, e à exportação de produtos primários e MOA (Durán Lima e Pellandra, 2017).
Maristella Svampa (2019), que cunhou o conceito de consenso de commodities para
explicar as exportações em larga escala de produtos primários, o crescimento económico
e o aumento do consumo devido ao neoextrativismo, afirma que as oportunidades
económicas que o aumento dos preços e da procura das commodities geraram conduziu
a outro conceito: ilusão desenvolvimentista. Segundo Svampa, os governos regionais -
progressistas ou conservadores - pensaram que seria possível, graças a essas novas
aberturas económicas, encurtar a distância com os países industrializados para alcançar
o desenvolvimento.
Na verdade, as fortes receitas que os Estados sul-americanos m recebido como
resultado deste tipo de exportações desencorajam o desenvolvimento da indústria
nacional e sustentam a continuidade de uma troca desfavorável à região sul-americana
(Slipak, 2012; Nacht, 2013). Observa-se a ausência de uma política industrial na maioria
dos países da região e, naqueles onde existe, apresenta características defensivas, o que
não possibilita a adaptação a novos modelos tecnológicos (CEPAL, 2016).
Nesse sentido, esse tipo de economia assente em commodities, sem uma política de
inovação, tem revelado o problema da falta de diversificação da matriz produtiva. A
Quarta Revolução Industrial é caracterizada pelo desenvolvimento e implantação da
inteligência artificial, internet das coisas, fabrico de aditivos, biotecnologia, big data, e
block chain, entre outros, e os países latino-americanos atrasaram-se nessas áreas.
Numa economia global movida pelo conhecimento, a região da América Latina atribui
escassos recursos à investigação e desenvolvimento, e os atribuídos representam apenas
0,6% do PIB regional (RICYT, 2019) e, como consequência, possui um número limitado
de investigadores na área STEM, falta de incentivos à investigação e fraca produção de
patentes e licenças (representando apenas 2% do total mundial) (OMPI, 2020).
Assim, a dependência desse tipo de especialização produtiva, assente em produtos
intensivos em trabalho e em recursos naturais, aumenta a vulnerabilidade do Estado face
às mudanças externas - muitas vezes vinculadas a fatores climáticos, sociais e políticos
- (Nacht, 2013) e, ao mesmo tempo, diminui a sua margem de autonomia económica,
comercial e política. Para completar o cenário, esse modelo de inserção fortalece a
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presença do investimento estrangeiro direto (IED) voltado para a extração de recursos
naturais ou para o seu processamento básico, reforçando o padrão de especialização da
região e fortalecendo o desenvolvimento de atividades de baixo conteúdo tecnológico
(Dussel Peters e Armony, 2018).
Para concluir, a estrutura económica e produtiva dos países sul-americanos é afetada
não pelos danos nos termos de troca, mas também pela desaceleração do IED chinês,
bem como pelas suas exportações e importações e das dos países do Sudeste Asiático e
da Índia. Este facto denota a vulnerabilidade desses países focados num modelo de
desenvolvimento assente em produtos de pouco valor acrescentado.
Estratégias internacionais distintas em relação ao Leste Asiático: Chile e
Argentina
Como os modelos de desenvolvimento da Argentina e do Chile apresentam diferenças
estruturais, as suas estratégias económicas internacionais também apresentam
características distintas.
Com relação ao Chile, a estratégia de inserção internacional baseia-se nas premissas da
abertura comercial unilateral, na liberalização financeira e na desregulamentação
económica, que atribui prioridade ao regionalismo aberto e à assinatura de acordos
preferenciais e de livre comércio. Os principais resultados deste modelo, promovido entre
1973 e 1990 e continuado pelos governos democráticos até agora, têm sido o
crescimento constante das exportações de recursos naturais, a concentração em grandes
parceiros comerciais extrarregionais, a diminuição das exportações não tradicionais e
desincentivo ao desenvolvimento da indústria manufatureira, entre outros (Aninat del
Solar, 2007).
Nesse sentido, e com uma visão pragmática de inserção, em termos económicos, a
política externa chilena seguiu uma agenda comercial orientada para o crescimento
através das exportações primárias (Colacrai e Lorenzini, 2005). Na esfera política, as
instâncias de negociação multilateral são privilegiadas e desempenharam um papel
preponderante na reaproximação do país à Ásia-Pacífico (Quezada, 2010).
Assim, a região Ásia-Pacífico tornou-se um pilar da política externa chilena. O governo
militar teve a capacidade de ver que o desenvolvimento de novos vínculos com os países
asiáticos poderia amenizar as limitações enfrentadas pelo Estado devido à sua situação
política internacional de isolamento
7
. Os governos democráticos que se seguiram
prosseguiram uma política de aprofundamento e fortalecimento das relações com esses
países, especialmente devido à necessidade de reinserção internacional do país
(Wilhelmy, 2010).
Nesta lógica, estabeleceu-se e consolidou-se uma densa rede de acordos: a assinatura
de TLCs com a Coreia do Sul (2003), China (2006), Malásia (2012), Vietname (2014),
Hong Kong (2014) e Tailândia (2015); a negociação de um TLC com a Indonésia, um
Acordo de Parceria Económica com Singapura (denominado P-4 em 2008) e um Acordo
7
O governo militar (1973-1990) sofreu restrições internacionais devido às violações de direitos políticos,
sociais e humanos.
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de Comércio Preferencial com a Índia (ACP) (2007). Algumas condições que favoreceram
essa aproximação dinâmica foram o complemento económico, a necessidade chilena de
grandes mercados para as suas exportações e a política de abertura e liberalização
comercial asiática, que também privilegiou a assinatura do TLC. Soma-se a isso a
crescente procura asiática por recursos para sustentar um processo de industrialização
em rápido desenvolvimento, que tornou natural a aproximação ao país transandino,
primeiro produtor e exportador de cobre e derivados.
No caso da Argentina, e tendo em consideração o período desde o restabelecimento da
democracia até agora, o modelo de desenvolvimento tem variado, desde a substituição
de importações por um modelo neoliberal nos anos 90, e por outro neo-
desenvolvimentismo de 2003 a 2015. Assim, a política externa e as estratégias de
inserção internacional passaram por mudanças e ajustes com cada um desses modelos.
A única característica que prevalece desde o fim da Guerra Fria é a adoção de um
regionalismo fechado, com o objetivo de ampliar os mercados internos e desenvolver
uma política de industrialização.
Historicamente, a política externa da Argentina em relação à Ásia tem sido escassa
porque a região era considerada distante dos interesses locais. Ganhou visibilidade na
década de 80, quando um grupo de países emergiu na economia internacional. Sob o
governo de Alfonsín, deu-se um novo impulso relativamente à região asiática, devido à
necessidade de obter novas fontes de financiamento externo, bem como de novas
alternativas de inserção internacional (Cardozo, 2008). A principal característica das
ligações com esta região têm sido os aspetos comerciais e económicos, que apenas em
poucas ocasiões foram acompanhados por iniciativas políticas governamentais. A maior
parte dessas ações concentrou-se na década de 90, quando a região do Sudeste Asiático
recebeu grande atenção por parte do governo e da sua diplomacia (Baroni & Rubiolo,
2013).
A saída do plano de conversibilidade pela desvalorização da moeda nacional em 2002,
aliada ao aumento do preço internacional das commodities, favoreceu a adoção de um
modelo de crescimento económico baseado nas exportações com alta componente de
produtos primários e MOA, cujos principais destinos são as economias asiáticas. Da
mesma forma, a abertura limitada do mercado e o regionalismo fechado possibilitaram
a continuidade do processo de industrialização, garantindo mercados latino-americanos
para as exportações industriais do país.
Tendo em conta essa dupla lógica de inserção comercial, a região asiática ganhou
relevância na agenda externa argentina como recetor das exportações agrícolas, em linha
com a crescente procura da China, do Sudeste Asiático e da Índia. A política externa para
esses países acompanhou a tendência e, gradualmente, as ações políticas de abordagem
aos principais mercados multiplicaram-se através de visitas de Estado ao mais alto nível,
missões comerciais e assinatura de diversos acordos bilaterais, entre outros (Rubiolo,
2017).
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O comércio como chave da aproximação: características e implicações
A dimensão comercial tem sido fundamental tanto para a Argentina como para o Chile
nos seus vínculos bilaterais com a Ásia. Em linhas gerais, as nações asiáticas tornaram-
se parceiros importantes nos últimos 15 anos. As diferenças residem principalmente na
participação da China, do Sudeste Asiático e da Índia como mercados de destino e origem
das mercadorias dos dois países sul-americanos.
No caso da Argentina, a China é o terceiro destino de vendas e a segunda de origem a
nível global. Desde 2008, tem havido um aumento constante das importações
provenientes deste mercado: em 2018 o total de mercadorias provenientes da China
representou 19% das aquisições globais da Argentina. Enquanto isso, as vendas da
Argentina tiveram um movimento flutuante, o que levou a uma redução da percentagem
destinada à China para 6,8% em 2008. Essa informação revela a relação assimétrica
entre exportações e importações, o que provoca um saldo comercial negativo constante
para a Argentina em relação ao gigante asiático que, desde 2014, ultrapassa os 6.000
milhões de dólares (ALADI, 2019; UN Comtrade, 2020). Ao mesmo tempo, percebemos
que a Argentina é mais dependente do mercado chinês como fornecedor de produtos
manufaturados do que como destino das vendas locais, onde se observa uma maior
diversidade.
A relação comercial do Chile com a China é diferente da que tem a Argentina. Em primeiro
lugar, o Chile e a China têm um TLC em vigor desde outubro de 2006, que teve um
impacto no vínculo comercial bilateral: tanto as exportações chilenas como as
importações do gigante asiático têm tido um ritmo de crescimento constante desde 2008,
tendo a China passado a ser o primeiro parceiro comercial (como mercado de destino e
origem) do país transandino. Em 2018, os produtos chineses representaram 23% das
compras mundiais do Chile, e o Chile destinou 33% das suas exportações à China. Em
ambos os sentidos, há um crescimento constante em relação ao ano anterior desde 2008
(UN Comtrade, 2020). Ao contrário do caso da Argentina, vemos que o comércio externo
do Chile apresenta um elevado e crescente grau de dependência do mercado chinês, o
que revela uma tendência progressiva para uma maior concentração comercial.
Contudo, se examinarmos os meros relativamente à relação do Chile com o Sudeste
Asiático, a situação é bastante diferente, pois a concentração no mercado chinês
prejudicou os laços comerciais com parceiros da região menos importantes, mas mais
semelhantes económica e politicamente. O Sudeste Asiático é um parceiro secundário:
as exportações têm apresentado uma tendência decrescente, que em 2018 atingiu um
total de 1000 milhões de dólares relativamente às seis principais economias. Esse
número representa apenas 1,4% do total das vendas chilenas para o mundo. No que diz
respeito às importações, embora ligeiramente superiores, também não foram
representativas: um total regional de 2300 milhões de dólares, que representam 3,2%
das exportações mundiais do Chile (UN Comtrade, 2020). Em ambos os sentidos, vemos
o quão irrelevante o Sudeste Asiático é como mercado de inserção comercial para o Chile.
No caso da Índia, a situação é semelhante. Embora exista um Acordo de Comércio
Preferencial que impulsionou as exportações chilenas e facilitou a diversificação dos
mercados, não é um parceiro estratégico para o Chile, apesar do potencial do seu
mercado. Entre 2012-2018, a participação média como destino das exportações do Chile
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foi de 2,7%, sendo 2014 o ponto mais alto (3,4%), com exportações de 2571 milhões
de dólares. Em relação às importações, não apresentam salto quantitativo, pois
representam menos de 1% do total das importações do Chile no mesmo período. Estes
números indicam uma balança comercial positiva constante para o país transandino (UN
Comtrade, 2020).
Por outro lado, a relação comercial da Argentina com o Sudeste Asiático passou por um
processo de aprofundamento único na América do Sul desde 2003, com maior
intensidade desde 2008, o que permitiu evitar a concentração no mercado chinês como
destino de vendas: em 2018, as vendas argentinas às seis principais economias do
Sudeste Asiático ultrapassaram os 4.500 milhões de dólares, o que representa 7% das
vendas totais mundiais da Argentina. Entre os países de destino da região, o Vietname e
a Indonésia destacam-se como principais compradores. Por sua vez, as importações, que
também têm apresentado crescimento constante, não são importantes para o comércio
argentino, pois, atualmente, representam apenas 4% das compras totais do país (UN
Comtrade, 2020).
No que diz respeito à relação comercial com a Índia, tem havido um aumento progressivo
do seu papel como destino das exportações da Argentina desde 2010, com maior
destaque a partir de 2014, quando foi incluída no Programa de Aumento e Diversificação
das Exportações
8
. A sua participação média como destino das exportações no período
2012-2018 foi de 2,7%. as importações da Índia indicam um planalto maior e fraco
crescimento, com uma participação de 0,9% em 2012 que passou para 1,3% em 2019.
Nesse caso, também podemos observar um saldo comercial positivo para o país sul-
americano (UN Comtrade, 2020).
O que é peculiar na relação da Argentina com a China, o Sudeste Asiático e a Índia é a
configuração do comércio triangular: a China concentra o principal fluxo de importações,
enquanto as exportações vão, principalmente, para os mercados do Sudeste Asiático e
da Índia. Assim, a Argentina traçou uma estratégia de inserção comercial com maior
diversificação de mercados que o Chile, além de agregar mercados que não são grandes
economias mundiais, como o Vietname e a Indonésia, e outros países emergentes como
a Índia, à lista dos principais parceiros, configurando uma inserção comercial Sul-Sul.
Uma das principais características do comércio dos dois países com o Leste e o Sul da
Ásia é a concentração das exportações em poucos produtos. No caso do Chile, quatro
produtos respondem por 83% das vendas para a China: minério de cobre e derivados,
minério de ferro e celulose. As exportações para a Índia seguem um padrão semelhante,
com mais de 90% concentradas em três produtos: minério de cobre e derivados, celulose
e iodo (ALADI, 2019).
As exportações da Argentina também revelam um alto nível de concentração em
produtos agrícolas. As vendas para o Sudeste Asiático são, principalmente, soja, milho e
trigo, que representam cerca de 85% do que é vendido para a região. Os produtos
enviados para a China são sobretudo soja, azeite, óleo de peixe e óleo de girassol, e
respondem a 82% do que é vendido ao país. No caso da Índia, a concentração é maior,
8
Programa iniciado em 2013 com o objetivo de melhorar as exportações da Argentina, tanto quantitativa
como qualitativamente, através da diversificação de parceiros e produtos.
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pois o principal produto exportado é óleo de soja, cuja participação oscilou entre 72% e
90% no período 2012-2018 (ALADI, 2019).
Como referido anteriormente, as importações sul-americanas de produtos chineses têm
passado por um processo crescente desde o início de 2000. As duas principais áreas de
importação são têxteis e confeção, IT, máquinas e eletrónica (ALADI, 2019). O acelerado
processo de crescimento das importações aumentou a preocupação governamental e
empresarial quanto ao impacto na produção local, no emprego e na concorrência com
outros mercados, entre outras variáveis.
A concentração produtiva e exportadora do comércio dos países sul-americanos na China,
Sudeste Asiático e a Índia tem muitos impactos na sua inserção no comércio externo.
Com maior ou menor grau de abertura, as estratégias adotadas não se tornaram
ferramentas eficientes para o desenvolvimento sustentável do comércio. A Argentina e
Chile não desenvolveram economias de escala que lhes permitam diferenciar os seus
produtos e desenvolver um tipo de comércio intraindustrial. Portanto, a proporção mais
relevante na troca é dada pelas vantagens comparativas, seja pelo fornecimento de
recursos naturais, pelos baixos custos da mão de obra, pela sua posição geográfica, ou
pela combinação desses e de outros fatores. Nesse sentido, a abertura comercial que
delinearam não se revelou eficaz para conseguir uma melhor posição no mercado através
de ligações a longo prazo de difícil substituição (De la Cruz y Marín, 2011).
Assim, essas características revelam uma economia política dependente que tenta
também permear todos os aspetos da cadeia produtiva, o que aprofundou o estatuto
periférico deste tipo de países e restringiu as suas capacidades e possibilidades de
desenvolvimento autónomo (Giraudo, 2019).
Considerações finais
Muitas condições internacionais, regionais e internas, permanentes e ocasionais, devem
ser consideradas na análise das estratégias internacionais sul-americanas. Algumas
dessas condições, como os preços internacionais das commodities, a procura de
matérias-primas e a contração dos fluxos comerciais mundiais, entre outras, afetam
todas as economias da região, devido às circunstâncias semelhantes de inserção
comercial extrarregional que partilham: fornecedores de matérias-primas e membros de
cadeias de valor a jusante. No entanto, existem diferenças internas que geram certas
condições, como os níveis de comércio inter-regionais, a procura latino-americana, e
acordos comerciais regionais, entre outros, que têm impactos díspares nas políticas de
inserção do comércio externo dos países da região.
Numa primeira conclusão, as estratégias internacionais assentes na exportação de
matérias-primas revelaram-se bem-sucedidas enquanto plataformas para o crescimento
económico e para a superação da crise económica, especialmente no caso da Argentina.
Da mesma forma, os fluxos cambiais gerados pelo crescimento das exportações para a
China, o Sudeste Asiático e a Índia, permitiram diminuir a dependência do financiamento
externo, assim como diversificar os mercados de exportação, logo maiores margens de
autonomia na tomada de decisões políticas e económicas.
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No entanto, na última década, os laços com a China tornaram-se mais fortes,
contribuindo para uma nova relação de dependência. Entre outros efeitos, destacam-se
a elevada concentração das exportações para Pequim, especialmente no caso do Chile,
e a crescente competição por mercados regionais. Presos a uma economia voltada para
a exportação de commodities, esses países têm revelado deficiência de capacidade e
autonomia para transformar a sua matriz produtiva.
Aqui, as características das estratégias de inserção externa adotadas por cada Estado no
plano económico tiveram diferentes implicações, em função das condições produtivas
internas. No caso do Chile, observamos um amplo processo de abertura baseado no livre
comércio com a China, ao passo que na Argentina encontramos políticas seletivas de
proteção e privilégio do mercado nacional e regional, vinculadas ao atual processo de
integração. As diversas orientações de inserção económica externa destes dois países,
que representam os dois modelos de desenvolvimento e respetivas estratégias de
inserção externa mais alargadas na América do Sul, constituem obstáculos ao acordo de
políticas regionais comuns frente aos desafios colocados pela presença da China nas
dimensões comerciais e financeiras da região.
Da mesma forma, as diferenças dos impactos de acordo com o setor produtivo afetado
também dificultam o desenho de políticas consistentes e duradouras que procurem
equilibrar o papel das economias asiáticas, especialmente da China, dado o seu efeito
negativo na indústria regional. Assim, os Estados devem decidir quais os setores a
favorecer e quais a desprezar. No caso do Chile, a escolha foi um modelo aberto que
beneficia o setor primário de exportação e relega o industrial. Quanto à Argentina, ainda
conflito: por um lado, favorecer o setor agcola, que é a principal fonte de divisas,
por outro, continuar a proteger um amplo setor industrial que, embora sólido em alguns
pontos, ainda se encontra em desenvolvimento.
A falta de inovação na estrutura produtiva de ambos os países limita as possibilidades de
crescimento e desenvolvimento económico, uma vez que o acesso e o avanço das novas
tecnologias são essenciais, não só para a produtividade e competitividade internacional,
mas também para evitar o aumento progressivo do hiato tecnológico e, como
consequência, das condições de dependência estrutural.
Nesse sentido, a construção de políticas conjuntas a nível regional é dificultada por essas
diferenças, pois os interesses subjacentes que sustentam as decisões dos Estados são
opostos. Enquanto os dirigentes sul-americanos não considerarem a consolidação de uma
esfera regional ampliada uma prioridade para a inserção económica e comercial, de forma
a estabelecer vínculos extrarregionais, como os TLCs ou outros, é difícil prever uma forma
conjunta de responder aos efeitos negativos produzidos pela presença da China e, cada
vez mais, de outros grandes países asiáticos nas economias da região. O perigo é a
intensificação de uma estratégia de inserção dependente da exportação de produtos com
zero ou pouco valor acrescentado e a perda gradual da importância internacional devido
à dependência crescente.
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A CONSTRUÇÃO DA COOPERAÇÃO EM INTELLIGENCE NA UNIÃO EUROPEIA
JOÃO ESTEVENS
jestevens@fcsh.unl.pt
Investigador doutorando no IPRI-NOVA, fazendo parte do grupo de investigação ‘Democracia e
Governance’, onde se encontra a terminar o doutoramento em Estudos sobre a Globalização
(NOVA FCSH, Portugal), com uma tese dedicada à construção do poder punitivo democrático.
Bolseiro de investigação no ICS-ULisboa, fazendo parte do grupo de investigação ‘Ambiente,
Território e Sociedade’. É mestre em Ciência Política e Relações Internacionais (NOVA FCSH) e
licenciado em Economia (NOVA SBE) e em Ciência Política e Relações Internacionais (NOVA
FCSH). É também pós-graduado em Gestão de Informações e Segurança (NOVA IMS). Tem
desenvolvido investigação nas áreas da demografia política, das informações, dos estudos de
segurança, da democracia e das práticas punitivas do Estado
Resumo
A segurança europeia apresenta uma natureza transnacional devido às interdependências das
sociedades globalizadas. Daqui deriva a necessidade de cooperação e de partilha de
informações de segurança entre os Estados-Membros. Este artigo apresenta uma revisão
crítica ao funcionamento da comunidade de informações na União Europeia (UE), fazendo uma
revisitação histórica que nos permite compreender se a cooperação transnacional tem, ou
não, caminhado no sentido de uma maior integração. Para além de mapear os organismos
que fazem parte desta comunidade, o artigo parte de um racional teórico da análise política
para estruturar os desafios da partilha de informações de segurança na escala comunitária.
Argumenta-se que a capacidade de produção de informações de segurança próprias por parte
da UE é muito reduzida, estando dependente da partilha de informações efetuada pelos
serviços nacionais. Adicionalmente, afirma-se que a partilha de informações policiais se
encontra muito mais estruturada do que a partilha de informações de segurança. Por último,
conclui-se que a comunidade de informações europeia acolhe diferentes culturas de
informações no seu interior e centra as suas atividades numa cooperação difusa, que enfrenta
os limites da soberania nacional, os défices de interoperabilidade e dificuldades no
estabelecimento de relações institucionais de confiança.
Palavras-chave
Informações, segurança, cooperação, culturas de informações, União Europeia
Como citar este artigo
Estevens, João (2020). A construção da cooperação em intelligence na União Europeia. In
Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 11, 2 Consultado [online] em data da
última consulta, DOI: https://doi.org/10.26619/1647-7251.11.2.6
Artigo recebido em Abril 7, 2020 e aceite para publicação em Setembro 22, 2020
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 11, Nº. 2 (Novembro 2020-Abril 2021), pp. 93-108
A construção da cooperação em intelligence na União Europeia
João Estevens
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A CONSTRUÇÃO DA COOPERAÇÃO EM INTELLIGENCE NA UNIÃO
EUROPEIA
JOÃO ESTEVENS
Introdução
De acordo com o mero dois do artigo 4.º do Tratado da União Europeia (TUE), fica
patente que “[A] União respeita as funções essenciais do Estado, nomeadamente as que
se destinam a garantir a integridade territorial, a manter a ordem pública e a
salvaguardar a segurança nacional. Em especial, a segurança nacional continua a ser da
exclusiva responsabilidade de cada Estado-Membro”. Também o artigo 73.º do Tratado
sobre o Funcionamento da União Europeia (TFUE) reitera o papel dos Estados-Membros
na execução das suas políticas de segurança nacional: Os Estados-Membros o livres
de organizar entre si e sob a sua responsabilidade formas de cooperação e de
coordenação, conforme considerarem adequado, entre os serviços competentes das
respetivas administrações responsáveis pela garantia da segurança nacional”. Este
enquadramento jurídico releva para a concretização de uma segurança
intergovernamental na UE, de onde emergem as práticas de cooperação entre serviços
e agências de informações. Tal como argumentado por Aden (2018), a cooperação na
comunidade de informações europeia é muito mais formal e estruturada em termos de
cooperação policial do que entre ‘serviços secretos’, principalmente devido a um
enquadramento legal da cooperação policial em termos de regulação europeia,
registando-se sucessivos esforços de integração nas revisões introduzidas pelos Tratados
de Maastricht, Amsterdão e Lisboa. Ainda assim, o Tratado de Lisboa, apesar de alargar
o espaço de atuação da UE em matérias de segurança, manteve os princípios do
intergovernamentalismo, desde logo as decisões do Conselho por unanimidade e a
possibilidade de mecanismos de travão (Brandão, 2010: 60).
As dificuldades são maiores no que concerne a atuação concreta e operacional, apesar
de assistirmos a presidentes e primeiros-ministros a assinarem tratados, a expressarem
publicamente a necessidade de cooperação entre os Estados-Membros para fazer face a
ameaças comuns, ou a apoiarem documentos simbólicos como a Estratégia de Segurança
Europeia (Cross, 2011:76). Todavia, o contexto da segurança na UE tem sofrido algumas
alterações em função dos vários atentados terroristas, evidenciando a necessidade de
uma maior partilha de informações de segurança entre os Estados-Membros (Costa,
2016: 91). Adicionalmente, a saída do Reino Unido da UE exige uma reorganização da
comunidade de informações da União (Glees, 2017; Hillebrand, 2017; Segell, 2017).
Assim, ainda que a segurança europeia tenha vindo a seguir um percurso de progressiva
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A construção da cooperação em intelligence na União Europeia
João Estevens
94
integração em matérias centrais da soberania nacional - terrorismo, tráfico humano e de
droga, cibercriminalidade, controlo de fronteiras - esbatendo algumas separações entre
as fronteiros internas e externas dos Estados-Membros e aceitando uma parcial de
governação da UE nestas áreas (Cross, 2011), a cooperação na partilha de informações
de segurança mantém-se complexa e volátil (Gruszczak, 2016: 271).
O campo de estudo das informações ainda se encontra em construção e tem-se
desenvolvido sobretudo no contexto anglófono, avançando teoricamente a partir de
enquadramentos disciplinares do Direito, da História, da Ciência Política e das Relações
Internacionais (Gill e Phytian, 2018). São muitas as definições de informações
estratégicas, umas mais restritivas que as limitam a um processo que alimenta a
segurança nacional, outras mais abrangentes, que percecionam as informações como o
produto de um processo que origina conhecimento para alimentar a decisão estratégica
com interesse e relevância em diferentes áreas (Gill e Phytian, 2006). Conceptualmente,
é necessário distinguir entre informações de segurança e informações policiais. As
primeiras têm um caráter estratégico, oferecendo um entendimento que contribui para
decisões, políticas e gestão de recursos para se atingirem objetivos no longo prazo com
vista a garantir a segurança nacional. As segundas são orientadas para a segurança
interna, designadamente no que concerne a prevenção da criminalidade violenta e de
incidentes de ordem pública, podendo, ainda, inserir-se na esfera da investigação
criminal (Moleirinho, 2009: 82). No âmbito deste artigo consideram-se as informações
estratégicas de segurança, que se inscrevem como um elemento essencial dos sistemas
de segurança e defesa nacional, sendo, todavia, concebidas de forma dissemelhante
entre os Estados-Membros (Coqc, 2017). A globalização acarretou o entendimento amplo
da segurança nacional, que inclui, atualmente, preocupações com diversos riscos
transnacionais, para além das tradicionais ameaças político-militares (Buzan, 1991;
Hough, 2004; Williams, 2008; Kaldor e Rangelov, 2014), tendo exigido uma natural
expansão das áreas de intervenção das informações. No entanto, a globalização dos
serviços de informações não tem sido assim tão rápida, mantendo-se as mesmas
sobretudo no espaço das jurisdições nacionais (Aldrich, 2009). muitos serviços e
agências de informações sem capacidade para recolher e analisar todas as informações
disponíveis, desde logo porque não se encontram dotados com recursos suficientes, ao
contrário de países com “grandes escolas” de intel como EUA, Rússia, Reino Unido, Israel
ou China. As práticas cooperativas entre as comunidades de informações são a solução
e acontecem quer ao nível nacional - com outras forças e serviços de segurança - quer
ao vel internacional - com serviços congéneres. A cooperação internacional é
maioritariamente bilateral e ocorre em função de interesses comuns, de culturas de
informações partilhadas, de alianças históricas, ou da proximidade geográfica e
estratégica com diferentes regiões do mundo (Rudner, 2004; Aldrich, 2009).
É dentro do enquadramento supramencionado que interessa aferir os moldes em que se
organizam as informações de segurança no âmbito da UE. Este artigo trata-se de uma
investigação exploratória e assume a forma de ensaio predominantemente descritivo,
que tem por objetivo dar resposta a três questões fundamentais: (1) Quais os organismos
e os mecanismos de cooperação existentes no âmbito das informações de segurança na
UE?; (2) Quais os desafios que se colocam a uma maior cooperação?; e (3) Qual o papel
que a UE poderá assumir? A estrutura do artigo segue as questões orientadoras, existindo
três secções, a primeira identificando os organismos que intervêm no processo e de que
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forma, a segunda destinada à apresentação de um modelo de análise dos desafios que
se colocam à cooperação nas informações e uma terceira secção onde se apontam
possíveis caminhos de atuação para a UE. Metodologicamente, a primeira secção segue
uma abordagem compreensiva da literatura para mapear a comunidade de informações
existente, bem como a sua evolução; a segunda secção parte do contributo de Goodin e
Tilly (2006) na análise política para introduzir um modelo que permite analisar e
estruturar os desafios enfrentados em diferentes dimensões; por último, a terceira
secção relaciona as duas anteriores, de modo a considerar o papel e o posicionamento
da UE neste processo, seguindo aqui uma visão institucional. Considera-se que o
contributo deste artigo deriva, sobretudo, da sistematização da informação acerca de um
tema pouco explorado no domínio das ciências sociais.
O argumento aqui apresentado é o da existência de um sistema de informações europeu
não integrado e fragmentado, que depende de sobremaneira da produção e da gestão
das informações por parte dos serviços e agências de informações nacionais dos Estados-
Membros, apontando para uma comunidade de informações da UE onde prevalecem os
interesses nacionais e onde convivem culturas de informações distintas. Deste modo, é
um sistema onde se assinalam algumas sobreposições e dificuldades na partilha de
informações, identificando-se, também, fragilidades no posicionamento da UE, pois a
cooperação necessária para fazer a face a muitos riscos e ameaças extravasa os limites
da União e até o do espaço do continente europeu. Ao mesmo tempo, a atuação exigida
apresenta, maioritariamente, um caráter local ou nacional, colocando o nível regional
numa zona ambígua para as operações da comunidade de informações da UE. Assim, o
futuro desta parece estar dependente da evolução institucional do próprio projeto
comunitário e de um eventual aprofundamento da integração em matérias de segurança
e defesa nacionais, bem como da intensidade e da expansão territorial da principal
ameaça partilhada dos vários sistemas de segurança nacional: o terrorismo. Sem uma
maior integração da segurança nacional dos Estados-Membros na escala comunitária -
segurança interna da UE - será impossível pensar num sistema de informações de
segurança comum. Não obstante, a cooperação e a partilha de informações
(especialmente as policiais) na comunidade de informações europeia continuarão a ser
desenvolvidas, com contributos positivos para a Política Externa e de Segurança Comum
(PESC) e para a Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD), ainda que se deparem
com alguns desafios, designadamente os limites da soberania nacional, os défices de
interoperabilidade e o estabelecimento de relações institucionais de confiança dentro e
fora do espaço da UE.
Cooperação e informações na UE: os organismos supranacionais
O desenvolvimento das informações na UE tem acontecido a um ritmo lento, ainda que
se reconheçam os relativos progressos numa cooperação pan-europeia após o 11 de
setembro e o 11 de março (Argomaniz, 2009) e, atualmente, após os sucessivos
atentados terroristas, em particular o de Paris (2015). Porém, a produção de informações
manteve-se centrada na dimensão nacional e não na dimensão comunitária,
transformando a comunidade de informações da UE num projeto de cooperação e de
partilha de informações entre serviços e agências nacionais, que assenta sobretudo numa
estratégia de contraterrorismo (Rudner, 2004; Argomaniz, 2015; Den Boer, 2015). A
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Estratégia Global da União Europeia, de 2016, evidenciou a necessidade de maior partilha
de informações e cooperação entre os Estados-Membros e as agências de segurança da
UE nas atividades de contraterrorismo, bem como um reforço na produção de
informações por parte do Centro de Análise de Informações da UE (IntCen), alimentado
pela cooperação com agências da UE como a Europol e a Eurojust (European Union,
2016). Tem-se assistido a um quadro de cooperação na UE com acréscimos graduais na
partilha de informações e na cooperação policial com particular incidência nas questões
da radicalização violenta, do terrorismo e da criminalidade transnacional (Feiteira, 2016:
286), impactando também nos objetivos traçados pela PESC e pela PCSD.
A partilha de informações é liderada pelos Estados-Membros numa base de partilha
voluntária, o que permite variações na sua intensidade e modalidades, designadamente
ao vel do não comprometimento de relações privilegiadas de algumas agências e
serviços de informações com outros parceiros fora do espaço da UE (Walsh, 2008).
Igualmente, verifica-se alguma desconfiança em relação à qualidade das informações
produzidas por alguns serviços devido à dissemelhança das técnicas de recolha e de
análise que servem de base à produção das informações (Politi, 1998: 12; Grusczak,
2016: 84). Assume-se a confiança como o princípio basilar da cooperação, sendo, no
entanto, vários os desafios que se colocam ao estabelecimento de relações de confiança,
desde logo devido à natureza secreta da produção de informações. Assim, a cooperação
nas informações tende a ser centrada em questões como a cibersegurança, o terrorismo
internacional e o crime transnacional organizado (Bilgi, 2016: 59) e a ocorrer nos
organismos que se seguem.
Clube de Berna
É um fórum de partilha informal e voluntária de informações entre serviços de diferentes
países, criado nos anos setenta do século passado, geralmente reunindo de dois em dois
anos. Atualmente, fazem parte a totalidade dos países da UE, bem como Noruega e
Suíça. Assume-se como uma das principais plataformas de encontro entre os deres dos
serviços de informações nacionais. A sua agenda centra-se na realização de encontros e
conferências, onde se debatem questões técnicas e operacionais das atividades levadas
a cabo pelos serviços de informações nacionais. Mais recentemente, foram criados grupos
de trabalho no âmbito do contraterrorismo e do combate à criminalidade transnacional
organizada, que levaram à criação do Counter Terrorism Group (CTG), em 2001. Este
grupo conta com a participação dos EUA e produz relatórios de avaliação da ameaça
terrorista, que são partilhados não entre Estados-Membros, mas também com o
Conselho da União Europeia. Note-se, todavia, que este grupo opera fora do quadro
institucional da União apesar da sua aproximação à mesma na última década, o
existindo qualquer obrigatoriedade na relevância e qualidade das informações cedidas
pelos serviços de informações nacionais (Walsh, 2006: 631).
Serviço Europeu de Polícia (Europol)
Tal como o Clube de Berna, também na esfera da cooperação policial foi criado um fórum
informal de partilha de informações que reunia diversos pses europeus, nos anos
setenta, designadamente o Grupo de Trevi. Este era formado por um conjunto de
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ministros e altos quadros dos Ministérios da Justiça e dos Assuntos Internos dos Estados-
Membros, muitas vezes entendido como um fórum que potenciou a criação do Espaço de
Liberdade, Segurança e Justiça da UE, consagrado no Tratado de Amesterdão. A Europol
entrou em funcionamento em 1999, possuindo unidades de representação de todos os
Estados-Membros, que são as responsáveis pela intermediação entre as forças e serviços
de segurança nacionais com a Europol. A partilha de informações provenientes dos
serviços nacionais deriva da sua própria iniciativa ou de respostas a questões colocadas
aos serviços nacionais por parte da Europol (Bilgi, 2016: 58). É uma estrutura
fundamental da segurança da UE, que apoia as operações no terreno e funciona como
uma plataforma de informações em matérias policiais-criminais. As suas principais áreas
de atuação são o combate a ameaças provenientes do terrorismo, de redes
transnacionais de tráfico de droga e de lavagem de dinheiro, da contrafação de moeda e
de fraudes, e do tráfico de seres humanos. Nos últimos anos, o papel da Europol tem
sido crescente e as suas áreas de intervenção alargadas, tornando-se num organismo
fundamental no combate ao crime ao vel europeu (Rozée et al., 2013). Em 2015, foi
criado o Centro Europeu de Contraterrorismo (European Counter Terrorism Centre -
ECTC), na sequência dos atentados de Paris de novembro de 2015, que se encontra em
funcionamento desde o início de 2016. Também em 2016, foi criado o Centro Europeu
de Tráfico de Migrantes (European Migrant Smuggling Centre - EMSC), que surge após
esta questão ser apontada como um dos grandes desafios na Agenda Europeia para a
Migração 2015. Neste centro, trabalha-se articuladamente com outras agências da União
como a Eurojust, ao nível da cooperação judicial, e a Frontex, no âmbito da proteção das
fronteiras externas. Ainda que sejam apontadas várias críticas à Europol em termos de
transparência e de responsabilidade (Jansson, 2016), assinala-se a produção e
disseminação aberta de um relatório anual, o Europol Review, que informa das suas
atividades e dos resultados alcançados, contendo, ainda, informações específicas sobre
os tipos de funcionalidades e de sistemas à disposição da Europol, a partir dos quais
presta um apoio coordenado às operações policiais na UE.
Comité Permanente para a Cooperação Operacional em matéria de Segurança Interna
(COSI)
Outro organismo que contribui para a partilha de informações é o Comité Permanente
para a Cooperação Operacional em matéria de Segurança Interna (COSI), criado a partir
do artigo 71.º do TFUE, a fim de assegurar, na União, a promoção e o reforço da
cooperação operacional em matéria de segurança interna. Para isso, fomenta a
coordenação da ação das autoridades competentes dos Estados-Membros, assegurando
cooperação operacional eficaz no domínio da segurança interna da UE, inclusive no
âmbito da aplicação da lei, do controlo das fronteiras e da cooperação judiciária em
matéria penal. Avalia, também, a orientação geral e a eficácia da cooperação operacional
e assiste o Conselho na reação a atentados terroristas ou a desastres naturais. Contudo,
uma vez mais, o se trata de um órgão operacional com autonomia para conduzir
operações, nem para intervir no processo legislativo (Caldas, 2016: 63). É formado por
representantes dos Estados-Membros, apoiados pelos conselheiros de JAI das
representações permanentes, informando periodicamente o Parlamento Europeu e os
Parlamentos nacionais dos seus trabalhos. Os representantes de outros organismos
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envolvidos na segurança interna, como a Europol, a Eurojust e a Frontex, participam com
frequência nas reuniões do COSI.
INTCEN
O Centro de Inteligência e de Situação da União Europeia (Intelligence Analysis Centre -
IntCen existe com diferentes designações desde 1999, sendo integrado no Serviço
Europeu para a Acão Externa (SEAE) em 2010, funcionando diariamente e de forma
ininterrupta. A sua missão está confinada ao fornecimento e análise de informações, em
particular o alerta precoce e a avaliação de ocorrências que possam impactar nas
instituições da UE e nos Estados-Membros, nos domínios da segurança, defesa e
contraterrorismo. Atua como canal de entrada de informações classificadas na UE
provenientes dos serviços e agências de informações civis dos Estados-Membros, sendo
grande parte das suas análises elaboradas com base em informações facultadas pelos
serviços e agências nacionais de informações, pelas autoridades militares nacionais e
pelos diplomatas nas Delegações da UE. Ainda que nem todos os Estados-Membros
possam contribuir para a produção de informações, todos terão acesso às informações
produzidas pelo IntCen. Aquando da partilha de informações com origem nos serviços
nacionais para o IntCen, os primeiros podem definir que outros atores podem aceder
àquelas informações para além dos principais consumidores das informações
disseminadas pelo IntCen. Ou seja, de acordo com o princípio da origem das informações,
aquela que provém de serviços nacionais pode ser negada a deputados europeus, por
exemplo (Cross, 2013: 393). O seu contributo operacional estende-se, por exemplo, ao
fornecimento de informações sobre os destinos, as razões e os circuitos de deslocação
dos terroristas dentro e fora do território da UE. Em 2007, a capacidade do IntCen para
analisar situações fora do espaço da UE foi reforçada através da criação da Capacidade
de Análise Individual (SIAC), que cruza informações civis com as obtidas pela Divisão de
Informações do Estado-Maior da UE, emitindo informações de alerta precoce, de
planeamento da resposta a crises, e avaliações das operações e exercícios levados a cabo
no âmbito da PESC (Caldas, 2016: 64-65).
Trata-se de um organismo que produz informações de apoio ao decisor político, em
particular dirigido ao SEAE, mas assistindo também as presidências do Conselho e da
Comissão Europeia, contribuindo, em simultâneo, para a PESC e para a PCSD, derivado
das suas análises responderem a ameaças provenientes do terrorismo, da proliferação
de armas de destruição massiva e de outros riscos e ameaças de natureza global. Não
obstante, é um organismo que também intervém na recolha de informações,
principalmente a partir de fontes abertas (Open Source Intelligence - OSINT) e
residualmente pela observação direta e presencial em cenários de crise (Human
Intelligence - HUMINT), produzindo informações que não existiriam de outra forma.
Deste modo, o produto das informações do IntCen combina a recolha própria, sobretudo
com recurso a OSINT, com a análise das informações partilhadas pelos Estados-
Membros, tanto civis como militares, e de relatórios diplomáticos (Gruszczak, 2016: 86).
O produto das informações do IntCen efetiva-se através da produção de relatórios
semestrais, relatórios especiais (de resposta a situações de crise ou numa área de
crescente relevância num determinado momento), sumários de apoio ao decisor político
quando solicitados e avaliações de risco, também semestrais, a que se poderão adicionar
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briefings ad-hoc junto das instituições da UE quando seja pertinente. O IntCen não é
uma agência europeia de informações, mas é o mais próximo do que dela existe, tendo
vindo a ser um ator fundamental na coordenação e centralização da cooperação das
informações ao nível europeu e, gradualmente, afirmando-se enquanto produtor de
informações de segurança. Assim, é um organismo fundamental (enquanto produtor e
consumidor de informações) na comunidade de informações da UE (Cross, 2013: 395),
tendo assumido um papel crescente na política externa europeia durante a última década
(Fagersten, 2014: 97).
Centro de Satélites da União Europeia (SatCen)
O SatCen (European Union Satellite Centre) é uma agência criada em 1992 que responde
ao Comité Político e de Segurança (CPS), organismo responsável pela PESC e pela PCSD,
que produz informações relativas ao espaço e a questões geoespaciais, a partir da análise
de imagens de satélite e outras imagens aeroespaciais (IMINT e GEOINT). Assume-se
enquanto organismo das informações militares, desenvolvendo as suas atividades
conjuntamente com outros parceiros como a Agência Europeia de Defesa (European
Defence Agency - EDA) e a Agência Espacial Europeia (European Space Agency - ESA).
Os principais consumidores dos produtos e serviços do SatCen o, para além dos
Estados-Membros, o SEAE, a Comissão Europeia, a Frontex, e outras instituições e
agências da UE. Apesar da GEOINT estar particularmente associada às Forças Armadas,
a verdade é que um interesse crescente na esfera civil, tanto para o setor público,
como para o setor privado. A GEOINT produzida pelo SatCen destina-se sobretudo a
colaborar em programas e missões de ajuda humanitária, em planos de contingência em
situação de crise, nas áreas do controlo de fronteiras, do combate à pirataria a redes de
terrorismo e de criminalidade organizada, no apoio a redes de videovigilância, na
identificação de capacidades militares, no controlo da não proliferação de armas químicas
e de destruição massiva e no apoio a infraestruturas críticas, designadamente em
avaliações de risco e de vulnerabilidades. Note-se que o centro não possui satélites
próprios, pelo que utiliza as imagens de satélites existentes, muitas vezes procedendo à
sua compra, para, posteriormente, os analistas executarem o tratamento das mesmas.
Assim: (1) por um lado o SatCen não comanda os satélites existentes, nem nas suas
tarefas, nem nas suas posições; e (2) muito menos consegue controlar a qualidade do
material recolhido, sendo que os satélites privados de uso comercial muitas vezes
apresentam recolha de imagens com menor resolução àquela que poderia ser necessária
para realizar a avaliação por parte do SatCen (Walsh, 2006: 636).
Estado-Maior da União Europeia (EMUE)
O Estado-Maior da União Europeia, tal como o ComiMilitar, foi uma consequência do
Conselho Europeu de Helsínquia (1999), que abriu espaço para o estabelecimento de
organismos político-militares permanentes, tendo sido, posteriormente, criado em 2001,
e estando, desde 2010, integrado na estrutura do SEAE. É a única estrutura militar
integrada de forma permanente na União, reunindo um conjunto alargado de
especialistas, que utilizam o contributo das informações militares para a elaboração da
PCSD. As suas funções passam, por um lado, pelo aconselhamento em assuntos de
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natureza militar, e, por outro, pelo planeamento, pela avaliação e pela emissão de
recomendações sobre assuntos relacionados com situações de gestão de crise e com a
definição da estratégia militar. Para fazer face a esta missão, o EMUE beneficia de uma
Divisão de Informações, que utiliza informações militares produzidas pelos Estados-
Membros e por outros organismos europeus, para, posteriormente, elaborar relatórios e
avaliações para o Comité Militar, para o SEAE e para outros organismos da UE (Walsh,
2006: 633). O Estado-Maior monitoriza, igualmente, a gestão das operações em curso,
assim como as capacidades militares que os Estados-Membros colocam à disposição da
UE, identificando quais as forças (inter)nacionais que podem ser convocadas para as
operações conduzidas pela União (Caldas, 2016: 66).
Os desafios da cooperação: obstáculos formais e ambiguidades
Os serviços e agências de informações nacionais possuem diferentes culturas de
informações e recursos assimétricos, fazendo com que, no interior da própria UE, se
assistam a processos de produção de informações heterogéneos entre agências e
organismos. Com a crescente expansão da Internet, há estimativas que colocam a
recolha de informação grandemente dependente de OSINT, que se revela uma forma
menos complexa, dispendiosa e morosa para o fazer quando comparada com outras
formas de recolha secretas como a HUMINT (Omand, Bartlett e Miller, 2012). No que diz
respeito à partilha de informações, os esforços recentes evidenciam uma mudança de
paradigma, que se prende com o reforço da segurança cooperativa na UE. Devido ao
alargamento das agendas de segurança nacional, é impossível que os pequenos serviços
consigam produzir informações, em quantidade e em qualidade, mantendo os seus
orçamentos inalterados. Assim, a cooperação permite, por um lado, a maximização dos
recursos existentes, evitando, por outro lado, a sobreposição de missões em termos
operacionais (Gruszczak, 2016: 88-89). Do ponto de vista securitário, a existência de
riscos e de ameaças compartilhadas no espaço da UE incentiva a cooperação e uma
agenda comum, como é o caso do contraterrorismo. Ainda assim, por vezes, a partilha
de informações tem beneficiado mais o processo de decisão da UE do que a eficácia de
uma estratégia de contraterrorismo comum. Isto porque as informações partilhadas têm
alimentado sobretudo as políticas europeias de contraterrorismo, possuindo,
recorrentemente, um reduzido impacte operacional e tático, áreas onde as informações
(operacionais e táticas) tendem a manter-se ao nível nacional (Muller-Wille, 2008: 69).
Apesar de a cooperação permitir ganhos económicos e securitários, esta também tem
uma origem interna, que é determinada pela natureza do próprio processo de integração
europeia, marcado por sucessivos efeitos spillover. A introdução de políticas de
cooperação em matérias de segurança tem determinado a cooperação em áreas
adjacentes, onde se insere a crescente cooperação nas informações com o
desenvolvimento da PESC (Fagersten, 2014: 103). Contudo, as práticas cooperativas
enfrentam obstáculos em diferentes áreas, propondo-se abaixo um modelo exploratório
que sistematiza as dimensões e os determinantes da cooperação a partir do agrupamento
de grandes domínios contextuais que podem afetar um fenómeno político (Goodin e Tilly,
2006). Resumidamente, podemos enquadrar os desafios da partilha de informações de
segurança em cinco grandes dimensões: cultural, securitária, legal, económica e
psicológica.
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Dimensão cultural: diferentes culturas de informações
A cooperação tende a realizar-se mais facilmente quando existem culturas de
informações semelhantes, sendo mais difícil de efetivar quando as culturas de
informações são substancialmente distintas entre os países em causa (Born et al., 2015:
110). A cultura de informações depende da forma como as comunidades de informações
se inscrevem legalmente no interior Estados-Membros e desenvolvem as suas práticas,
com reflexos em diferentes desenhos institucionais, diferentes articulações entre
informações civis-militares, diferentes tutelas governativas, diferentes contribuições para
os sistemas de segurança interna e de defesa nacional, ou diferentes mecanismos de
fiscalização, de controlo democrático e de transparência. Tendo em consideração os
países da UE, assume-se a existência de culturas de informações distintas, que derivam
de uma história política e cultural diferenciada entre os Estados-Membros, de onde
emergiram as divergências nos ambientes legais e nos sistemas políticos em que as
comunidades de informações nacionais atuam (Graaf e Nyce, 2016).
Dimensão securitária: a globalização da segurança
São muitas as interdependências entre os riscos ambientais ou de saúde pública, ou as
ameaças como a cibercriminalidade ou terrorismo, por exemplo, que exigem uma
cooperação mais alargada, desde logo incluindo os EUA, e não restrita aos Estados-
Membros. Ao nível operacional, as missões e atuações têm acontecido sobretudo nos
níveis nacional e local, ou têm proveniência na NATO, situando-se a União num nível
intermédio, onde os problemas partilhados são, não raras vezes, circunstanciais e a
capacidade de intervenção limitada. O desafio é, então, encontrar objetivos comuns,
podendo mencionar-se a atuação no âmbito da cibercriminalidade, do contraterrorismo
e do combate às redes de tráfico de seres humanos como desafios que unem,
atualmente, todos os Estados-Membros, pese embora numa escala de preocupação
diferenciada e insuficiente para estabelecer uma cooperação estruturada e alargada no
longo prazo. Para uma efetiva partilha de informações na UE é indispensável que se
formule uma agenda de segurança coletiva, que possa vincular a atuação dos Estados-
Membros e dos respetivos serviços e agências nacionais de informações em torno de
interesses comuns.
Dimensão legal: o Tratado de Lisboa
O Tratado de Lisboa acarretou o aumento das competências e da relevância estratégica
do IntCen. Porém, não é possível ignorar que o mesmo Tratado inscreveu, de forma
clara, a responsabilidade de garantir a segurança nacional por parte dos Estados-
Membros. Assim, esta é uma competência exclusiva dos Estados-Membros, onde os
mesmos mantêm reservas de soberania, fazendo com que a cooperação em matérias de
segurança e, em particular, nas questões associadas à partilha de informações entre
serviços de informações aconteça de modo pouco estruturado e, preferencialmente, com
serviços parceiros. Deste modo, as competências da UE para atuar na produção de
informações ou para exigir e coordenar a partilha de informações são ainda muito
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reduzidas, apesar do aumento do número de organismos europeus que fazem parte da
comunidade de informações europeia, nas últimas duas décadas. O Tratado de Lisboa
apresenta-se como um instrumento de bloqueio formal-legal, que impossibilita uma
cooperação mais integrada, o desenvolvimento de redes e de canais de partilha de
informações centralizados na UE, e uma maior harmonização dos métodos de recolha,
bem como das técnicas de análise das informações. Uma revisão deste enquadramento
legal poderia agilizar uma maior interoperabilidade, corrigindo algumas das dificuldades
sentidas na partilha de informações na comunidade de informações europeia e
acarretando ganhos de eficácia.
Dimensão económica: a expansão do mercado das informações
A importância das informações ao vel nacional tem hoje um espetro mais alargado,
consagrando uma atuação em diferentes setores que servem os interesses nacionais.
Daqui se retira que as agendas de trabalho dos serviços e agências de informações
nacionais apresentam alguns elementos compartilhados, mas que vão muito além desses
elementos. Os serviços e agências de informações nacionais operam num mercado em
expansão e muito competitivo, existindo diversas situações nas quais os Estados-
Membros competem entre si por informações estratégicas que possam ajudar os
diferentes Governos nacionais nos seus processos de decisão (Rêgo, 2015). Parece existir
um sistema dual, onde áreas em que os serviços e agências de informações dos
Estados-Membros cooperam e outras em que competem. Por exemplo, tanto as
informações económicas (apoio a negociações do Governo, ações de contraespionagem
económica, apoio a estratégias de empresas nacionais, etc.) como as informações
energéticas são áreas em que os interesses estratégicos nacionais são recorrentemente
conflituais, e onde os serviços e agências de informações nacionais enfrentam um
ambiente competitivo. Esta constante competição não favorece a cooperação alargada,
aberta e continuada de longo prazo que é desejada na UE.
Dimensão psicológica: o princípio da confiança
Uma das dimensões fundamentais para a cooperação é a confiança, manifestando-se
através da incerteza sobre o que outros serviços e analistas podem fazer com as
informações recebidas, do eventual impacte negativo nas parcerias históricas
existentes para a cooperação bilateral, ou do risco do free-rider’ (Muller-Wille, 2008:
62). Como assegurar uma partilha de responsabilidades e de recursos equitativas entre
os Estados-Membros para evitar a desconfiança? Como criar standards no âmbito da
recolha e da análise das informações para que os serviços e agências nacionais confiem
nas informações produzidas externamente aos mesmos? Como garantir a segurança das
informações partilhadas em centros mais pequenos e com menores recursos para
garantir a segurança das informações recebidas? Como manter canais de comunicação
permanentemente abertos, que fomentem relações de confiança interpessoais, e não
apenas relações pontuais em situações de crise? Estas são algumas questões centrais,
cujas respostas têm sido caracterizadas pela volatilidade e pela incerteza, o que tem
criado dificuldades em estimular as desejadas relações de confiança. Talvez assim se
compreenda a preferência dos Estados-Membros pela partilha de informações bilateral,
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junto de serviços e agências de informações com as quais se assume a existência do
princípio da confiança, por oposição a uma alargada atuação multilateral na UE. A
confiança é o elemento determinante para o sucesso da partilha de informações, mas
necessita de tempo para se desenvolver, através do reconhecimento dos benefícios
mútuos alcançados em iniciativas conjuntas, por oposição à criação de um modelo formal
de cooperação.
O papel da UE: status quo ou maior autonomia?
A cedência de competências no âmbito da produção de informações de segurança a
Bruxelas não parece possível num futuro próximo, ceteris paribus. Não obstante, a
inexistência de uma integração total das informações no aparelho burocrático da União
não invalida o esperado aprofundamento da comunidade de informações de segurança
na UE. A evolução desta comunidade aponta para o desenvolvimento de uma rede
alargada e flexível, que coresponsabiliza a UE e os Estados-Membros pela produção e
pela partilha de informações levadas a cabo no interior da União. Tal como escreveu
Alessandro Politi (1998: 8) num dos primeiros textos de referência sobre as informações
no contexto da UE, podem não existir grandes vantagens em formalizar excessivamente
a comunidade de informações europeia, podendo a flexibilidade de uma rede garantir
maior eficácia na gestão da necessária cooperação e da partilha de informações, ao invés
de se tentar enveredar pela criação de uma cultura de informações europeia alternativa
às nacionais. Se, em parte, este argumento ainda se pode manter válido, a verdade é
que parece ter perdido força em função da enorme expansão do terrorismo internacional,
apontando vários problemas sobre uma rede de informações complexa e insuficiente,
onde a cooperação é difusa, acontece em diferentes níveis e não apresenta
procedimentos e práticas padronizadas (Argomaniz, 2015). Apesar dos efetivos ganhos
com a partilha de informações no domínio da cooperação policial, a integração da partilha
de informações entre serviços e agências de informações no domínio comunitário tem
sido mais lenta, revelando uma preferência dos Governos nacionais (i) pelas iniciativas
informais por oposição à regulação formal, (ii) pela partilha com um reduzido número de
atores ao invés da partilha alargada ao nível da União, e (iii) pelo estabelecimento de
práticas ad hoc em alternativa a soluções institucionais (Gruszczak, 2016: 217 e 272). O
papel da UE dependerá do seu posicionamento em três áreas, designadamente a
definição da sua participação no ciclo das informações, a sua eficácia na gestão e
coordenação da partilha de informações e a sua capacidade para impulsionar maior
interoperabilidade.
A sua participação na recolha de informações com recurso a meios próprios exigirá mais
da UE e da relação desta com os Estados-Membros, por oposição a uma circunscrição às
fases de análise e de disseminação das informações provenientes dos serviços nacionais,
desde logo porque a recolha e os seus limites jurídicos são uma área mais sensível às
culturas legais nacionais, que variam entre os Estados-Membros. Apesar de se
reconhecer a importância da HUMINT e da SIGINT, muitas possibilidades para a
recolha de informação acontecer a partir de OSINT, que tem detido a preferência dos
organismos europeus que produzem informações, principalmente à medida que o seu
valor aumenta com a expansão das ferramentas de comunicação digital. A recolha
através de meios próprios não invalida o tratamento das informações provenientes dos
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serviços e agências nacionais. Ainda assim, a atuação conjunta encerra dois desafios:
(1) evitar a sobreposição de análises e (2) garantir a mais-valia das informações
produzidas a partir da UE. A duplicação de análises, o excesso de análises e a crescente
burocratização de processos e procedimentos dificilmente será percecionada como uma
mais-valia para os Estados-Membros. Por oposição, um sistema em rede, direto, flexível
e estável, com acesso a informações mais difíceis de obter pelos serviços e agências
nacionais, poderá levar ao reconhecimento de um contributo favorável da UE e a uma
maior participação destes na comunidade de informações europeia. Esta rede horizontal
com diversas pontes para cooperação, ao invés de um modelo formal hierarquizado, pode
fomentar a confiança e evitar conflitos adicionais na relação dos Estados-Membros com
os seus próprios processos de integração.
Em relação à cooperação, a comunidade de informações europeia carece de maior
aprofundamento, articulação e centralização, sendo, também, fundamental garantir a
relevância das informações de segurança partilhadas no plano multilateral. Um sistema
de cooperação liderado pela UE poderia diminuir a preferência pela cooperação bilateral,
sem que houvesse uma obrigatoriedade pela partilha multilateral, podendo existir um
modelo de cooperação por clusters em função de interesses partilhados pelos Estados-
Membros, mas coordenado pela UE. Esta partilha flexível por clusters e por áreas
permitiria até, quiçá, estender a cooperação para além das fronteiras da UE, a países
com uma relevância histórica como é o caso do Reino Unido e dos EUA, bem como a
países que em determinadas áreas apresentam um interesse geoestratégico muito
elevado, como a Turquia ou Marrocos, por exemplo, ou até no âmbito institucional da
segurança coletiva, junto da NATO. Obviamente que uma maior circulação e acesso a
informações pressupõe o fortalecimento da segurança dos canais de comunicação
existentes e dos centros de dados onde as mesmas seriam armazenadas, bem como a
definição das condições desse acesso por parte das forças e serviços de segurança dos
Estados-Membros e de outros atores.
A fraca interoperabilidade na comunidade de informações europeia é uma das suas
principais limitações, sendo necessário compatibilizar soluções entre os Estados-
Membros ao vel dos ambientes legais onde a recolha de intel acontece, das
infraestruturas, das técnicas e metodologias de análise e de tratamento das informações,
e da partilha de tecnologia (necessária tanto nas técnicas de recolha como na segurança
dos canais de disseminação das informações). Tudo isto contribuiria, ainda, para uma
maior harmonização das diferentes culturas de informações que coabitam na Europa,
podendo refletir-se positivamente em relações de maior confiança entre os Estados-
Membros, favorecendo a cooperação. Esta harmonização talvez pudesse ter efeitos
positivos, também, no plano do controlo democrático, da transparência e da gestão do
binómio segurança e liberdade, desde logo ao conciliar o acesso a (meta)dados com a
proteção de direitos, liberdades e garantias, matérias sobre as quais os Estados-Membros
apresentam posições distintas.
Conclusão
Este artigo evidencia que a comunidade de informações da UE é substancialmente
distinta das comunidades nacionais que conhecemos, o que o constitui uma surpresa
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em função da prevalência da nacionalidade na partilha de informações de segurança
entre serviços e agências de informações na UE. A segurança nacional dos Estados-
Membros ainda não se totalmente representada na segurança interna da União,
compreendendo-se, assim, a maior cooperação no que concerne a partilha de
informações policiais. A partilha de informações de segurança assemelha-se mais a uma
rede aberta, onde coabitam diferentes formas de produzir, analisar e disseminar
informações. As informações de segurança configuram-se como o último reduto da
soberania nacional do qual os Estados-Membros fazem uso, tornando a dependência da
comunidade de informações europeia dos Estados-Membros muito elevada. Esta
comunidade atua ao vel nacional, com os diferentes serviços e agências de informações
nacionais, e ao nível europeu, através dos diferentes organismos que participam na
produção e na partilha de informações, de onde beneficiam vários organismos e
instituições da UE, bem como os Estados-Membros.
Ainda que a criação de uma agência de informações europeia no contexto atual não seja
crível, o fortalecimento da partilha parece ser um dos caminhos a seguir, contribuindo
para uma maximização dos recursos existentes e para o desenvolvimento de
comunidades epistémicas. Ademais, as vantagens da cooperação em termos da
economia de recursos - num contexto de restrições orçamentais para muitos pequenos
serviços e agências de informações nacionais - e da produção de informações em
economias de escala são difíceis de negar. É também necessário que a UE afirme a sua
capacidade própria de recolha e de análise - sobretudo a partir do IntCen e com recurso
a OSINT - de onde se espera um contributo crescente para a PESC e para a PCSD e, por
conseguinte, na formulação de toda a visão geoestratégica da UE. O futuro das
informações de segurança na UE parece depender, por um lado, de uma maior integração
das questões de segurança e da defesa comum e, por outro lado, do avanço de ameaças
comuns aos rios Estados-Membros como o terrorismo. Não obstante, é importante
assegurar que quaisquer aprofundamentos ao vel da centralização, da análise, da
disseminação e, sobretudo, da partilha das informações não comprometam a autonomia
dos Estados-Membros e não violem os princípios de atuação dos diferentes atores que
intervêm na comunidade de informações da UE. Por último, o posicionamento da UE
nesta questão reflete, também, a forma como a instituição pretende projetar-se no
sistema internacional, quiçá obrigando a revisitar a coesão atual da relação transatlântica
e as históricas relações UE-NATO em matérias de segurança e de defesa.
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e-ISSN: 1647-7251
Vol. 11, Nº. 2 (Noviembre 2020-Abril 2021)
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LA UNIÓN EUROPEA ANTE LA PARADOJA DEL BREXIT
RAFAEL GARCÍA PÉREZ
rgarcia@upo.es
Profesor titular de Relaciones Internacionales. Antiguo profesor de la Universidad de Santiago de
Compostela, en la actualidad se encuentra destinado en la Universidad Pablo de Olavide de
Sevilla (España). Es también profesor del Instituto Universitario General Gutiérrez Mellado,
Madrid (Ministerio de Defensa UNED).
Resumen
El artículo analiza las consecuencias de la retirada del Reino Unido de la Unión Europea, de
modo particular en los efectos políticos de su decisión. En primer lugar, aborda la celebración
del referéndum, y la decisión de retirada, como ejemplo paradigmático de la denominada
“nueva política” que ha otorgado especial protagonismo a las llamadas fuerzas populistas en
las sociedades occidentales. A continuación, se expone la peculiar negociación celebrada entre
el Reino Unido y la UE para establecer un acuerdo de retirada. Seguidamente, se identifican
las diferentes modalidades de vinculación comercial que la UE mantiene en la actualidad con
terceros Estados como referencia al acuerdo que pueda establecerse con el Reino Unido. Por
último, se evalúa la viabilidad del proyecto Global Britain como estrategia de futuro para
recuperar una posición de influencia internacional. La conclusión a la que llega es la paradoja
que representa el Brexit al haber lanzado el Reino Unido un traumático, incierto y divisivo
proceso para lograr una posición internacional, política y comercial, que en términos objetivos
será indiscutiblemente peor de la que partía.
Palabras-clave
Brexit, Unión Europea, Reino Unido, Referéndum, Acuerdo Comercial
Cómo citar este artículo
Pérez, Rafael García (2020). La Unión Europea ante la paradoja del Brexit. In Janus.net, e-
journal of international relations. Vol. 11, 2 Consultado [en línea] en fecha de última
consulta, DOI: https://doi.org/10.26619/1647-7251.11.2.7
Artículo recebido en Deciembre 9, 2019 y aceptado para su publicación el Septiembre 9
de 2020
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e-ISSN: 1647-7251
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La Unión Eurpoea ante la paradoja del Brexit
Rafael García Pérez
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LA UNIÓN EUROPEA ANTE LA PARADOJA DEL BREXIT
RAFAEL GARCÍA PÉREZ
1. La paradoja del Brexit: una decisión “democrática” contra los propios
intereses británicos
1
Una paradoja es un “hecho o expresión aparentemente contraria a la lógica” (DRAE)
2
. Se
trata de una manifestación en apariencia verdadera que, sin embargo, encierra una
contradicción lógica. El Brexit constituye una paradoja en el sentido de que los votantes
británicos eligieron en el referéndum de junio de 2016 una opción que es contraria a sus
propios intereses, materiales y políticos.
Sin duda, la salida del Reino Unido de la Unión Europea debilita al proyecto europeo, pero
hasta ahora de un modo inferior a lo esperado. A quien realmente está perjudicando la
ruptura es al país que se marcha. Los costes económicos, comerciales y empresariales
sumarán una factura aún por determinar, muy elevada en todo caso, dependiendo de si
finalmente el Reino Unido y la UE consiguen acordar un modo de convivencia económico
y comercial que les resulte mutuamente beneficioso (Dhingra et al, 2016). En todo caso,
la magnitud de los perjuicios materiales que entraña el Brexit es superada por la quiebra
de la positiva y estereotipada imagen del país, de su sistema político, del liderazgo e
influencia internacional que ha detentado a través del ejercicio de su extraordinario poder
blando. Una quiebra de su sistema político que afecta de modo directo a su sistema de
partidos y amenaza a la propia estructura constitucional del Reino Unido. La cohesión
territorial entre las cuatro naciones que lo integran (Inglaterra, Gales, Escocia e Irlanda
del Norte) se ve en peligro al renunciar a la integración europea. Lo hemos visto en
Irlanda del Norte, donde la posibilidad de restablecer una frontera internacional pone en
riesgo los acuerdos de paz de viernes santo de 1998 y aviva los sentimientos favorables
a la unificación de la isla. Una de las claves de la paz y la convivencia en este territorio
reside precisamente en la existencia de una frontera porosa intracomunitaria que es
consecuencia de la unidad de mercado de la UE. También se aprecia en Escocia una
inquietud semejante cuando el Partido Nacional Escocés, actualmente en el poder,
amenaza con celebrar un nuevo referéndum sobre su vinculación con el Reino Unido,
alentado por conservar la pertenencia a la Unión a través de una futura integración una
vez lograda la independencia.
Si el lema durante la campaña del Brexit fue votar salida para “recuperar el control (take
back control) lo que se aprecia es precisamente todo lo contrario. Una nueva paradoja.
¿Por qué se produce esta situación? ¿Se trata, acaso, de un problema del mecanismo de
decisión adoptado consultando al electorado? ¿No son fiables los sistemas democráticos
1
Una primera versión de este texto fue expuesta y discutida en el seminario organizado por el Centro de
Investigação em Ciência Política CICP en la Universidade do Minho (Braga), en diciembre de 2019, con el
título: “A União Europeia perante o paradoxo do Brexit”.
2
Todas las referencias en línea citadas han sido consultadas por última vez el 30/09/2020.
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y debe eludirse someter a votación una decisión trascendente? Evidentemente el
problema no es la democracia como sistema político sino los males que aquejan a las
sociedades occidentales que presentan una serie de rasgos comunes compartidos por
muchos países (Portugal constituye una excepción) cuya manifestación más evidente es
el auge de las llamadas fuerzas populistas a un lado y otro del Atlántico.
El Brexit constituye un ejemplo paradigmático de este proceso de cambio político en las
sociedades occidentales que acaso simbolice un cambio de época. Analizamos el Brexit
como categoría representativa de este proceso de cambio en una doble dimensión: la
responsabilidad de los dirigentes políticos que abrazan estas políticas populistas por
ventajismo y elusión de las propias responsabilidades; y la motivación que impulsa a los
ciudadanos a respaldar semejantes opciones.
En cuanto a la primera cuestión, el Brexit es un claro ejemplo de mala gestión política en
el seno del Partido Conservador. Amenazado por una escisión como consecuencia de los
enconados enfrentamientos que se remontan a décadas atrás, y a la presión ejercida por
el avance electoral del demagógico Independence Party (UKIP), el premier David
Cameron eludió celebrar un congreso que resolviera la división interna convocando, en
cambio, un referéndum, animado por el éxito logrado en la consulta sobre la
independencia de Escocia (Castellà, 2016). De esta manera consiguió trasladar un
problema interno del partido al conjunto del país y, por extensión, al conjunto de la
Unión. Para no afrontar un problema doméstico generó una crisis constitucional e
internacional.
La mala gestión política no atañe sólo a la decisión de consultar a la población, sino
también al procedimiento elegido. Todas las decisiones políticas trascendentes (como
son, por ejemplo, una reforma constitucional) se enmarcan en un procedimiento regulado
por los sistemas constitucionales de todos los países. A pesar de sus diferencias, todos
ellos comparten unos rasgos comunes: un procedimiento legislativo extendido en el
tiempo que permite el análisis detallado de las normas que se vayan a adoptar y un
procedimiento de votación reforzado que exige mayorías cualificadas en la Cámara y, en
algunos casos, convocatoria de elecciones para que el nuevo parlamento ratifique la
decisión. Y también la celebración de un referéndum, al final del proceso, para corroborar
la decisión tomada, pero nunca como consecuencia de una iniciativa popular, salvo en
los pocos sistemas constitucionales en que así está contemplado, como son los casos de
Suiza o el Estado de California (Butler y Ranney, 1978).
Frente a este uso tradicional del referéndum, el gobierno británico lo emplcomo una
fórmula de democracia directa en contradicción con su sistema político que constituye el
ejemplo arquetípico de democracia parlamentaria. A las debilidades conocidas de esta
forma de ejercicio democrático directo (la posibilidad de manipular las asambleas
deliberativas, la oportunidad que se ofrece a los argumentos demagógicos o su
interesada celebración en función de las prioridades de la agenda de los gobernantes),
la teoría política había advertido repetidamente del peligro que supone que las decisiones
adoptadas por esta vía sean fruto de las pasiones del momento, sin que exista
procedimiento alguno que imponga mites al poder de la mayoría: “La democracia de
referéndum es objetable principalmente porque establece (…) un sistema de gobierno
mayoritario que excluye los derechos de la minoría” (Sartori, 1988: 156).
El procedimiento seguido en el Reino Unido ha incurrido en todos los peligros de los que
advertía la teoría política: el referéndum se celebró al inicio del procedimiento, cuyo
resultado, para aplicarse, no requiere de mayoría reforzada alguna y carece de cualquier
otro contrapeso o filtro que condicione su ejecución. Sólo una vez fue aprobada la salida
de la UE es cuando se empezó a diseñar la norma que hiciera posible aplicar tal
resolución. El recurso al referéndum como procedimiento supuestamente s
democrático de decisión elimina las garantías procedimentales y el debate parlamentario
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propio de los sistemas democráticos indirectos. Reduce el tiempo de decisión a un
instante simplificando problemas complejos hasta el extremo de reducirlos a un o un
no. Una campaña electoral no es un debate parlamentario. No hay réplica ni diálogo, y
la oportunidad de lanzar argumentos demagógicos, cuando no simples mentiras, se
multiplica creando un clima emocional muy intenso que cada vez con más frecuencia
resulta determinante en los procesos electorales.
El referéndum, el ejercicio de la llamada democracia directa, no es el procedimiento más
adecuado para adoptar decisiones políticas trascendentes. Quienes lo eligen lo hacen por
ventajismo político, para aprovecharse del estado emocional de un electorado que puede
ser excitado por múltiples medios y eludir así un debate que ponga en evidencia las
consecuencias negativas de la decisión, cuando no su inviabilidad.
El referéndum no está invalidado como mecanismo de decisión en los procesos
democráticos. Pero no puede ser un acto único ni debe situarse al inicio del proceso de
toma de decisiones. Debe formar parte de un procedimiento s largo y riguroso que
permita el análisis de las consecuencias de la decisión y evaluar la forma en que será
ejecutada. En los sistemas democráticos, todas esas garantías las ofrece el procedimiento
parlamentario. El Brexit encalla cuando se trata de aplicar el resultado del referéndum
en el Parlamento y allí se comprueban las consecuencias derivadas de la decisión,
impidiendo alcanzar una mayoría que permitiera su ejecución.
El referéndum, empleado en los términos en que lo hizo el gobierno de David Cameron,
fue ventajista y demagógico. Y, desde luego, su celebración no supuso ningún plus
democrático.
Vayamos a continuación con la segunda cuestión planteada: la motivación que impulsa
a los electores a decantar su voto por una determinada opción.
Existe una enorme cantidad de literatura académica publicada en los últimos os que
explica de forma convincente, el proceso que ha permitido el auge electoral de los
llamados populismos (Goodwin y Eatwell, 2019). Aunque cada sociedad tenga sus propios
fantasmas domésticos, los científicos sociales han identificado unos elementos que son
comunes en todos los casos en donde se ha producido una victoria electoral de estas
fuerzas políticas o de sus postulados como, sin duda, ha sido el caso del Brexit.
El primer factor común radica en la existencia de una sociedad fragilizada como
consecuencia de la creciente dualidad impulsada por la globalización y reforzada por el
impacto de la crisis de 2008 en las sociedades occidentales (Rueda, 2014).
La dualización social es un fenómeno de división creciente que se produce en el seno de
las sociedades nacionales entre un grupo minoritario, urbano e ilustrado, vinculado a las
cadenas de producción e información transnacionales, y un grupo mayoritario que se
“queda atrás” (left behind), que ve cómo se degradan sus condiciones materiales y
laborales en tanto que asalariados (el fin de las clases medias: Guilluy, 2019). La
consecuencia principal de este fenómeno de dualización es que resulta cada vez más
difícil pasar del grupo territorializado al globalizado, aunque no a la inversa. Esta
dinámica genera una extraordinaria frustración de las expectativas de promoción social
en amplias capas sociales. El ascensor social que entrañaba el Estado del bienestar ha
dejado de funcionar y su rdida alimenta un creciente resentimiento, que
ocasionalmente puede manifestarse en forma de explosión social, siguiendo el proceso
identificado como efecto túnel por Albert O. Hirschman (Costas, 2015). De esta forma,
los globalizados se “desnacionalizan”, mientras que los territorializados se
“renacionalizan”. Se sienten injustamente perjudicados y degradados por su condición
de perdedores frente a los grupos ilustrados, urbanos y cosmopolitas que los estigmatiza.
La autopercepción como ctimas de la globalización les lleva a reafirmarse en todo
aquello que rechazan: la añoranza del proteccionismo (King, 2017) y una suerte de
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retirada nacional de lo global, en la confianza de que el Estado-nación les pueda proteger
más eficazmente que la las instituciones internacionales o multinacionales como la UE
(Grygiel, 2016).
El segundo elemento identificado es cómo la identidad, el sentimiento de pertenecer a
una comunidad, se ha convertido en el eje vertebrador de la acción política de masas a
través de lo que Francis Fukuyama ha denominado la política del resentimiento
(Fukuyama, 2019:23). Política que se aplica por vías diversas.
Cada vez resulta más frecuente la identificación de colectivos que se agrupan en torno a
sentimientos identitarios que pueden ser de lo más variado. A la nación, religión o etnia,
que tradicionalmente han sido los s comunes, se suman ahora también cuestiones
como el género o la orientación sexual. Estos colectivos comparten la percepción de que
su identidad no recibe el reconocimiento merecido por parte de los demás. Un colectivo
pretendidamente humillado que reclama restituir su dignidad perdida constituye un
elemento movilizador en los procesos políticos más eficaz que la racionalidad sobre la
base de un cálculo de coste/beneficio. La apelación emocional al voto invocando
sentimientos identitarios es la clave que usan las llamadas fuerzas populistas para alzarse
con mayorías electorales ofreciendo soluciones fantasiosas, cuando no mintiendo y
manipulando con descaro al electorado.
El sentimiento identitario ha sustituido a la lógica materialista de pertenencia a una clase
social determinada. Se han alterado irreversiblemente los parámetros que
tradicionalmente definían el espectro ideológico de las sociedades occidentales en
términos de derecha e izquierda (Bobbio, 1995). La definición de las opciones políticas
que antes se realizaban bajo criterios materiales (en función de la posición ocupada en
el sistema de producción como empleado o propietario) ha pasado a depender de otros
criterios postmaterialistas que, cada vez más, se encuentran vinculados al sentimiento
de pertenencia a una determinada identidad y a un sistema de valores. Los globalizados
no son necesariamente de “derechas”, antes al contrario (la gauche brahamane
identificada por Piketty, 2019). Ni los territorializados son necesariamente de
“izquierdas”: en EE.UU. constituyen la base electoral de Trump. La reacción
antiglobalización, anticosmopolita y renacionalizadora puede manifestarse tanto a la
izquierda como a la derecha, pero encuentran un cauce de expresión compartido a través
de las plataformas populistas.
El tercer elemento que permite explicar esta dinámica es la causa por la cual se impone
la emoción frente a la realidad a la hora de que el votante decida su opción política ¿Cómo
llegamos a perder el sentido de realidad e, incluso, la propia noción de verdad? Hans
Rosling reali una investigación durante décadas para demostrar que los humanos
tenemos una visión tremendamente distorsionada sobre cómo percibimos lo que ocurre
en el mundo (Rosling, 2018). Utilizando encuestas dirigidas a grupos de toda condición
y nacionalidad sobre parámetros globales relativos a economía, desarrollo, demografía o
medio ambiente, llegó a la conclusión de que nuestra percepción se inclinaba siempre
hacia el pesimismo. El problema no es la ignorancia, y menos aún la ignorancia por falta
de información que desde hace décadas resulta más abundante que nunca, aunque no
por ello sea más accesible. El problema es nuestra percepción individual del mundo y de
la realidad, profundamente pesimista y temerosa ante los cambios.
Estos sentimientos negativos tienden a ser estimulados por los medios de comunicación
y determinados grupos políticos a través de un criterio discriminatorio por el que se
tiende a difundir información sesgada con un alto impacto dramático tratando de captar
la atención de la audiencia contribuyendo de manera eficaz a instaurar en la conciencia
colectiva la idea de que todo va mal, de que el futuro va a ser peor, de que ellos son los
perjudicados, de que necesitan una restitución. El sentimiento de identidad amenazada
estimulado por una percepción de la realidad distorsionada conduce a una elección
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política simplificada hasta el extremo que reduce la solución de todos los problemas a
una causa única que puede ser neutralizada tan sólo con tu voto: la culpa de los
problemas la tienen los inmigrantes mexicanos, o los judíos, o España, o la Unión
Europea.
El sentido del voto británico en el referéndum constituye una paradoja sólo si aplicamos
un análisis de elección racional propio de otros tiempos. Es el ejemplo paradigmático de
la nueva etapa en que se desarrolla la potica nacional e internacional, donde las
referencias tradicionales de izquierda o derecha no explican los alineamientos políticos,
donde la realidad no fundamenta la lógica de la acción política. Por el contrario, en
muchos casos la realidad apenas supone una incomodidad accesoria de la que se puede
prescindir con facilidad.
2. La Unión Europea frente al Brexit
La decisión del Reino Unido de retirarse del Tratado de la Unión sumió a la UE en una
situación de alarma. Un nuevo y gravísimo problema se sumaba a los ya presentes
(diseño del euro, crisis migratoria, …) configurando un escenario de “crisis existencial”
tal y como lo definió el presidente de la Comisión Jean-Claude Juncker (Juncker, 2016).
Por la relevancia y peso internacional del Reino Unido, por sentar un precedente que
pudiera marcar el camino a seguir por otros Estados miembros, por desmentir el discurso
autolegitimador y complaciente del europeísmo integrador, la UE se enfrentaba con el
Brexit a una situación de desafío a su propia supervivencia: el ser o no ser de la Unión.
Transcurridos ya más de cuatro años desde la celebración del referéndum puede
afirmarse que la Unión ha sobrevivido, aunque todas las amenazas sigan presentes y los
problemas, s que resueltos, parecen aplazados. Ni el euro ni la crisis migratoria, como
tampoco el Brexit, son pasado, siguen constituyendo problemas del presente con los que
habrá que convivir en el futuro.
Atendiendo al Brexit, llama la atención la extraordinaria capacidad política, jurídica y
diplomática de la Unión para encarar un desafío que sólo disponía de un tratamiento
genérico a través del artículo 50 del Tratado de la Unión (TUE). A lo largo del proceso
negociador la Unión ha dado muestras de lo que posiblemente constituyen sus mayores
virtudes institucionales: un marco normativo extraordinario adaptado a las necesidades
específicas definido a través de una negociación permanente: la ley a través del
consenso.
Recordemos cómo se inició el proceso de negociación. No fue a partir de la presentación
de sendas propuestas negociadoras, una del Reino Unido y otra de la Unión. No se trataba
de dos posturas que trataran de llegar a una síntesis compartida (Patel, 2018). No ha
sido nunca una negociación internacional al uso. Ha sido algo bien distinto, y conviene
recordarlo.
En enero de 2017 la primera ministra Theresa May expuso sus planes de salida y el nuevo
marco de relaciones que pretendía acordar con la Unión (May, 2017a). Manifestó,
además, su intención de negociar un período de transición que suavizara el proceso.
Adviértase del significativo retraso con el que fijó su posición negociadora el Gobierno
británico y el hecho de que no notificara formalmente su retirada a la Unión hasta el 29
de marzo de ese mismo año. Era evidente la intención de intentar ganar un tiempo que,
a la postre, no le reportó ninguna ventaja en la negociación.
En este discurso, el Gobierno británico estableció las denominadas “líneas rojas que
definían los objetivos que quería lograr:
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- Establecimiento de controles que permitieran regular la inmigración procedente de los
países de la UE.
- Independencia de la justicia británica que dejaría de estar bajo jurisdicción del Tribunal
de Justicia de la UE.
- Renuncia a pertenecer al mercado único (lo que implicaba renunciar a participar en
las llamadas “cuatro libertades”: libre tránsito de personas, capitales, servicios y
mercancías).
- Y en su lugar, negociar un tratado de libre comercio con la UE.
Por su parte, la UE respondió a través del Presidente del Consejo, Donald Tusk (European
Council, 2017), estableciendo los tiempos y el ámbito material de la negociación:
- Había que negociar, en primer lugar, la forma en que se produciría la retirada británica
y sólo cuando se hubiera alcanzado un “progreso sustancial se pasaría a una segunda
fase negociadora, siendo el Reino Unido ya un país tercero, donde se definiría el nuevo
acuerdo de asociación.
- Se excluía la posibilidad de una participación “a la carta” en el Mercado Único basada
en aproximaciones sectoriales.
- Y, por último, se proponía dar solución a los problemas más urgentes derivados de la
retirada británica:
- Dar seguridad jurídica los ciudadanos residentes y a las empresas evitando un vacío
legal que permitiera la aplicación de nuevas medidas regulatorias que vulneraran
los derechos adquiridos.
- Exigir al Reino Unido el cumplimiento de sus compromisos financieros que
finalmente se estimaron en unos 40.000 mill.€.
- Estudiar “soluciones flexibles y creativas” para evitar una frontera terrestre rígida
en Irlanda del Norte.
Con esta decisión el Consejo Europeo consiguió desbaratar una de las pocas bazas
negociadoras con las que contaba el Gobierno británico: negociar a un mismo tiempo la
salida y la relación futura con la UE. Logrando negociar en esos términos el Reino Unido
hubiera tenido oportunidad para conducir la negociación según sus intereses que,
básicamente consistían en lograr una suerte de pertenencia selectiva a la Unión
fragmentando el mercado único. Al tener que aceptar una negociación en fases sucesivas
a los británicos sólo les quedaba intentar romper al bloque comunitario ofreciendo
acuerdos bilaterales a los Estados miembros por separado (Rogers, 2019)
3
, o amenazar
con una quiebra completa en la relación tomando como rehenes a la población residente
(RTVE, 2018) o debilitar la relación futura en temas de seguridad (May, 2017b).
La UE ha conseguido mantener la unidad negociadora y ha hecho frente a las amenazas
británicas limitando su capacidad negociadora ante la evidencia de que nada podía
3
Theresa May no sabía cómo funcionaba la UE cuando activó el Artículo 50 y pensó que podía llegar a un
acuerdo para el Brexit negociando directamente con los líderes europeos. No funcionó durante la
negociación de [David] Cameron antes del referéndum y tampoco ha funcionado ahora”. Declaraciones del
exrepresentante permanente del Reino Unido ante la Unión Europea, Ivan Rogers.
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ofrecer a cambio de sus pretensiones. La rdida de opciones condujo al Gobierno
británico a utilizar un último recurso: amenazar de forma sucesiva a la Unión, con
provocar un caos total (May, 2018), y a su Parlamento, con no salir de la Unión si no era
aprobado el acuerdo ofrecido por Bruselas que finalmente aceptó el gabinete May tras
haberlo rechazado previamente (El País, 2019a).
Neutralizada la estrategia negociadora británica la cuestión quedó planteada en unos
términos esencialmente técnicos: ¿cómo dar forma a las exigencias de salida expresadas
libre y unilateralmente por el Gobierno británico? Conviene recordar que las “líneas rojas”
definían un ámbito muy estrecho sin apenas margen de maniobra.
El trabajo de la Comisión y de la delegación negociadora europea consistió en dar forma
jurídica a esas propuestas británicas protegiendo la integridad del acervo comunitario.
No fue discutida, rechazada o aceptada una propuesta británica que nunca llegó a ser
presentada. Por parte de Londres sólo se manifestaron deseos y cuando esos deseos
fueron trasladados al texto de un tratado el resultado frustró la ilusión emocional
generada con el Brexit de forma que el Parlamento rechazó hasta en tres ocasiones, y
por amplia mayoría, la propuesta aceptada por su Gobierno. Esto condujo a una situación
de bloqueo institucional que acabó forzando la dimisión de la Sra. May y la constitución
de un nuevo gabinete conservador con Boris Johnson al frente, a partir del 24 de julio de
2019.
Johnson, feroz oponente al acuerdo alcanzado por el gobierno May, presentó a finales
del mes de octubre de 2019 al Parlamento británico un nuevo acuerdo con la UE
negociado en un tiempo record. En realidad, no puede hablarse con propiedad de que se
tratara de un nuevo acuerdo sino de una modificación del documento cerrado con Theresa
May en 2018 que afectaba, fundamentalmente, a la situación de la frontera entre Irlanda
e Irlanda del Norte.
En el acuerdo de 2018, la denominada “salvaguarda irlandesa” (backstop) fue pensada
para evitar la reinstauración de una frontera física entre Irlanda e Irlanda del Norte. Esta
disposición buscaba preservar los acuerdos de paz de viernes santo de 1998, que
pusieron fin a tres décadas de violencia en el Ulster, al tiempo que se protegía la
integridad del mercado único europeo. Se trataba de una solución de último recurso que
solo entraría en vigor si, tras el periodo de transición previsto en el acuerdo, Londres y
Bruselas no encontraban una solución mejor.
En el acuerdo suscrito por el gobierno Johnson con la UE el 17 de octubre de 2019 (BBC,
2019), el denominado “protocolo irlandés” dejó de ser una cláusula de salvaguarda para
convertirse en una situación permanente mientras así lo decidiera el parlamento de
Irlanda del Norte. En este acuerdo se prevé que esta región forme parte del territorio
aduanero británico, aunque se encuentre sometida al régimen aduanero comunitario y
bajo la jurisdicción del Tribunal de Justicia de la Unión Europea. De esta forma, los
controles fronterizos se realizarán en los puertos de entrada a Irlanda del Norte y no en
la frontera con la República de Irlanda, para controlar las mercancías declaradas como
destinadas a Irlanda, incluso si proceden de otras partes del Reino Unido. En
consecuencia, la nueva frontera aduanera se traslada al Canal de Irlanda.
Para llegar a este acuerdo tanto el Reino Unido como la UE hicieron importantes
concesiones, lo cual constituyó toda una sorpresa dada la intransigencia soberanista que
había abanderado Johnson hasta entonces y las solemnes declaraciones realizadas por
las autoridades europeas afirmando que el acuerdo de 2018 estaba cerrado y no podía
volver a ser renegociado (El País, 2019b).
El factor determinante que permitió alcanzar el acuerdo fue el cambio producido en la
posición del gobierno de Dublín que aceptó esta solución de compromiso. Esto permitió
el alineamiento del resto de los socios comunitarios con la Comisión que desde el
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comienzo de la negociación había otorgado a Irlanda la última palabra sobre esta cuestión
específica del acuerdo de retirada británico. El único mite innegociable era, y sigue
siendo, preservar la integridad del mercado único europeo, y el acuerdo así lo garantiza.
Con su estilo grandilocuente, Boris Johnson presentó la firma del acuerdo con la UE como
una “gran victoria” (Day, 2019). Su mejor argumento consistió en asegurar que la
anterior salvaguarda irlandesa (backstop) había desaparecido. La pervivencia de esa
situación aduanera especial quedaba en manos, exclusivamente, del parlamento irlandés.
Cada cuatro años la Asamblea de Irlanda del Norte podrá votar abandonar este régimen
especial, lo cual supondría su desconexión de la Unión Europea y el establecimiento de
la frontera con Irlanda como frontera exterior de la UE. Si la Asamblea aprueba por
mayoría simple mantener el régimen especial, se prorrogará por otros cuatro años. En
caso de que se obtuviera una votación favorable con mayoría reforzada (lo cual implicaría
contar con los votos de los partidos católicos y protestantes), la renovación sería por
ocho años. En el caso de que no fuera aprobada, se establecería un periodo de dos años
para negociar la nueva fórmula que lo sustituiría (El Confidencial, 2019).
Los unionistas norirlandeses del DUP (Democratic Unionist Party) manifestaron su
oposición a las disposiciones alcanzadas en el nuevo acuerdo, pero su influencia como
sostén del gobierno conservador en minoría desapareció al lograr Johnson una holgada
mayoría absoluta de la cámara en los comicios celebrados el 12 de diciembre de 2019.
El acuerdo fue finalmente aprobado y el Reino Unido se retiró oficialmente de la UE el día
31 de enero de 2020.
Desde entonces, y hasta que expire el período de transición fijado hasta el 31 de
diciembre de 2020, la relación bilateral se ha mantenido, en sus efectos prácticos, en
unos términos semejantes a los que regían hasta ese momento: el Reino Unido
permanece dentro del mercado único y la unión aduanera durante el período de
transición, sin ser ya Estado miembro, por lo que carece de voz y voto en las instituciones
comunitarias. Aunque se ofrecía la posibilidad de prorrogar el período de transición para
ofrecer s tiempo a las comisiones negociadoras del tratado que regule la relación
futura, el Gobierno británico desestimó esta posibilidad. Esta decisión trasladó una fuerte
presión a las comisiones negociadoras encargadas de acordar el tratado que rija las
relaciones bilaterales futuras al ver limitado el tiempo disponible para cerrar una
negociación que, como se ha podido comprobar, está resultando sumamente difícil.
Cuando ya parecía que este capítulo había sido cerrado con éxito, con la entrada en vigor
del Acuerdo de Retirada (Acuerdo, 2020) que ha permitido la salida formal del Reino
Unido de la Unión, el Gobierno británico presenante el Parlamento, a comienzos de
septiembre de 2020, un proyecto de ley sobre el mercado interno (Internal Market Bill)
diseñado para permitir que los bienes y servicios fluyan libremente a través de Inglaterra,
Escocia, Gales e Irlanda del Norte cuando concluya el periodo transitorio el 1 de enero
de 2021. Sorpresivamente, en su articulado se incluye la posibilidad de modificar
unilateralmente los términos acordados en el mencionado Acuerdo.
Invocando el derecho “a actuar en el mejor interés de Irlanda del Norte y del mercado
interno del Reino Unido” (UK Govermment, 2020) la ley permitiría eliminar la obligación
del Reino Unido de controlar las mercancías procedentes del resto de Gran Bretaña con
destino a Irlanda del Norte. Esto es, eliminar la “frontera” en el canal de Irlanda, a la que
se había comprometido en el Acuerdo, sin restablecer la frontera territorial entre Irlanda
e Irlanda del Norte. Se trata, precisamente del punto clave sobre el que se había
construido el Acuerdo de Retirada que permite asegurar tanto la vigencia de los acuerdos
de viernes santo como la integridad del mercado interior europeo.
La iniciativa legislativa supone una violación de los términos acordados con la Unión
Europea de la que es plenamente consciente el Gobierno británico. El ministro para
Irlanda del Norte, Brandon Lewis, ha declarado públicamente: will break international
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law (The Guardian, 2020a). El responsable del departamento legal del Gobierno
británico, Jonathan Jones, presentó su dimisión, en consecuencia.
Según Lewis, se trataría de una violación del Derecho internacional “muy específica y
limitada”, amparada en la necesidad de que el Gobierno reconsidere sus obligaciones
internacionales en la medida en que “las circunstancias” han cambiado.
Implícitamente, el Gobierno británico está apelando al artículo 62
4
de la Convención de
Viena sobre el derecho de los tratados que establece el principio rebus sic stantibus. El
problema es que las circunstancias no han cambiado, todo lo contrario. Incluso el propio
Acuerdo preveía la aplicación de este compromiso aun cuando no fuera acordado un
tratado comercial dentro del plazo temporal previsto.
La acción unilateral del Gobierno británico, en caso de que entre en vigor el proyecto de
ley de mercado interior, viola los compromisos internacionales del Reino Unido y, como
ha manifestado Theresa May ante el Parlamento (BBC, 2020a), compromete de forma
perdurable su reputación internacional
5
La desmedida de la iniciativa legislativa británica es de tal alcance que las autoridades
europeas han iniciado un expediente sancionador tras su aprobación en el Parlamento de
Westminster por amplia mayoría (340 votos favorables frente a 256 negativos) aun
estando pendiente de su paso por la Cámara de los Lores para su aprobación definitiva.
Presionado por el ala intransigente del Partido Conservador, Johnson tuvo que incluir una
salvaguarda adicional en el texto del proyecto de ley por la cual el Gobierno no pod
modificar los compromisos alcanzados en el Acuerdo de Retirada sin contar con la
autorización expresa del Parlamento.
Específicamente, la presidenta de la Comisión, Ursula von der Leyen, anunció el envío de
una “carta de notificación formal para abrir un procedimiento de infracción que llevará
el caso ante el Tribunal de Justicia de la UE, bajo cuya jurisdicción se sigue encontrando
el Reino Unido durante el vigente período transitorio (The Guardian, 2020b). El
expediente de infracción no se incoa por las posibles violaciones del Acuerdo a que pueda
dar lugar la Ley de Mercado Interior, sino por violación del artículo 5 del Acuerdo de
Retirada, donde se recoge la necesidad de negociar de buena fe entre ambas partes.
El recorrido legal del expediente sancionador no quedaría paralizado por el fin del período
transitorio. El artículo 87 del Acuerdo de Retirada establece que la Comisión Europea
dispone de un plazo de hasta cuatro años, una vez concluido el periodo transitorio, para
iniciar un procedimiento contra el Reino Unido, si considera que ha incumplido alguna de
sus obligaciones contraídas por el Acuerdo. El texto del Acuerdo también prevé que si
una de las partes considera que se ha producido una vulneración de lo acordado puede
solicitar ante el Comité Conjunto la creación de un panel de arbitraje que se constituiría
en los tres meses posteriores a la solicitud. Si la cuestión objeto de reclamación estuviera
relacionada con el Derecho de la Unión el panel no se pronunciaría y dirigiría el asunto al
Tribunal de Justicia de la Unión Europea en tanto que intérprete último del Derecho
comunitario.
4
62.1 Un cambio fundamental en las circunstancias ocurrido con respecto a las existentes en el momento de
la celebración de un tratado y que no fue previsto por las partes no podrá alegarse como causa para dar
por terminado el tratado o retirarse de é1 a menos que:
a) la existencia de esas circunstancias constituyera una base esencial del consentimiento de las partes en
obligarse por el tratado, y
b) ese cambio tenga por efecto modificar radicalmente el alcance de las obligaciones que todavía deban
cumplirse en virtud del tratado.
5
"This can only weaken the UK in the eyes of the world (…) our reputation as a country that sticks by its
word will have been tarnished". John Major, Tony Blair, Gordon Brown y David Cameron también se han
pronunciado en contra del proyecto de ley.
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Aunque la eficacia legal del procedimiento iniciado sea limitada y, sobre todo, lenta,
representa un gesto de firmeza por parte de la Comisión en la negociación comercial
bilateral que permanece abierta. Dados los antecedentes que registran el
comportamiento político de Boris Johnson a lo largo de esta prolongada negociación
plagado de golpes de efecto, en Bruselas no se descarta que se pueda tratar de un nuevo
guiño teatral dirigido al sector más intransigente del Partido Conservador antes de
alcanzar un compromiso final sobre el acuerdo comercial en negociación, que para ser
concluido en las próximas semanas exigiasumir algunas renuncias respecto de sus
postulados iniciales (El Confidencial, 2020a).
Se trate o no de una estratagema en la recta final de la negociación, la realidad es que
el protocolo relativo a Irlanda supone un instrumento legal de complejísima aplicación
que va a exigir, para su correcta aplicación, no sólo la buena voluntad de ambas partes
sino de una aplicación exhaustiva y rigurosa de los controles previstos para evitar que se
acabe generando un agujero negro en el mercado interior de la Unión. Una fea nube en
el horizonte que amenaza la futura relación que finalmente se acuerde entre el Reino
Unido y la UE.
3. El acuerdo comercial que regiría las relaciones futuras entre el Reino
Unido y la UE
Aunque las relaciones futuras entre ambos socios no pueden ser circunscritas de forma
exclusiva al ámbito comercial, el futuro tratado comercial será la clave que apuntale la
relación bilateral que logre establecerse.
La UE no cuenta con un modelo único de vinculación con sus socios comerciales. En
realidad, se muestra sumamente flexible en el tipo de relación comercial que establece
con terceros Estados. En la actualidad pueden identificarse hasta cinco modalidades
diferentes de vinculación (cuadro 1): a través de la pertenencia al Espacio Económico
Europeo, donde participan Islandia, Noruega y Liechtenstein; la Asociación Europea de
Libre Comercio, donde se encuentra Suiza; los Acuerdos de Unión Aduanera, como el que
se mantiene con Turquía; un Acuerdo de Libre Comercio como el vigente con Canadá; y
el marco general establecido por la Organización Mundial de Comercio.
Cuadro 1.- Modalidades de relación comercial de la Unión Europea con terceros Estados
Tipo de acuerdo
Países
Características
Espacio Económico
Europeo (EEE)
Islandia
Noruega
Liechtenstein
- La pertenencia al EEE implica el acceso al mercado
interior común con libre circulación de personas,
bienes, servicios y capitales.
- Pese a no ser Estados miembro, su participación es
necesaria para adoptar alrededor de un 20% de los
actos jurídicos de la UE.
- Quedan fuera del acuerdo la Política Agrícola Común
y las políticas de pesca, la Unión Aduanera, la
Política Comercial Común, la Unión Económica y
Monetaria, la Política Exterior y de Seguridad
Común, y los asuntos de justicia e interior, aunque
estos países forman parte del Espacio Schengen.
Asociación Europea
de Libre Comercio
(EFTA)
Suiza
- Participa en el Espacio Económico Europeo a través
de la EFTA. Esto implica aceptar la legislación
europea, contribuir al presupuesto comunitario y la
jurisdicción del Tribunal de Justicia de la UE.
- Fuera de la Unión Aduanera.
- Pertenece al Espacio Schengen
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- Sin derecho de establecimiento para bancos.
Unión Aduanera
con la UE
Turquía
- Práctica libertad de movimiento de bienes GATS
6
sobre servicios
- Sin reglas de origen y costes aduaneros reducidos
para la mayoría de los productos.
- Regulaciones y estándares de la UE comprobados en
frontera. Adopción de los aranceles de la UE para el
comercio que no proceda de ella. Sin influencia en la
reglamentación o los acuerdos comerciales suscritos
por la UE con terceros Estados.
- Comercio de servicios financieros en régimen de
tercer país.
- Movimiento de trabajadores restringido.
Acuerdo de Libre
Comercio
Canadá
- Acceso al mercado único europeo con aranceles muy
bajos. En general, los bienes son los menos
afectados, pero los servicios tienen un acceso
limitado.
- Reglas de origen y costes aduaneros, con controles
en frontera para verificar la conformidad con los
reglamentos comunitarios.
- Comercio de servicios financieros: con carácter
prudencial, en régimen de tercer país. Sin
establecimiento automático para bancos.
- El movimiento de trabajadores, posiblemente no
restringido por completo.
Organización
Mundial de
Comercio (OMC)
- Aranceles de nación s favorecida y cuotas del
GATS para los servicios.
- Reglas de origen y costes de aduanas.
- Aplicación del conjunto de regulaciones y estándares
de la UE comprobados en frontera.
- Comercio de servicios financieros en régimen de
tercer país.
- Sin provisiones para el movimiento de trabajadores.
Fuente: Vega, 2019:12 y 17; y elaboración propia.
Con semejante ejemplo de flexibilidad cabe esperar que el Reino Unido pueda encontrar
un encaje a la medida en su relación futura con la UE, pero no está siendo fácil, ni rápido.
Desde luego, la forma que adopte el futuro acuerdo que rija las relaciones comerciales
entre la UE y el Reino Unido no tiene por qué adaptarse, necesariamente, a una de las
fórmulas descritas y es probable que, como ya ocurriera con Suiza en su momento, se
defina un encaje a la medida para este caso concreto.
La situación de Suiza (European Commission, 2019) es verdaderamente especial, en la
medida en que tras rechazar en referéndum su adhesión a la UE en 1992, el gobierno
helvético trató de buscar la vinculación más estrecha posible con el Espacio Económico
Europeo (EEE), salvo en aquellos aspectos que habían concitado el rechazo del
electorado. En consecuencia, el resultado de esa negociación, desarrollada en dos fases,
fue la firma de diez tratados bilaterales que regulan ámbitos como la libre circulación de
personas (Suiza participa del Acuerdo de Schengen), tráfico reo y por carretera,
agricultura, contratación blica o ciencia. Suiza contribuye al presupuesto comunitario
y se encuentra fuera de la Unión Aduanera. Tiene un acuerdo de cooperación en la
represión de actividades financiaras fraudulentas pero sus bancos carecen del derecho
para establecerse en territorio de la Unión.
6
GATS: Acuerdo General sobre el Comercio de Servicios (1995).
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Sin duda, la piedra de toque de la relación futura radica en la no pertenencia del Reino
Unido al Mercado Único Europeo. Tras su salida de la Unión abandonó al mismo tiempo
el EEE lo que supuso su retirada del mercado único. Desde luego, poda adherirse a la
EFTA y participar en el EEE a través de ella. Pero, en tal caso, tendría que adoptar la
legislación europea, contribuir al presupuesto comunitario y aceptar la jurisdicción del
Tribunal de Justicia de la Unión Europea. Todo lo cual implicaría volver a la casilla de
salida, pero en peores condiciones.
En todo caso, a la vista de las opciones disponibles, el Reino Unido podría lograr un
estatus semejante al que ahora tienen países como Noruega, Suiza, Turquía o Canadá:
fuera de las instituciones y con una capacidad de influencia muy limitada sobre la política
de Bruselas. Se un país tercero frente a un bloque comercial que, hasta ahora, ha
sabido preservar su unidad y su fortaleza negociadora.
La aspiración del Gobierno británico es alcanzar un acuerdo de libre comercio con la UE,
semejante al establecido entre la UE y Canadá. Así lo manifestó en un primer momento
el Gobierno de Theresa May y así lo ha confirmado el Gobierno Johnson, propuesta que
no ha sido rechazada por la Unión. Las negociaciones comerciales se iniciaron en marzo
de 2020, una vez consumada la retirada, y han sido particularmente difíciles. Se trata de
una negociación internacional convencional en la que cada parte trata de perseguir unos
intereses que, en principio, no son convergentes. La UE ha conseguido superar, hasta el
presente, la dificultad intrínseca que supone fijar una posición negociadora común entre
27 Estados. Estas circunstancias, presentes en todo acuerdo comercial firmado por la UE,
son las responsables de que los periodos negociadores que tradicionalmente han
requerido este tipo de acuerdos antes de lograr su conclusión fueran particularmente
largos. En el caso del Acuerdo Económico y Comercial Global entre la Unión Europea y
Canadá, conocido como CETA (por sus siglas en inglés, Comprehensive Economic Trade
Agreement) fueron siete años, no entrando en vigor, de forma provisional, hasta el 21
de septiembre de 2017 (European Commission, 2017). Sería un hecho verdaderamente
insólito que el acuerdo con el Reino Unido pudiera ser concluido en apenas siete meses,
antes del término del periodo transitorio.
La presión temporal introducida en el proceso negociador fue una acción deliberada del
Gobierno Johnson, al no solicitar una prolongación del periodo transitorio. Si el objetivo
perseguido era lograr flexibilizar la posición negociadora de Bruselas ante la amenaza de
un “Brexit duro”, esta estrategia negociadora no ha obtenido los resultados deseados. La
negociación sigue estancada en un buen número de puntos críticos sobre los que no se
ha alcanzado acuerdo cuando apenas se dispone de unas pocas semanas antes de que
se agote el plazo temporal disponible para cerrar un acuerdo.
Los puntos donde se concentran las mayores divergencias son el contenido del futuro
acuerdo relativo a la pesca (la UE quiere mantener una situación lo más parecida a la
actual mientras que el Reino Unido aspira a imponer una negociación anual sobre
licencias y volumen de capturas), la armonización regulatoria (un alineamiento común
de las respectivas regulaciones que permitiría reducir los controles en frontera) y lo que
posiblemente constituye la cuestión central: el denominado level-playing field (terreno
de juego equilibrado).
Esta expresión hace referencia a la preservación de una leal competencia en condiciones
de mercado impidiendo que el Reino Unido pueda llevar a cabo una suerte de dumping
que perjudique al mercado único. El temor de Bruselas radica en la posibilidad de que la
economía británica pueda transformarse en un modelo basado en bajos impuestos y baja
regulación, rebajando sus estándares medioambientales, sociales o laborales y
autorizando las ayudas públicas a las empresas, para hacer competencia desleal a los
competidores europeos.
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Si en el seno de la UE las empresas no pueden recibir ayudas del Estado para no
distorsionar la competencia, si tienen que cumplir exigentes estándares sociales,
laborales y medioambientales y mantener una fiscalidad en la nea con el resto de los
socios europeos, la creación de un enclave al otro del Canal de la Mancha, de un nuevo
Hong Kong con acceso al mercado europeo, rompería el mercado interno.
El temor a esta posibilidad ya fue expresado por la UE en la Declaración política sobre las
relaciones futuras con el Reino Unido (Declaración, 2019), un documento político no
vinculante en términos jurídicos. En ella se establecían las bases sobre las que se
negociaría el futuro acuerdo comercial comprometiéndose a desarrollar “una asociación
económica ambiciosa, amplia y equilibrada” (punto 17). Un compromiso que resulta
terriblemente difícil de materializar porque afecta al fundamento mismo sobre el que se
ha erigido el discurso legitimador del Brexit: la recuperación de la soberanía perdida a
través de la plena capacidad normativa y regulatoria (O’Toole, 2020).
La conclusión de las negociaciones comerciales se ha revelado enormemente difícil. No
se trata de una disputa planteada en términos diplomáticos que permita llegar al mejor
acuerdo posible dando satisfacción a ambas partes. A parte de su extraordinaria
complejidad técnica, la negociación enfrenta dos estrategias que resultan innegociables
para cada una de las partes: la preservación del mercado interior para la Unión y la
satisfacción de las expectativas despertadas durante la campaña del Brexit entre la
población británica. Las promesas lanzadas por los brexiteers, en su mayoría falsas o
imposibles de cumplir, comprometen no sólo la estabilidad del actual gobierno sino la
estrategia de futuro que pretendía seguir el Reino Unido tras su retirada de la UE.
4. La incierta aplicación de Global Britain como estrategia de futuro para
el Reino Unido
Aunque no se hayan extinguido las esperanzas de alcanzar un acuerdo en el último
momento es perceptible la sensación de incredulidad en los ambientes políticos de
Bruselas, y también entre los altos funcionarios británicos, con respecto a la posición
negociadora del Gobierno Johnson (El Confidencial, 2020a). Se espera una última pirueta
que, como ya ocurriera en septiembre de 2019, permita cerrar in extremis la negociación
comercial. Y por idénticos motivos se teme, igualmente, que a continuación el Gobierno
británico incumpla los compromisos acordados.
En ocasiones, el Reino Unido proyecta la imagen de un preso que huye a la carrera de la
prisión que le retenía. El deseo por lograr la ansiada libertad se impone sobre cualquier
otra consideración, aunque en el intento se lleve por delante la reputación y el buen
nombre del país que había sido uno de los socios europeos más cumplidores del Derecho
de la UE (Mangas, 2020)
7
. 47 años encerrados en la “cárcel” comunitaria posiblemente
les haya hecho sobreestimar sus propias capacidades y también idealizar ese mundo
exterior al que pretenden regresar y que tan poco parecido guarda con el de hace medio
siglo. En medio de la pugna geopolítica que dirimen chinos y estadounidenses, junto a
otras potencias de menor rango, las posibilidades de convertirse en un actor relevante
autónomo son ciertamente limitadas.
Pero Boris Johson no se amilana ante el desafío. En su primer discurso como jefe del
gobierno expuso la idea de recuperar el “papel natural e histórico” del Reino Unido como
“emprendedor, que mira hacia el exterior y que es verdaderamente global, generoso y
comprometido con el mundo” (Johnson, 2019). Proyecto que volvió a invocar el
Secretario para las Relaciones Exteriores, Dominic Raab, ante el Parlamento en el
7
En 43 años (1973-2015), el Reino Unido fue demandado por incumplimiento del Derecho de la UE ante el
Tribunal de Justicia en 139 ocasiones. En 30 años (1986-2015) España recibió 244 demandas.
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momento en que se materializaba la retirada (Raab, 2020). De esta forma, se retomaba
la narrativa de una Global Britain que aspira a proyectar al país como un der mundial.
Creada originalmente como eslogan para contrarrestar el temor a que el Brexit pudiera
conducir al país a la marginación internacional. Enunciada como gran proyecto político
por Theresa May, constituye una suerte de estrategia para orientar la proyección
internacional británica en la nueva etapa que se inicia (Glencross y McCourt, 2018). Su
concepción y aplicación despiertan, sin embargo, serias dudas.
Una de las ilusiones que animaron el Brexit consistía en poder liberarse de las
restricciones que la UE imponía al Reino Unido en sus relaciones con terceros Estados, lo
cual le hacía perder oportunidades económicas. Una vez consumada la retirada el país
recuperaría la libertad para negociar acuerdos comerciales con todo el mundo.
Efectivamente, desde el 1 de febrero de 2020 el Reino Unido ha podido negociar y
concertar acuerdos comerciales con plena autonomía, pero los resultados logrados por
su despliegue diplomático han sido limitados. La estructura del comercio exterior
británico, como es común a todos los Estados miembros, se encuentra muy condicionada
por su pertenencia a la UE. Un 60% de sus intercambios se realizaba a través de cauces
comunitarios (11% directamente con la Unión y un 49% a través de los tratados
comerciales de la UE). Dada su pertenencia a la Unión, el Reino Unido formaba parte de
alrededor de 40 acuerdos comerciales suscritos por la UE con s de 70 países. Hasta
finales de agosto de 2020, la diplomacia comercial británica había logrado que 19 de
estos acuerdos fueran transferidos, de manera que pudieran ser aplicados a partir del 1
de enero de 2021 (cuadro 2). En su conjunto representan el 8% del volumen total de sus
intercambios (BBC, 2020b).
Cuadro 2.- Acuerdos comerciales del Reino Unido que entrarán en vigor el 1 de enero de 2021 (agosto 2020)
Fuente: BBCb, 2020.
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Siguen pendientes de negociar acuerdos con países que actualmente no tienen acuerdos
comerciales con la UE: Estados Unidos, Australia y Nueva Zelanda, entre otros. Los
esfuerzos diplomáticos desplegados por Londres ante unos socios tan cercanos política y
culturalmente no han dado frutos hasta el momento. Las expectativas despertadas en el
Reino Unido por la pertenencia a un pasado compartido no se comparecen con la realidad
de un mercado mundial en férrea competencia. Como ha declarado el viceprimer ministro
de Nueva Zelanda, Winston Peters, “el Reino Unido parece que está algo oxidado” y se
le ha olvidado negociar (El Confidencial, 2020b)
8
, lo cual no implica necesariamente que
no se puedan cerrar acuerdos en los próximos meses.
El mayor logro alcanzado por la diplomacia británica hasta el momento ha sido la firma
de un acuerdo de libre comercio con Japón en el mes de septiembre de 2020 (El
Confidencial, 2020c). El acuerdo, que sicamente es una transposición del existente con
la UE, aunque Londres haya insistido en destacar que va más allá, representa el 2% del
comercio exterior británico y se prevé que tendrá un impacto positivo sobre el PIB
británico del 0,07%, en el largo plazo.
Como no podía ser de otro modo, las alternativas comerciales a la UE, aunque factibles,
no están resultando ni rápidas ni fáciles de lograr para una diplomacia que hacía décadas
que no se enfrenta a negociaciones de estas características. Por proximidad, estructura
de mercado e integración entre las respectivas economías, el mercado interior europeo
va a seguir siendo, al menos en el próximo decenio, un factor esencial para la prosperidad
británica. La paradójica consecuencia de esta realidad es que sólo la firma de un acuerdo
comercial con la UE podrá compensar los perjuicios comerciales para el Reino Unido
derivados del Brexit (Brakman et allí, 2018).
En el caso de que finalmente no pueda concertarse este acuerdo con la UE en el exiguo
plazo temporal del que se dispone, una vez vencido el periodo transitorio, los
intercambios bilaterales pasarían a realizarse, a partir del 1 de enero de 2021 siguiendo
las normas básicas establecidas por la Organización Mundial de Comercio (OMC). Ello
implicaría aplicar aranceles a la mayor parte de las exportaciones británicas al continente
(obviamente, el Reino Unido podría hacer lo propio con los productos comunitarios).
También supondría restablecer los controles de mercancía en frontera, lo cual implicaría
la saturación de las aduanas y previsiblemente un incremento del retraso en los
suministros. Y la industria de servicios británica también perdería el acceso garantizado
al mercado europeo. Todo ello en un contexto de recesión económica agravada por la
pandemia del COVID-19 que ha supuesto una caída histórica del PIB del 20,4% en el
segundo semestre del año (The Guardian, 2020c).
El Gobierno de Boris Johnson trata de delinear algunas directrices para restablecer la
posición de Reino Unido en el tablero del poder global, pero difícilmente el proyecto Global
Britain pod constituir la estrategia adecuada. En primer lugar, porque resulta
contradictoria con las propias bases sociales que respaldaron el Brexit. Un proyecto que
aspira a la plena integración en el proceso globalizador choca frontalmente con la
percepción de amenaza que muchos ciudadanos británicos sienten ante esa apertura al
exterior (Gaston, 2020). En segundo lugar, por la desconexión que subyace en su
concepción con respecto al contexto internacional actual. Difícilmente el Reino Unido
podrá recuperar la posición predominante ocupada durante su pasado imperial siendo
una economía de tamaño mediano en un mundo dominado por grandes potencias y
bloques comerciales. El Reino Unido no puede pretender convertirse en una
superpotencia comercial contando únicamente con optimismo (Saunders, 2019).
8
“Nunca han tenido una prueba, por así decirlo. Es como entrar en un Ashes [famosa competición de críquet
entre Inglaterra y Australia] cuando no has jugado durante 30 años; es lo mismo que le está pasando ahora
al Reino Unido”.
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Los límites materiales a las aspiraciones que encarna el proyecto Global Britain se ponen
en evidencia con facilidad en la práctica. Ante las presiones ejercidas por la
Administración Trump, el gobierno británico no ha dudado en sumarse a la política
estadounidense frente a China, limitando su acceso al mercado interno prohibiendo
inversiones en sectores estratégicos como el nuclear o excluyendo a Huawei de la
aplicación del 5G en territorio británico (Sendagorta, 2020). Cuando el interés
fundamental británico radicaría en alcanzar un amplio acuerdo comercial con China su
autonomía estratégica se ve condicionada por la influencia geopolítica de los Estados
Unidos. En todo caso, está por ver la capacidad negociadora de la diplomacia británica
para concluir un acuerdo comercial favorable a sus intereses frente a una potencia como
China.
5. Conclusiones provisionales
Aunque el proceso analizado sigue abierto y el nivel de incertidumbre sobre su desenlace
es considerable, pueden extraerse algunas conclusiones a título provisional.
La primera de ellas tiene que ver con la integridad y pervivencia de la Unión Europea. La
confusión rayana en el caos en que se ha visto sumido el Reino Unido seguramente
servirá para desalentar cualquier nuevo intento de activar el artículo 50 del Tratado de
la Unión Europea por parte de otro Estado miembro. Pero que la retirada británica no
desencadene el desmantelamiento de la Unión no debe de ocultar la evidencia de que la
UE necesita replantear su modelo de integración ante el alud de desafíos a los que se
enfrenta. La vía funcionalista seguida en el proceso de integración europea desde sus
inicios ha dado todos sus frutos posibles. Los problemas a los que nos enfrentamos
exceden las decisiones técnicas parciales que puedan adoptarse. El futuro de la Unión
sólo parece asegurado iniciando una nueva vía federalizante.
A la larga lista de dificultades que nos aquejan, las amenazas a la seguridad presentes
en nuestras fronteras exteriores, la competencia geopolítica o la creciente dualización
social y territorial de la Unión, no puede descartarse que se sume un nuevo e imprevisto
problema: la relación futura con el Reino Unido. Si la retirada británica no logra satisfacer
las aspiraciones políticas y económicas de la sociedad británica se verá abocada a una
crisis cuyos efectos sin duda afectarán a la Unión. Si, por el contrario, la estrategia Global
Britain tiene éxito y logra convertirse en un nodo comercial y financiero de la economía
global, la UE deberá extremar la vigilancia para preservar la integridad de su mercado
interior. No puede descartarse que la relación futura con el Reino Unido pueda
evolucionar por unos cauces conflictivos que nos convierta en competidores directos,
cuando no en rivales.
Y finalmente, con independencia de la relación comercial que pueda establecerse entre
británicos y europeos comunitarios, se producirá, en todo caso, la última gran paradoja
del Brexit: el haber lanzado este traumático, incierto y divisivo proceso para lograr una
posición internacional, política y comercial, que en términos objetivos será
indiscutiblemente peor de la que se partía. No deja de ser irónico que la gran esperanza
a la que parecen acogerse los brexiteers sea convertir al Reino Unido en un enclave al
estilo de lo que fue Hong Kong durante su etapa colonial: una economía parasitaria de
un gran mercado.
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e-ISSN: 1647-7251
Vol. 11, Nº. 2 (Novembre 2020-Avril 2021)
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LE FONCTIONNAIRE AUX NATIONS UNIES:
UN ROLE IMPORTANT AUX RELATIONS INTERNATIONALES
SAFWAN MAQSOOD KHALEEL
safwan.maqsood@gmail.com
Maitre de Conférence dans le Droit Public, Université de Sharjah (Émirats Arabes Unis).
Résumé
De nombreux facteurs jouent aujourd'hui positivement et négativement au niveau des
relations internationales. Parmi les plus importants d'entre eux, nous faisons référence au
fonctionnaire international. Cette personne physique est choisie pour travailler dans une
organisation internationale (régionale ou mondiale spécialisée) pour effectuer divers travaux
dans cette organisation, et influer sur la conduite des relations internationales entre le pays
concerné et l'organisation dans laquelle il travaille ou entre les États membres de
l'organisation à d'autres moments.
Parfois, le fonctionnaire international aide à maintenir la paix et la sécurité internationales (ici
nous ne parlons pas des casques bleus). Mieux encore, il encourage la réalisation du
développement dans différents pays du monde, comme il peut malheureusement être la cause
de mauvaises relations entre pays. Il peut même commettre de graves violations qualifiées
d'infractions pénales dans l'exercice de ses fonctions, en invoquant son immunité
professionnelle qui lui est accordée par la Convention générale sur les immunités de 1946.
Par conséquent, la nécessité d’un encadrement légal de sa position au sein de l’organisation
internationale est de la plus haute importance aujourd’hui, le nombre de fonctionnaires
internationaux atteignant des dizaines de milliers dans différentes organisations
internationales réparties dans différentes parties du monde. L’organisation par l’Union
européenne de la question des fonctionnaires internationaux est l’une des meilleures
organisations existantes à ce jour dont les organisations qui existent réellement devraient
s’en imprégner.
Mots clés
Fonctionnaire international, protection fonctionnelle, le Tribunal du contentieux des NU, droit
administratif mondial, commission de la fonction publique internationale
Comment citer cet article
Khaleel, Safwan Maqsood (2020). Le fonctionnaire aux Nations Unies : Un rôle important aux
relations internationales”. In Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 11, 2
Consulté [en ligne] à la date de la dernière consultation, DOI: https://doi.org/10.26619/1647-
7251.11.2.8
Article reçu le 7 avril 2019 et accepté pour publication le 30 mars 2020
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 11, Nº. 2 (Novembre 2020-Avril 2021), pp. 129-148
Le fonctionnaire aux Nations Unies: un role importante aux relations internationales
Safwan Maqsood Khaleel
130
LE FONCTIONNAIRE AUX NATIONS UNIES:
UN ROLE IMPORTANT AUX RELATIONS INTERNATIONALES
SAFWAN MAQSOOD KHALEEL
Introduction
Il est certain que les organisations internationales sont des entités dotées d'une
personnalijuridique indépendante des pays qui ont contribué à leur création et doivent
disposer de personnes physiques pour gérer leurs affaires et mettre en œuvre les
objectifs qu'elles se sont fixées. Certes, l’ONU a un rôle central à jouer dans la réalisation
de la paix et de la sécurité internationale ainsi que dans le développement. Afin de
garantir un service efficace et impartial, certains critères doivent être définis pour les
personnes appartenant à l'organisation. Il est également important de distinguer la
catégorie du fonctionnaire international des autres catégories de personnes physiques
travaillant au sein de ces organisations.
Alors, il est nécessaire de déterminer le rôle qui joue par des personnes qui gèrent l’ONU
et veillent à la réalisation des objectifs susmentionnés. Compte tenu de l’accroissement
constant du nombre d’employés liés à cette organisation, qui dépasse les dizaines de
milliers. Il est d’importance de relever les critères de sélection le fonctionnaire onusien,
parce que c’est une question qui prend de l’importance jour après jour du fait de la
sensibilité des travaux et les missions dont les fonctionnaires internationaux sont
investis.
En outre, la pertinence de cette question est liée à l’existence des considérations
politiques, qui s’imposent lors de la sélection des fonctionnaires onusiens, en particulier
à des postes haut placés au sein de l’Organisation. Certains États membres interviennent
dans le processus de nomination d’une personne bien précise, parfois pour s’y opposer.
Cette intervention a eu un impact négatif sur le niveau de loyauté du personnel
international des organisations et sur leur neutralidans l’exécution de leurs tâches.
Ainsi, nombre d'entre eux sont devenus le reflet et le prolongement de la politique de
leurs pays, voire une extension de la représentation de leur État au sein du siège de
l'Organisation
1
.
I. L‘apparition de la fonction publique international: plutôt européen
1
Lemoine, Jacques (1995). The International Civil Servant. The Hague: Kluwer Law International, p. 18.
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131
Certains juristes pensent que l’idée de la fonction publique internationale remonte à ce
qui est connu sous le nom de Comités des fleuves internationaux, tels que la Commission
d’organisation de la navigation du Rhin, créée en 1851, et la Commission du Danube,
créée en 1856
2
. Ces commissions, qui ont eu dans leurs rangs nombre de fonctionnaires
dotés de pouvoirs spécifiques et qui étaient indépendants, dans l’exercice de leur
fonction, de leur pays, afin de pouvoir s’acquitter de leurs tâches de manière impartiale
et complète dans et ce dans l’intérêt de tous les États Membres. La création de ces
commissions a nécessi la tenue de conférences régionales et internationales. Ces
conférences étaient dotées de secrétariats généraux, donc de fonctionnaires permanents,
travaillant dans ces conférences pour suivre l’exécution de leurs résolutions.
Parmi les exemples donnés à ce propos se trouve la Conférence de La Haye pour le
règlement pacifique des différends internationaux, qui a eu lieu entre 1899-1907 et dont
le secrétariat général était composé de 25 membres du personnel, nommés par les pays
participants à la conférence
3
. De plus, les associations dites semi-internationales
spécialisées dans un certain nombre de questions techniques ont fortement contribué à
l’émergence de la fonction publique internationale. Elles sont le résultat de l’évolution
des liens et d’échanges croissant entre Etats, contrairement aux conférences
internationales, la coopération et les échanges internationaux revêtent un caractère
continu et cohérent. Et on y dénote des compétences uniquement administratives,
soumises à la tutelle de l’un des Etats membres
4
. Il faut citer que certains de ces Unions
reconnaissait des privilèges et immunités aux fonctionnaires qui occupaient son
secrétariat comme l'Institut international de l'agriculture. Ses fonctionnaires jouissaient
d’immunités et de privilèges face aux États membres et même le pays du siège, l’Italie,
dans le cadre de leurs fonctions officielles aussi bien en interne qu’en externe
5
. En
générale, ces unions, et avant elles, les conférences internationales, n'étaient pas
considérées comme des organisations internationales et n'étaient pas dotées de leur
personnalijuridique ni de leur mandat. Ainsi, la souveraineté de leurs États membres
n’était pas restreinte. Elles étaient plutôt considérées comme des organes de
coordination technique dans un domaine précis entre pays. On ne peut donc affirmer que
les fonctionnaires administratifs internationaux existaient déjà
6
.
Après la fin de la première guerre mondiale cette phase a connu des événements
mondiaux dont l’impact a été de diffuser les règles du droit international public et la
tenue de la Conférence de Versailles 1919 ceux par exemple liés à l’organisation
internationale en particulier l’évolution de l'idée d'une conférence de quelques jours pour
aboutir à une organisation qui reste pendant des décennies. A l’égard de notre sujet il
faut citer que le terme «fonctionnaire international» y a éégalement utilisé pour la
2
Blanquet, Marc (2001). Droit communautaire général, 8ème éditions. Paris: A. Colin, p. 41
3
Guilhaudis, Jean-Francois (2017). Relations internationales, 4ème édition. Paris: Lexis Nexis, p 182.
4
Nous pouvons citer que certains fédérations et unions ont été établit à cette époque comme: le Bureau
international des poids et mesures, L'institution scientifique ; le Bureau international des transports
ferroviaires ; l’Union internationale des télégraphes et téléphones, la Fédération mondiale de la poste,
l'Union pour la protection de la propriété industrielle, le Bureau international pour la santé; l'Union
Internationale des Tarifs Douaniers, l’Union pour la Fabrication du Sucre. Lire: Pingel, Isabelle,
«Observations sur la convention du 17 Janvier 2005 sur les immunités juridictionnelles des États et de leurs
biens», (2005) 132 Journal de droit international 1047.
5
Pellet, Alain, et Ruize, David (1993). Les fonctionnaires internationaux. Paris: PUF, p. 32 s.
6
Bawindsomde, Ouedraogole (2012). Le statut Juridique du Fonctionnaire international sous l’angle des
fonctionnaires de l’ONU et des fonctionnaires des Communautés européennes: Contribution à l’actualité de
la notion de fonctionnaire international, Thèse de doctorat presenteau 23 mars, p. 72.
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première fois et ces fonctionnaires ont été pris en charge par les fonctionnaires du
secrétariat général de la SdN s et ceux du Bureau International du Travail à Genève.
L'effectif de l’SdN a atteint plus de 800 employés, de plusieurs pays européens, dont le
plus haut responsable administratif du monde, le secrétaire général de la SdN, considéré
comme le premier chef administratif d'une organisation internationale. Mieux encore,
l'organisation a publié un règlement régissant les droits et obligations de ses employés
envers l’organisation elle-même tout en y travaillant
7
.
Avec la création des Nations Unies en 1945, la fonction publique internationale a atteint
une grande renommée. En effet, les droits et les devoirs du fonctionnaire international,
les privilèges et immunités dont il jouit, ont été consacrés dans des conventions
internationales avec les États à cette fin. Le plus remarquable étant l’accord relatif à
l’immunité et aux privilèges du fonctionnaire des Nations Unies de 1946
8
, connu sous le
nom de Convention générale. En outre, la création du Comité de la fonction publique
internationale, conformément à la résolution 3357 de 1974, a eu un impact significatif
sur l'évolution de la fonction publique internationale depuis sa création
9
. Sans oublier
l’avis consultatif de la Cour internationale de Justice concernant la définition du
fonctionnaire international du 11 avril 1949 est l’une des dispositions les plus importantes
de la justice internationale et a organisé un aspect important des règles applicables
aujourd’hui à la fonction internationale
10
.
II. Le fonctionnaire onusien: du droit administrative international au
droit administratif mondial
Il ressort clairement de ce qui précède que la fonction internationale a évolué et confirmé
son caractère indépendant de l’influence des États membres de l’organisation
internationale, notamment avec la création de la SdN, puis des Nations Unies. La fonction
internationale est devenue la raison de crée une nouvelle branche du droit international
public, il ’s’agit le droit administratif international, qui a divisé la jurisprudence quant à
son existence en tant que branche du droit international.
Les juristes français soutiennent l’existence de cette branche du droit international et la
définissent comme étant l’ensemble des principes juridiques régissant les relations entre
les organisations internationales et leur personnel. Ils estiment que cette branche du
droit international a pour objectif la coopération internationale et que, à l'instar du droit
administratif interne, elle dispose d’une juridiction administrative
11
.
L’exemple donné en la matière est la création d'un tribunal administratif par la SdN en
vue de statuer sur les litiges entre elle-même et ses employés. L’ONU a également créé
7
Pour plus détails lire: Zavala, Daniel (1976). «La Commission de la fonction publique internationale», 22
Annuaire français de droit international 501; Klabbers, Jan, «The EJIL Foreword: The Transformation of
International Organizations Law», (2015) 26:1 European Journal of International Law 55.
8
Lewis, Patrick (2014). «Who Pays for the UN Torts: Immunity, Attribution, and Appropriate Modes of
Settlement», 39:2 North Carolina Journal of International law and Commercial Regulation 263.
9
Sur, Serge et Combacau, Jean(2008). Droit international public,8ème édition, Montchrestien, Paris, p.724.
10
Pour plus détails sur cette affaire, lire: CIJ, 11 avril 1949, Avis consultatif, Réparation des dommages subis
au service des Nations Unies, Rec. 1949, p. 177.
11
Nada, Taha (1986)., Le fonctionnaire international, [en arabe], General Egyptian Book Organization, Le
Caire, p. 33; Lorenzo Casini (2019). Global Administrative Law, in Jeffrey, Dunoff and Pollack, Mark (eds),
International Legal Theory: Foundations and Frontiers, Cambridge University Press, p. 6.
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la Cour Administrative des Nations Unies. Les juristes français affirment aussi que le
soutien à l’existence du droit administratif international aboutirait à la reconnaissance de
l’existence de la fonction publique internationale et du personnel administratif. L’autre
opinion est celle qui a été adoptée par la jurisprudence italienne et par certains juristes
allemands. En effet, ses partisans estiment qu’il n’existe pas de droit administratif
international et nient par conséquent l’existence d’organes internationaux sous la forme
d’organisations.
Par conséquent, ils pensent que l’activité administrative au sein de ces organisations
internationales n’est qu’une activité interne des états membres, rentrant uniquement
dans le cadre du droit administratif national. Ils ne reconnaissent pas l’existence d’une
fonction publique internationale
12
. Récemment, les juristes de droit public généralement
et droit international parlent sur le droit administratif mondial (GAL) comme une nouvelle
branche de droit international. La première apparition du terme de droit administratif
mondial remonte à une étude publiée en 2002 dans une revue juridique, adoptée plus
tard en 2004, précisément par un projet de recherche préparé par l'Université de New
York, puis diffusée à d'autres institutions de recherche. Le terme de droit international
mondial a remplacé ce qu'on appelle traditionnellement le droit international
administratif, dont l'émergence a été associée à la création des fédérations
internationales qui ont ouvert la voie à la création d'organisations internationales
13
.
Le droit administratif mondial tente d'éviter de faire partie du droit international général,
comme c'est le cas du droit international administratif. Le droit administratif mondial
couvre des sujets plus larges que ceux inclus dans le droit administratif international, car
il réglemente les règles relatives aux organisations internationales. C’est un organe des
règles des organisations internationales. Il réglemente également les règles des
institutions privées et publiques à caractère mondial dans lesquelles certaines fonctions
publiques sont exercées.
Il réglemente également les bases des organisations non gouvernementales ou de la
société civile, à la fois locales et internationales. Par conséquent, le droit administratif
mondial est un terme plus large pour ce que l'on appelait le droit administratif
international. Le droit administratif mondial comporte deux niveaux de règles : les règles
locales et les règles internationales, car il transcende les frontières nationales et s'adresse
directement aux individus sans avoir besoin d'un intermédiaire. Il est en outre lié à ce
que l'on appelle la gouvernance mondiale. Les sources de ce droit sont les traités
internationaux de toutes sortes, les règles du droit international coutumier, les principes
généraux du droit coutumier, en plus du droit national des États
14.
III. La définition progressive du fonctionnaire international
Nombreux juristes rangent tous les employés de l'organisation internationale, qu'ils
soient fonctionnaires ou d'autres catégories, dans la catégorie des employés
internationaux, tandis que d’autres juristes rejettent cette tendance et estiment qu’une
12
Kingsbury, Bendict (2009). «The Concept of Law in Global Administrative Law», 20 :1 European Journal of
International Law 24.
13
Lorenzo Casini, supra note 11 à la 8.
14
Kingsbury Bendict, supra note 11 a la 25.
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distinction est nécessaire. Les partisans du premier avis s'inspirent de la définition de la
CIJ, dans son avis consultatif du 11 avril 1949 sur la question de l'indemnisation des
fonctionnaires de l'ONU, qui affirme: (L’employé international est toute personne,
salariée ou non, qui travaille en permanence ou temporairement, affecté par un organe
de l'Organisation aux fonctions ou à l'assistance du fonctionnement de cet organe, ou
chaque personne agissant sous son autorité)
15
. Pour eux, cette définition est large en
raison de l'inclusion des fonctionnaires internationaux et des autres catégories, comme
c'est le cas aujourd'hui des Casques Bleus, des représentants spéciaux affectés à la
médiation ou aux bons offices et même des experts techniques affectés à des tâches
spécifiques
16
.
Parmi toutes ces catégories, seuls les fonctionnaires internationaux fournissent des
services permanents et exclusifs à l’Organisation et sont les seuls à être sélectionnés sur
la base du principe de la répartition géographique équitable entre les États Membres
17
.
Par contre, un ’autre avis, s’opposant à cette tendance, pense que considérer le
fonctionnaire international temporaire et le fonctionnaire international permanent comme
étant tous des fonctionnaires est inacceptable. Dans son avis consultatif du 11 avril 1949,
la CIJ avait traité un cas individuel impliquant des employés internationaux nommés
temporairement, à savoir le comte Folk Bernadotte, et avait évoqué la nécessité de ne
pas distinguer l’employé du fonctionnaire international pour justifier le droit de
l’organisation à demander une indemnisation. D’autre part, d’autres catégories sont
soumises à leurs propres règles en matière de sélection, de nomination, de droits et
d’obligations, même si elles accomplissent des missions liées à l’organisation
internationale, comme c’est le cas des juges internationaux, qu’ils soient membres de la
CIJ ou des Tribunaux pénaux internationaux (TPI)
18
. Sur la base de cette distinction,
nous devons énoncer certaines des définitions introduites dans la jurisprudence de
l’employé international et du fonctionnaire international.
L’employé international peut être défini comme suit: (toute personne effectuant une
mission internationale de façon temporaire pour une organisation internationale). Notons
ue cette description s’applique à ceux auxquels l’organisation internationale assigne des
tâches temporaires, tels que les experts et les médiateurs
19
.
Quant à la définition du fonctionnaire international, la jurisprudence en a données
plusieurs, parmi lesquelles nous avons choisi celle du professeur Paul Ruter: (c’est
l’employé d’une organisation internationale régie par un système juridique spécifique,
non soumis au droit interne, exerçant des fonctions internationales de façon continue).
15
Supra 10 à la 177 ; il faut citer que le fonctionnaire des Communautés définit comme (toute personne qui
a été nommée dans les conditions prévues à ce statut dans un emploi permanent d'une des institutions des
communautés par un acte écrit du pouvoir de nomination de cette institution). Lire: Bawindsomde,
Ouedraogole, Supra note 6 a la 226.
16
Dubois, Valerie (1985). La condition juridique des agents internationaux, in: Les agents internationaux,
Colloque d’Aix-enProvence, Editions Pedone, Paris, p.30.
17
Pellet, Alain (1989), supra note 5 à la 10; zCIJ avis consultatifs, 15 décembre, Applicabilité de la section 22
de l’article VI de la conven0tion sur les privilèges et immunités des NU, Rec, p. 194.
18
Notons que Susan Bastid a adopté ce point de vue dans sa définition du fonctionnaire international, mais
s’en est écartée ultérieurement, plus précisément dans les années 1970. Pour plus de détails, lire: Bettati,
Mario(1987). «Recrutement et Carrier des Fonctionnaires Internationaux», IV Recueil Des Cours de Droit
International 373.
19
Fakhory, Ammer (2017). «Le statut juridique des fonctionnaires internationaux», [en arabe], 13 Revue des
droits et sciences politiques 114.
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On constate que cette définition contient les éléments suivants :
- Un élément temporel : la fonction est permanente et continue.
- Un élément juridique: la subordination du travailleur, dans ses relations
fonctionnelles avec l’organisation internationale, au système juridique qu’elle établit
pour réglementer une telle relation et non au système juridique d’un État donné.
- L'employé accomplit son travail dans le respect des intérêts de l'organisation et non
de ceux d'un État. Cet élément n'empêche pas l'employé d'exercer son activité dans
le cadre territorial d'un pays donné, dans la mesure cela est dans l'intérêt de
l’organisation
20
.
C’est ce qui distingue le fonctionnaire international des autres employés de l’organisation
internationale, qui sont nommés sur la base de droits nationaux, tels que les employés
des services et les petits employés. Après avoir passé en revue ces définitions, il est
nécessaire de constater qu’il existe une différence nette entre elles. Cette différence n’est
parfois pas claire, notamment en raison de la complexité du concept de fonction
internationale. Aux Nations Unies par exemple, le système de recrutement permet aux
employés, avec des contrats de courte durée, de bénéficier de tous les privilèges et
immunités du fonctionnaire international, en contrepartie du même fardeau. Certains
considèrent qu'il s'agit d'une exception aux règles générales qui distinguent le
fonctionnaire international de l'employé international
21
.
Il ne fait aucun doute que les représentants de l’État au sein de l’OI ne bénéficient pas
du même statut que le de fonctionnaire international, du fait de la nature de leur travail,
des immunités et privilèges dont ils bénéficient et de la dénomination officielle qui leur
est attribuée
22
. Cela est tout à fait normal vu l’organe dont relève le fonctionnaire
international et le représentant de l’État. Selon la convention sur les immunités et les
privilèges des Nations Unies de 1946, la catégorie de représentant incluait tous les
représentants, assistants, conseillers, experts techniques ou secrétaires de mission
23
. Il
est à noter que, bien que leur lieu d’intervention soit les bureaux de l’organisation
internationale, il existe une distinction entre les deux catégories. Elle peut être attribuée
à plusieurs facteurs, notamment la nature du travail qu’ils accomplissent.
Le représentant de l’Etat membre exerce une double activité: il participe à l’affirmation
des objectifs et des principes de l’organisation et à la réalisation de ses objectifs par son
vote sur ses résolutions. Cependant, il œuvre en faveur des intérêts de son État au sein
de l'organisation. Le représentant de l'État place ici les intérêts de son État avant les
autres intérêts. En tant que, le représentant d’État, même s’il sert l’Organisation, n'est
20
Bettati, Mario, supra note 18 à la 375.
21
Fouda, Guillaume (2013). «Agents et fonctionnaires internationaux dans un ordre international en
mutations», le journal de droit 5; Jean-Marc Coicaud(2007), «Lafonction publique internationale en
question», 5 Les carnets du CAP 47.
22
Langrod, George (1963). La fonction publique internationale: sa genèse, son essence, son évolution,
Sythoff, Leyden, p 32.
23
La Convention sur les privilèges et immunités des Nations Unies 1946. Il faut citer que selon les Règlements
de droit Communauté, les experts européens sont fonctionnaires des Etats membres ou des fonctionnaires
internationaux travaillant de façon temporaire, pendant une période de 6 mois à 4 ans, pour une institution
de l'Union européenne. Pingle, Isabelle, supra note 4 à la 1048. Bawindsomde, Ouedraogole, supra note 6
à la 230 s.
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pas considéré comme fonctionnaire international. Les modalités de désignation des deux
sont différentes: l’'État désigne son représentant conformément à sa législation
nationale, par contre le fonctionnaire international est nommé par décision du Secrétaire
général de l'Organisation ou par un de ses organes
24
. Un représentant d’État ne peut
invoquer les immunités et privilèges accordés par l’Organisation et, en cas de préjudice,
engage la responsabilité de son État.
En revanche, un fonctionnaire international, désigné par l'organisation internationale
elle-même, a le droit de bénéficier d'immunités et de privilèges face tous les États
membres. Les actes répréhensibles relèvent également de la responsabilité de
l’organisation elle-même et non de l’État de sa nationalité. Enfin, l’organisation exerce
une protection fonctionnelle envers ses employés, tandis que l’État exerce une protection
diplomatique vis-à-vis de ses ressortissants et de ses représentants au sein de
l’Organisation
25
.
IV. L’ONU et la nomination de ses fonctionnaires
L’ONU jouit d'une certaine liberté dans le processus de sélection des personnes qui font
partie du personnel international, car elle peut se passer du consentement de l'État
auquel appartiennent les candidats. L'article 101 de la charte des Nations Unies stipule
en son premier alinéa: «Le personnel est nommé par le Secrétaire général conformément
aux règles fixées par l'Assemblée général
26
. Il est noté dans ce texte qu’il s’agit en
réalité d’une base théorique. Dans son application concrète, les interventions des pays
apparaissent très clairement, certaines États interviennent dans le but de désigner ou
d’empêcher la désignation de certains de leurs citoyens voire même de personnes
appartenant à d’autres pays
27
.
On constate que la qualification du droit pour nommer le fonctionnaire international s’est
scindée en deux groupes: Le premier considère qu’elle est la même que celle appliquée
au fonctionnaire public dans le système juridique interne de l’État. Pour le Second estime
que la fonction internationale revêt un caractère spécifique et se distingue de la fonction
publique du droit interne, car le travail est exercé dans une communauté internationale
caractérisée par la faiblesse ou l’absence de solidarité sociale entre ses membres
28
. En
outre, le fonctionnaire publique au sein de l'État est soumis à des droits nationaux, et se
caractérisent par l'application des sanctions strictes en cas de violation.
Par contre au niveau international, les règles de nomination d'un fonctionnaire
international se fait conformément à un contrat passé entre lui et l'ONU. La lettre de
recrutement constitue l'affirmation et le consentement de l'agent, les organisations
internationales l’appellent communément contrat d’emploi
29
. L’adhésion de l'individu
à l’ONU passe par la publication par le SG d'une décision unique de nomination, que
24
Klabbers, Jan,supra note 7 a la 56.
25
Lewis, Patrick, supra note 8 a la 274.
26
La charte des NU 1945.
27
Jordan, Robert (1991). «The Fluctuating Fortunes of the United Nations International Civil Service: Hostage
to Politics or Undeservedly Criticized? The Fluctuating Fortunes of the UN International Civil», 51:4 Public
Administrative Review 354.
28
Fakhory, Ammer, supra note 19 à la 117.
29
Fouda, Guillaume, supra note 21 à la 6.
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l’individu soit recruté par nomination ou sur concours. A cet égard il est doit cesser son
travail dans son pays d'origine lorsqu' il joigne l'ONU, qu'elle soit gouvernementale ou
privée
30.
Mais, quelques fois les Grands Etats intervenir dans la nomination des candidats,
notamment pour les importantes fonctions de l’organisation, l’État dans lequel propose
certains noms et avec un degré élevé d’efficacité, que ce soit pour des fonctions
supérieures et rarement pour les fonctions inférieures
31
. Il faut remarquer que les
mécanismes de sélection sont multiples et varient en fonction de la nature du contrat
conclu entre la personne et l’organisation: temporaire durée déterminée) ou à durée
indéterminée, le premier est généralement appliqué aux organisations et agences
spécialisées et celles liées aux Nations Unies
32
.
L'une des formes illégales d'ingérence des pays dans le processus de recrutement
consiste à exercer pressions sur l’ONU par l'intermédiaire du Secrétaire général ou de
hauts fonctionnaires, pour nommer ou empêcher la nomination de certains de leurs
citoyens, pour des raisons politiques internes ou externes. La pression exercée par
l'administration américaine sur l'ancien Secrétaire général des Nations Unies, Trygve Lie
entre 1952 et 1953, en est l’exemple-type. Les États-Unis avaient voulu expulser du
Secrétariat un certain nombre de membres du personnel de nationaliaméricaine et
d’obédience communiste et y avaient réussi.
De plus, d'autres formes de pression ont été exercées par certains États sur l’ONU et ses
organes et les agences spécialisées, dans le but d’entraver la sélection des employés,
telles que la promulgation par ces Etats d'une législation nationale interdisant
préalablement à leurs ressortissants d'entrer au service de l'organisation internationale
sans leur consentement
33
.
V. La Sélection le fonctionnaire onusien : Vers un system juste et
équitable
La nécessite de sélection des personnes hautement qualifiées aux organes des NU est
appuie ses organes pour adopte certains principes pour les prises en compte lors de la
sélection les candidats aux postes administratives et techniques.
30
La majorité des arrêts adoptes par les institutions judiciaires aux NU concernes les contentieux : financiers-
administratives- contractuelles, A cet égard on peut citer ici que le tribunal du Contentieux administrative
es NU rejeté un requête présente par M. Batamuliza, ancien (fonctionnaire) spécialiste au bureau de PNUD
au Kenya contre la décision du PNUD portant non renouvellement de son contrat pour un durée déterminé.
Pour plus détails lire: TDANU, Jugement n: UNDT/GVA/2018/003, le 11 janvier 2018, p.7. Dans le même
sens par exemple: Caruso.c. Le Secrétaire General des NU. TDANU, Jugement n UNDT/2018/043 le mars
2018.Thiombiano c. Le Secrétaire General des NU.TANU, arrêt n 2020-UNAT-978 le 27 mars 2020.
31
Devin, Guillaume (2011). «Les Evolutions de l’ONU: Concurrences et Intégration», 53: 4 Critique
Internationale 9.
32
Bettati, Mario, supra note 18 à la 303.
33
Lemoine, Jacques, supra note 1 à la 49; Il faut citer ici que certains pays au Moyen-Orient comme l’Irak
avant 2003, le Syrie, Le Libye de Kadafi ont criminalise leurs citoyennes qu’ont sélectionnés aux
Organisations internationales sans leurs consentement. Lire: Guilhaudis, Jean-Francois, supra note 3 à la
187.
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1. Adhésion
Les organisations internationales ont pour habitude d'exclure les candidats de pays non-
membres. Ils doivent donc appartenir à l'un des États membres de l'organisation, ce qui
est une conséquence naturelle de l'adhésion d'un pays à l’organisation. L’organisation
internationale ne peut inclure des ressortissants de pays qui ne lui appartiennent pas,
car leurs principes peuvent être différents des siens. On peut dès lors s'interroger sur les
intentions des personnes parmi les ressortissants de ces pays non-membres qui se
présentent pour y travailler. Selon la jurisprudence actuelle, le refus de l’organisation
internationale d’accepter la nomination de personnes appartenant à des pays tiers,
malgré un niveau de compétence potentiellement supérieur aux ressortissants d’États
Membres, est accepté. Et le ressortissant du pays tiers n’a donc pas le droit de faire un
recours devant les tribunaux et juridictions administratifs internationaux
34
.
2. Valeur de la contribution financière à l'organisation
Cette règle est basée sur le principe de qui paye le plus doit avoir la plus grande part
d’employés dans l'Organisation. Les Nations Unies ont décidé par la résolution de l'AG n
° 42/220 du 29 janvier 1988, que le montant minimum sur le compte bancaire devait
être de 2.700 dollars américains pour qu’un État puisse nommer ses ressortissants en
tant que fonctionnaires internationaux de l'ONU.
3. Principe de répartition géographique équitable
Ce principe est mentionné à l’article 101 alinéa 3 de la Charte des Nations Unies, qui a
été pionnière dans la mise en œuvre de ce principe. Conformément à la déclaration faite
par le Secrétaire général des Nations Unies, U Thant, en 1968, ce principe veut dire que
l'Organisation doit s’intéresser à l'expérience et à la culture de chaque nation ou État
membre
35
.
Par conséquent, selon ce point de vue, ce principe envisagé la contribution de l’Etat ou
de la culture ou d’un peuple à l’activité de l’Organisation. Le minimum auquel il ne fallait
pas déroger dans ses revendications pour la nomination de ses ressortissants et ce chiffre
a été arrêté à quatre fonctionnaires par pays. Cela signifie que, selon les statistiques des
Nations Unies, le personnel du Secrétariat, qui compte des milliers de personnes, doit
appartenir à tous les États membres et doit compter au moins quatre employés par État
membre
36
. L’exemple du déséquilibre en ce qui concerne la nationalité des fonctionnaires
internationales est le rapport énoncé par l’UNESCO, alors que la majorité des personnes
employées par cette OI occupé par des pays occidentaux
37
.
34
Pellet, Alain (2007), supra note 5 à la 32; Cot, Jean- Pierre et Allain Pellet, La Charte des NU, 3eme édition,
Economica, Paris, p. 1349 s.
35
Plantey, Alain (2005). Fonction publique internationale, CNRS Éditions, Paris, p. 285.
36
Weiss, Thomas (2010). «The John Holmes Lecture: Reinvigorating the International Civil Service», 16: 1
Global Governance 47; Jordan, Robert, supra note 26 a la 354.
37
Ismayil, Meryll (2014). «Les politiques de présence des Etats Occidentaux au sein des Organisations
Internationales», 45: 2 Etudes Internationales p. 287.
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De plus, 60% du personnel du Secrétariat General des NU appartenait des pays
européens et Amérique de Nord
38
.
L’adoption de ce principe est l’un des problèmes les plus difficiles auxquels sont
confrontées les organisations internationales dans la sélection des membres du
personnel. Certains pays ne seront peut-être pas en mesure de fournir le nombre requis
de citoyens pour travailler au sein de l'Organisation. Ce principe donnera
automatiquement à l'État la compétence inhérente d’identifier les employés susceptibles
de ne pas posséder les qualifications requises, ce qui aura une incidence sur les
performances et l'activité de l'organisation elle-même
39
. Mais certains pays comme les
pays d'Europe orientale à l’époque communiste et au Moyen- Orient, ont choisi des
candidats pour des postes au sein de l’ONU et les agences spécialisées supposés être en
faveur du régime en place. C’est ce qui veut dire écarter les compétences qualifiées
appartenant à ces pays de se présenter comme candidats à postuler un poste de
fonctionnaire international
40
.
4. Appliquer le principe du mérite
Afin de traiter les problèmes soulevés par le principe précédent, la jurisprudence a
commencé à rechercher un principe ou une règle visant à le limiter. Les personnes
nommées doivent être hautement qualifiées et compétentes avec des qualifications
scientifiques et ayant bénéficié d'une instruction spécifique. Les partisans de ce principe
estiment qu’ils s’efforcent de revitaliser le travail des organisations internationales en
leur fournissant des compétences scientifiques et professionnelles, à travers des
candidats aux compétences variées, choisis parmi les plus qualifiés, même s’ils doivent
appartenir à un État membre ayant dépassé son quota. C’est ce qu’a autorisé le Conseiller
juridique de l'ONU et de ses institutions spécialisées
41
. Il convient de noter que l’article
101, alinéa 3, de la Charte des Nations Unies énonçait le principe du mérite, qui stipule:
«La considération dominante dans le recrutement et la fixation des conditions d'emploi
du personnel doit être la nécessité d'assurer à l'Organisation les services de personnes
possédant les plus hautes qualités de travail, de compétence et d'intégrité». C’est sur ce
principe que se fonde l’ONU et ses agences pour sélectionner et nommer leur personnel
42
.
5. Principe d'indépendance du fonctionnaire international
Le principe d’indépendance est l’un des principes fondamentaux consacrés par toutes les
chartes et réglementations fondamentales des organisations internationales. Les États
membres de chaque OI sont tenus de respecter le caractère international de ce
fonctionnaire et n’ont pas le droit de l’influencer dans ses fonctions, même s’il possède
38
Ibid.
39
Cot, Jean- Piere et Allain Pellet, supra note 32 à la 1352.
40
Il faut noter que le Tribunal Administratif des NU affirme que la seule voie pour recruter les fonctionnaires
internationaux est le concours organisé par l’ONU. Pour plus détails sur ces jugements, voir: Ruize, David
(1988). «Jurisprudence de Tribunal Administratif des NU», 44 Annuaire française de droit international 422.
41
Lemoine, Jacques, supra note 1 à la 194.
42
Udom, Udoh (2003). «The International Civil Service: Historical Development and Potential for the 21 st
Century », 32: 1 Public Personnel Management 102.
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140
leur nationalité
43
. Dans son avis consultatif sur la demande de réformation du jugement
n°33 du Tribunal administratif des Nations Unies (TANU), la Cour Internationale de
Justice (CIJ) a affirmé que l'indépendance du fonctionnaire international est une garantie
fondamentale du bon fonctionnement des organisations internationales. Cette
indépendance est protégée dans le cas les responsables de ces organisations ont
nommé des personnes pour une période déterminée
44
.
Les garanties d'indépendance du personnel international trouvent dans les documents
juridiques internationaux
45
, en particulier dans le système juridique qui régit les relations
entre les organisations internationales et les États (chartes et traités, accords entre
l'Organisation et les États membres et actes individuels de l'Organisation)
46
. Les
fonctionnaires internationaux, bénéficient d'immunités et de privilèges moins à ceux
accordés aux diplomates et qui leur sont conférés sur le territoire des États membres,
car ils doivent pouvoir exercer leurs fonctions indépendamment de l'influence des
différents pays. Par contre, les hauts fonctionnaires internationaux comme les secrétaires
généraux et le directeur général de l’Organisation mondiale bénéficient d'immunités
similaires aux diplomates étrangers
47
.
Il existe deux types d'immunités accordées aux fonctionnaires des Nations Unies. Les
fonctionnaires ordinaires jouissent d'un seul type: l’immuniliée à la fonction. Elle ne
leur est accordée que pendant leur travail. Les Nations Unies ont accepté cette immuni
au motif que le crime commis par ses fonctionnaires ordinaires ne relève pas de ses
obligations professionnelles. Il doit donc en être tenu responsable. Quant aux hauts
fonctionnaires, y compris le Secrétaire général, ses assistants, les chefs d’appareils, ses
représentants spéciaux et les chefs d'agence liées aux Nations Unies, ils bénéficient des
deux immunités : celle relative à la fonction et l’immuni personnelle. Ils ne sont pas
poursuivis pour leurs actes même si ceux-ci constituent des crimes au sens du droit du
pays hôte.
48.
6. Gendre parité: un nouveau défi pour le system des NU
En plus des principes précédents, il est à noter que de nombreuses organisations
internationales ont commencé il y a deux décennies à ajouter un nouveau principe lié à
l'égalité des sexes. Il s’agit d’un nouveau terme de portée quelque peu plus large que le
principe traditionnel d’égalité et plus large que le principe de non-discrimination pour des
43
David, Meryll (2008). «Les stratégies d’influence des Etats membres sur le processus de recrutement des
Organisations internationales: Le cas de la France», 126:2 Revue français d’administration publique 269.
44
Voir l’avis consultatif du 27 mai 1987 sur l'interprétation du jugement n° 333 de 1984 du TANU, p. 226.
45
La jouissance des immunités et avantages du fonctionnaire international est inscrit dans tous les documents
juridiques produits par les organisations internationales. La Convention sur les privilèges et immunités des
Nations Unies du 13 février 1946 constitue la base fondamentale des autres organisations internationales.
Ces immunités ont suscité un débat juridique, en particulier sur le niveau des profits par les experts des
missions spéciales et des rapporteurs des sous-comités. Cela a obligé les Nations Unies à demander à la
CIJ d’émettre un avis consultatif sur la possibilité d’appliquer la Convention de 1946 à ces catégories. Les
membres des missions spéciales et des commissions des droits de l'homme bénéficient du champ
d'application de la Convention. Lire: L’avis consultatif du CIJ, le 15 cembre 1989, Applicabilité de la
section 22 de l’article VI de la convention sur les privilèges et immunités des NU, Rec.
46
Jordan, Robert, supra note 26 à la 354.
47
Lire les articles 18-19 de la convention sur les privilèges et immunités des NU de 1946.
48
Freedman, Rosa (2018). «UN accountable: A New Approach to Peacekeepers and Sexual Abuse», 29:3
European Journal of International Law 966.
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motifs ethniques, religieux, linguistiques, culturels et nationaux. Ce nouveau principe
trouve son origine dans la règle de non-discrimination entre les sexes en tant que principe
juridique international. Le gendre parité a été institué par la Conférence du Caire en 1994
sur la population et par la Déclaration de Pékin en 1995, comme l'indique l'article 7,
alinéa 3 du Statut de Rome de 1998 de la CPI qui visait l'égalité entre les sexes
précisément
49
.
Historiquement, pendant des siècles, les femmes ont fait l'objet d'une discrimination
manifeste dans le cadre national, en particulier au niveau du travail: salaires et avantages
moins élevés - moins de possibilités d’emploi, ce qui a poussé les NU à agir pour faire
face à cette apparente marginalisation. La Convention sur l’Elimination de Toutes les
Formes de Discrimination à l'Egard des Femmes de 1979 (La CEDAW), à laquelle un
grand nombre d'Etats membres des NU ont adhéré, a tenté d'éviter cette discrimination
50
.
En ce qui concerne la discrimination fondée sur le sexe, dans les OI telles que l’ONU et
les agences spécialisées, il convient de noter tout d’abord que l’Union européenne a fait
de grands progrès dans la mise en œuvre de la règle de prévention de la discrimination
fondée sur le sexe de manière inégalée dans d’autres organisations internationales,
notamment en introduisant l’interdiction de la discrimination fondée sur le sexe comme
l’une des règles de recrutement des fonctionnaires de l’Union européenne. Le taux
d’occupation des postes importants et des emplois inférieurs dans les institutions de
l'Union Européenne par les femmes occupant est très important
51
.
Pour les NU et ses organes apparentées, il est à noter que le quota de femmes obtenant
des emplois sont encore très faibles et tendent à favoriser énormément les hommes.
Dans un important rapport publié par le Secrétariat général des NU en décembre 2017,
la situation était jugée très négative : parmi les postes de haut niveau aux NU et dans
les organes et institutions qui y sont associés, le quota d’occupation des postes de
responsabili par les femmes ne dépasse pas 29% contre 71% pour les hommes.
S’agissant de ceux des assistants du secrétaire général, des rapporteurs spéciaux, des
représentants spéciaux, des présidents de commissions et même des instituts de
recherche associés aux NU. En ce qui concerne les emplois inférieurs, bien que la règle
de prévention de la discrimination fondée sur le sexe soit énoncée dans les règles de
recrutement des Nations Unies, le taux des femmes obtenant un emploi et même entrant
dans le concours est très faible par rapport aux hommes.
Au vu des critiques qui continuent d'être dirigées par les ONG’s concernées par les droits
des femmes sur le séquilibre des emplois, le Secrétariat général des NU a constitué
une équipe spéciale en janvier 2017 pour étudier cette grande disparité du pourcentage
de femmes postulant à un emploi. Cette équipe a élaboré une stratégie intitulée «Les
femmes et l’Organisation des Nations Unies» à appliquer à tous les organes de
l’organisation sans exception, même dans les missions de maintien de la paix
52
. Depuis
le début de 2018, la stratégie oblige chaque organe ou administration de l'ONU à mettre
49
Weiss, Thomas, supra note 34 a la 43.
50
Devin, Guillaume (2017), supra note 29 à la 16; Achieving Gender Parity on International Judicial and
Monitoring Bodies- Report presented by International Human Rights Law Clinic in University of California
October, p. 16.
51
Udom, Udoh, supra note 38 a la 123.
52
Achieving Gender Parity on International Judicial and Monitoring Bodies. Report presented by International
Human Rights Law Clinic in University of California October 2017, p .9.
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en place un mécanisme de suivi de l'application de la règle de prévention de la
discrimination sexuelle dans l'occupation des emplois. Et la question ne s'est pas arrêtée
à ce stade, mais s'est étendue aux États membres eux-mêmes, le Secrétariat général
informe les États membres et exhorte les citoyennes à postuler pour être nommées dans
les organes de l'organisation
53.
VI. La lien juridique entre l’Organisation international et son
fonctionnaire
La qualification du lien juridique entre le fonctionnaire international et l'ONU est l'une des
questions dont l'émergence a été liée au développement de la fonction internationale au
sein des NU, il a été nécessaire de finir la nature de ces relations. Cela s’est traduit
par l’émergence de trois points de vue
54
.
Pour les partisans le caractère statutaire, à envisager la relation entre le fonctionnaire et
l'ONU comme une relation statutaire ou disciplinaire. Le fonctionnaire est complètement
soumis ici à l’organisation et à sa volonté, son statut juridique étant similaire à celui d'un
fonctionnaire public en droit administratif au sein d'un État. Il convient de souligner que
cette conformité ne se limite pas aux règles applicables au fonctionnaire au moment de
son entrée au poste international, mais également aux modifications à venir de son statut
ou de ce qu’on appelle les résolutions relatives aux fonctionnaires. Ils ont considéré que
la contrepartie est l’existence de règles relatives aux droits des fonctionnaires, en cas de
litige. Des tribunaux administratifs ont été créés par les diverses organisations
internationales, qui leur ont confé la compétence d’examiner les demandes et les
plaintes de leurs employés
55
.
Par contre certains juristes critiques le caractère statutaire et fondée la relation entre le
fonctionnaire et l’ONU ou une des organes sur un caractère contractuel. En autre termes
base sur un contrat de travail conclu entre le fonctionnaire et l’organisation. Ce contrat
confère aux deux parties un statut juridique égal, détermine les droits et les obligations
des parties, notamment en relation à l’expiration du contrat, et se fonde sur le principe
pacte sunt servanda, qui signifie que les parties ne peuvent s’affranchir des obligations
émanant du contrat. Alors que, 'il n'y a pas de similitude entre la relation du fonctionnaire
avec son État et celle avec l’OI. Par conséquent, les garanties établies lors de l’exercice
de la fonction internationale sont plus à celles de la fonction publique au niveau interne
de l’État, contrairement à ce que de la fonction internationale. De plus, l’adaptation du
contrat œuvre à restreindre l’ONU pour développer les règles de la fonction publique
internationale
56
.
La troisième opinion, considérée comme conciliatrice préconise de combiner les deux
points de vue opposés, en considérant la relation entre le fonctionnaire et l'organisation
comme une relation organique et contractuelle à la fois, dans le cadre de laquelle le
fonctionnaire est soumis aux conditions du contrat. L’organisation lui donne plus de
53
ITU Gender Parity Strategy: Report presented by the ITU to UN secretary General in April 2018 applying to
the UN Strategy related the UN organs and other agencies for the Gender parity. Doc C18/63-E, p. 7.
54
Guilhaudis, Jean-Francois, supra note 3 à la 183.
55
Dubois, Valerie, supra note 16 à la 25.
56
Plantey, Alain, supra note 33 à la 78.
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liberté pour affronter toutes les circonstances pouvant affecter les intérêts de
l'Organisation, l'obligeant à modifier les termes du contrat
57
. À notre avis, ce point de
vue ne peut être adopté au niveau de l'action internationale, car il n'a rien apporté de
nouveau pour adapter cette relation. Il a plutôt combiné deux antagonismes. Pour nous,
il faut donner l’organisation plus de liberté pour adopter l’avis qu’elle estime convenir à
sa propre situation et pour lui permettre d’amender et même de modifier la
réglementation dans son propre intérêt, à condition que les garanties nécessaires soient
fournies aux droits des fonctionnaires, en leur donnant le droit d’être jugés par des
tribunaux administratifs créés à cet effet
58
.
VII. Le fonctionnaire Onusien: protection exceptionnelle et
responsabilité pénale
1. L’incrimination les fonctionnaires onusiens
La responsabilipénale des fonctionnaires Onusiens pour les actes qu'ils commettent
qui constituent parfois des crimes selon le droit pénal. Il est à noter que cette question
a retenu l'attention des États membres des Nations Unies, en particulier au cours des
trois dernières décennies en raison le grand nombre de plaintes présentés contre les
Casques bleus affiliés aux NU, ou même des fonctionnaires et des experts des NU59. En
outre, la question de la responsabiliétait à l'ordre du jour de la Sixième Commission
de l'Assemblée générale des Nations Unies lors de ses réunions annuelles, notamment
avec la publication du rapport de l’année 2006 du prince Zaid, qui présentait
explicitement la question et en identifiait les traitements. D’où l'importance
exceptionnelle de cette question pour des considérations liées au fait qu'elle a un impact
important sur la réputation de l'organisation internationale d'une part, ainsi que sur la
réparation des victimes de ces actes commis à leur encontre
60.
Quant aux violations commises par les casques bleus, la vérité est qu'elles augmentent
de façon spectaculaire et exponentielle avec son large déploiement dans les différents
continents du monde, notamment en Afrique, Moyen-Orient et dans les Balkans. Ces
forces commettent souvent le crime de viol sexuelle contre les civils qu'elles sont censées
protéger. Cependant, ces civils ont été surpris de constater que des membres de ces
forces de protection ont commis des crimes odieux et dégradants.
Quant aux soldats et officiers des forces internationales, le principe est qu'ils doivent être
jugés devant les tribunaux militaires appartenant à leur pays, mais malheureusement,
une négligence intentionnée des plaintes des victimes civiles a conduit à la diffusion d'une
culture d'amnistie. A cet égard, nous citons l’exemple de la plainte déposée par un citoyen
somalien accusant ces forces d'avoir détruit ses biens en 1992 lors de leurs missions en
Somalie, connue sous le nom de l'affaire Askar contre Boutros Ghali (ancien secrétaire
général des Nations Unies), plainte rejetée par les Nations Unies sur la base de l'article
2 de la convention générale de 1946
61.
57
Pellet, Alain, et Ruize, David, supra note 5 à la 26.
58
Bawindsomde, Ouedraogole, supra note 6 à la 416.
59
Freedman, Rosa, supra note 44 a la 963
60
Weiss, Thomas, supra note 34 a la 48.
61
Freedman, Rosa, supra note 44 a la 966.
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La question du choléra en Haïti en 2010 n'a pas beaucoup changé par rapport à la
situation jusqu'à présente. Les racines de ce problème remontent à octobre 2010,
lorsqu'une épidémie de choléra s'est soudainement propagée dans le pays le plus pauvre
du monde après le déploiement des forces Népalaises au sein des forces de maintien de
la paix qui venaient d'arriver de leur pays, Le Népal, classé selon l'OMS troisième pays
au monde dans lequel l'épidémie sévit. Malgré les preuves des rapports médicaux
confirmant les allégations sur le rôle des forces népalaises dans la propagation du
choléra, ces forces n'ayant pas été examinées avant leur déploiement. Malheureusement,
l’ONU a sciemment négli les plaintes présentées par plus de cinq mille Haïtiens
demandant de juger membres du ces forces, d'autant plus qu'avec leur arrivée en Haïti,
le nombre de morts à cause de l’épidémie a dépassé les deux mille par jour.
En 2013, un rapport onusien sur la question d'Haïti concluait que les demandes
d'indemnisation des personnes touchées par l'épidémie causée par les forces népalaises,
ce qui confirmait la conviction des juristes que l'ONU et ses fonctionnaires jouissaient
d'une immunité absolue, même si cela n'est pas stipulé dans la Convention de 1946 sur
les immunités des Nations Uniesl en va de même pour les fonctionnaires et les experts
62
.
des Nations Unies, car leurs graves violations qualifiées de crimes relevant du pénal se
poursuivent dans les pays de leur présence dans le monde, fait lié à la faiblesse du
système juridique et judiciaire des pays dans lesquels ils résident, au même titre que les
forces des casques bleus
63
.
Cependant, cela ne les a pas empêchés de commettre des crimes dans d'autres pays
stable où l'état de droit est appliqué. Ici, la question va au-delà des infractions routières
ou même des meurtres involontaires, mais plutôt des vols, des viols et autres délits
financiers. L'ONU a mis en place des mécanismes pour réduire ces violations notamment
l’unité des enquêtes internes au sein même de l'ONU. Lorsqu'il y a plainte ou information
concernant l’implication d’un fonctionnaire ou d’un expert des NU dans un crime
conformément au droit du pays hôte, cette unité en vérifie la validité. S'il est commis
conformément aux exigences de sa fonction, il n'y a pas de responsabilité, ce qui est
absolument improbable
64, 65
.
Ce qui est par contre vrai est qu'il a commis le crime pour son intérêt personnel, et dans
ce cas, les responsables de l’ONU doivent accepter la compétence des tribunaux du pays
hôte et le juger par devant leurs juridictions internes ou accepter son extradition vers le
pays dont il porte la nationalité, à condition que dans les deux cas il n'y ait pas de violation
des normes de procès équitable ou des principes des droits de l'homme. Quant au second
mécanisme, il consiste à renvoyer la personne devant le Tribunal du contentieux des
Nations Unies, qui est un organe créé par les Nations Unies comme alternative au Tribunal
administratif des Nations Unies, doté de deux degrés : le premier degré et l’appel. Ce
mécanisme judiciaire a été réservé au jugement de ses fonctionnaires et ses experts pour
les délits qu’ils commettent. Violations qui ne peuvent être qualifiées d’actes relevant du
62
Lewis, Patrick (2014). «Who Pays for the UN Torts: Immunity, Attribution, and Appropriate Modes of
Settlement», 39:2 North Carolina Journal of International law and Commercial Regulation 260.
63
Hovell, Devika (2018). «UN accountable: A Reply to Rosa Freedman», 29:3 European Journal of
International 988.
64
Freedman, Rosa, supra note 44 a la 967.
65
Klabbers, Jan, supra note 7 a la 14.
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pénal mais seulement d’violations contractuelles ou administratives relatives simplement
à la fonction
66
.
Parmi les obstacles les plus importants à la répression des violations commises par les
fonctionnaires des Nations Unies figurent ceux ls aux normes de procès équitable que
nous avons expliquées ci-dessus. Au cas les deux pays ne les respecteraient pas,
quelle est la solution pour le fonctionnaire accusé? En outre, il n'y a pas de définition
spécifique dans les lois pénales pour la criminalité sexuelle. Cette différence a donc
conduit à de multiples interprétations entre les pays pour définir la criminalité sexuelle,
dont certaines permettent l'acte et d'autres le criminalisent. Outre d'autres facteurs
objectifs, notamment la faiblesse des institutions judiciaires dans les pays qui accueillent
ces forces et même le personnel des Nations Unies. L'ONU est également soumise à des
pressions de l'État de l'auteur du crime pour empêcher ses poursuites ou son audition
par devant les tribunaux d'autres pays, faute de quoi elle retirera ses forces
67
.
2. La protection fonctionnelle
Le droit international public établit pour le fonctionnaire international une protection
similaire à celle accordée par les États au fonctionnaire national et comprend tout ce qui
peut porter atteinte à un fonctionnaire international dans l'exercice de ses fonctions. La
protection exercée par l’Organisation n’empêche pas l’Etat dont le fonctionnaire porte la
nationalité d’exercer sa protection diplomatique
68
.
C’est ce qui a été confirmé par la Cour internationale de Justice (CIJ) dans un avis
consultatif portant sur l'affaire relative à l'indemnisation de l’assassinat du Comte Folk
Bernadotte. La CIJ avait reconnu le droit à l'État de Suède, dont le Comte avait la
nationalité, de demander réparation pour sa mort auprès du gouvernement israélien,
ainsi qu’auprès des Nations Unies, puisqu’il était l'un de ses fonctionnaires. Mais la Cour
a imposé la condition que cela n'entraîne pas la double indemnisation de l'État pour le
même acte ou dommage, ce qui est une règle stable du point de vue criminel
69
.
En revanche, rien dans le droit international public n’indique qui de l’État ou de
l’organisation a la priorité dans l’exercice de la protection fonctionnelle et donc dans la
compensation de celle-ci. Cependant, la jurisprudence donne une solution théorique aux
problèmes pouvant surgir à cet égard. L’Organisation et ses États membres peuvent
conclure des accords pour résoudre ces problèmes
70
. À notre avis, accorder à
l’organisation le droit d’exercer sa protection en faveur de ses fonctionnaires, en cas de
problèmes ou de harcèlement au cours de leur travail ou même lorsqu’ils subissent un
préjudice, mérite donc d’être pris en compte et soutenu pour que l’Organisation puisse
66
Freedman, Rosa, supra note 44 a la 971.
67
Freedman, Rosa (2014). «UN Immunity or Impunity? Human Rights Based Challenge», 25:1 European
Journal of International 242.
68
Le Règlement portant sur le statut du personnel de l’Union Économique et Monétaire de l’Afrique de l’Ouest,
prévoit dans ce sens à son article 20 que l’agent a droit à la protection de l’Union dans l’exercice de ses
fonctions et que les modalités de cette protection sont définies par un règlement d’exécution du présent
Règlement. Voir: Fouda, Guillaume, supra note 21 à la 12.
69
Freedman, Rosa, supra note 75 à la 967.
70
Sur, Serge, supra note 9 a la 718.
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s’acquitter de sa che de la meilleure façon possible, du fait notamment de la complexi
des tâches accomplies
71
.
Conclusion
Nous avons discuté la question du désaccord sur la définition de fonctionnaire
international et la possibilité d’y inclure tous les employés de l’organisation
internationale. Il a été constaté que les partisans de l’idée d'inclure dans ce terme tous
les employés trouvent un soutien dans la jurisprudence de la CIJ. En ce qui concerne la
nomination d’un fonctionnaire international au sein d’une organisation internationale,
nous pouvons établir une distinction claire entre la fonction publique internationale et
celle nationale, qui se reflète dans la nature des sanctions imposées à chacun et par la
faiblesse ou la force de l’affiliation du fonctionnaire à l’organisation ou à l’État dans
lesquels il opère.
S'agissant de l'indépendance de l'Organisation dans la sélection des candidats à une
nomination, celle-ci devient souvent fictive en raison des fortes pressions exercées
quelques fois par Grands États, soit par des pressions directes sur les hauts
fonctionnaires de l'organisation, soit par le biais de la législation interne des États, qui
restreint le processus de sélection des citoyens dans l'organisation internationale.
Le résultat de cette intervention est que les personnes nommées favorisent les politiques
de leurs gouvernements plutôt que la représentation de l'organisation, ce qui nuit à la
performance de l'organisation à tous les niveaux et l'empêche d'avancer.
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PARA ALÉM DA REPORTAGEM. AGÊNCIA DE MEIOS DE COMUNICAÇÃO NOS
PROCESSOS DE JUSTIÇA TRANSITÓRIA
AMAIA ÁLVAREZ BERASTEGI
amaia.alvarez@unavarra.es
Docente na Universidade Pública de Navarra (Espanha). Doutora em Direito na Universidade
Ulster, realizou investigação de pós-doutoramento na Universidade do País Basco. Publicou em
revistas internacionais relacionadas com as áreas da memória histórica, justiça transicional,
história e jornalismo
Resumo
Apesar do impacto significativo dos meios de comunicação social nos processos transitórios
de justiça, esta relação continua a ser subexplorada. O papel dos meios de comunicação social
na construção de narrativas de conflitos e violações dos direitos humanos no passado era
tradicionalmente enquadrado na dicotomia de promover a paz versus infligir a guerra. No
entanto, estes papéis, bem como os próprios sistemas de comunicação social, precisam de
ser colocados dentro de quadros mais complexos. Este artigo analisa alguns dos temas-chave
que ligam a justiça transicional (o direito à verdade, justiça, reparações e garantias de não
repetição) e os meios de comunicação. A principal conclusão é que precisamos de ir além do
papel dos meios de comunicação social como observador, e enquadrá-lo como um possível
agente do processo global de transformação de conflitos e de justiça transitória.
Palavras-chave
Direitos Humanos e Media; Violência Política; Conflito; Justiça Transitória; Jornalismo de Paz
Como citar este artigo
Berastegi, Amaia Álvarez (2020). Para além da reportagem. Agência de meios de
comunicação nos processos de Justiça Transitória. In Janus.net, e-journal of international
relations. Vol. 11, 2 Consultado [online] em data da última consulta, DOI:
https://doi.org/10.26619/1647-7251.11.2.9
Artigo recebido em Setembro 25, 2019 e aceite para publicação em Abril 10, 2020
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Para além da reportagem. Agência de meios de comunicação nos processos de justiça transitória
Amaia Álvarez Berastegi
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PARA ALÉM DA REPORTAGEM. AGÊNCIA DE MEIOS DE
COMUNICAÇÃO NOS PROCESSOS DE JUSTIÇA TRANSITÓRIA
1
AMAIA ÁLVAREZ BERASTEGI
1. Introdução
Nos últimos quinze anos, a academia e os profissionais concentraram-se com particular
ênfase na política do passado, e os estudos de memória e de justiça transitória
proliferaram (Teitel 2014). O conceito de justiça transitória expandiu-se rapidamente e
estreitamente ligado à área dos direitos humanos (Arthur 2009). O direito à verdade, à
justiça, à reparação e às garantias de não repetição tem sido amplamente investigado
em teoria e na prática (Olsen et al. 2010; Gready 2010; De Greiff 2012; Buckley-Zisteil
& Koloma Beck 2015; McEvoy & Mallinder 2017). No entanto, o papel específico dos
meios de comunicação social nos processos de justiça de transição continua a ser
largamente subexplorado (Laplante 2009; Hodzic & Tolbert 2016). Este artigo segue o
trabalho dos poucos estudiosos da justiça de transição que exploraram esta ligação (ver,
por exemplo: Laplante 2009; Price & Stremlau 2012; Tamayo & Bonilla 2014; Viebach et
al. 2016) e contribui para a concetualização da relação entre os campos dos media e da
justiça transitória. O quadro utilizado baseia-se numa perspetiva abrangente que vai para
além do papel dos jornalistas como repórteres e compreende os meios de comunicação
social como ator e foco das iniciativas de justiça transitória. Com este objetivo, o artigo
centra-se em vários temas-chave, tais como a responsabilidade dos media nos processos
de verdade, os mecanismos de responsabilização dos media e os programas de reparação
para os jornalistas.
A vasta literatura sobre os meios de comunicação social e o conflito ilustra a ligação entre
estes dois campos (Eytan 2009). As organizações noticiosas estão, pela sua natureza,
ligadas à política (Borrat 1989) e, consequentemente, estão relacionadas com a dinâmica
do confronto político violento. No entanto, não é claro até que ponto deveriam estar
envolvidas em políticas de conflito e pós-conflito. Este papel contém um paradoxo: um
dos princípios básicos do jornalismo refere-se à sua independência, mas ao mesmo
tempo, a total objetividade, particularmente em sociedades divididas e litigiosas, é um
objetivo inalcançável. A primeira parte do artigo esboça os conceitos de meios de
1
Artigo traduzido por Cláudia Tavares.
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Para além da reportagem. Agência de meios de comunicação nos processos de justiça transitória
Amaia Álvarez Berastegi
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comunicação e justiça transitória, enquanto a segunda parte explora as interconexões
entre os dois campos.
2. A encruzilhada entre a justiça transitória e os meios de comunicação
social
A ligação entre a justiça transitória e os meios de comunicação social pode ser
contextualizada no âmbito de estudos anteriores. Os antecedentes teóricos da maior
parte da investigação baseiam-se no trabalho conduzido pelo estudioso Johan Galtung,
que concetualizou o termo jornalismo de paz em oposição ao jornalismo de guerra
(2013). A lógica subjacente a esta área de investigação é clara: uma vez que os meios
de comunicação social "medeiam a discussão pública em torno dos processos de justiça
transitórios", são também os meios de comunicação social que "decidem o que atingirá
o domínio público, cuja voz será representada e se o foco será a substância - as
circunstâncias e as causas do abuso - ou os marginais” (Hodzic & Tolbert 2016: 10). No
entanto, na maioria das vezes, a investigação que examina a cobertura noticiosa
compreende o papel dos meios de comunicação social como observador do processo de
justiça transitória e coloca o seu significado nas formas como os meios de comunicação
social "vendem" e "explicam" os mecanismos e a política. De acordo com Price e Stremlau
(2012), as seguintes são algumas das outras questões a ter em consideração:
“…deve ser dada atenção a uma miríade de questões, incluindo como
funcionam os media locais, como os jornalistas (tanto privados como
governamentais) enquadram o grão patriótico, e como criam confiança entre
os atores-chave, servindo de fórum para a negociação de elite, mediando
ideias concorrentes de justiça, e reforçando ou enfraquecendo outras
abordagens de grupo à violência e resolução de conflitos” (2012: 1081).
A secção seguinte analisa o papel dos meios de comunicação social através de quatro
temas-chave: o papel dos meios de comunicação social nos processos de verdade, a
responsabilidade dos meios de comunicação social e a liberdade de imprensa, as
reparações para os jornalistas e, finalmente, o significado da agência de comunicação
social nos processos de transformação de conflitos.
3. Como podem os meios de comunicação social mediar a justiça
transitória? Explorando conceitos complexos e em mudança
A justiça transitória é geralmente definida como "a conceção de justiça associada a
períodos de mudança política, caracterizada por respostas legais para enfrentar os erros
dos regimes predecessores repressivos (Teitel 2000: 69). Contudo, o atual
entendimento de justiça transitória vai além das respostas legais (McEvoy 2007) e
abrange, de acordo com a definição fornecida pela ONU, "toda a gama de processos e
mecanismos associados às tentativas de uma sociedade de se conformar com um legado
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de abusos passados em grande escala, a fim de assegurar a responsabilização, servir a
justiça e alcançar a reconciliação" (NU 2010: 2).
Os passos iniciais no terreno foram ligados aos processos de democratização na América
Latina na década de 1980, mas a maioria dos autores traçam os passos iniciais até aos
tribunais do pós-guerra em Nuremberga e Tóquio (Arthur 2009). Atualmente, existe um
consenso geral sobre a necessidade de um modelo de justiça transitório que inclua uma
abordagem holística (abrangente) (Olsen et al. 2010; Nagy 2008) que não imponha
"justiça do homem branco". (Lincoln 2011; Andrieu 2010), tem em conta comunidades
culturalmente diversas (Brown & Aoláin 2015), inclui uma perspetiva de género (Bell
& O'Rourke 2007; Baines 2011) e, sobretudo, é específica do contexto (Teitel 2014;
McEvoy & McGregor 2008).
Além disso, desde as transições políticas dos anos 90, rias ONG e organizações
internacionais estabeleceram estratégias de comunicação e relacionadas com os meios
de comunicação social nos locais de pós-conflito (Melone et al. 2002). Os meios de
comunicação social ligados ao jornalismo de paz também se expandiram, com a
plataforma de notícias ¡Pacifista!, da Colômbia, sendo um exemplo disto mesmo. Nos
últimos anos, surgiram também meios de comunicação social específicos da justiça
transitória, tais como a plataforma JusticeInfo.net, que visa a elaboração de relatórios
sobre temas relacionados com a justiça transitória internacional. Os académicos também
expandiram a investigação sobre as ligações entre as novas tecnologias da informação e
os conflitos (Zeitzoff 2018). Inicialmente, a Primavera Árabe foi o foco da maioria dos
estudos que examinavam esta ligação (Hänska Hay 2016), embora agora esta relação
seja abordada de muitas perspetivas diferentes. As redes sociais e o ativismo (Kavada
2015) e o impacto das novas tecnologias na promoção do discurso do ódio (Ben-David,
Anat & Matamoros-Fernandez 2016) são algumas das áreas que se baseiam nesta visão.
No entanto, como Laplante e Phenicie salientaram, "apesar da abundância de literatura
académica e erudita" nestes campos, "o papel e a influência que os meios de
comunicação social têm nestes processos permanecem em grande parte inexplorados"
(2009: 252).
As complexidades dos meios de comunicação social de hoje
A era dourada da televisão (anos 80 e 90) está a desvanecer-se e o impacto, as
possibilidades e a regulação dos meios de comunicação social ainda não é clara. A
transição digital trouxe novos desafios às organizações noticiosas: o fosso entre cidadãos
e jornalistas está a diminuir a cada dia e novas formas de interação na era digital estão
também a transformar o impacto dos meios de comunicação social na política. As novas
estratégias de comunicação dos deres políticos e os novos desafios relacionados com
notícias falsas ilustram o impacto da transformação digital na política. A forma como o
presidente dos EUA Donald Trump utiliza o Twitter e os chamados fenómenos pós-
verdade são os exemplos mais claros desta tendência. Eytan (2010: 87) explica melhor
esta mudança:
“Os governos perderam muito do seu monopólio da informação, e os atores
não estatais e os indivíduos tornaram-se participantes muito mais ativos e
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significativos nos assuntos mundiais, tanto na guerra como na resolução de
conflitos”.
Apesar da falta de investigação sobre os media e a política pós-conflito, a ligação entre
os media e o conflito tem sido amplamente examinada, particularmente durante os anos
90, quando o efeito da CNN foi concetualizado. Este termo implica que as redes globais
de televisão, tais como a CNN e a BBC World, se tinham tornado atores decisivos na
determinação de políticas (Eytan 2005). O conceito foi utilizado no final da Guerra Fria,
um período marcado por várias guerras, na sua maioria conflitos interestatais (Eytan et
al. 2016).
Desde os anos 90, no entanto, os meios de comunicação social mudaram drasticamente.
Chegámos a uma situação de notícias 24 horas por dia que recebemos de muitos canais
diferentes (Cushion et al. 2015). Tradicionalmente, os meios de comunicação social têm
sido associados à qualidade da democracia e ao papel de cão de guarda. No entanto, em
contextos de transição, isto é "mais complexo, contestado, e potencialmente mais
perigoso” (Viebach et al. 2016: 38). Os estudiosos e profissionais do pós-conflito
assumem a necessidade de utilizar tecnologias de comunicação para promover a
liberdade de expressão, transformação de conflitos, democratização e desenvolvimento.
No entanto, Schoemaker e Stremlau (2014) argumentam que "não é claro como e em
que casos" esta política deve ser apresentada.
Este artigo baseia-se nos de outros estudiosos que criaram a teoria nesta área. Eytan,
por exemplo, distinguiu cinco níveis dos meios de comunicação social por critérios
geopolíticos: "local, nacional, regional, internacional e global" (Eytan 2009: 103). Mais
tarde, o mesmo estudioso acrescentou que dois aspetos devem ser considerados: "(1) a
multiplicação e fragmentação dos meios de comunicação social e o seu subsequente
impacto na tecnologia de recolha de notícias do século XXI; e (2) o papel dos meios de
comunicação social locais, tais como os meios de comunicação social baseados em
distritos ou regiões de conflito, ou os meios de comunicação social nacionais que cobrem
os conflitos na sua periferia imediata" (Eytan et al. 2016: 656).
As instituições de justiça transitória concebem estratégias de divulgação e comunicação
e fazem uso de novas plataformas de meios de comunicação para chegar ao seu público
(o ICC tem o seu próprio canal no YouTube). Por outro lado, os meios de comunicação
social têm o dever de informar sobre estes mecanismos de justiça transitória. No entanto,
os profissionais da justiça de transição pensam geralmente que os jornalistas são
tendenciosos e politizados, enquanto os jornalistas se queixam da informação limitada
prestada pelas instituições de justiça de transição (Viebach 2016: 55). Uma vez que os
sistemas de comunicação são essenciais para construir confiança dentro e com
mecanismos de justiça transitórios (Price e Stremlau 2012: 1081), uma relação saudável
e transparente entre os dois sectores parece ser um dos elementos para o sucesso do
processo de transformação.
4. Tensões em lidar com a justiça transitória: O processo da verdade
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A justiça transitória e os meios de comunicação social partilham o dever da verdade: o
processo da verdade relativo às violações dos direitos humanos no passado está no
centro dos processos de justiça transitória e, do mesmo modo, os meios de comunicação
social têm uma responsabilidade social tanto em termos de procura da verdade como de
dizer a verdade. De acordo com a teoria da comunicação, a responsabilidade social é
uma das quatro teorias tradicionais da imprensa (Siebert et al. 1963), sendo as outras
três a teoria soviético-comunista (meios de comunicação social controlados unicamente
pelo Estado), a teoria autoritária (controlo rigoroso do Estado) e a teoria libertária
(ausência de qualquer controlo do Estado). Os sistemas de comunicação social
enquadrados na teoria da responsabilidade social têm um dever para com o jornalismo
de investigação e o estão sujeitos a censura. Esta teoria inclui mecanismos externos e
internos de controlo dos media: os códigos de conduta para jornalistas são o exemplo
mais claro destes mecanismos. No entanto, existe uma certa tensão dentro da teoria da
responsabilidade social: demasiado controlo por parte das organizações lideradas pelo
Estado pode levar a uma falta de liberdade de expressão, a narrativas controladas e à
criminalização de narrativas históricas alternativas; enquanto, por outro lado, a falta de
regulamentação pode levar a narrativas revisionistas (Belavusau 2015).
As sociedades em transição de conflitos, ditaduras ou violações graves e sistémicas dos
direitos humanos são particularmente sensíveis à manipulação, uma vez que have
sempre atores a tentar esconder a violência do passado. Nestes contextos, há uma
necessidade particular de sublinhar a responsabilidade social dos meios de comunicação
social e o seu dever de dizer a verdade. Esta responsabilidade pela verdade vai além da
reportagem e enquadra os meios de comunicação social como um ator no processo global
de democratização e reconciliação. No seu papel de procura da verdade, de acordo com
Ware, as narrativas dos media devem estar "enraizadas em factos" e devem evitar
utilizar uma "linguagem que não admita as limitações do que poucos factos novos são
suscetíveis de ver a luz do dia de qualquer maneira" (Ware 2017: 17). Para esse efeito,
Barbeito argumenta que um dos aspetos fundamentais se refere à redação das notícias
"utilizando uma variedade de fontes", tais como o poder judicial, académicos, arquivos,
ONG e outras organizações noticiosas (2009: 53).
Em vez dos meios de comunicação social como mecanismo de busca da verdade, a
investigação que estuda os meios de comunicação social e a justiça transitória tem-se
concentrado na reportagem. A cobertura noticiosa dos procedimentos e resultados das
Comissões de Verdade e Reconciliação (TRC) tem sido um dos tópicos mais pesquisados.
Na verdade, a forma como os meios de comunicação social se comportam durante a
transição é crítica em locais que tentam lidar com um passado violento (Laplante &
Phenicie 2010). Na África do Sul, por exemplo, os meios de comunicação social
desempenharam um papel fundamental nos primeiros êxitos dos TRC do país.
(Verdoolaege 2005; Krabill 2001). Em contraste, a cobertura noticiosa do TRC no Peru
teve um impacto negativo sobre o processo. De acordo com Laplante (2009: 252), os
meios de comunicação social no Peru não conseguiram "mediar adequadamente visões
conflituosas da história de um país - as suas causas e consequências, os seus vilões e
heróis". Assim, a cobertura jornalística pode exacerbar o conflito e minar as tentativas
de construção da paz, mas também tem o potencial de funcionar como um instrumento
de resolução de conflitos através da educação pública (Nagy & Gillespie 2015: 5).
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O papel dos meios de comunicação social na procura da verdade e na construção de
narrativas sobre o passado (cobertura noticiosa) pode mudar ao longo do tempo,
especialmente durante a transição. Por exemplo, Nagy e Gillespie (2015) concluem que
a atitude dos meios de comunicação social mudou relativamente à cobertura noticiosa
dos abusos cometidos em escolas residenciais indianas no Canadá. No entanto, salientam
também que a cobertura jornalística "ainda está muito aquém de desafiar os canadianos
a pensar nas escolas residenciais indianas em termos expansivos que enquadram a
reconciliação como exigindo descolonização e mudança sistémica" (2015: 37).
Tradicionalmente, os meios de comunicação social têm assumido um dos papéis mais
significativos na investigação das condições em que têm ocorrido violações dos direitos
humanos (Barbeito 2009: 47). No passado, o monopólio da verdade mediada estava com
jornalistas e poderosas organizações noticiosas, mas, com a transformação dos meios de
comunicação social e a expansão da cobertura noticiosa liderada pelos cidadãos, este
domínio também está em constante evolução. O papel dos meios de comunicação já não
parece centrar-se apenas em dar notícias, mas em oferecer contexto às histórias e criar
narrativas. Além disso, existem atualmente rios atores que partilham a
responsabilidade pela verdade em lugares de transição: os atores envolvidos no conflito,
os media e, devido à emergência dos media sociais e outras novas tecnologias, os
cidadãos também. Nos últimos anos, surgiram novas plataformas e aplicações móveis
para ajudar os cidadãos a descobrir estes tipos de abuso, tais como a Inteligência Popular
(PI) e a Testemunha Ocular, que procuram encriptar vídeos e proteger os autores para
poderem utilizar estes dados como prova em processos judiciais.
5. Rumo à sociedade: responsabilidade e liberdade de imprensa
Dois dos aspetos críticos num processo de justiça transitório são as iniciativas para
desvendar a verdade e os mecanismos de responsabilização. A justiça transicional
geralmente olha para os atores tradicionais nos conflitos, tais como grupos armados e
forças controladas pelo Estado, mas também pode olhar para terceiros, tais como
empresas comerciais e os meios de comunicação social. À medida que o campo se
expande, o desempenho destes atores terceiros também está a ser responsabilizado.
Além disso, existem alguns precedentes desta prática nos anos 90, na África do Sul e no
Ruanda. Uma das audições institucionais realizadas na TRC na África do Sul estudou o
papel dos media, e o caso dos media no Ruanda (The Prosecutor v. Nahimana,
Barayagwiza e Ngeze) é um dos casos mais conhecidos de responsabilização dos meios
de comunicação social. Neste caso, três indivíduos ligados à Radio Télévision Libre des
Mille Collines (1993-4) e ao boletim informativo Kangura (1990-95) foram processados,
alegadamente como sendo os mentores por detrás de uma campanha mediática para
dessensibilizar a população Hutu e incitá-los a assassinar a população Tutsi. Em 2003, a
Câmara de Julgamento considerou os três arguidos culpados de genocídio, conspiração
para cometer genocídio, incitação direta e pública a cometer genocídio, perseguição e
extermínio como crimes contra a humanidade (Thomson 2007). Contudo, após vários
recursos e erros processuais, a Câmara de Recursos inverteu alguns aspetos do
Julgamento e absolveu os três da conspiração para cometer genocídio e extermínio como
um crime contra a humanidade. Dois dos acusados ainda foram considerados culpados
de incitação direta e pública à prática de genocídio. Embora a maioria dos casos de
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responsabilidade dos media (isto é, quando os media detêm a responsabilidade política
dos acontecimentos) não tão longe como estar envolvido em genocídio, uma análise
da responsabilidade dos media durante o conflito deve fazer parte das estratégias globais
de lidar com o passado.
As linhas que separam a guerra da propaganda, os crimes mediáticos e a liberdade de
imprensa e de expressão são por vezes pouco nítidas. Juntamente com o aumento das
leis da memória aprovadas nos últimos anos, a terminologia relacionada com a violência
e o passado foi proibida em vários locais. Em 2018, por exemplo, a Polónia proibiu o uso
do termo campos de morte polacos na nova legislação aprovada sobre o Holocausto. O
objetivo desta iniciativa era evitar qualquer acusação de cumplicidade do país em crimes
cometidos pela Alemanha nazi. Numa tentativa de criminalizar certos termos e conceitos
(particularmente, nos meios de comunicação social), a Espanha aprovou em 2015 uma
Lei de Segurança Nacional que expande consideravelmente o crime de "glorificação do
terrorismo". Ao abrigo desta lei, por exemplo, os comentários feitos no Twitter que foram
considerados ofensivos para as timas do terrorismo e da monarquia foram punidos com
penas de prisão. Ainda não é claro como a informação noticiosa e as opiniões pessoais
podem promover o discurso do ódio e outras formas de discriminação e, particularmente
no contexto da era digital, estes debates sobrepõem-se aos ataques à liberdade de
expressão. A contestação do passado nas sociedades que enfrentam processos de justiça
de transição entrelaça-se com iniciativas para proteger as timas, mas também com o
direito à liberdade de expressão e de imprensa. Os papéis dos media nas sociedades em
transição são apanhados neste contexto de mudança dos sistemas dos media e de
iniciativas institucionais para controlar o que é aceitável dizer, e o que não é.
6. Em relação aos próprios jornalistas: trauma e reparação
Embora os jornalistas possam cometer crimes na sua prática profissional, a realidade é
que a maioria dos crimes relacionados com os meios de comunicação social são na
realidade sob a forma de abusos contra jornalistas. A liberdade de imprensa é sempre
violada em locais de conflito e/ou ditaduras e, consequentemente, as medidas relativas
à sua restauração são normalmente encontradas na agenda de transição. A legislação
para garantir estas liberdades (liberdade de expressão e liberdade de imprensa) é o
mecanismo mais comum para promover a democratização do passado; no entanto, nos
últimos tempos, as reparações aos jornalistas que sofreram abusos estão também a
tornar-se parte do pacote de justiça transitória.
O direito à reparação das vítimas de violações graves dos direitos humanos expandiu-se
juntamente com a literatura transitória sobre justiça. Hoje em dia, é amplamente
assumido que as sociedades de transição têm de estabelecer programas de reparação
para as timas de violência política. A justiça transicional tornou-se centrada na tima
e a maioria dos seus mecanismos desenvolveu estratégias para considerar a participação
e visibilidade das vítimas (May & Edenberg 2013). Apesar de o conceito de reparação ser
amplo, a ONU entende que pode ter uma abordagem individual e coletiva e incluir
medidas de restituição, compensação, reabilitação, satisfação e garantias de não
repetição (NU 2006).
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Quando se trata de reparações para jornalistas, um dos aspetos-chave que surge é o tipo
de reparação que eles devem receber. As reparações individuais para as vítimas
jornalísticas não estão em dúvida, mas a dimensão coletiva destas iniciativas cai numa
área controversa. Contudo, existem duas dimensões da violência contra jornalistas que
justificam a natureza coletiva destes abusos: a violência contra jornalistas pode ser
utilizada como arma de guerra, e esta violência representa também um ataque à
liberdade de imprensa e ao direito de uma comunidade ou de uma sociedade a receber
informação (FLIP 2015: 13). Por exemplo, a Lei das Vítimas da Colômbia (2011) abriu a
possibilidade de conceder reparações coletivas aos jornalistas (também às comunidades
indígenas e outros grupos).
Um aspeto a ser tido em conta a este respeito é a necessidade de uma abordagem
abrangente da violência e da reparação para os jornalistas, incluindo uma perspetiva de
género, bem como uma visão da diversidade cultural nesta concetualização e prática.
Neste sentido, a International Women Media Foundation recomenda que se considere
como a desigualdade de género e as práticas sexistas se manifestam no fenómeno da
violência contra jornalistas. (Botero Marino 2013: 155).
Outro aspeto que liga os meios noticiosos a reparações refere-se à cobertura noticiosa.
Até agora, referimo-nos aqui às reparações oficiais e estatais, mas o processo de justiça
transicional e a natureza reparadora das violações do passado devem também adotar
uma abordagem ascendente (McEvoy & McGregor 2008). Neste sentido, as organizações
noticiosas têm um papel crítico a desempenhar no sentido de dar voz às timas e às
histórias silenciadas das pessoas. A justiça transitória pode assumir uma variedade de
formas e contar histórias - ou seja, dar voz e visibilidade a certos indivíduos ou grupos -
pode funcionar como reconhecimento e reparação em si. Neste sentido, Hodzic e Tolbert
argumentam que "partilhar as histórias das timas pode ser uma forma de restauração,
um alívio dos danos que sofreram (outro princípio no cerne da justiça transitória), e até
mesmo um catalisador para um reconhecimento público mais amplo" (2016: 5).
7. Olhando para o futuro: Agência de meios de comunicação no
processo de transformação
Para além da verdade, justiça e reparações, a garantia de não repetição é o quarto ângulo
da justiça transitória. Embora muitas estratégias e mecanismos diferentes possam ser
estabelecidos para procurar garantias de não repetição (o processo global de justiça
transitória procura este fim), a maior parte da literatura liga este princípio aos processos
DDR (Desarmamento, Desmobilização, Reintegração), reforma institucional e medidas
para a construção da democracia e reconciliação. Uma vasta gama de medidas poderia
ser incluída nesta área, mas, em termos de meios de comunicação, encontramos duas
estratégias interligadas que procuram promover a agência dos meios de comunicação
nestes processos: a reforma dos meios de comunicação e a assistência aos meios de
comunicação.
De acordo com Martin (2011), a reforma dos media abrange tanto a transformação do
sistema como as medidas de assistência aos jornalistas e aos meios de comunicação
social. Na sua investigação sobre a reforma dos media na Bósnia, identificou quatro
áreas-chave de atividade: educação jornalística, desenvolvimento do negócio dos media,
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liberdade de expressão e proteção dos jornalistas, e a criação de associações e redes de
profissionais dos media concebidas para desenvolver padrões profissionais e códigos de
conduta (Martin 2011: 86). Embora todos estes elementos estejam relacionados com a
reforma dos media, de uma perspetiva de justiça transitória parece necessário distinguir
entre os esforços que visam a democratização do próprio sistema (reforma dos media) e
as medidas dirigidas a melhorar a qualidade da prática jornalística (assistência aos
media).
A literatura sobre justiça transitória sublinha que os processos devem ser
contextualizados e conduzidos por atores locais, em vez de serem dirigidos pela
comunidade internacional através de fórmulas únicas. Se aplicarmos esta ideia à reforma
do sistema de comunicação social, este processo tem de ter como objetivo assegurar a
pluralidade e a participação de diferentes comunidades e grupos. Para que estas reformas
sejam transformadoras, parecem ser necessárias a promoção de meios de comunicação
comunitários e iniciativas para regular a concentração dos meios de comunicação. O
recente acordo de paz na Colômbia (2016), por exemplo, inclui um novo apelo à entrega
de licenças de rádio comunitárias (Ponto 2.2.3 do Acordo Final) e novos regulamentos
para a atribuição de publicidade institucional (Ponto 2.2.3.2).
2
Uma estratégia de reforma dos meios de comunicação social totalmente abrangente terá
de olhar para o sistema de comunicação social de uma forma holística. Além disso, a
legislação sobre liberdade de imprensa e liberdade de expressão poderá ser revista e
adaptada ao novo panorama digital, e as questões relativas ao acesso aos meios de
comunicação social terão de ser reconsideradas. As limitações de alguns países ao acesso
aos meios de comunicação social (Turquia, Irão e Paquistão, por exemplo) e os elementos
técnicos necessários para permitir esse acesso (apenas 3% da população do Chade tem
acesso à Internet) são questões a considerar. Em muitos casos, os modelos a seguir na
reforma do sistema de comunicação social não podem basear-se em modelos ocidentais
de democracia nem em modelos liberais de comunicação social independente (Voltmer
2013). O objetivo final deve ser que os atores locais sejam proprietários do sistema dos
media e sigam as regras do interesse público, e não os interesses da elite política e
económica.
A fim de alcançar estes objetivos, a assistência aos meios de comunicação social tem
também um papel a desempenhar: o profissionalismo, tal como acima referido, é
fundamental para assegurar a responsabilidade social dos meios de comunicação. Estas
estratégias podem assumir muitas formas diferentes: formação para jornalistas,
assistência técnica para organizações noticiosas, apoio à criação de entidades, tais como
comissões de reclamações e provedores de justiça, promoção de redes para
trabalhadores dos meios de comunicação social e códigos de conduta/melhores práticas
e diretrizes para jornalistas. Existem vários códigos de conduta e de ética para jornalistas
durante conflitos (ver, por exemplo, os princípios da UNESCO para jornalistas que cobrem
conflitos, a partir de 1978
3
), mas necessidade de promover novas normas que
2
O acordo final de paz foi assinado no dia 24 de novembro de 2016.
3
UNESCO, Declaração sobre Princípios Fundamentais relativos à Contribuição dos Meios de Comunicação
Social para o Reforço da Paz e da Compreensão Internacional, para a Promoção dos Direitos Humanos e
para o Combate ao Racismo, ao Apartheid e ao Incitamento à Guerra, adotada em 28 de novembro de
1978.
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abranjam os desafios específicos nos sítios pós-conflito. A União Europeia, por exemplo,
incluiu a preparação de um Código de Conduta dos Jornalistas TRC no seu programa de
formação de jornalistas (Price & Stremlau 2012) e foram apresentados novos projetos
de orientações para jornalistas na Irlanda do Norte em maio de 2018
4
. Numa linha
semelhante, um conjunto de normas foi acordado em Bojayá, Colômbia, a fim de
estabelecer um código de conduta para jornalistas que cobrem exumações. Estas normas
são uma tentativa de equilibrar o direito das vítimas à intimidade e o direito à informação
dos jornalistas e das comunidades. (Newman Pont et al., 2018).
Em última análise, o objetivo da reforma e assistência dos meios de comunicação social
é promover a democratização, facilitando o livre fluxo de informação, transparência,
responsabilidade no governo, e crescimento económico (Kumar 2007). A fim de
promover a agência dos media no processo de justiça transitória, a reforma dos media
deve ser parte da estratégia global de transformação de conflitos.
8. Conclusão
O conceito de comunidades imaginadas de Anderson (1989) tem sido amplamente
utilizado em estudos culturais e mediáticos (Tsaliki 1995). Uma parte significativa da
forma como moldamos e imaginamos as nossas sociedades e comunidades relaciona-se
com a forma como os meios de comunicação social enquadram as notícias. Assim, os
meios de comunicação social desempenham um papel crucial na formação das nossas
narrativas sobre o passado. Quando estas narrativas fazem parte de uma sociedade
dividida, o papel dos media é também contestado: uma ou outra narrativa será
promovida em função das relações de poder dentro do sistema dos media. O reino da
justiça transitória funciona da mesma maneira: um ou outro mecanismo e modelos para
lidar com um passado violento será estabelecido dependendo de quem detém o poder
hegemónico. Existe, portanto, uma relação direta entre os media, a justiça transitória e
o processo de construção de narrativas, verdade e justiça.
O papel dos meios de comunicação social na construção de narrativas de conflitos e de
violações dos direitos humanos no passado era tradicionalmente enquadrado na
dicotomia de promover a paz versus infligir a guerra. No entanto, estes papéis, bem
como os próprios sistemas de comunicação social, precisam de ser colocados dentro de
quadros mais complexos. Este artigo analisou alguns dos temas-chave que ligam a justiça
transitória (o direito à verdade, justiça, reparações e garantias de não repetição) e os
meios de comunicação. A principal conclusão é que precisamos de ir além do papel dos
meios de comunicação social como observador, e enquadrá-lo como um possível agente
do processo global de transformação de conflitos e de justiça transitória. Esta agência
pode, contudo, ter falhas se os meios de comunicação social não utilizarem géneros e
ética adequados (Rolston 2007); por esta razão, outras orientações que se centram na
agência de comunicação social são críticas. também necessidade de dar valor à teoria
da responsabilidade social das organizações noticiosas em contextos de transição, a fim
de encontrar o equilíbrio certo entre liberdade de imprensa e responsabilidade.
4
O projeto de orientações foi lançado na conferência "Vitimização e lidar com o Passado" na Queens
University Belfast, realizada em 14 de maio de 2018.
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Este artigo examinou alguns dos diferentes papéis que ligam os meios de comunicação
social às sociedades de transição. À luz da justiça transitória, a estratégia dos meios de
comunicação social nas sociedades de transição deve ser a seguinte: abrangente
(considerar todos os atores envolvidos no sistema dos media); transformador (a
democratização do panorama dos media deve incluir mecanismos contra a concentração
dos media e a regulação da publicidade institucional, por exemplo); específico do
contexto (os atores locais devem possuir e dirigir as estratégias) e ascendente (os media
comunitários que não seguem os interesses políticos e económicos devem ser
encorajados). Em conclusão, a ligação entre a justiça transitória e os meios de
comunicação social reside no facto de o conflito e as violações dos direitos humanos no
passado não poderem ser contadas ou narradas apenas por um conjunto de atores. No
processo de construção de verdade e narrativas sobre o passado, os meios de
comunicação social têm de considerar dar voz às vítimas, perpetradores, académicos e
organizações da sociedade civil (Newman Pont et al. 2018).
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O IMPACTO DA CIBERSEGURANÇA NO QUADRO JURÍDICO REGULATÓRIO DA
SEGURANÇA MARÍTIMA
DUARTE LYNCE DE FARIA
duarte.faria@apsinesalgarve.pt
Doutor em Direito (Universidade da Extremadurae e Faculdade de Direito de Lisboa) na área de
Direito Marítimo, mestre e licenciado em Direito e licenciado em Ciências Militares-Navais.
Enquanto oficial de Marinha frequentou diversos cursos na área das operações navais e
desempenho de funções a bordo de navios e em terra no Estado-Maior da Armada (Portugal). É
professor convidado da Faculdade de Direito da Universidade Nova de Lisboa, Escola Naval e
Escola Superior Náutica Infante D. Henrique, conferencista no Instituto Universitário Militar e
investigador do CEDIS, CINAV e CIDIUM. Desempenhou diversos cargos de gestão e direção no
Instituto Marítimo-Portuário, na Administração dos Portos de Setúbal e Sesimbra e na
Administração dos Portos de Sines e do Algarve. Publicou livros e artigos nas áreas do direito do
mar, direito marítimo e segurança marítima.
Resumo
Os conceitos de segurança marítima e de proteção marítima tiveram na sua base diferentes
finalidades, objetos e perspetivas. Contudo, atualmente, as mesmas convenções
internacionais aplicáveis aos transportes marítimos regulam ambas as vertentes. Na análise
da maioria dos incidentes e acidentes no mar é bastante difícil delimitar as matérias de
segurança e de proteção e, normalmente, após uma avaria, é inútil fazê-lo já que o
planeamento e a resposta aos riscos são normalmente dados de forma integrada. Por outro
lado, assiste-se a uma progressiva extensão do conceito de segurança marítima para englobar
as matérias da proteção em simultâneo com o aparecimento de um novo tipo de ameaças que
estão sempre presentes desde o momento que se ligam os computadores às redes em
qualquer lugar do mundo: as ciberameaças! Estando os navios equipados com novas
avançadas tecnologias, a proteção contra os ciberataques é mais importante do que nunca.
Estes avanços tecnológicos tornaram-se um alvo fácil e de alta prioridade para os criminosos
cibernéticos. Com este comportamento, podem prosseguir o seu propósito de atacar os
sistemas do navio e, a partir deles, os diferentes sistemas em terra. A digitalização da
indústria marítima ocorreu de forma muito rápida. Contudo, tornou-se essencial para os
marítimos não compreenderem e adotarem estas novas tecnologias como, igualmente,
assumirem uma postura cautelosa e de alerta de em relação a certos acontecimentos e
ocorrências que podem correr perigosamente mal num curto espaço de tempo. Vislumbra-se
um novo estádio da prontidão marítima que necessita de um robusto e bem definido “código”
que alargue e concretize um novo” conceito de segurança marítima em sentido lato que
reforce as convenções internacionais marítimas e a sua aplicação. As responsabilidades dos
“Estados de Bandeira” e dos “Estados do Porto”, nos termos do disposto na Convenção das
Nações Unidas sobre o Direito do Mar e das convenções internacionais marítimas como se
estabelece nos diferentes Memorandos de Entendimento ao nível mundial e nos documentos
da OMI e de outras organizações internacionais (como a União Europeia), deverão ser
atualizadas e passarem a considerar, também, as matérias da proteção marítima. Para além
disso, é essencial apoiar uma cooperação estreita nos campos da segurança marítima e da
proteção tendo e vista a elaboração de um novo e robusto “Código Marítimo”. Esta será a
linha de orientação prosseguida, pretendendo-se, neste momento, “agitar e rolar” esta
matéria rumo a um novo estádio regulatório.
Palavras-chave
Segurança marítima, proteção marítima, cibersegurança, Estado de bandeira, Estado do porto
Como citar este artigo
Faria, Duarte Lynce de (2020). “O impacto da cibersegurança no quadro jurídico regulatório
da segurança marítima”. In Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 11, 2
Consultado [online] em data da última consulta, DOI: https://doi.org/10.26619/1647-
7251.11.2.10
Artigo recebido em Março 21, 2020 e aceite para publicação em Setembro 23, 2020
JANUS.NET, e-journal of International Relations
e-ISSN: 1647-7251
Vol. 11, Nº. 2 (Novembro 2020-Abril 2021), pp. 164-186
O impacto da cibersegurança no quadro jurídico regulatório da segurança marítima
Duarte Lynce de Faria
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O IMPACTO DA CIBERSEGURANÇA NO QUADRO JURÍDICO
REGULATÓRIO DA SEGURANÇA MARÍTIMA
DUARTE LYNCE DE FARIA
I. Introdução
1
Quando em julho de 2017, a maior empresa armadora mundial no transporte de
contentores (a dinamarquesa “MAERSK”) sofreu um ciberataque que paralisou
totalmente os seus sistemas de tecnologias de informação (TI) durante várias semanas,
o setor marítimo-portuário “acordou” para o enorme impacto desta nova ameaça.
Os danos cifraram-se entre 250 a 300 milhões de dólares
2
e implicaram a reinstalação
de 45.000 estações de trabalho e de 4.000 servidores em todo o mundo e o responsável
foi identificado como o ransomware “NotPetya”. De resto, este malware já tinha atacado
a empresa holandesa TNT Express, em junho de 2017, conforme reconhecido pela FedEx
(NYSE: FDX)
3
.
Na verdade, estando os navios equipados com novos equipamentos dotados das mais
modernas tecnologias para a ponte, para a casa das quinas e para todo o navio em
geral, a ameaça dos ciberataques é mais importante do que nunca dado que a maioria
dos novos sistemas funcionam de forma automática e estão extremamente dependentes
das TI e dos fluxos de dados.
1
Este artigo estava próximo da sua conclusão quando eclodiu a pandemia do COVID-19. Para além de obrigar
a (re) pensar o mundo global - com os seus pontos fortes e fraquezas, as suas oportunidades e ameaças
(numa verdadeira análise SWOT) - é importante mencionar que a “infeciologia” pode, também, ultrapassar,
em muito, o domínio da saúde. O exemplo da virulência dos diversos malwares ao nível de todos os sistemas
ligados à rede pode igualmente, em períodos de crise como o que se atravessa, limitar drasticamente a
resposta dos equipamentos de saúde e da proteção civil que exigem a adoção de respostas pré-planeadas
associadas a diversos sistemas. Por isso, que planear, igualmente, a adoção de medidas alternativas,
ainda que com uma eficácia menor, mas com maior resiliência á fragilidade que alguns sistemas ainda
apresentam, particularmente, nestes períodos de maior perigo para a Humanidade.
2
De custos diretos. Segundo estimativas mais recentes, os custos totais poderão ter chegado a 600 M€. Vale
a pena perspetivar as ameaças à cibersegurança em 2020. Num recente artigo de título 2020 Vision: Check
Point’s cyber-security predictions for the coming year”, de 24 de outubro de 2019, in
https://www.checkpoint.com, blog.checkpoint.com,
https://usercenter.checkpoint.com/usercenter/index.jsp, o cenário das ameaças relativo à cibersegurança
foi assim descrito:
1. A new cyber ‘cold war’; 2. Fake news 2.0 at the U.S. 2020 elections; 3. Cyber-attacks on utilities and
critical infrastructures will continue to grow; 4. High profile US brands, beware of cyber-attacks targeting
high-profile American companies; 5. Increased lobbying to weaken privacy regulations.
No que respeita às perspetivas relativas à tecnologia da cibersegurança, são as seguintes as principais
ameaças e formas de atuação expectáveis para 2020:
1. Targeted ransomware; 2. Phishing attacks go beyond email; 3. Mobile malware attacks step up; 4. The
rise of cyber insurance; 5. More IoT devices, more risks; 6. Data volumes skyrocket with 5G; 7. AI will
accelerate security responses.
3
Vide notícia in John Gallagher, Freight Wave, 29-03-2019.
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Estes são apenas dois exemplos de alvos à mercê de ciberataques. Tal como noutros
setores económicos, o setor marítimo-portuário tende a confiar e a depender cada vez
mais nas tecnologias para ser mais competitivo, mais eficiente na gestão dos seus
recursos ou para estar conformes com standards ou políticas.
À escala global, assiste-se a uma cada vez maior integração processual dos atores das
cadeias logísticas e, por consequência, dos portos, pela utilização de serviços baseados
em sistemas de informação.
A “Janela Única Logística” (vulgarmente designada por “JUL”) - desenvolvida pelos portos
portugueses e que estabelece a ligação numa plataforma eletrónica por cada porto entre
autoridades, agentes de navegação, transitários e operadores portuários, ferroviários,
rodoviários e logísticos, garantindo a fluidez do tráfego de mercadorias e da
movimentação de passageiros sem a produção de documentos em papel - é um bom
exemplo deste tipo de sistemas e do nível de integração de otimização que proporciona
dos portos e das demais plataformas servidas nas cadeias logísticas.
Estes novos avanços tecnológicos tornaram-se um alvo fácil para os criminosos
4
. São
vários os desafios de cibersegurança que os portos e as plataformas associadas têm que
enfrentar, qualquer que seja o tipo de tecnologia ou sistema de informação usados nas
várias atividades portuárias.
As ameaças são rias, vão desde a interceção de comunicações, bloqueio de serviço,
malware, roubo de identidade, roubo ou manipulação de dados e fuga de informação,
entre outras mais relevantes. Os impactos podem também ser de vária ordem e nefastos,
como por exemplo, paralisia total das operações, morte ou lesões nas pessoas, rapto,
roubo de cargas e perdas financeiras ou de reputação, que urge evitar a todo o custo.
Torna-se crítico impedir a entrada criminosa nos sistemas do navio de pessoas não
credenciadas o que implica um controlo efetivo do acesso de um tripulante que utiliza,
por exemplo, uma rede livre de “Wi-Fi” para chamadas telefónicas e mensagens de
correio eletrónico (“e-mails”) junto a terra. A vulnerabilidade é o resultado imediato da
interconexão quase permanente que hoje em dia um navio moderno possui, o que leva
a que, devido à utilização do mesmo equipamento dos sistemas do navio com acessos
não autorizados das redes comuns, os sistemas de bordo possam ser facilmente
“infetados” e assim comprometidos (por exemplo, a abertura de um phishing email
attachments or hyperlinks” ou de uma notícia dos media previamente “infetada”
5
).
Os impactos deste acesso não credenciado e criminoso podem ser gravíssimos: disrupção
da rede, ausência de fluxos de informação entre os sistemas de controlo do navio, acesso
não autorizado ao controlo e aos sistemas TI, alterações não autorizadas dos parâmetros
dos sistemas, consequências nefastas no ambiente, na segurança marítima a bordo e
nos procedimentos críticos e de emergência do navio, levando a que, se nada for feito
atempadamente, um problema de “security” se possa rapidamente transformar num
problema de “safety”
6
.
4
Uma vez que a introdução de uma tecnologia nova num determinado processo incrementa a possibilidade
de falha humana, altera comportamentos e altera o panorama do risco.
5
Infected removable media.
6
Alguns autores já citados começam, igualmente, a perspetivar as hipóteses de uma ocorrência de “safety”
se transformar num incidente de security no setor marítimo. Trata-se, por exemplo, de acontecimentos
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Outro modo de atuação muito em voga consiste na mistificação (“spoofing”) do sinal do
GPS
7
através de estações em terra que podem, igualmente, aproveitar os sistemas GPS
diferencial em terra (que se servem das plataformas de muitos faróis de navegação)
destinados a melhorar a precisão daquele sistema de posicionamento, como foi relatado,
em 2018, no Mediterrâneo Oriental, no Mar Negro e no Golfo Pérsico.
Em 2019, foi reportado
8
por diversas entidades e, em particular, pela U.S. Coast Guard,
uma mistificação “agressiva” do sinal de GPS em 20 zonas costeiras da R.P da China,
incluindo os portos de Shangai, Fuzhou (Huilutou), Qingdao, Quanzhou (Shiyucun),
Dalian, e Tianjin. A revista MIT Technology Review de novembro de 2019, contempla um
artigo sobre este fenómeno em que o analista Bjorn Bergman avaliou uma quantidade
substancial de informação constante de AIS (“Automatic Identification System”) de
navios. Nessa análise, identificou, pelo menos, 20 locais próximos da costa chinesa em
que a mistificação ocorreu em moldes idênticos durante o ano de 2019, em que 14 deles
eram terminais petrolíferos. Também a organização C4ADS (“Center for Advanced
Defense Studies”), com sede em Washington DC, veio a constatar que a mistificação do
sinal se mantinha durante algum tempo naquelas mesmas zonas
9
.
Estas ocorrências foram mais persistentes no porto de Dalian, no norte da China junto à
Coreia do Norte, podendo suspeitar-se que, dado o momento escolhido - em que
vigoravam as sanções norte-americanas que proibiam a compra de petróleo iraniano e
a constatação, por terceiros, da receção daquele produto na China, se terá tratado de
uma operação para evitar a localização exata dos navios envolvidos na transferência do
produto. Noutros casos, a mistificação do sinal de GPS poderá, igualmente, estar
relacionado com importantes visitas oficiais, um recurso, também, utilizado pela Rússia
na proteção (i.e., no encobrimento) de visitas de VIP oficiais.
Este tipo de mistificação “em massa” é mais fácil de detetar nas áreas costeiras onde
existe uma ampla disponibilidade de dados AIS por via terrestre ou satélite, podendo ter
de mar (encalhe, abalroamento, água aberta, etc.) que impliquem que se concretizem um conjunto de
ameaças sobre os sistemas TI agora, em funcionamento degradado - impedindo-os de contribuírem para
a limitação de avarias a bordo.
7
O Sistema GPS (“Global Positioning System”) é um sistema de navegação por satélite que se destina a
indicar a posição de um recetor móvel a partir da receção simultânea de três satélites, no mínimo. Estão
em funcionamento dois desses sistemas: o GPS norte-americano e o GLONASS russo. No entanto, estão já
em lançamento dois outros sistemas: o GALILEO da União Europeia e o COMPASS (ou Beidou-2) chinês. O
sistema norte-americano é gerido pelo Governo dos Estados Unidos e começou por ter uso exclusivamente
militar (no entanto, manteve-se a precisão do sistema encriptado para uso militar, designadamente, para
o auxílio ao guiamento de mísseis de cruzeiro). A sua utilização civil pode rapidamente ser alterada ou
mesmo levar ao seu bloqueio em períodos de tensão ou de crise, inclusivamente, dando informações erradas
de posicionamento (“spoofing” de fonte interna), tal como pode suceder com o aproveitamento das estações
GPS diferencial (que estão aptas, em funcionamento normal, a aumentar a precisão da posição geográfica
do recetor) para a introdução de erros no posicionamento do veículo.
O spoofing” (ou mistificação) do GPS consiste, assim, na introdução deliberada de sinais nos recetores
móveis por estações alheias e que visa indicar uma posição geográfica errada. Esta utilização na mistificação
do sinal GPS coincide, normalmente, com o acesso não autorizado aos sistemas TI que procura esconder a
verdadeira identidade do utilizador.
8
Vide o artigo de Goward, Dana A., “Patterns of GPS Spoofing at Chinese Ports”, MAREX, in Daily Collection
of Maritime Press Clippings 2019-356, pps. 31 e 32.
9
A C4ADS é uma organização privada sem fins lucrativos que tem como objetivo a análise e relato de dados
num panorama de conflito ou de questões de “security” transnacional.
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como causa a mistificação de um sinal satélite e de um outro tipo associado a uma
estação ou a um dispositivo em terra
10
.
Recuando algumas décadas, a mistificação dos sinais eletrónicos é algo que remonta ao
tempo da “Guerra Fria”, juntamento com as medidas de empastelamento e contra-
empastelamento (“jamming” e “anti-jamming”, respetivamente e medidas ECM e ECCM,
”Electronic Countermeasures” e ”Electronic Counter Countermeasures”, respetivamente).
Assim, a transmissão de eco radar falso para induzir em erro o opositor na sua consola
radar era classificada como “deception jamming” (i.e., mistificação por
empastelamento).
11
Quando o sistema GPS entrou em produção, foi de fácil perceção que o seu código era
vulnerável à mistificação pois tratava-se de um código aberto,
12
reproduzível por
qualquer pessoa, através de um simulador (i.e., o mistificador do sinal GPS).
Naturalmente que foi esta a razão para o sistema GPS transmitir, igualmente, um sinal
militar encriptado (o chamado “P(Y)-code”), para além de permitir uma precisão muito
superior na condução de operações militares, particularmente, no guiamento de armas.
Contudo, como o sistema GPS passou a ter uma utilização universal civil, a grande
maioria dos recetores não têm capacidade para receber sinais codificados e o
desenvolvimento de codificação para efeitos civis não é de cil harmonização e de
decisão pelos responsáveis pela gestão do sistema. Relembre-se, no entanto, que
existem atualmente infraestruturas críticas vulneráveis e que deverão merecer uma
atenção especial quanto à receção de sinais de GPS, particularmente, no que respeita
aos veículos que as frequentam diariamente
13
.
Sucede que o crescimento exponencial no mercado de determinados transmissores
específicos (apelidados de SDR Low Cost Software - Defined Radio) tornou o “spoofing”
disponível para qualquer pessoa que pode simular a transmissão de satélite nas
mesmíssimas frequências e características de sinal. A época em que as frequências de
comunicação com os satélites estavam disponíveis nos meios militares acabou
muito…. e até já existem instruções na “internet” como proceder para mistificar os sinais
radio de controlo dos “drones”….
Estas novas ameaças vieram, claramente, exigir uma reflexão sobre como se deverá
abordar a “segurança no mar” pois, por um lado, as tradicionais divisões entre “safety”
e “security” não se apresentam estanques e são mutuamente influenciáveis e, por outro
10
Vide o relato da U.S. Coast Guard das situações relativas à mistificação do sinal de GPS in
https://navcen.uscg.gov/?Do=GPSReportStatus. Vide igualmente o artigo da autoria de “The American
Club”,” Mass Global Positioning System (GPS) spoofing at ports in The People’s Republic of China” in “Daily
Collection of Maritime Press Clipping 2010-002”, pps. 25.
11
Vide https://www.gpsworld.com/spoofing-in-the-black-sea-what-really-happened/. Sucede, porém, que o
que era restrito ao campo militar elenco das ameaças, planos de contingência, deteção atempada e
anulação/limitação dos danos é hoje partilhada por toda a sociedade e, por isso, que encarar uma
nova realidade, sobretudo, no âmbito das chamadas “soft kills”,i,e., o uso de equipamentos e sistemas que
neutralizem as ameaças sem as destruírem fisicamente através, designadamente, da sua disrupção e que
deverão ser utilizados também fora do campo estritamente militar.
12
Vide Kaplan, Elliott D., e Hegarty, Christopher J., “Understanding GPS Principles and Applications”, 2
nd
Edition, ARTECH HOUSE, Boston-London, Norwood, MA, USA, 2006.
13
Para mitigar esta situação, a União Europeia, no âmbito do sistema GALILEO, irá disponibilizar um conjunto
de serviços adicionais, designado Public Regulated Services (PRS), que visa fornecer, a entidades estatais
e fornecedoras de serviços essenciais e de infraestruturas críticas, um sinal de geoposicionamento mais
resistente ao spoofing e ao jamming.
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lado, elas próprias exigem a consagração de uma nova figura a montante que as
enquadre e que beneficie, igualmente, do pensamento estratégico (e soberano) de cada
Estado no “uso do mar”.
Embora o conceito de “segurança no mar” não seja novo, o papel do meio marítimo na
segurança dos Estados assume, hoje, uma relevância estratégica que se reforçou a partir
do início da presente década, numa visão cada vez mais holística, particularmente, ao
nível da União Europeia
14
. Na verdade, é “sobre o mar e nos portos” que se materializam
a maioria das trocas comerciais essenciais ao bem-estar das populações, com especial
referência para as importações de hidrocarbonetos (ou fontes energéticas, em geral) e
como alternativa aos meios terrestres.
É, assim, desejável que o paradigma concetual seja, progressivamente, alterado e
expandido, i.e., por um lado, a tradicional segurança marítima terá de ser robustecida
com medidas de proteção contra ataques ilícitos e disruptivos e, por outro, em sede legal,
as condutas ditas “desculpáveis” ou “meramente culposas” das tripulações deverão ter,
cada vez, menor aplicação tendo em conta a regulamentação existente em que se
incluem os códigos de boas práticas - e as graves consequências que podem daí decorrer.
As citadas medidas assumem uma natureza cautelar ou preventiva, mas, igualmente,
características reativas, quer na limitação do dano quer na adoção de procedimentos
alternativos previstos em planos de contingência.
Esta abordagem terá, necessariamente, consequências em relação à caracterização da
reação e ao combate dos sinistros marítimos graves (como, por exemplo, os derrames
de hidrocarbonetos nos espaços de jurisdição de um Estado) que se considera com uma
forte componente de “security” desde a sua origem, i.e., considerando “dolosa” (e não
“meramente culposa”) a conduta da tripulação que viole as regras da segurança marítima
tendo como consequência a criação de um “perigo” ou de um “dano”, qualificados
juridicamente como “graves”.
Parece assim que, ao alargarem-se as condutas “dolosas” do agente (e ao reduzirem-se
as “meramente culposas” que, em tempos, exoneravam ou limitavam a responsabilidade
dos agentes e das companhias), poderá estar traçado o caminho para que a grande
maioria dos grandes sinistros marítimos, como, por exemplo, os derrames de
hidrocarbonetos dos navios seja considerada, essencialmente e desde a sua origem, no
14
Vide Pedra, José Rodrigues, “A União Europeia e a Segurança no Mar”, in Cajarabille, Victor Lopo e outros,
“A Segurança no Mar – uma visão holística”, Mare Liberum, Aveiro, 2012, pps. 143 a 162. O autor faz uma
breve referência ao conceito de “Segurança no Mar” baseado na obra de Grove, Eric, “Maritime Strategy
and European Security”, Londres, Brassey’s, 1990, que, com reminiscências da estratégia de dissuasão
nuclear do período da Guerra-Fria, alude à importância do mar para a segurança europeia. No entanto, é
com a apresentação da Estratégia Marítima para o Atlântico em 2011, juntamente com o Livro Verde para
a Política Marítima Integrada Europeia e com a Política Marítima Integrada Europeia propriamente dita que
renasce esta perspetiva estratégica para o uso do mar. Mais do que o valor de comunicação e transporte,
o mar é fonte de recursos essenciais e um meio indispensável para o controlo das atividades em terra com
a própria projeção de poder e defesa antecipada e em profundidadeque são essenciais para fazerem valer
os interesses europeus. Vide Pedra, José Rodrigues, ob. cit, a pps. 149 a 155.
Por outro lado, esta relevância estratégica também emergiu como resultado do impacto que a prospeção e
exploração dos recursos marinhos estão a assumir progressivamente nas economias dos Estados,
confrontados com a crescente escassez e, igualmente, com a limitação do acesso aos recursos terrestres.
Esta situação veio a colocar na agenda internacional as disputas dos países nas delimitações dos fundos
marinhos contíguos e as candidaturas às extensões das plataformas continentais. Entre todos, vide Duarte,
António Rebelo, “Políticas e Estratégias Marítimas da Europa e de Portugal”, Cadernos Navais, n.º 48, abril-
junho de 2018, Centro de Estudos Estratégicos da Marinha, in www.marinha.pt.
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âmbito da “security” e, consequentemente, como um papel acrescido de regulação no
âmbito da soberania dos próprios Estados
15
.
II. A influência da segurança nacional e de uma estratégia setorial no
conceito de “Segurança no Mar”
A palavra “segurança” apresenta inúmeros significados, embora com um sentido comum,
quer no âmbito da atividade em si mesma quer no que respeita ao resultado: o de
proteção (ou garantia) de um certo direito ou bem face aos riscos ou obstáculos que
sobre eles impendem. Tal significa que, não havendo obstáculos ao seu exercício, é
desnecessária a adoção de meios suplementares garantísticos
16
.
Diversas classificações de segurança podem, igualmente, emergir em função de
diferentes critérios, designadamente, o sujeito protegido (ou entidades destinatárias), os
bens ou matérias a proteger, o âmbito territorial de intervenção, as estruturas que a
asseguram e a intensidade da perturbação realizada (i.e., o efeito das ameaças, riscos e
perigos sobre os citados bens ou direitos)
17
.
Para além destes critérios, a figura da “segurança” assume, igualmente, diversas outras
formas em função do seu objeto específico
18
entre as quais se contam a segurança
energética, a segurança no mar, a segurança marítima, a segurança aérea e a própria
segurança nos transportes. Neste pequeno elenco, trata-se de delimitar a segurança em
função, igualmente, da atividade realizada que, em alguns casos, envolve segmentos de
15
Cabe, neste ponto, invocar uma matéria que iniciou, igualmente, a sua doutrina no Direito Penal e que,
posteriormente, saltou para o domínio do Direito Internacional. Tratava-se, então, no âmbito criminal, de
legitimar, por exemplo, a ação de um deficiente grave motor (i.e., paraplégico) quando conhecia, com
quase absoluta certeza, que alguém o viria assassinar no local onde se encontrava sozinho e sem acesso a
quaisquer contactos. E, perguntava-se, se seria legítimo a putativa vítima neutralizar o agente, alvejando-
o antecipadamente antes de entrar no local em que se encontrava (por exemplo, por uma janela).
Este exemplo veio a consubstanciar a diferença, em Direito Internacional, entre o ataque “preventivo” e o
ataque “preemptivo”, legitimando-se, neste último caso, a intervenção antecipada face à intenção (e prova)
de um ataque iminente. Assim, o ataque “preventivo” foi perdendo legitimidade jurídica, dada a sua
arbitrariedade e colocado ao serviço de um “direito da força” de escrutínio impossível, visando, apenas,
prosseguir uma estratégia para evitar alterações no equilíbrio de poder que pudessem favorecer o
adversário. Relembre-se que, de acordo com o artigo 51.º da Carta das Nações Unidas, o “direito de legítima
defesa” é reconhecido no caso de ataque armado e, com aquela extensão, procurou-se abranger a
intenção de “ataque armado”.
Ora, no caso vertente, o “ataque iminente” (ou dito de outra forma, a “ameaça real”) existe a partir do
momento em que os sistemas TI do navio se ligam ao exterior e, dessa forma, caberá ao Estado de bandeira
atualizar aos seus regulamentos e procedimentos para que tenha em conta a “preemptividade” do exercício
do navio e da companhia. Vide, inter alia, Santos, Sofia, “Defesa preemptiva e “Defesa preventiva” in
Gouveia, Jorge Bacelar e Santos, Sofia (coordenação), Enciclopédia de Direito e Segurança”, Almedina,
Coimbra, 2015, pps. 102 a 105.
16
Vide Gouveia, Jorge Bacelar, “Direito da Segurança Cidadania, Soberania e Cosmopolitismo”, Almedina,
Coimbra, 2018, a pps. 89ss. Com esta obra, iniciou-se a conceptualização de um novo ramo do Direito: o
Direito da Segurança, emergindo a fundamentação dogmática deste novo ramo e a análise das entidades
estatais e internacionais de segurança. Define-se o Direito da Segurança como o “sistema de normas e
princípios jurídicos que definem a organização e o funcionamento das estruturas de segurança,
estabelecendo os seus poderes e limites, com vista à proteção dos direitos e bens jurídicos fundamentais
dos cidadãos e das comunidades políticas” (a pps. 119). Esta obra é essencial para o enquadramento do
atual tema, tanto mais que procuraremos, no futuro, largar as amarras”, sejam elas “lançantes, regeiras,
contra-regeiras ou traveses” do “novo” Direito da Segurança Marítima que nos parece, igualmente, o
momento de lhe “conceder” autonomia, em confronto com o Direito do Mar e com o Direito Marítimo.
17
Ibidem, pps. 90 a 91.
18
O Direito Marítimo trata de um objeto específico (a atividade do transporte marítimo) no âmbito do Direito
Comercial, de âmbito mais geral e que, nem por isso, desmereceu a sua classificação como ramo do Direito.
Vide, igualmente, ibidem pps.93 a 96.
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transporte diversos (terrestre, fluvial, marítimo e aéreo) e, noutros, em determinados
equipamentos essenciais e nas redes que os interligam (segurança energética e a
cibersegurança, por exemplo).
A atividade de segurança que se projeta no âmbito territorial de atuação dos meios num
determinado Estado deve obedecer a uma dimensão espacial e material a montante que
se designa por “segurança nacional” (a par da segurança, local, regional, internacional e
global).
Constata-se assim que, na atualidade, a “segurança nacional” “deixou de ser apenas uma
segurança contra atos criminosos para igualmente acolher a prevenção e solução dos
riscos naturais, no âmbito da proteção civil, avultando a segurança na sua aceção de
safety, sem, contudo, se descurar a sua “dimensão supraestadual, em consonância
com a magnitude dos riscos de ataques terroristas que deixaram de ser nacionais,
localizados, públicos e com armas convencionais, assim se revigorando a segurança na
sua aceção de security”.
19
No âmbito expresso, a “segurança nacional” respeita a uma
visão associada à defesa nacional e que, naturalmente, interage com opções políticas e
estratégicas a montante da própria “segurança no mar”.
O conceito de “segurança nacional”
20
corpo a uma estratégia do próprio Estado,
tradicionalmente centrada nas ameaças militares à sua fronteira ou a outras ameaças
19
Ibidem, pps. 96.
20
No quadro legislativo nacional, não foi definido, formalmente, o conceito de “Segurança Nacional”. Contudo
e em sede doutrinal, vide Gouveia, Jorge Bacelar, “Direito da Segurança Cidadania, Soberania e
Cosmopolitismo”, Almedina, Coimbra, 2018, a pps. 92ss e Couto, Abel Cabral, Elementos de Estratégia,
Volume I, IAEM, Lisboa, 1988, pps. 172ss. Vide, igualmente, Garcia, Francisco Proença, “Defesa Nacional”
in Gouveia, Jorge Bacelar e Santos, Sofia (coordenação), “Enciclopédia de Direito e Segurança”, Almedina,
Coimbra, 2015, pps. 99 a 101. Este autor discorre sobre a diferenciação entre os conceitos de Defesa
Nacional e de Segurança Nacional, propondo que se adote este último “resultante de um conjunto de
políticas do Estado devidamente articuladas, na vertente militar mas também em outras políticas sectoriais
como a económica, cultural, educativa, que englobe ões coordenadas de segurança interna e externa,
cuja fronteira esta atualmente desvanecida”. Quanto ao desvanecimento entre a segurança interna e
externa, vide Santos, Ana Miguel dos, “Uma segurança interna cada vez mais europeia? Uma segurança
externa cada vez mais nacional?” in RDeS - Revista de Direito e Segurança, Ano VI, jul-dez 2018, pps. 27
a 51, Guedes, Armando Marques, “Segurança externae “Segurança interna”, in Gouveia, Jorge Bacelar e
Santos, Sofia (coordenação), “Enciclopédia de Direito e Segurança”, Almedina, Coimbra, 2015, pps. 411 a
418 e 425 a 431 e Lourenço, Nelson, “Segurança interna”, ibidem, pps. 431 a 433. Relativamente à
conceção integrada na Constituição, vide Gouveia, Jorge Bacelar, “Direito Constitucional da Segurança”,
ibidem, pps. 131 a 136. Enveredámos nessa coletânea, por iniciar a concetualização da “segurança no mar”
que deverá abranger as “matérias da segurança marítima e da proteção marítima e, em termos espaciais,
nos navios e nos portos” (pps. 435) no artigo “Segurança no mar”, ibidem, pps. 433 a 439.
No entanto, o “Conceito Estratégico de Defesa Nacional” (CEDN), aprovado pela Resolução do Conselho de
Ministros n.º 19/2013, de 21 de março, ainda que se baseie no conceito de “segurança nacional”, integra
elementos muito importantes sobre a relevância do mar neste contexto, considerando-se, designadamente,
que “como ativo estratégico, o mar deve estar integrado numa perspetiva ampla de segurança e defesa
nacional”.
Uma outra componente que poderá influenciar a “segurança no mar” respeita à definição de estratégias
setoriais. A nível nacional, vigora a “Estratégia Nacional para o Mar para o período 2013-2020” (ENM),
aprovado pela Resolução de Conselho de Ministros n.º 12/2014, de 23 de janeiro e que coloca a tónica na
utilização e preservação do mar como ativo nacional o que reforça a relevância estratégica da “segurança
no mar”. Vide supra nota n.º 13
Está hoje em discussão pública a nova Estratégia Nacional para o Mar ENM 2021-2030 (in
https://www.dgpm.mm.gov.pt/enm) da qual se cita o seguinte enquadramento, a pps. 3 e 4:
“Portugal passou a acompanhar a relevância económica do Mar na sua economia nacional através de uma
Conta Satélite do Mar, que resultou de um protocolo entre o Instituto Nacional de Estatística (INE) e a
Direção-Geral de Política do Mar (DGPM) celebrado em 2013. Segundo estimativas da Comissão Europeia,
em 2018, o valor acrescentado bruto (VAB) em economia azul representou 3,2% do VAB da economia
nacional. O emprego gerado representou 5,5% do emprego nacional. Estes valores estão entre os mais
altos nos Estados-Membros da UE.
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não convencionais, como as alterações climáticas e as crises económicas e financeiras
mundiais, incluindo as de natureza híbrida as quais, no domínio marítimo, podem ter
implicações de natureza bastante diversa
21
. Para que haja uma delimitação mínima da
“segurança nacional”, exige-se uma relação com a estratégia e, mais concretamente,
que contribua (ou seja essencial) para a realização de objetivos político-estratégicos
22
.
Ora, a segurança no mar” - como definida anteriormente - mediata e parcialmente
comunga da “segurança nacional” pois continua a ter uma vertente transnacional,
qualquer que seja o Estado em causa. No entanto, serão, essencialmente, as exigências
de security que poderão modelar a “segurança no mar” pela via da “segurança nacional
ao invés das matrizes de “safety” que tendem a ser perenes e técnicas, visando a
melhoria das condições de navegabilidade do meio utilizado, sem prejuízo de se
considerarem abrangidos os fenómenos naturais
23
.
Na verdade e na grande maioria dos casos, só a “security” interessa ao quadro político-
estratégico, envolvendo outros Estados ou atores do sistema internacional, o que
significa que se quadra no âmbito da soberania dos Estados e dos correspondentes
mecanismos unilaterais de “enforcement”.
Ao invés, na “safety”, as regras de segurança marítima advêm das convenções
internacionais e a coercibilidade resulta do que a lei internacional (ou os acordos
internacionais como é o caso dos MoU no âmbito do Controlo pelos Estados do Porto”
ou “Port State Control”) vier a determinar
24
.
A sustentabilidade da economia azul depende da conservação do ambiente marinho, e dos serviços dos
seus ecossistemas, bem como da salvaguarda do património cultural marítimo. O Plano de Situação de
Ordenamento do Espaço Marítimo Nacional, as Linhas de Orientação Estratégica e Recomendações para a
Implementação de uma Rede Nacional de Áreas Marinhas Protegidas aprovados em 2019, assim como a
avaliação do Bom Estado Ambiental das Águas Marinhas reportada recentemente em cumprimento da
Diretiva-Quadro Estratégia Marinha”, representaram importantes marcos para assegurar o nosso
compromisso na defesa dos ecossistemas marinhos e do património cultural náutico e subaquático.
Portugal deve assumir definitivamente as vantagens competitivas da sua posição geoestratégica, das suas
competências tecnológicas e da sua tradição marítima, minimizando barreiras administrativas ou fiscais que
se revelem prejudiciais à mesma, e exercendo a autoridade do Estado no mar. O padrão que estabelecermos
na gestão sustentável do nosso mar será uma contribuição decisiva para a sustentabilidade do planeta,
num futuro que desejamos mais azul para as gerações vindouras”.
21
Vide The European Centre of Excellence for Countering Hybrid Threats, “Handbook on Maritime Hybrid
Threats 10 Scenarios and Legal Scans”, November 2019.
22
Vide Fernandes, António Horta., “Conceito Estratégico de Defesa Nacional (CEDN) ou Conceito Estratégico
de Segurança Nacional (CESN)? Um falso dilema”, Observatório Político, wp #43, abril 2014, in
http://www.observatoriopolitico.pt/wp-content/uploads/2014/04/WP_43_AHF.pdfla, pps 4ss, e Branco,
Carlos, “Porquê uma Estratégia de Segurança Nacional?”, Opinião, Jornal Expresso, 2018-05-11. Por todos,
Cajarabille, Victor Lopo, “Enquadramento Estratégico”, in Cajarabille, Victor Lopo e outros, “A Segurança
no Mar uma visão holística”, Mare Liberum, Aveiro, 2012, pps. 21 a 35. Vide Escorrega, Luis Falcão, “A
Segurança e os “Novos” Riscos e Ameaças: Perspetivas Várias”, Revista Militar, n.º 2491, agosto/setembro
2009 (https://www.revistamilitar.pt/). Este autor ser-nos-á de grande utilidade pois vem admitir que o
moderno conceito de “ameaças” engloba os “riscos” e as “ameaças” tradicionais (a pps. 14). Vide
igualmente Duarte, António Rebelo, Políticas e Estratégias Marítimas da Europa e de Portugal”, Cadernos
Navais, n.º 48, abril-junho de 2018, Centro de Estudos Estratégicos da Marinha, in www.marinha.pt. Este
autor reforça o desenvolvimento da “segurança marítimanos termos da Estratégia de Segurança Marítima,
aprovada pelo Conselho Europeu em 24 de junho de 2014, e o seu enquadramento no âmbito da Política
Comum de Segurança e Defesa (PESD), com uma descrição dos riscos e das ameaças à segurança marítima
europeia, reforçando a importância da security naquela Estratégia.
23
Vide nota n. º 18 supra e o texto de remissão.
24
Em Espanha o Comité de Segurança Marítima responde perante o Conselho de Segurança Nacional. Por sua
vez, no Reino Unido, o ”Ministerial Working Group on Maritime Security” está a jusante do “National Security
Council”. Vide “Estrategia de Seguridad Marítima Nacional”, Gobierno de España, 2013 e “The UK National
Strategy for Maritime Security”, MOD UK, May 2014.
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Uma outra componente que poderá influenciar a “segurança no mar” respeita à definição
de estratégias setoriais. É hoje essencial a articulação das questões do “mar” com os
“portos”, com os “transportes” e com a “logística”, seja numa visão mais vertical e/ou
transversal dos assuntos do mar
25
.
Por outro lado, as ameaças e os riscos, existem em documentos militares ou civis
porque decorrem das análises de componentes civis (designadamente, de índole
económica, cultural, científica, tecnológica ou ambiental) ou estritamente militares mas
têm repercussões ao vel da política estratégica de qualquer país marítimo e, assim, em
última instância, na segurança nacional.
Delimitados que estão os conceitos de “segurança” (“safety”) e de “proteção”
(“security”), importa entender que a “segurança no mar” terá sempre uma dependência
da estratégia (global) do Estado
26
, embora, ainda assim, a sua perspetiva holística se
baseie no aprofundamento das condições tecnológicas das atividades no “mar” - em
particular, no âmbito dos transportes marítimos e dos portos - e do grau de exigência no
cumprimento das boas práticas e da consequente responsabilização das tripulações, das
companhias e dos operadores portuários
27
.
25
As opções políticas e estratégicas em sede de “Defesa e Segurança” devem ser seguidas em permanência
quando se abordam os assuntos do mar tanto mais que a proteção, fiscalização, prospeção e exploração
sustentável dos seus recursos exigem meios aptos para o efeito, inventariando-os, em permanência e
evitando a sua predação.
26
A introdução do vocábulo “segurança” nos documentos conceptuais emerge quando se desenvolve a
“estratégia” que se estriba num determinado “conceito”. A nível nacional, dão-se como referências o
“Conceito Estratégico de Defesa Nacional” e a “Estratégia de Segurança e Defesa Nacional”.
27
Em termos tradicionais, a “segurança relaciona-se com a minimização dos “riscos” (da navegação) ao
passo que a “proteção” visa combater a concretização, de forma intencional, das “ameaças” – embora não
de forma completamente estanque a começar por um simples derrame de hidrocarbonetos. Dito de outra
forma, a “proteção” tem como núcleo essencial a ameaça e a intenção de provocar dano e, por isso mesmo,
há que fazer constar a sua origem humana (“threat actors”). Ao invés, a “segurança” centra-se no “risco”
das atividades marítimas, ou seja, em eventos naturais ou não intencionais que têm consequências graves
e com uma certa probabilidade de se materializarem (i.e., tradicionalmente, as avarias inopinadas, os
elementos da natureza, etc.).
O nosso desafio está, igualmente, em provar que, nos tempos atuais, o risco” tende a ser reduzido a
situações ditas “naturais” já que uma conduta da tripulação de um navio que foi exposto a um “perigo” ou
a um “dano” grave pode, na maior parte das vezes, configurar uma atuação “dolosa” (e não “meramente
culposa”) por violação ainda que não de forma intencional das regras de segurança marítima. A ser
assim, trata-se de um “upgrade” destas condutas consideradas, até hoje, meramente culposas - para o
campo das “ameaças” e, portanto, da “security”.
Também neste campo, a prevenção e o combate (ou minimização) dos danos resultantes de ocorrências de
“proteção” e de “segurança”, embora com origens conceptuais distintas, tendem a sobrepor-se e a
articularem-se, cada vez mais, nas ações, o que é evidente quando se caminha para conexões globais como
é o caso das que decorrem do facto de vivermos num mundo digitalmente interconectado, quer física quer
virtualmente, e assim retendo em permanência a respetiva cibersegurança. Na página da internet da norte-
americana CISA (“The Cybersecurity and Infrastructure Security Agency”), criada em 2018, constata-se
que se parte do conceito de “safety” com a premência da “security” de uma forma muito simples, afirmando
o seguinte:
Being online exposes us to cyber criminals and others who commit identity theft, fraud, and harassment.
Every time we connect to the Internet-at home, at school, at work, or on our mobile devices-we make
decisions that affect our cybersecurity. Emerging cyber threats require engagement from the entire
American community to create a safer cyber environment-from government and law enforcement to the
private sector and, most importantly, members of the public”.
Importa, contudo, reiterar que foi, de facto, a ameaça ciber e, em consequência, a cibersegurança que veio
alavancar a tese do relacionamento concêntrico entre a “safety” e a security” e que uma recente
apresentação sobre o reposicionamento das ciberameaças nos sistemas OT Operational Technologies -
(em Lisboa, na PwC, a 5 de fevereiro de 2020). O seu autor (Rafael Maman), um perito israelita na área da
cibersegurança e abordando a matéria a título pessoal, referiu, a determinado momento, o seguinte:
“Corresponding to a shift in the cyber risk equation: traditional IT risks data privacy, IP theft, etc. are
augmented by higher-order risks to unman life, disruption of critical operations, environmental disasters,
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Ora, a “segurança no mar”, ao enquadrar aqueles dois conceitos, desdobra-se em dois
tipos de perigos: as “ameaças” e os “riscos” que envolvem a utilização do mar, seja nos
navios ou nos portos.
As “ameaças” são, essencialmente, de duas naturezas: os ilícitos genéricos no mar e os
ilícitos específicos que tenham influência na liberdade de navegação. Na primeira,
constam, designadamente, o tráfico de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas, o
contrabando em geral e o de armamento, a proliferação de armas de destruição maciça,
a exploração ilegal de recursos marinhos, da plataforma ou do património cultural
subaquático, os atentados ambientais (em que se inclui a poluição) e a imigração ilegal.
Na segunda, contam-se, entre outros, o terrorismo, a pirataria, os ataques cibernéticos
aos sistemas de informação e outras atividades de cariz criminoso classificadas como tal
pelo Direito Internacional.
Por sua vez, os “riscos”
28
apresentam uma natureza tendencialmente acidental ou natural
e têm a sua identificação principal (que não exclusiva) com a “segurança do transporte
etc.(it should have as a consequence that) governments and industrial enterprise recognise the importance
of OT Security for Critical Infrastructure protection and the risks involved, and initiate proactive action”.
Com esta alteração qualitativa da equação dos riscos cibernéticos, importa, cada vez mais, identificar as
diferenças fundamentais entre a cibersegurança no IT e no OT, em todas as suas dimensões - incluindo a
jurídica - precisamente por ser no domínio do OT que as interdependências entre a “safety” e a “security”
são mais relevantes, atendendo a que o OT liga o mundo cibernético ao físico.
Como consequência direta, a presença permanente do risco dos ciberataques para as infraestruturas críticas
e para os serviços essenciais (em que se incluem os transportes marítimos e os portos) implica que a
“security” deva ser sempre considerada. No nosso caso, a criação de condições para uma navegação safa,
nos tempos atuais, deve sempre levar em linha de conta o ciberespaço e, portanto, a figura representativa
que se propõe, consistindo em dois círculos concêntricos em que o central corresponde à “safety”.
Nesta ótica, Rafael Maman vai ainda mais longe ao considerar nas micro tendências das ameaças
cibernéticas a seguinte evolução: “From “military-grade cyberweapons” to “industrial-grade ransomware”.
O que antigamente eram consideradas armas de guerra cibernéticas utilizadas pelas forças armadas podem
hoje ser usadas na disrupção de indústrias críticas e de serviços essenciais por qualquer ator
suficientemente apto tecnologicamente para o executar. In Maman, Rafael, The Reshaping Cyber Threat
Landscape of Operational Technology”, apresentação, in “Conferencia organizada pela PwC,
“Cibersegurança Os desafios da Tecnologia Operacional (OT)”, Lisboa, 5 de fevereiro de 2020.
Por outro lado, desde o início do século, a grande maioria dos incidentes de dimensões apreciáveis em
indústrias sensíveis têm como causas associadas ataques deliberados (cibernéticos e outros), danos
colaterais de ataques ou o funcionamento deficiente dos sistemas, não sendo possível, na sua maioria,
isolar as fontes na tradicional bipartição “safety/security” ou, sendo possível, perderá todo o interesse dada
a necessidade de resposta integrada. Vide https://www.csis.org/programs/technology-policy-
program/significant-cyber-incidents.
Por isso, o se pretende provar que as condutas da tripulação violadoras das regras da segurança
marítima e que causem um “perigo” ou um “dano” qualificados juridicamente “graves” caem no âmbito do
“dolo” como, igualmente, a representação pelos dois círculos concêntricos.
A divisão tradicional entre a neutralização dos agentes das ameaças (“security”) e a ajuda a conter as
consequências negativas (“safety”), concorrem, em nossa opinião, para um plano comum que farão parte
das regras de segurança marítima a cumprir a bordo, não se destrinçando, no limite, a sua diferente origem
nem as medidas de limitação de avarias.
Também a Estratégia Europeia de Segurança e o Relatório sobre a Execução da Estratégia Europeia de
Segurança destacam um conjunto de “ameaças” com implicações no uso do mar em que se incluem as
atividades ilegais, o crime organizado, a pirataria, o terrorismo, a proliferação de armas de destruição em
massa, os conflitos regionais, os Estados Fragilizados, a poluição marítima, a segurança energética e as
alterações climáticas. O que significa que este enfoque é essencialmente sobre a security. Vide
http://www.consilium.europa.eu/uedocs (pesquisa pelos respetivos títulos). Ao invés, a EMSA (“European
Maritime Safety Agency”) desempenha atividades no âmbito da safety e não será por essa razão que não
deixa de ser invocada numa perspetiva conjunta e alargada de “segurança” (“safety” + “security”).
28
O “risco” é o produto da probabilidade de ocorrência de uma ameaça (ou dano) pela gravidade (ou
intensidade) dos seus efeitos. Tradicionalmente, associado à safety”, tende-se hoje a expurgar dele as
condutas da tripulação violadoras das regras da segurança marítima com consequências graves. A origem
destes conceitos radica no Direito Internacional e, mais especificamente, na teoria da resolução de conflitos.
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marítimo” e com a “segurança portuária”. Os danos potenciais associados (ou a condição
da criação de um “perigo”) podem incidir sobre os navios e embarcações, sobre as
pessoas embarcadas, sobre as plataformas ou infraestruturas no mar (e, igualmente,
sobre aeronaves e submarinos) e sobre o ambiente marinho, designadamente, através
dos acidentes de poluição.
Esta tendencial identificação da “segurança” (em sentido estrito) com os riscos” e a
“proteção” com as “ameaças” tem a grande vantagem de poder colher os ensinamentos
de áreas que, até bem pouco tempo, evoluíram autonomamente e que os atentados
de 11 de setembro de 2001 vieram a exigir a sua estreita articulação, tendo em conta a
necessidade de adotar medidas aplicáveis aos navios e às instalações portuárias no
âmbito da “proteção” e considerando que a identificação de ameaças à segurança e à
tomada de medidas para a prevenção de acidentes passaram a desenrolar-se, cumulativa
e coordenadamente, de acordo com o Código ISPS
29
.
Uma outra circunstância, que sucede com o aprofundamento e desenvolvimento das
regras da segurança marítima - traduzidas, na sua essência, pelas convenções atinentes
da IMO - respeita ao progressivo exaurimento de cláusulas de exoneração e de limitação
da responsabilidade em contratos de transporte marítimo (e de convenções) que se
traduzam em condutas consideradas, apenas e a esse título, como “meramente
culposas”. Como exemplo paradigmático, refere-se a célebre “falta náutica” constante
das convenções internacionais sobre o transporte marítimo que exonera o transportador
por avarias na carga (pelo menos, desde os anos 20 do século passado).
Deste exemplo poder-seretirar que as progressivas exigências tecnológicas e de boa
conduta para uma navegação safa (i.e., as normas sobre a “segurança marítima”) tornam
as circunstâncias consideradas ab initio como “meramente culposas”, bastante mais
restritas no âmbito da responsabilidade civil (contratual e aquiliana), incluindo, as que
estão presentes nos derrames de hidrocarbonetos
30
.
Desta forma, também o cumprimento dos padrões de segurança marítima, ao mesmo
tempo que minimizam os “riscos” (e os erros), o maior robustez ao combate às
“ameaças” e, em simultâneo, limitam a aplicação das cláusulas de exoneração e de
limitação da responsabilidade que estão presentes, por exemplo e entre outros
instrumentos, nas convenções sobre a poluição resultante de derrames de
hidrocarbonetos e nas respeitantes ao transporte marítimo de mercadorias
31
.
De forma sucinta e nesse quadro, “ameaça” corresponde a uma circunstância ou evento que faz perigar a
prossecução dos objetivos políticos e estratégicos e o “risco” como o grau de exposição à ameaça em causa.
29
A sigla ISPS designa o “International Ships and Port Facilities Security Code” que constitui o capítulo XI-2
da Convenção SOLAS desde 2002.
30
Matéria esta que se definiu como no âmbito da “proteção”, mesmo na sua origem, que, na apreciação
feita, na maioria dos casos com consequências graves, resulta de uma conduta “dolosa” da tripulação.
31
A “falta náutica” como cláusula de exoneração vem prevista na alínea a) do parágrafo 2.º, do artigo 4.º da
Convenção Internacional para a Unificação de Certas Regras em Matéria de Conhecimentos, assinada em
Bruxelas a 25 de agosto de 1924 conhecida como “Regras de Haia”. Refere-se, especificamente que a
cláusula só se aplica aos “Atos, negligência ou falta do capitão, mestre, piloto ou empregados do
transportador na navegação ou na administração do navio”. Assim, se a “falta náutica” consistir na violação
das regras essenciais da segurança marítima (em sentido lato) dificilmente poderão justificar a exoneração
do transportador/armador pela avaria na carga.
Lembre-se que, em sede aquiliana e de acordo com as convenções vigentes particularmente, nos termos
da Convenção sobre a Responsabilidade Civil por Prejuízos devidos à Poluição por Hidrocarbonetos, de 1969
(Civil Liability Convention 1969 ou CLC/69) e da sua alteração de 1992 (CLC/92) - o proprietário do navio
é responsável por um erro de navegação que conduziu a um encalhe do navio e ao posterior derrame de
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Entende-se, assim, que a noção ampla de “segurança no mar” (ou de “segurança
marítima” em sentido amplo que é, de resto, a expressão mais utilizada) deve abranger
as valências materiais da segurança (marítima) (em sentido estrito) e da proteção
(marítima) e, em termos do seu arco espacial, com incidência nos navios e nos portos
32
.
Particularmente, quanto ao objeto, a “segurança no mar” com ambas as valências -
abrange o transporte marítimo - em que o enfoque se traduz no «navio» e na sua
movimentação - e os portos - que respeita, essencialmente, à segurança nas áreas sob
jurisdição portuária, abrangendo os diversos terminais, a área terrestre adjacente e a
área molhada contígua.
A “segurança do transporte marítimo” (ou segurança marítima em sentido estrito”),
envolve o conjunto de medidas destinadas a garantir uma navegação segura por parte
dos navios, i.e., quer na envolvência das condições de bordo (qualificação dos
tripulantes, estiva e movimentação da carga e, em geral, as condições de navegabilidade
estruturais e de equipamentos do navio), quer no sistema de ajudas à navegação e de
ordenamento das aproximações a um porto que permitem, aos navios, uma navegação
segura.
No outro polo, a “proteção do transporte marítimo” e a “proteção portuária” consoante o
objeto - envolvem todas as medidas de segurança física
33
e outras aplicáveis no espaço
sob jurisdição portuária, aos tripulantes e passageiros dos navios e aos demais
funcionários que operam nos portos, bem como aos próprios navios destinadas a garantir
a atividade normal segundo as regras técnicas aplicáveis
34
.
hidrocarbonetos (caso do M/V “Exxon Valdez” com o derrame de cerca de 38.000 toneladas de crude nas
costas do Alasca). Na verdade, o artigo V/2 da CLC/92 vem estabelecer que o proprietário pode perder a
faculdade de limitar a sua responsabilidade desde que o prejuízo devido à poluição resulte de ação ou de
omissão que lhe seja imputada cometida com a intenção de causar tal prejuízo ou com imprudência e o
conhecimento de que tal prejuízo se poderia vir a verificar”. Esta fórmula é muito próxima da utilizada na
alínea e) do parágrafo 5.º do artigo IV Protocolo de Visby de 1968 (“Regras de Visby”) à Convenção de
Bruxelas de 1924 referida que afasta a limitação da responsabilidade se a ação ou omissão se desenrolou
com a intenção de provocar um dano ou temerariamente e com conhecimento de que provavelmente dela
resultaria um dano. Em sede civilista, trata-se de uma forma de culpa grave e que corresponde ao dolo.
Vide Coelho, Carlos, Poluição Marítima por Hidrocarbonetos e Responsabilidade Civil”, Almedina, Coimbra,
2007, a pps. 86ss.
Em conclusão: entende-se que a culpa grave (“negligência grosseira” para alguns autores ou “wilful
misconduct” em língua inglesa) na violação das regras da segurança marítima deveafastar o benefício
da cláusula de exoneração “falta náutica” por parte do transportador/armador.
No nosso trabalho “O Contrato de Volume e o Transporte Marítimo de Mercadorias Dos granéis aos
contentores, do “tramping” às linhas regulares”, Coleção Teses, Almedina, Coimbra, 2018, a pps. 73ss,
nota n.º 80, já vínhamos defendendo esta posição embora, nessa altura, sem a generalização que agora se
defende.
32
Em sede de “cadeia de valor”, não se descarta a hipótese de se abrangerem também os agentes e
operadores com responsabilidade na área logística pois o seu desempenho está diretamente relacionado
com os sistemas de informação e de comunicação como é o caso dos portos portugueses que utilizam a
moderna “Janela Única Portuária” ou a sua sucedânea, a nova “Janela Única Logística” que passou a
abranger os portos secos e os operadores terrestres bem como os transitários.
33
Nesta ótica, perspetiva-se, igualmente, a necessidade de se credenciar o pessoal que interaja com os
sistemas TI em função do tipo de navio, dos portos de origem, do tipo de mercadoria ou, dito de outra
forma, de acordo com o padrão de risco assumido para o navio de forma idêntica ao que hoje é feito para
o cumprimentos das condições de segurança marítima em que se avaliam, por exemplo, as condições do
reabastecimento de bancas (combustível para navios) por barcaça nos portos.
34
A Conferência Diplomática da Organização Marítima Internacional (OMI), reunida em 12 de dezembro de
2002, alterou a Convenção SOLAS (“Safety of Life at Sea”), veio a adotar o Código Internacional para a
Proteção dos Navios e Instalações Portuárias (designado por “Código ISPS”), que entrou em vigor em 1 de
julho de 2004. Este novo Código é bem uma expressão da valência da “proteção” dos transportes marítimos,
dos terminais e dos portos. Esclarece-se que a Convenção SOLAS integra diversos códigos específicos
visando a padronização da gestão da segurança a bordo (o caso do ISM Code Código Internacional de
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III. A perspetiva moderna da defesa contra os ciberataques no setor
marítimo
Perspetiva-se, assim, que o objeto tendente à autonomização do “Direito da Segurança
Marítima”
35
deverá assumir uma natureza lata e abranger os dois vetores da safety e
da security, por diversas ordens de razões: em primeiro lugar, a safety é a mais
antiga
36
, a mais estável e a que é tratada na maioria das convenções da IMO; depois,
porque a interpenetração entre os dois conceitos é cada vez maior; em terceiro lugar,
porque traduções que não voltam atrás (o caso da cibersegurança”), nem um
famigerado e “artificial” “Direito da Proteção Marítima” teria condições para se
autonomizar; e, finalmente, porque, nos tempos atuais, os dois vetores tendem a
apresentar-se como dois círculos concêntricos a safety (mais interior) e a security,
que a envolve. Na verdade, esta última pode robustecer (ou enfraquecer) aquela no
centro
37
, numa dialética e interação constantes.
Esta estrutura proposta vem ao encontro de uma constatação cada vez mais presente:
os incidentes de securitypoderem ter consequências graves em sede de safety o que
significa que se exige que se passem a considerar os procedimento de security como
essenciais para que aqueles incidentes não tenham impacto e se evitem ocorrências
Gestão para a Segurança da Exploração dos Navios e para a Prevenção da Poluição, a partir de 1992) ou
visando as normas para a investigação de acidentes ou incidentes marítimos (o CIA ou Código de
Investigação de Acidentes) que agrega um conjunto de resoluções da IMO, merecendo especial referência
a Resolução A.849 820) de novembro de 1990 que estabelece as regras para a investigação dos fatores
humanos nos acidentes e a Resolução MSC.255 (84), de 16 de maio de 2008, que contempla as normas e
recomendações a adotar em investigações de acidentes ou incidentes marítimos.
35
A autonomia do Direito da Segurança enquanto ramo do Direito foi defendida por Gouveia, Jorge Bacelar,
na obra Direito da Segurança Cidadania, Soberania e Cosmopolitismo”, Almedina, Coimbra, 2018. Nesta
obra, em particular na sua segunda parte que respeita à explicitação do Direito da Segurança como novo
setor jurídico e no contexto das respetivas fontes“ (a pps. 17), o autor “trilha” um caminho no trabalho
que, em alguma medida, poderá dificultar a busca em profundidade em alguns mais complexos pontos” (a
pps. 15). No entanto, foi a sua abrangência e a forma inovadora da abordagem que faz, em nossa opinião,
emergir, entre outros âmbitos especiais, o Direito da Segurança Marítima como discípulo do Direito da
Segurança e, em simultâneo, “largando as amarras” dos ramos tradicionais do Direito do Mar e do Direito
Marítimo.
36
Importará esclarecer que se parte de uma perspetiva iminentemente comercial, i.e., para se estabelecer a
atividade do transporte marítimo é necessário, em primeiro lugar, recorrer a meios tecnologicamente
seguros. Só depois emerge a importância do controlo das ameaças. Claro que este postulado pode ser (e
é), em certas circunstâncias, reversível, garantindo-se a prioridade de estabelecer um ambiente
minimamente adequado à utilização ou emprego dos meios.
37
O que significa que, como foi mencionado, que incidentes de (“cyber”) “security” podem dar origem a
incidentes de ”safety”, numa contínua interação que não devem ser tratados verticalmente. Aproximamo-
nos, neste ponto, da evolução da tradicional missão de “defesa naval” da NATO para uma noção alargada
de “segurança marítima” em que se visa “impedir o uso do mar para atividades ilícitas e assegurar a
liberdade de navegação” cf. Pereira, Luis Sousa, “A NATO e a Segurança no Mar” in Cajarabille, Victor Lopo
e outros, “A Segurança no Mar -uma Visão Holística”, Mare Liberum, Aveiro, 2012, a pps. 132.
Simplesmente, o conceito por s defendido não se esgota na perspetiva de “defesa naval” e exige uma
componente muito significativa de safety em sentido estrito. No entanto, a tradução que é feita, por
exemplo, de documentos NATO, como seja, o Maritime Security Operations Concept”, (“Conceito de
Operações de Segurança Marítima”) faz com que - e uma vez mais ao termo security corresponda o
vocábulo “segurança” (e não “proteção”). Num recente trabalho (de 30 de agosto de 2019), sob o título
“Polemologia da Segurança Marítima Golfo da Guiné como estudo de caso” (inédito), elaborado pelo
Comandante Luis Cuco de Jesus, no âmbito do Curso de Doutoramento em Direito e Segurança da Faculdade
de Direito da Universidade Nova de Lisboa, este autor utiliza a figura da “segurança marítima” com o
objetivo de eleger mecanismos legais de repressão das novas ameaças em ambiente marítimo o que
significa que o quadro proposto se desenvolve, essencialmente e de forma estrita, no âmbito da security”.
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graves em sede de safety”, fazendo-os, inclusivamente, constar da obrigatoriedade dos
códigos internacionais de gestão da segurança (marítima).
Contudo, o robustecimento da importância da security não se traduziu, no âmbito
convencional, numa atualização e revisão dos conceitos, nem seria de esperar tal
posição. Na verdade, a própria convenção SOLAS iniciou o seu longo percurso, em 1914,
com uma vertente essencial de segurança marítima e de salvaguarda da vida humana
no mar (que, aliás, advém da sua sigla SOLAS Safety of Life at Sea), tendo sofrido, no
seu seio, quer o alargamento a novas matérias (o Código ISPS, por exemplo), quer a
autonomização de outras (como foi o caso da convenção COLREG que, em 1972, aprovou
o Regulamento para Evitar Abalroamentos no Mar).
Assim, o Direito da Segurança Marítima, no âmbito do Direito Internacional, tem como
fontes essenciais as convenções específicas da IMO que se baseiam na classificação
tradicional da safety, estendendo paulatinamente a sua regulamentação à security-
como sucede com o Código ISPS anexo à Convenção SOLAS ou, de forma autónoma,
com a Convenção SUA
38
.
Esta expansão instrumental da tradicional matéria da segurança à proteção marítima não
é mais do que uma tentativa de resposta aos novos riscos e ameaças no mar e nos portos
que, contudo, ainda esbarram na dificuldade da regulamentação em zonas claras do
exercício da soberania dos Estados avessas, tradicionalmente, ao Direito Internacional.
Entende-se, contudo, que será inexorável, pelo menos, uma progressiva harmonização
e articulação das capacidades e meios de atuação por parte dos Estados na vertente
securitypois a dimensão global dos riscos e ameaças exige essa abordagem.
Tome-se, como exemplo, nos tempos de hoje, uma matéria que, cada vez mais, interessa
ao transporte marítimo e aos portos: a chamada “cibersegurança marítima”
39
.
Não é demais referir que a interconexão entre um incidente de security e a sua
transposição para um incidente de safety assume, neste quadro, uma probabilidade
real pois não é difícil de prever que a mistificação na posição geográfica de um navio leve
ao seu desvio de rota e ao consequente encalhe ou abalroamento.
A partir de 2002, o Código ISPS veio a reconhecer o papel das estruturas portuárias
(terminais e portos) no âmbito da proteção marítima e estabeleceu requisitos
obrigatórios e recomendações aplicáveis aos navios e àquelas instalações. Ora, aqueles
38
Convention for the Suppression of Unlawful Acts against the Safety of Maritime Navigation, 1988.
39
Que, na verdade, se deveria chamar “ciberproteção marítima” face ao que foi anteriormente exposto pois
trata-se de matéria de security. Vide igualmente o artigo de Marques, António Gameiro, “Cibersegurança
no Setor Marítimo”, in Revista de Marinha, n.º 1004, jul-ago 2018, a pps. 30 a 32. O autor aborda esta
matéria de forma pioneira, talhando a evolução na União Europeia e o regime jurídico recentemente
aprovado no que respeita ao ciberespaço. Vide igualmente, do mesmo autor, “A Segurança do Ciberespaço
em Portugal e no Setor Marítimo”, Cadernos Navais, n.º 52, abril-junho de 2019, Centro de Estudos
Estratégicos da Marinha, in www.marinha.pt. Quanto aos conceitos de Cibersegurança e de Segurança da
informação, vide Santos, Lino, “Cibersegurança” e “Segurança da informação” in Gouveia, Jorge Bacelar
Gouveia e Santos, Sofia (coordenação), op. cit., pps. 63 a 67 e 422 a 425. Este autor refere que a
cibersegurança pode ser vista a partir de duas perspetivas, independentemente de o objeto da
cibersegurança ser o Estado, as organizações ou os indivíduos: a segurança do ciberespaço (na aceção
física deste como entidade autónoma) e a segurança da componente “ciber” de um qualquer sistema
(segurança do ciberespaço desse sistema)” (a pps 63). Por seu lado e segundo o mesmo autor, a segurança
da informação é indispensável para “garantir a todo o tempo, a confidencialidade, a integridade e a
disponibilidade da informação“ (a pps. 422).
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requisitos podem igualmente abranger medidas de cibersegurança relativas ao controlo
de acessos e à autenticação das autorizações
40
.
Na verdade, o Código ISPS exige que cada terminal elabore o designado “Port Facility
Security Assessment” (PFSA) no qual se identificam as estruturas e os equipamentos, as
possíveis ameaças e contramedidas e o “Port Facility Security Plan” (PFSP) no qual se
identificam, para os diferentes níveis de alerta, os procedimentos, medidas e ações a
executar. O PFSA deve abordar os seguintes aspetos: segurança sica, integridade
estrutural, sistemas de proteção pessoal, políticas procedimentais, sistemas de radio e
de telecomunicações incluindo sistemas computacionais e redes informáticas e
infraestruturas relevantes de transporte. Por seu lado, o PFSP especifica as condições de
acesso à infraestrutura, de acesso às áreas restritas, de movimentação da carga, de
entrega dos abastecimentos aos navios e da monitorização das condições de proteção da
infraestrutura.
Também as Convenções SOLAS e FAL (“Facilitation on International Maritime Traffic”)
vieram definir nove formas-padrão para serem utilizadas na troca de informações no
ecossistema marítimo, especialmente, entre os portos (ou terminais) e partes terceiras
que é obrigatoriamente processada por meios eletrónicos a partir de 9 de abril de 2019,
especialmente através do uso dos sistemas de “single window” (“janela única”). Trata-
se da padronização do intercâmbio de informação que tem um forte impacto nos sistemas
TI e que lhe coloca novos desafios.
No que respeita à cibersegurança para o “ecossistema” marítimo, em particular para os
navios, a partir de 2017 começaram a ser endereçadas recomendações em sede
internacional.
O Comité da Facilitação (“IMO Facilitation Committee” ou FAL) o Comide Segurança
Marítima (”IMO Maritime Security Committee” ou MSC) da IMO elaboraram as linhas de
ação na gestão do risco da cibersegurança marítima através do documento MSC-FAL
1/Circ.3
41
. Ambas aquelas estruturas reconhecem a necessidade urgente de se aumentar
o alerta para as ameaças e vulnerabilidades do ciberespaço marítimo e de elaborar
recomendações de alto vel na gestão dos riscos daquele ciberespaço relativamente às
ameaças e vulnerabilidades atuais e emergentes, incluindo áreas principais que se
consideram essenciais para o apoio à gestão do ciberespaço (identificar, proteger,
detetar, responder e recuperar).
Estas linhas de ão procederam à distinção entre sistemas TI (ou IT) (tecnologias de
informação, i.e., utilização de dados como informação) e TO (ou OT) (tecnologia
operacional, i.e., constata-se que os sistemas TI estão cada vez mais interligados à TO
de cada empresa que exige uma nova perspetiva de gestão na utilização de dados para
controlar ou monitorizar os processos sicos, numa interação ciberfísica constante e
bidirecional) e revelam que todas as organizações da indústria do transporte marítimo
são diferentes e que o papel dos Governos e dos Estados de bandeira na sua regulação
40
Vide, mais recentemente, o documento ENISA (“European Union Agency for Cybersecurity”), Port
Cybersecurity - Good practices for cybersecurity in the maritime sector, Nov. 2019, ISBN 978-92-9204-
314-8, DOI 10.2824/328515.
41
Ver “Guidelines on Maritime Cyber Risk Management” (MSC-FAL.1/Circ.3) in
http://www.imo.org/en/OurWork/Security/Guide_to_Maritime_Security/Documents/MSC-FAL.1-
Circ.3%20-%20Guidelines%20On%20Maritime%20Cyber%20Risk%20Management%20(Secretariat).pdf.
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é essencial. Estes dever-se-ão, igualmente, pautar pelo prosseguimento das
recomendações dos instrumentos e das boas práticas internacionais mais relevantes,
visando a melhoria das medidas de proteção.
Claramente se constata que ficou a cargo de cada Estado tomar as medidas consideradas
mais adequadas, num ambiente bem longe da progressiva uniformização exigida pela
conexão global dos sistemas.
Ao nível da União Europeia
42
, o papel marcante da sua agência especializada (ENISA
“European Union European Union Agency for Network and Information Security”) sobre
o setor marítimo iniciou-se em 2011 com a publicação do relatório sobre a cibersegurança
marítima
43
.
Este documento, em síntese, começou por caracterizar os sistemas que a comunidade
marítima utiliza, de uma forma geral, altamente complexos, com diversas tecnologias,
inúmeros fabricantes e enorme dispersão de nacionalidades. Sucede que as questões
associadas à segurança (ou proteção no sentido de evitar a intrusão e disrupção) são,
em geral, consideradas despiciendas, aumentando o risco dos ciberataques, ampliado
pelas fáceis ligações à “internet” de forma livre e sem a adoção de boas práticas.
Mas mais grave ainda foi a constatação de ausência de capacidade de resposta quer a
incidentes quer mesmo a ciberataques, numa completa ausência de coordenação entre
os diversos atores do setor marítimo-portuário.
Em termos gerais, também a transposição e aprofundamento dos capítulos atinentes da
Convenção SOLAS respeitantes à security poderão abranger ações de resposta aos
ciberataques, particularmente, quando inseridos nas medidas gerais de proteção dos
navios e dos portos.
A este título, merecem especial referência os seguintes diplomas comunitários:
- O Regulamento (CE) n.º 725/2004 que respeita à aplicação do Código ISPS aos navios
e às estruturas portuárias;
- A Diretiva n.º 2005/65/CE no que respeita à proteção portuária;
- O Regulamento (CE) n.º 336/2006 sobre a aplicação do Código ISM (“International
Safety Management Code”) no setor marítimo salvaguardando-se, contudo, que este
Código não é aplicável aos portos; e
- A Diretiva n.º 2010/65/UE que estipula sobre a aceitação dos Estados-membros das
formas-padrão (“FAL forms”) para facilitação do tráfego. Esta Diretiva introduz
igualmente no ordenamento jurídico os sistemas “SafeSeaNet” aovel nacional e da
União Europeia promovendo o tráfego seguro de dados entre as administrações
marítimas de cada Estado e outras autoridades.
42
Respigando a Estratégia da Segurança Marítima da União Europeia, de 24 de julho de 2014, a pps.
3,“Maritime security is understood as a state of affairs of the global maritime domain, in which international
law and national law are enforced, freedom of navigation is guaranteed and citizens, infrastructure,
transport, the environment and marine resources are protected”. Deste parágrafo se extrai, igualmente, a
ideia já aventada da apresentação dos 2 círculos concêntricos que correspondem à safety e à security,
ou seja, a garantia da liberdade da navegação em condições seguras para os cidadãos, para as
infraestruturas, para os transportes, para o ambiente e para os recursos marinhos. Vide COUNCIL OF THE
EUROPEAN UNION, Brussels, European Union Maritime Security Strategy, 24-06-2014, doc. 11205/14.
43
https://www.enisa.europa.eu/news/enisa-news/first-eu-report-on-maritime-cyber-security.
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De forma breve, o Regulamento (CE) n.º 725/2004 e a Diretiva n.º 2005/65/CE
constituem o quadro jurídico de referência que sustentam a avaliação e os planos de
proteção dos portos e das infraestruturas portuárias, bem como dos navios e das
companhias de navegação.
Entretanto, em 2014, o documento que aprovou a Estratégia Europeia para a Segurança
Marítima (“European Maritime Security Strategy” ou EUMSS), revista em 2018
44
, foi
definido como um instrumento destinado a identificar, prevenir e dar resposta a qualquer
desafio que possa afetar a proteção dos europeus, atividades e meios no ecossistema
marítimo incluindo os portos.
A EUMSS identifica as ameaças e riscos à segurança marítima (num sentido lato) que se
consubstanciam em “terrorismo e outros atos intencionais e ilícitos no mar e nos portos
contra os navios, mercadorias, tripulações e passageiros, portos e infraestruturas
portuárias e infraestruturas críticas marítimas e energéticas, incluindo os ciberataques”.
A revisão de 2018 da Estratégia focou-se essencialmente no procedimento de relato com
vista à melhoria do alerta e à monitorização das ações subsequentes.
Entretanto, só a partir da vigência da Diretiva n.º 2016/1148 (“Directive on Security of
Network and Information Systems”, com o acrónimo NIS ou SRI em ngua portuguesa
45
)
a União Europeia passou a dispor de legislação habilitada a harmonizar as capacidades
nacionais de cibersegurança, à colaboração nas fronteiras e à supervisão dos setores
críticos no espaço da União.
Trata-se da primeira legislação da União Europeia sobre segurança do ciberespaço,
visando aumentar a cooperação e criar uma cultura de segurança em sectores essenciais
para a sociedade que dependam fortemente das TI.
44
Vide a versão original de 2014 in “The European Maritime Security Strategy” in
https://ec.europa.eu/maritimeaffairs/policy/maritime-security_en. Claramente que fica patente que os
documentos de estratégia sobre questões de safety e/ou de security são, quase invariavelmente,
traduzidos por “segurança”, argumento também a favor de se propugnar o “novo” Direito da Segurança
Marítima como abrangendo ambas as vertentes que, cada vez mais, se apresentam interrelacionadas e
cujos limites são cada vez mais fluidos.
E, a sua revisão de 2018, in https://www.consilium.europa.eu/en/press/press-
releases/2018/06/26/maritime-security-eu-revises-its-action-plan/.
Em 2016, o Regulamento (UE) n 2016/679 (“General Data Protection Regulation”) que se destinou à
proteção dos dados pessoais das pessoas singulares e da sua comunicação, também abrangeu,
naturalmente, o setor marítimo, mas sem qualquer especialidade.
45
Esta diretiva foi transporta para a legislação portuguesa pela Lei n.º 46/2018, de 13 de agosto que
estabelece o regime jurídico da segurança do ciberespaço. Entretanto, em setembro de 2020, a Comissão
Europeia lançou uma consulta pública no âmbito do processo de revisão da Diretiva NIS com o objetivo de
reforçar a resiliência das redes e dos sistemas contra os riscos da cibersegurança. Neste âmbito, a Diretiva
identifica os operadores de serviços essenciais” entre os quais constam os portos marítimos. Um dos
problemas identificados pela Comissão traduziu-se na falta de harmonização por parte dos Estados-
membros na identificação daqueles operadores e que se refletiu também nos portos marítimos selecionados
(por exemplo, se os portos mais pequenos deverão ou não ser excluídos da aplicação da Diretiva). Por esta
razão, pretende-se igualmente revisitar os termos previstos para os “portos marítimos” na definição nela
estabelecida que segue:“Managing bodies of ports as defined in point (1) of Article 3 of Directive
2005/65/EC, including their port facilities as defined in point (11) of Article 2 of Regulation (EC) No
725/2004, and entities operating works and equipment contained within ports”.
Uma das questões nucleares a merecer ponderação respeita à obrigação que a Diretiva impõe da notificação
dos incidentes de cibersegurança às autoridades competentes. Quanto a nós e desde que o operador faça
parte de uma rede ou sistema de serviços essenciais”, deverá ser abarcado pela Diretiva, não interessando
se, por exemplo, o porto marítimo é grande ou pequeno. Trata-se de estender as obrigações do “operador
de serviços essenciais” a todos os que façam parte de uma rede ou sistema de serviços essenciais”,
independentemente da sua classificação como “operador”.
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Os parágrafos n.º 10 e n 11 da Diretiva do preâmbulo são específicos do setor
marítimo:
“10. No setor do transporte marítimo e por vias navegáveis interiores, os
requisitos de segurança aplicáveis às empresas, navios, instalações
portuárias, portos e serviços de tráfego marítimo ao abrigo de atos jurídicos
da União abrangem todas as operações, incluindo os sistemas de rádio e
telecomunicações e os sistemas de informação e as redes. Parte dos
procedimentos obrigatórios a seguir inclui a notificação de todos os incidentes
e, como tal, deverá ser considerada como “lex specialis”, na medida em que
esses requisitos sejam, no mínimo, equivalentes às disposições
correspondentes da presente diretiva”.
E no parágrafo n.º 11:
“11. Ao identificarem operadores do setor do transporte marítimo e por vias
navegáveis interiores, os Estados-Membros deverão ter em conta os códigos
e as orientações internacionais atuais e futuros elaborados pela
Organização Marítima Internacional, a fim de permitir que os diversos
operadores marítimos sigam uma abordagem coerente”.
Nos termos do n.º 4 do artigo 4.º da Diretiva, é considerado “operador dos serviços
essenciais” uma entidade pública ou privada pertencente a um dos tipos referidos no
anexo II e que cumpre os critérios previstos no artigo 5.º, n.º2 (isto, é, uma entidade
presta um serviço essencial para a manutenção de atividades societais e/ou económicas
cruciais, a prestação desse serviço depende de redes e sistemas de informação; e um
incidente pode ter efeitos perturbadores importantes na prestação desse serviço).
Ora, no que respeita ao ecossistema do transporte marítimo e por vias navegáveis
interiores são os seguintes os operadores constantes do anexo II:
- Companhias de transporte por vias navegáveis interiores, marítimo e costeiro de
passageiros e de mercadorias, tal como definidas, para o transporte marítimo, no
anexo I do Regulamento (CE) n725/2004 do Parlamento Europeu e do Conselho
não incluindo os navios explorados por essas companhias;
- Entidades gestoras dos portos na aceção do artigo 3.º ponto 1, da Diretiva 2005/65/CE
do Parlamento Europeu e do Conselho, incluindo as respetivas instalações portuárias
na aceção do artigo 2.º, ponto 11, do Regulamento (CE) n.º 725/2004, e as entidades
que gerem as obras e o equipamento existentes dentro dos portos
- Operadores de serviços de tráfego marítimo na aceção do artigo 3.º, alínea o), da
Diretiva 2002/59/CE do Parlamento Europeu e do Conselho.
Finalmente, em 2019, o “Ato Europeu sobre a Cibersegurança” (“EU Cybersecurity Act”)
46
veio robustecer a posição da ENISA em relação os Estados-Membros e definiu o quadro
46
https://ec.europa.eu/digital-single-market/en/eu-cybersecurity-act.
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da certificação sobre cibersegurança dos produtos ICT, serviços e processos, passando-
se a exigir o cumprimento de determinados requisitos.
Adicionalmente, foram vários os Estados-Membros que reforçaram a aplicação da
regulamentação e políticas internacionais e comunitárias sobre a cibersegurança,
desenvolvendo as suas próprias iniciativas para melhorar a gestão dos riscos do
ciberespaço através de legislação nacional
47
.
IV. Conclusões
Se desde os tempos da Antiguidade o mar era sinónimo de globalização para o comércio,
a mesma globalização conduz à emergência de diversos riscos e ameaças que exigem
condições mais exigentes dos produtos ICT (“Information and Communication
Technologies”) e dos serviços associados.
Os ciberataques no setor marítimo-portuário vieram robustecer a necessidade de se
abordar a nova segurança marítima de uma forma holística, integrando as duas vertentes
(a safety e a security) mas com uma modelação que deriva da estratégia nacional
prosseguida para o mar por cada Estado.
assim será possível que a “segurança no mar” seja uma realidade que se equilibra
pela interação de dois círculos concêntricos: a safety, de natureza essencialmente
técnica e a security que reforça aquela (ou a torna, infelizmente, mais vulnerável) e
que assume contornos de prevenção e de contenção das ameaças.
O salto qualitativo dado pela União Europeia no que respeita à cibersegurança foi dado
pela Diretiva n.º 2016/1148 (“Directive on Security of Network and Information
Systems”) passando a dispor de legislação habilitada a harmonizar as capacidades
nacionais de cibersegurança, à colaboração nas fronteiras e à supervisão dos setores
críticos no espaço da União.
E “navegar no ciberespaço” em “segurança” corresponde, afinal, a enfrentar novos
“escolhos” acidentais ou deliberados em que a globalização “desregulada” é o novo
arquétipo do “Cabo das Tormentas” e do “Mar Tenebroso”.
Tal como este foi navegável e safo, também o ciberespaço o deverá ser em segurança,
com uma regulação apertada e com novos instrumentos, como Pedro Nunes o fez com a
carta das “latitudes crescidas”
48
ou como Bartolomeu Dias, ao dobrar o promontório, veio
47
Lei “CIIP” em França - https://www.ssi.gouv.fr/en/cybersecurity-in-france/ciip-in-france/.
Lei específica para os portos no Reino Unido - https://www.gov.uk/government/publications/ports-and-
port-systems-cyber-security-code-of-practice;
Lei “IT-Grundschutz” na Alemanha -
https://www.bsi.bund.de/EN/Topics/ITGrundschutz/itgrundschutz_node.html;
A nível nacional: a Lei n.º 46/2018 de 13 de agosto transpôs para o ordenamento jurídico nacional a Diretiva
(UE) n.º 2016/1148 e a Resolução do Conselho de Ministros n.º 92/2019 de 5 de junho veio estabelecer a
Estratégia Nacional de Segurança do Ciberespaço.
Note-se que a cibersegurança foi tema relevante na agenda da última Cimeira da Nato em Londres, no mês
de dezembro de 2019.
48
Embora em cartas de pequena escala, deixando a Gerardo Mercator, mais tarde, a glória da sua
generalização. Pedro Nunes, enquanto o primeiro cosmógrafo-mor do Reino, nomeado em 1547,
desempenhou um papel crucial no desenvolvimento do estudo dos problemas matemáticos da cartografia
náutica e que se tornou imprescindível nos métodos e nos equipamentos utilizados na navegação oceânica.
Foi o primeiro a conceptualizar a diferença entre a “loxodromia” e a “ortodromia”, i.e., referindo que a linha
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a designá-lo como a nova “Boa Esperança”, um repositório de novos conhecimentos e
técnicas de navegação com os quais foi possível iniciar-se a “Globalização”!
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de rumo constante não era a distância mais curta entre dois pontos. No seu “Tratado em Defensa da Carta
de Marear”, argumentou que uma carta náutica deveria ter circunferências paralelas e meridianos
“desenhados como linhas retas”. Mas poderíamos referir muitos mais e, mais recentemente, o Almirante
Gago Coutinho e a sua assombrosa preparação - matemática e cartográfica - da viagem da Primeira
Travessia Aérea do Atlântico Sul, entre Lisboa e o Rio de Janeiro, em 1922.
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A SEGURANÇA NACIONAL. UMA NOVA ABORDAGEM FACE AO TERRORISMO
MARÍTIMO EM ÁFRICA
Damião Fernandes Capitão Ginga
damiaoginga@hotmail.com
Doutor em Ciência Política, especialista em Relações Internacionais e Políticas Públicas Marítimas.
Professor Auxiliar convidado no Instituto Superior de Relações Internacionais “Venâncio de
Moura”, Luanda (Angola).
Resumo
A conceptualização operacional da Segurança Nacional é frequentemente identificada como
sendo difusa e cada vez mais abrangente, mormente por na atualidade esta se encontrar
relacionada ao contexto geopolítico e aos atores em referência. A análise conceptual aqui
apresentada tem como objetivo principal abordar o conceito de Segurança Nacional, fazendo
uma correlação com o crescimento do terrorismo marítimo no continente africano em geral,
tendo como enfoque particular a sua incidência nas suas regiões, enquadrado pelos debates
das relações internacionais. A hipótese central do trabalho é de que a abordagem ao fenómeno
do terrorismo marítimo no continente africano deverá ser tratada ao nível de um regime de
segurança conjunto entre os Estados africanos. Nesta perspetiva, paralelamente ao
enquadramento conceptual surgem como elementos centrais neste ensaio, a abordagem ao
papel dos Estados na segurança territorial face ao crescimento das ameaças terroristas no
mar em todo continente e a identificação dos principais desafios que se colocam à segurança
nacional, nesta região do globo, onde a abordagem securitária conjunta entre os Estados se
revelou fundamental, para contrariar a tendência ascendente dos movimentos do terrorismo
transnacional.
Palavras-chave
Segurança Nacional, Terrorismo marítimo, África, Oceanos
Como citar este artigo
Ginga, Damião Fernandes Capitão (2020). A Segurança nacional. Uma nova abordagem face
ao terrorismo marítimo em África. In Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 11,
2 Consultado [online] em data da última consulta, DOI: https://doi.org/10.26619/1647-
7251.11.2.11
Artigo recebido em Maio 14, 2020 e aceite para publicação em Agosto 31, 2020
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Damião Fernandes Capitão Ginga
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A SEGURANÇA NACIONAL. UMA NOVA ABORDAGEM FACE AO
TERRORISMO MARÍTIMO EM ÁFRICA
Damião Fernandes Capitão Ginga
Introdução
No âmbito dos Estudos de Segurança Internacional, após os atentados de 11 de setembro
de 2001, a importância dada ao tema cresceu exponencialmente, designadamente ao
nível dos debates sobre como proteger o Estado contra ataques externos, porquanto
significou uma mudança paradigmática, alterando as dinâmicas da política internacional
e resultando numa declaração de luta global contra o terrorismo e contra todas
organizações que apoiam movimentos terroristas.
No continente africano, com o início do século XXI, observou-se a emergência de
movimentos terroristas que passaram a constituir uma ameaça à segurança e à
estabilidade política dos Estados africanos. Na verdade, a atualidade africana tem sido
marcada pela proliferação de grupos terroristas, onde a intensificação das ações de
movimentos terroristas, como o Boko Haram e o Al-Shabaab, têm afetado a segurança
e estabilidade dos Estados da região, designadamente nas regiões da África Ocidental e
Oriental. Estes grupos terroristas têm na sua agenda a desestabilização das estruturas
de poder nestas regiões, promovendo assim a islamização destas nações em oposição a
civilização ocidental (Omuoha, 2013; Schmid, 2011).
Portanto, a abordagem aqui apresentada visa aprofundar o debate sobre as questões de
segurança nacional no seio dos principais interessados em temáticas que abordam a
causa africana em geral, e as questões da Segurança Nacional nas regiões do continente,
face ao terrorismo marítimo, servindo assim de mais um elemento de análise sobre o
estado de fragilidade das fronteiras dos Países africanos, onde parece evidente a postura
letárgica das autoridades africanas. Uma abordagem à segurança nacional em África, não
é apenas uma reflexão sociopolítica sobre os factos, mas também uma visão de
desenvolvimento humano e empoderamento das Nações africanas, elencando por isso os
principais desafios face ao terrorismo marítimo e apontando algumas linhas de ação,
tendo em vista o novo paradigma.
Com o efeito, a análise não será centrada aos movimentos terroristas, mas nas dinâmicas
no âmbito da Segurança Nacional, mormente ao nível da região do Golfo da Guiné, para
fazer face a essas ameaças, sendo que importará perceber: qual deve ser o papel dos
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Estados africanos, enquanto garantes da segurança, soberania e integridade territorial,
face às crescentes ondas de terrorismo marítimo? O artigo faz uma análise sistemática,
com base numa revisão bibliográfica, adotando uma abordagem qualitativa, mediante
um raciocínio dedutivo, partindo de um objetivo central, com base na pergunta de
partida; e encontra-se estruturado em três pontos, sendo o primeiro uma abordagem
conceptual, seguido de uma análise ao estado de insegurança continental, finalizando
com a descrição do papel dos Estados africanos para fazer face ao fenómeno.
Abordagem conceptual
Para abordar o conceito e a problemática da Segurança Nacional, torna-se importante
fazer referência ao espetro de abrangência dos Estudos de Segurança Internacional, na
sigla em inglês ISS (International Security Studies), pelo que a sua interdisciplinaridade
abrange o campo de estudo de outras ciências, nomeadamente o das Relações
Internacionais, porquanto as fronteiras entre uma e outra ciências são difíceis de traçar
(Buzan e Hansen, 2009: 16). Todavia, atendendo as metas preconizadas no presente
artigo cientifico, a conceptualização das temáticas aqui trazidas será no âmbito das
Relações Internacionais, respeitando porém as teorias das principais Escolas no quadro
dos Estudos em Segurança, dentre as quais o International Peace Research Institute,
Oslo (PRIO); e a Escola de Compenhaga de Estudos de Segurança, baseada no
Compenhagen Peace Research Institute.
O termo segurança na sua origem etimológica deriva do latim securus”, que significa
sem medo, e remete-nos a ausência de risco, a previsibilidade, a certeza quanto ao
futuro. Como refere Philippe David, o conceito de Segurança tem sido objeto de uma
profunda renovação conceptual, considerando a capacidade do Estado em conter as
ameaças à sua soberania, devido à evolução dos níveis clássicos de análise da segurança
nacional, regional, internacional e cooperativa, para o nível de segurança comum, global
e humana (2001: 29-30). O conceito perdeu, assim, a sua dimensão quase
exclusivamente pública, nacional e militar (Guedes e Elias, 2010: 28). Deste modo,
segundo o conceito defendido pelo Almirante António Sacchetti, o conceito de Segurança
Nacional consiste:
“na situação que garante a unidade, a soberania e a independência da Nação;
a integridade do território e a segurança das pessoas e bens; a unidade do
Estado e o desenvolvimento normal das suas tarefas; a liberdade de acção
política dos órgãos de soberania e o regular funcionamento das instituições
democráticas constantes do quadro constitucional” (2008:19).
Percebe-se assim que a Segurança Nacional traduz o complexo ideológico, que visa
garantir e proteger a integridade e soberania dos Estados e de todos os valores materiais
e abstratos que representam os objetivos vitais dos Estados. Portanto, o conceito de
Segurança Nacional defendido atualmente, no âmbito das Relações Internacionais,
refere-se à segurança coletiva, entendida como um pilar essencial para a manutenção
da estrutura dos Estados modernos e da presente Ordem Mundial, englobando o espetro
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da segurança interna dos países, ou de um espaço regional ou continental, em que se
centra a área de interesses desses Estados que dele fazem parte, fazendo assim surgir
a noção de regime de segurança no seio das organizações internacionais
1
.
Ademais, na atual ordem internacional, o conceito de Segurança Nacional evoluiu para
uma visão mais abrangente como resultado da complexidade, instabilidade e insegurança
da conjuntura internacional, considerando um maior espaço para a cooperação e para o
diálogo a nível interno e de âmbito externo.
Encontra-se deste modo subentendido que o "sentimento de segurança" pressupõe não
apenas o conceito de Defesa face ao exterior, mas também uma visão político-
estratégica, em que se está menos inseguro quando se alcançam as metas traçadas que
garantam a segurança desejável e o apenas quando se assegura a própria
sobrevivência da Nação (Ginga, 2014).
Assim e a semelhança de outros contextos, verifica-se uma maior abrangência referente
aos pilares dos elementos de Segurança Nacional nos Estados africanos, graças também
à maior "desmilitarização" dos elementos que se encontram na base deste fator,
ultrapassando assim a dimensão da segurança militar ao englobar as esferas económica,
social, cultural, entre outros campos essenciais, quanto à implementação do sentimento
de segurança de qualquer Estado
2
(Moreira, 2002). Conforme defendem Guedes e Elias,
o conceito de “Segurança’ tornou-se um conceito de banda larga”, na medida em que
abrange agora a “atuação e o empenhamento de instituições públicas mas e também de
privadas, da sociedade local e da sociedade civil num sentido mais amplo bem como
de instituições e organizações internacionais, sejam elas as de Estados vizinhos, as de
entidades intergovernamentais ou as de outras, supranacionais” (Guedes e Elias, 2010:
28).
Por sua vez, e no que toca ao ressurgimento do fenómeno do terrorismo na ordem pós-
Guerra Fria, materializado pelos ataques às torres gémeas, importará também perceber
e abordar o seu conceito, tendo como matriz a sua tipologia, em função do ato violento,
dos objetivos, do ator que executa e da sua motivação
3
. O terrorismo é um fenómeno
antigo, enraizado na história e na geografia, que se tem transformado ao longo dos anos,
variando a estrutura organizacional, o modus operandi, a área de atuação, o objetivo-
alvo e a ideologia prevalecente (Lousada, 2007: 20).
Portanto, conceptualizar o fenómeno e caraterizar o seu percurso histórico até aos nossos
dias, seria a forma mais correta de abordar o tema, todavia, e por racionalização de
espaço, a abordagem no presente artigo limitar-se ao terrorismo moderno
1
Por força da globalização crescente, a figura do Estado nacional vai perdendo importância, o que obriga a
rever os sistemas de governança das sociedades contemporâneas, nos quais a participação blica dos
cidadãos e a emergência de novas instituições internacionais adquirem um maior peso, sendo que no caso
concreto da segurança nos levam a duas dimensões essenciais, a da segurança humana e da segurança
coletiva (Lourenço e Machado, 2013: 94).
2
Ademais, a tendência dos Estados se integrarem nos “grandes espaços” que tem tentado contrariar as
insuficiências do velho modelo soberano, tem implicado a transformação das perspetivas da segurança
territorial e o maior reconhecimento das solidariedades transfronteiriças, num contexto de globalização.
3
Ao longo dos séculos o terrorismo experimentou diferentes variantes, enquanto instrumento de agentes
não-estaduais, pelo que foi destaque no séc. XVIII-XIX por causa dos anarquistas. Mais recentemente, no
séc. XXI, as manifestações violentas protagonizadas pela Al-Qaeda, responsável pelos ataques terroristas
de 11 de Setembro de 2001 nos EUA, e de 11 Março de 2004 em Madrid, fez emergir no seio das sociedades
contemporâneas uma nova versão do terrorismo, mais virado para internacionalização dos seus efeitos,
isto é, o terrorismo moderno (Galito, 2013).
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transnacional ou neoterrorismo, mais concretamente à sua vertente marítima. Percebe-
se assim, que a definição contemporânea do termo terrorismo está não apenas
relacionada com a história, mas também com a cultura, as políticas das nações e o
contexto geopolítico em questão, o que faz com que existam várias conceções sobre o
terrorismo, sendo que para alguns a definição correta sobre o fenómeno é terrorismo,
para outros combate pela liberdade, porém independente do contexto geopolítico, não
existe uma definição exclusiva de terrorismo
4
.
Importará apresentar uma visão conceptual académica do fenómeno, pelo que segundo
Tore Bjorgo (2005: 2), o terrorismo consiste num “conjunto de métodos de combate ao
invés de uma ideologia ou movimento identificável, e envolve o uso premeditado de
violência contra não combatentes, a fim de conseguir um efeito psicológico de medo nos
outros, os alvos imediatos...”, na medida em que o seu entendimento está centrado na
natureza do ato e não na sua motivação. As Nações Unidas, no seu conceito apresentado
em Fevereiro de 2002, defende que o terrorismo “compreende toda a ação que provoca
danos a pessoas ou a bens, quando o propósito da ação, pela sua natureza ou contexto,
é intimidar a população ou pressionar um governo ou organização internacional a abster-
se de redigir determinado ato”. Nesta sua visão, as Nações Unidas não abordam a
natureza do ator terrorista, isto é, se está limitada a grupos do crime organizado ou se
podem ser incluídos os Estados, enquanto elementos fomentadores ou financiadores do
fenómeno.
Na verdade, embora muitas vezes o conceito de terrorismo marítimo seja confundido
com a noção de pirataria marítima, devido a sua natureza, o diferencial encontra-se
sobretudo nas motivações e no objetivos que encerram uma e outra atividade, ou seja,
a pirataria é de uma maneira geral motivada por interesses privados, não estando
subjacentes objetivos de caráter político-ideológico, enquanto o terrorismo marítimo é
percebido como uma das várias formas de rebelião armada por alguma causa superior,
geralmente de carácter político ideológico, visando a provocação-repressão-
desestabilização; conforme Bjorn Moller defende, quando afirma que o “... terrorism is a
strategy or tactics which an actor may choose, either fully and permanently or, much
more frequently, partly and periodically, either alternating between or combining non-
violent political struggle with guerrilla war and/or terrorism” (2009: 23).
Entretanto e versando sobre a definição concreta de Terrorismo Marítimo, importará fazer
um cruzamento entre as definições aqui expostas e a definição de Pirataria Marítima,
defendida pela Convenção das Nações Unidas sobre o Direito do Mar (CNUDM), que define
como sendo:
“(...) todo ato ilícito de violência ou de detenção ou de depredação cometidos,
para fins privados, pela tripulação ou pelos passageiros de um navio ou de
uma aeronave privada, e dirigidos contra: um navio ou uma aeronave em alto
mar ou pessoas ou bens a bordo dos mesmos (...), pessoas ou bens em lugar
não submetido à jurisdição de algum Estado; e todo ato de participação
voluntária na utilização de um navio ou de uma aeronave, quando aquele que
4
Conforme as investigações de Pierre-Marie Dupuy, existem pelo menos 109 possíveis definições de
terrorismo (apud Galito, 2013: 3).
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o pratica tenha conhecimento de factos que em a esse navio ou aeronave
o carater de navio ou aeronave pirata” (CNUDM, 1982: Art. 101º).
Com isso e após breve análise conceptual, considera-se consensual o facto de o
terrorismo marítimo ser caraterizado como um ato ilegal de carácter violento, contra
indivíduos, estruturas, organizações ou Estados, no ou a partir do mar, com motivações
de carácter político-ideológico, visando alcançar ganhos para um determinado grupo de
individuos ou organizações internacionais. Encontra-se subjacente a existência de uma
organização ou estrutura em rede”, apoiada por uma complexa teia de instrumentos
políticos, religiosos, económicos e financeiros (Moller, 2009).
A pirataria marítima surge assim como um instrumento ou componente do espetro global
do terrorismo marítimo
5
, sendo que este último abrange todas as atividades ilícitas no
espaço marítimo, que tenham motivação político-ideológicas. O terrorismo matimo
compreende diferentes manifestações, designadamente os atos de pirataria
6
, os atos de
deposição de substâncias e derrame ilegal nos oceanos
7
, os atos de violência contra
navios no mar ou em terra
8
, os atos de extração ilegal e depredação dos recursos
marinhos, os atos de utilização de um navio como arma, os atos de utilização do mar
como meio logístico para apoio de atividades terroristas e a utilização do mar como
plataforma de lançamento de ataques contra Estados, entre outras manifestações
(Cottim, 2008: 131). Portanto, a abordagem aqui apresentada centrar-seao terrorismo
marítimo, nas suas diferentes variantes.
O contexto de insegurança no Continente
A situação geopolítica do continente africano é muito marcada por problemas e ameaças
à sua Segurança, porquanto estes são mais antigos que a sua constituição como
5
O terrorismo marítimo não é facilmente dissociado da pirataria, particularmente pelo seu caráter complexo
e ao mesmo tempo transversal a todas outras manifestações do crime organizado no mar. Não existem
muitos relatórios estatísticos sobre o 'terrorismo marítimo' internacional, não apenas por este ser
normalmente associado a pirataria, mas também porque os alvos do terrorismo marítimo nem sempre são
alvos no mar, mas também em terra, sendo um dos fatores que difere o terrorismo da pirataria, onde os
alvos são sempre marítimos (Moller, 2009).
6
Dentre as várias manifestações do terrorismo marítimo, ao longo da história, destaca-se o sequestro do
navio de cruzeiro italiano Achille Lauro em Outubro de 1985, no Mediterrâneo, por um grupo de terroristas
da Frente de Libertação da Palestina, que culminou com o cidadão americano Leon Klinghoffer, e mais tarde
resultou na implementação da Convenção para a Supressão de Actos Ilícitos contra a Segurança da
Navegação Marítima (SUA 1988). Mais tarde, após os eventos de 11 de setembro de 2001, a 22ª sessão da
Assembléia da Organização Marítima Internacional (OMI), em novembro de 2001, acordou desenvolver
novas medidas relativas à proteção de navios e instalações portuárias, tendo resultado na adoção, em 12
de dezembro de 2002, o Código Internacional para a Proteção de Navios e Instalações Portuárias
(International Ship and Port Facility Security Code ISPS Code). Ainda em 2002, a OMI implementou outros
dois sistemas, com vista a reforçar a segurança a bordo dos navios e das infraestrututras marítimas, a
saber: o Sistema de Identificação Automática (Automatic Identification System AIS); e o Sistema de
Alerta de Proteção de Navio (Ship Secure Alert System SSAS). (Simioni, 2011).
7
Na era pós 11 de setembro, o ataque ao Limburg, um petroleiro de bandeira francesa ao serviço da Petronas,
ocorrido a 6 de Outubro de 2002, por meio de um pequeno barco carregado de explosivos, ao largo do
Iémen, que causou a morte a um tripulante e o derrame de 90.000 barris de crude no mar, evidencia o
potencial danoso que o terrorismo pode ter para o ambiente marinho (Cottim, 2008).
8
Os ataques da Al-Qaeda contra o destroier americano USS Cole, no Iêmen (2000); o ataque ao terminal
petrolífero no Iraque (2004); o ataque de um grupo filiado ao Estado Islâmico a um navio egípcio no Mar
Mediterrâneo (2015), constituem exemplos concretos deste tipo de manifestação de terrorismo marítimo
(Simioni, 2011).
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continente formado por Estados soberanos, visto que desde sempre enfrentou
obstáculos, dentre eles as conquistas e as ocupações promovidas por vários povos ao
longo de vários séculos, posteriormente pelas tentativas de dominação perpetradas pelas
grandes potências durante o século XIX, tendo dado lugar à Conferência de Berlim, e
atualmente pela terceira fase da chamada Scramble for África”, motivada por razões
geopolíticas e geoestratégicas, fazendo com que as maiores potências internacionais
estejam mais atentas às dinâmicas deste continente; onde os recursos minerais e
energéticos ocupam um lugar central nesta nova interação.
A História do continente, nomeadamente da região Subsariana, é assim marcada por três
vetores críticos, corresponsáveis pelos baixos veis de desenvolvimento e pelos
prolongados períodos de crises políticas, securitárias e socioeconómicas. O primeiro está
associado ao seu “potencial em recursos naturais” ou seja, as suas riquezas naturais que
há vários séculos têm despertado o interesse de outros Estados; o segundo está
relacionado às "fragilidades internas" dos Estados, o que tem resultado em sucessivos
conflitos intraestatais e contribuído para instabilidade sociopolítica nesses Países; e o
terceiro encontra-se ligado ao acentuado "deficit democrático" e à desestruturação da
maior parte dos Estados africanos, que tem favorecido a disseminação da violência
generalizada pelo continente (Ginga, 2014: 161).
Como resultado, nas últimas décadas assistiu-se à uma alteração evolutiva da tipologia
dos conflitos regionais em África, estes transitaram do interior dos Estados para os
Oceanos, afetando o desenvolvimento local, as dinâmicas regionais e continentais, e
fragilizando as estruturas sociopolíticas nestes Estados. Este novo contexto
contemporâneo regional levou os Estados e as Organizações Regionais Africanas (ORA),
tal como a comunidade internacional, a atribuir maior importância ao fator segurança no
mar, dado que sem paz, estabilidade e tranquilidade nestes espaços, não existem
condições para os Estados se desenvolverem
9
.
Neste panorama, mais recentemente, no icio do século XXI, os movimentos terroristas,
associados a outras modalidades do crime organizado como a pirataria e o tráfico de
droga, bens, armas e seres humanos, têm contribuído para o debate académico sobre as
dimensões geopolíticas da segurança no continente, sobretudo na sua dimensão
marítima, que tem constituído o “calcanhar de Aquiles” para os Estados nesta região,
onde a atuação das autoridades locais não tem sido suficiente para, isoladamente, pôr
termo a estes ataques à soberania e ao Estado de Direito no continente. Esta é a
realidade de um continente que tem sido fragilizado pela insegurança, com
consequências ao nível do desenvolvimento socioeconómico, e onde os Estados com
estruturas débeis enfraquecem mais ainda a condição continental
10
.
Com efeito, novos atores da cena internacional e continental têm concorrido com os
Estados, diminuindo muitas vezes a sua autonomia, tornando mais complexas as suas
9
Os ataques ao setor petrolífero ao longo da costa ocidental do continente Africano, custam bilhões de dólares
em receita perdida, desestabilizam os preços globais da energia e levam a desastres ambientais. De acordo
com ao relatório da missão de avaliação das Nações Unidas sobre pirataria no Golfo da Guiné em 2011,
esses crimes causaram perdas econômicas de até USD 2 bilhões anualmente, atingindo principalmente as
economias locais (Gorce e Salvy, 2012: 62, tradução livre).
10
As atividades ilegais têm-se multiplicado nos espaços marítimos africanos, fundamentalmente porque
muitos Estados não têm capacidade para exercer de forma continuada a autoridade do Estado no mar, e os
que são capazes têm a sua ação limitada por força da CNUDM (Gorce e Salvy, 2012: 59).
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A segurança nacional. Uma nova abordagem face ao terrorismo marítimo em África
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dinâmicas no âmbito das relações internacionais, e algumas vezes pondo em causa a
estabilidade local, regional e até mesmo continental. O binómio “segurança-
insegurança”, no continente, tem sido representado pelo conjunto de vulnerabilidades
internas e externas que ameaçam ou têm o potencial de reduzir ou enfraquecer as
estruturas governamentais, organismos ou instituições, e regimes políticos.
De acordo com os dados apresentados anualmente pelo Global Firepower, percebe-se
que paralelamente a esta ameaça os Estados africanos enfrentam um problema mais
profundo, traduzido pela exiguidade de recursos para fazer face ao contexto de
insegurança de forma geral, e ao terrorismo marítimo de maneira particular
11
. Os últimos
relatórios do International Institute for Strategic Studies (IISS) The Military Balance
descrevem um panorama de desinvestimento nas Marinhas de Guerra
12
, em alguns
Estados africanos, o que a médio e longo prazo poderá determinar uma menor presença
da Autoridade dos Estados no mar. Com efeito, despite increasing international
commitment, and amid persistente militar operations, the security situation in west Africa
and the sahel region continues to deteriorate (IISS, 2020: 444).
Como anteriormente sublinhado, a presente abordagem versa sobretudo à última onda
13
do terrorismo marítimo no continente, porquanto os movimentos terroristas no
continente emergiram ao longo do tempo com diferentes motivações, o que fez com que
o fenómeno em África passasse por várias transformações. Como resultado, nos últimos
anos o continente tem sido muito afetado pelo terrorismo marítimo organizado,
mormente com a derrota do Estado Islâmico no Iraque e na ria, os movimentos
terroristas têm expandido a sua causa extremista ao longo das regiões do continente,
nomeadamente nas regiões do Sahel, Golfo da Gui e Golfo do Áden. O terrorismo
marítimo tem sido também um ponto de intersecção da política local e da violência, e é
nisto que se encontra o problema, pois seus efeitos são estruturais e ultrapassam as
fronteiras e as constituições nacionais (Schmid, 2011).
Neste quadro, o aumento progressivo dos sequestros, ataques, detenções e ataques,
perpetrados por grupos terroristas no continente, tem agravado a preocupação de que
os movimentos do crime organizado estejam a ganhar força, na medida em que,
atualmente, os alvos do terrorismo no continente variam dependendo dos objetivos do
movimento em causa. Vários grupos insurgentes têm feito uso extensivo do mar, como
um prolongamento da sua afirmação no continente, sendo que se observa uma maior
ligação entre as redes do crime organizado em terra e no mar (Moller, 2009: 27).
11
O Ranking apresentado pela plataforma Global Fire Power é baseado no potencial militar de cada Estado,
em termos de meios militares terrestre, marítimos e aéreos. Assim, na maior parte dos Estados africanos
costeiros, observam-se grandes vulnerabilidades a nível da componente naval, concretamente ao nível dos
meios necessários para o exercício permanente da Autoridade do Estado no Mar, nas suas várias dimensões
(sub-superficie, superfície e aérea). Vide. <Consultado em 15/09/2020>
https://www.globalfirepower.com/navy-ships.asp
12
De acordo com o Military Balance 2020, em 2019, os gastos com defesa dos Estados da África subsariana
representaram apenas 1% (17.1 biilhões USD) dos gastos globais, sendo a África do Sul o País que mais
gastou (3.54 bilhões USD).
13
No âmbito da história sobre o terrorismo, comummente apresenta-se a sua evolução enquadrada em etapas
ou “ondas do terrorismo”, sendo a primeira a Onda dos Anarquistas, simbolizada também pelos movimentos
anarquistas surgidos desde a Revolução Francesa, liderada por Robespierre; a segunda foi a Onda
Anticolonialista, representada pelos movimentos de libertação e independentistas saídos da 1ª Conferência
Pan-Africana de 1919; a terceira foi a Onda da Nova Esquerda, em que misturava o nacionalismo ao
radicalismo terrorista; a quarta é a Onda Religiosa, marcada pelo fundamentalismo religioso, que vem
ganhando contornos cada vez mais políticos e mais alargados (Schmid, 2011).
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Dentre os movimentos terroristas no continente, importará focar alguns grupos que têm
feito uso dos ‘espaços líquidos’ para a sua progressão e ligação entre células: Movimento
para a Emancipação do Delta do Níger (MEDN), com forte atuação na região do Delta do
Níger; Boko Haram, que opera principalmente na parte Ocidental e Norte de África; Al
Qaeda do Magreb Islâmico (AQIM), que atua na região do Mali, Mauritânia e Norte de
África; Movimento para Unidade e Jihad na África Ocidental (MUJAO), uma organização
militar e terrorista, de ideologia jihadista salafita que se separou da AQMI, tendo uma
das suas células dado origem ao Estado Islâmico no Grande Saara; o Janjaweed na região
do Sudão; a Ansar al-Sharia (Defensores da Sharia), milícia islâmica baseada no Iêmen,
defende a implementação estrita da lei islâmica em vários Estados africanos, nas regiões
Setentrional e Ocidental de África, particularmente no Magreb e Sahel, em países como
a Argélia, Tunísia, bia, Egito e Mali; Hizbul Shabab ou Al-Shabab (a Juventude), cujas
bases e origens encontram-se na Somália, e atua na África Oriental, mais
especificamente na região do ‘Chifre de África’; entre outros movimentos terroristas
(Goïta, 2011; Thurston, 2017).
Nos últimos anos, estes grupos, aproveitando as frágeis estruturas dos Estados africanos,
e servindo-se dos fundos originados pelas redes do crime organizado, têm expandido as
suas células no continente. Associado a isso, o descontentamento das populações,
relativamente às autoridades locais, tem favorecido o recrudescimento destes
movimentos, no seio das comunidades africanas, através do recrutamento de
combatentes para as suas células, como é o caso da fação Ansaru (Stohl, Burchill e
Englund, 2017).
No caso vertente a região ocidental, o descontentamento interno nos Estados da região,
relativo a gestão dos recursos, tem feito imergir movimentos radicais, sob o ‘pano
de fundo’ de constituírem-se numa alternativa às elites do poder nestes espaços, sendo
que importa sublinhar os casos concretos do MEDN e o Boko Haram, que em nome da
autodeterminação dos povos, ambicionam estabelecer califados muçulmanos nestas
áreas, disseminando o terror e o radicalismo islâmico (Thurston, 2017). O Caso da
plataforma petrolífera Bonga, atacada a 60 milhas náuticas do delta do ger em junho
de 2008 pelo MEND, forçando a paragem da produção, traduz o quadro de insurgência
destes movimentos; o caso do desaparecimento do Navio-tanque petroleiro Kerala
14
, de
bandeira liberiana, ao serviço da Sociedade Nacional de Combustíveis de Angola, em
Janeiro de 2014; ou ainda o caso do Navio-graneleiro MV Bonita, de bandeira
norueguesa, abordado por piratas a 2 de novembro de 2019 (Ploch, 2013; IMB, 2019).
Na verdade, contrariamente alguns anos, em que as preocupações das autoridades
internacionais repousavam sobre a região do Golfo do Áden, atualmente os desafios de
erradicação dos grupos terroristas encontram-se na região do Golfo da Guiné (GG). No
ano de 2019, de acordo com o International Maritime Bureau, foram reportadas cerca de
162 incidentes de pirataria marítima e assaltos à mão armada contra navios, em todo
mundo, sendo que 40% foram registados no continente Africano (IMB, 2019: 5).
Na verdade, na região do Golfo da Guiné, diferentemente da região do Golfo do Áden,
onde optavam pelos prémios de resgate de cargas e pessoas, os movimentos terroristas
14
Vide. <consultado em 03/12/2018> https://www.reuters.com/article/us-angola-piracy/pirates-hijacked-
tanker-off-angola-stole-cargo-owners-idUSBREA0P0QY20140126.
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têm alterado o seu modus operandis, na medida em que têm privilegiado a captura das
cargas e dos meios marítimos, para sua comercialização no ‘mercado negro’, o que tem
favorecido também o crescimento das células criminosas (Kamal-Deen, 2015). A grande
parte dos navios abordados por estas milícias fica retida o tempo necessário para efetuar
a transferência de carga, que posteriormente é encaminhada e transacionada no
‘mercado negro’; a outra parte dos navios, designadamente veleiros e lanchas rápidas,
é capturada, ficando ao serviço destas células do crime organizado.
Como resultado da fraca autoridade do Estado no mar, o terrorismo marítimo tem
crescido nas ‘águas continentais’, nomeadamente na região ocidental do continente.
Neste particular e de acordo com Bjorn Moller (2009: 28), “…there are claims that Al
Qaeda has assembled its own small fleet in the form of ‘ghost ships,’ i.e. hijacked ships
which have been re-flagged and re-registered…it also seems that Al Qaeda has tried to
develop what one might call a strategy for maritime terrorism”, pelo que se observa a
evolução dos meios utilizados pelo crime organizado, sendo os ancoradouros e zonas
petrolíferas os palcos preferenciais dos terroristas (Chatam House, 2013)
Esta evolução, nas cnicas e mo modo de atuação dos movimentos terroristas, tem feito
com que as redes da criminalidade organizada, em determinadas latitudes, consigam
pleitear com as autoridades locais, levando rias vezes a negociações entre autoridades
governamentais e grupos errantes, ou mesmo a ligações político-ideológicas entre os
grupos do crime organizado e as elites políticas (IE&P, 2017).
O relatório anual da UNODC, sobre o crime organizado transnacional na costa ocidental
de África, descreve a fraca capacidade de alguns Estados em exercer a autoridade de
Estado nos espaços marítimos e costeiros, designadamente devido a insuficiência em
termos de recursos económicos, materiais e humanos, como o catalisador da proliferação
das atividades criminosas, na medida em que o terrorismo marítimo, nos últimos anos,
tem surgido como o canal de fortalecimento destes movimentos terroristas (UNODC,
2018).
Finalmente, as profundas transformações ocorridas na ordem política e na economia dos
Estados africanos nos últimos anos, os insucessos, a perenidade das fronteiras e a falta
de expectativas das nações africanas, justificam a configuração de uma nova doutrina de
segurança regional, que seja capaz de potenciar os Estados, com vista a assumir a sua
dimensão, enquanto continente berço, e afirmar o projeto local de um continente em
transformação, orientado para o desenvolvimento sustentável das suas nações.
O papel do Estado e os desafios futuros face ao Terrorismo Marítimo
Numa altura em que as novas ameaças, no âmbito dos estudos do International Security
Studies, não se enquadram nos parâmetros convencionais de "quem" ameaça, "como",
"quando" e "onde", a eficácia da segurança militar tem sido posta em causa, por a corrida
armamentista não ser suficiente para conter o terrorismo transnacional, surgindo a
noção de que a ‘cooperação securitária’ surge como a melhor forma para a sua
contenção; não apenas pela maior abrangência dos atores que estas pressupõem, mas
também pelo maior aprofundamento dos laços de amizade e cooperação, que pesam
bastante nas relações internacionais (Singh, 2019; Ginga, 2014).
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Decerto que, maritime boundary management is always a collaborative process between
a country and its neighbours, thus cannot be done unilaterally, and is always better to
be done jointly at the regional level…” (Okonkwo, 2017: 66), pelo que existe a
necessidade de se reencontrarem e se desenvolverem mais parcerias no âmbito da
segurança regional, mormente no combate ao terrorismo marítimo, levando a um
redimensionamento das infraestruturas nacionais e das fronteiras nacionais, e visando
dar respostas adequadas à natureza desses novos desafios e riscos à integridade e
soberania do Estado.
A segurança humana, enquanto pilar fulcral da Segurança Nacional, deve justificar a
intervenção dos Estados africanos a favor das suas fragilidades internas, sob pena de se
ver proliferadas as ameaças e os desafios que asilam o crime transnacional para dentro
das fronteiras nestas regiões, sobretudo devido a incapacidade de isoladamente
controlarem parte dos seus territórios.
Neste particular, no continente Africano, as ORA associadas à União Africana (UA) surgem
como os principais atores a vel continental, por forma a responder alguns dos vários
problemas que os Estados atravessam, nomeadamente a insegurança marítima e o
terrorismo, entre outros, que mais facilmente podem ser resolvidos em conjunto.
As Resoluções 1368 e 1373 do Conselho de Segurança das Nações Unidas (CSNU), em
concordância com o artigo 39º da Carta das Nações Unidas, declaram que o terrorismo,
nas suas diferentes vertentes, é uma ameaça a vel global, pelo que deve ser combatido
a todos os níveis com todos os meios (Cottim, 2008: 141). Assim sendo, paralelamente
à atuação não africana, com vista a garantir a paz e estabilidade no continente, já existe
por parte dos líderes africanos a consciência de que é necessário criar um ambiente cada
vez menos conflituoso no seio dos seus Estados, de forma a tornar possível o
desenvolvimento sustentável destas regiões; o que levou à operacionalização da
chamada “Arquitetura de Paz e Segurança Africana” (APSA), enquanto plataforma para
a institucionalização do regime de segurança continental.
Na verdade, as medidas para combater o terrorismo marítimo são transversais à luta
contra pirataria na região, e vice-versa, particularmente por a última ser uma
componente da primeira, pelo que o CSNU, através das Resoluções 2018 (2011) e 2039
(2012), exortou aos Estados das ORA, a tomarem medidas consentâneas a vel nacional
e regional, com o apoio da comunidade internacional, para implementar estratégias
nacionais de segurança marítima.
Como resultado, a 24 e 25 de junho de 2013, em Yaoundé, República de Camarões, deu-
se a cimeira de Chefes de Estados e de Governo sobre a Proteção Marítima e Segurança
no Golfo da Guiné, que culminou com a criação e posterior implementação do conhecido
Código de Conduta de Yaoundé de 2013. Este código surge, no quadro da componente
marítima da APSA, como continuidade ao Código de conduta do Djibuti e um
complemento à Emenda de Jeddah” ao Código de Conduta de Djibuti 2017 (Singh,
2019).
Ademais, para o Golfo da Guiné, e em respeito à sua Resolução A.1069 (28) de 5 de
fevereiro de 2014, a OMI desenvolveu e implementou um programa de "TableTop
Exercises", destinado a promover abordagem intergovernamental para proteção
marítima e aplicação da lei do mar na África Ocidental e central.
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Paralelamente, a Carta de Lomé, adotada na Cimeira Extraordinária da UA sobre a
proteção e a segurança marítimas e o desenvolvimento em África, a 15 de outubro de
2016, em Lomé, surge também como um instrumento essencial no tocante às questões
de insegurança marítima e à luta contra o terrorismo marítimo, reforçando a necessidade
de implementação o Memorandum of Understanding (MoU), assinado entre a OMI e a
OMAOC (Organização Marítima de Africa do Oeste e do Centro), em julho de 2008, no
quadro da Global Maritime Security Integrated Technical Co-operation Programme;
visando estabelecer uma Rede Integrada de Guarda costeira sub-regional na África
Ocidental e Central.
A estes instrumentos, associou-se o Interregional Coordination Center (ICC), criado
através de um MoU assinado entre os organismos da Comunidade Económica de Estados
da África Central (CEEAC), da Comunidade Económica dos Estados da África Ocidental
(CEDEAO) e a Comissão do Golfo da Gui (GGC), em 5 de junho de 2014, sobre a
segurança marítima na África Central e Ocidental, que estabelece a criação do
Interregional Coordination Center (ICC) (ICC, 2014). Dentro desta rede regional de
segurança marítima os Estados estão agrupados em cinco zonas marítimas, sendo cada
uma apoiada por centros de coordenação regional, onde se sublinha o CREMAO (Centro
Regional de Segurança Marítima da África Ocidental) e o CRESMAC (Centro Regional de
Segurança Marítima da África Central).
De um modo geral, considera-se que deve nascer no seio dos Estados africanos uma
conceção antiterrorista, apoiando-se em um conjunto de medidas de caráter defensivo,
que permitam um alerta atempado sobre as ameaças, privilegiando assim a cooperação
internacional, ao nível do sistema de informações, na ajuda financeira e política mútua
entre os atores envolvidos na luta contra o terrorismo, de forma a evitar o maior
fortalecimento das organizações do crime e do terror, sendo que, como último rácio e de
forma harmonizada, deverão declarar uma guerra preventiva a vel continental
(Lousada, 2007: 42).
Conclusão
Depois de realçar as principais linhas de pensamento traçadas ao longo deste ensaio
científico, sobre a Segurança Nacional face ao atual contexto de terrorismo marítimo no
continente Africano, considera-se que o desenvolvimento sustentável destas regiões se
encontra dependente da adoção de um projeto continental de segurança marítima
cooperativo, nomeadamente porque estas ameaças têm forte impacto na economia
desses Estados.
Na verdade, infere-se que a luta contra o terrorismo marítimo deve ser conduzida de
forma continuada e harmonizada, assente numa estratégia de entreajuda dos Estados
africanos, de maneira a superar qualquer tipo de ameaça que possa se constituir em
empecilho ao desenvolvimento local e continental. Isto porque, os métodos dos
movimentos terroristas no continente têm evoluído, devido às próprias dinâmicas globais
e locais das redes do crime organizado.
A atual conjuntura continental, de insegurança territorial, obriga a que os Estados
tenham de garantir a segurança nacional e a defesa dos seus interesses singulares e
coletivos, no âmbito da comunidade internacional, muito para além do tradicional
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conceito de Segurança limitado às fonteiras territoriais, pelo que os aspetos ligados à
segurança devem constituir uma prioridade de investimento de todos os Estados, pela
íntima relação que têm com os fatores de desenvolvimento económico e de estabilidade
nacional, que e no caso vertente à região do Golfo da Guidevem surgir na linha da
frente dos grandes objetivos de cooperação regional.
Em suma, as Autoridades africanas devem também recolher dados e informações, de
forma a permitir a investigação sobre o envolvimento dos movimentos terroristas na
disseminação de outras modalidades do crime organizado no continente, mobilizando
para o efeito a cooperação entre as diferentes forças policiais nas regiões mais afetadas
do continente, sob pena de assistirem a multiplicação dessas redes da criminalidade
organizada pelo continente.
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Universidade Autónoma de Lisboa
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A CARACTERIZAÇÃO DOS PROCESSOS DE GESTÃO NAS INSTITUIÇÕES DE
ENSINO SUPERIOR EM MOÇAMBIQUE.
A COLEGIALIDADE, O MANAGERIALISMO E OUTROS FATORES CONJUGADOS
MAOMEDE NAGUIB OMAR
manotio@yahoo.com.br
Pós-Doutorado e investigador integrado do OBSERVARE/UAL. Professor Associado e Director-
Geral do ISCIM – Instituto Superior de Comunicação e Imagem de Moçambique (Moçambique).
Doutor em Estudos em Ensino Superior e Mestre em Gestão Pública pela Universidade de Aveiro.
Pós-Graduado em Public Policy and Development Administration pela School of Public and
Development Management da University of Witwatersrand, África do Sul
RENATO PEREIRA
renato.pereira@iscte-iul.pt
Investigador integrado do OBSERVARE/UAL onde coordena a linha de investigação Espaços
Económicos e Gestão de Recursos. Professor de Gestão Geral da ISCTE Business School, ISCTE -
Instituto Universitário de Lisboa (Portugal). Entre 2018 e 2020 cocoordenou o Seminário sobre
Geoeconomia e Transnacionalização das Economias do Doutoramento em Relações
Internacionais: Geopolítica e Geoeconomia da Universidade Autónoma de Lisboa. Doutor em
Ciências de Gestão pela Université Paris Dauphine.
Resumo
O presente artigo discute a transposição dos princípios normalmente aplicados na gestão
empresarial para as Instituições de Ensino Superior (IES). Discute-se, nomeadamente, a
influência exercida pelo managerialismo na estruturação e funcionamento das Instituições de
Ensino Superior. No estudo empírico conduzido em Moçambique, procede-se à análise dos
posicionamentos de distintos atores sobre diferentes dimensões e categorias do problema,
sustentado por uma metodologia de análise qualitativa a partir de uma amostra de 9 IES. As
principais conclusões revelam que no ensino superior moçambicano permanece uma certa
resistência das comunidades do ensino superior, particularmente dos seus profissionais, à
intromissão do managerialismo, destacando-se um posicionamento favorável à colegialidade
e à democraticidade. Não obstante o criticismo existente, alguns atores (minoritários)
reconhecem a influência dos aportes managerialistas aos objetivos do ensino superior e à
conceção e materialização da gestão das IES, propondo um modelo híbrido que associe as
duas dimensões. O estudo revela, igualmente, um deficit de participação da comunidade do
ensino superior nos processos de gestão e de tomada de decisão, dificultando a aplicabilidade
do modelo colegial.
Palavras-chave
Ensino Superior, Gestão, Managerialismo, Moçambique
Como citar este artigo
Omar, Moamede Naguibe; Pereira, Renato (2020). A caracterização dos processos de gestão
nas instituições de ensino superior em Moçambique. A colegialidade, o managerialismo e
outros fatores conjugados. In Janus.net, e-journal of international relations. Vol. 11, 2
Consultado [online] em data da última consulta, DOI: https://doi.org/10.26619/1647-
7251.11.2.12
Artigo recebido em Maio 21, 2020 e aceite para publicação em Outubro 4, 2020
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A caracterização dos processos de gestão nas Instituições de Ensino Superior em Moçambique.
A colegialidade, o managerialismo e outros fatores conjugados
Maomede Naguib Omar, Renato Pereira
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A CARACTERIZAÇÃO DOS PROCESSOS DE GESTÃO NAS
INSTITUIÇÕES DE ENSINO SUPERIOR EM MOÇAMBIQUE.
A COLEGIALIDADE, O MANAGERIALISMO
E OUTROS FATORES CONJUGADOS
MAOMEDE NAGUIB OMAR
RENATO PEREIRA
Introdução
O presente artigo pretende contribuir para a compreensão dos processos de gestão e de
governação das Instituições de Ensino Superior (IES) em Moçambique.
Para cumprir os nossos propósitos, organizámos o trabalho em duas partes. O objetivo
principal da primeira parte é refletir sobre a governação e as diferentes influências
exercidas sobre a gestão das Instituições de Ensino Superior em Moçambique,
destacando as implicações do managerialismo e, particularmente, da presença da nova
gestão pública no contexto do seu funcionamento e das suas atividades. Na segunda
parte, conduz-se um estudo empírico sobre o posicionamento e as perceções de
diferentes atores relativamente à gestão das IES em Moçambique. A análise resulta da
aplicação de uma metodologia qualitativa, na qual foram consideradas dimensões e
categorias relevantes sobre a matéria em estudo, nomeadamente: a caracterização da
gestão das IES; a participação dos docentes, estudantes e corpo técnico administrativo
(CTA) nos processos de gestão das IES; as escolhas sobre a estrutura organizacional; o
enquadramento dos graus académicos na gestão das IES; a qualidade das IES e os
processos de avaliação interna e externa; as implicações no funcionamento das IES
devido ao número insuficiente dos docentes a tempo integral e as respetivas
qualificações; a gestão financeira das IES em Moçambique: modalidades de
financiamento. Sobre cada um dos pontos arrolados, foi possível estabelecer um conjunto
de linhas de força, que nos permitem chegar a sínteses conclusivas, através das quais
se procura retratar os resultados da nossa análise.
1. A influência do managerialismo e da Nova Gestão Pública no
funcionamento das Instituições de Ensino Superior (IES)
1.1. Enquadramento
A proclamada crise do Estado providência registada na Europa, de entre outros fatores,
constituiu um marco importante para o surgimento de outras modalidades na
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organização do Estado, nomeadamente os modelos managerialistas (Deem et al, 2007).
Esta condição surge como resultado das pressões exercidas pela economia de mercado
sobre a administração das organizações públicas, conduzindo-as a transformações
profundas visando torná-las mais eficientes e eficazes. No âmbito destas reformas, a
compreensão da influência dos mecanismos de mercado nos negócios públicos torna-se
num fator fundamental para enquadrar o que se designa como “Nova Gestão Pública”
(NGP). Aliás, a pressão da economia e do mercado é considerada por Santiago et al
(2005) como uma das razões que explicam a intromissão do managerialismo no sector
público.
No que se refere ao ensino superior e ao seu contexto, as mudanças de cariz neoliberal
verificadas na economia conduziram ao questionamento da missão, do modo de
organização e do funcionamento das IES com maior ênfase a partir da década de 80 do
século XX. Este quadro, gerador de transformações e de crises, embora não impedindo
a manutenção do papel fundamental da IES como produtora e difusora do conhecimento,
procura impor um modelo de racionalidade económica, competitividade e eficiência - o
“managerialismo” - que resulta de uma crescente influência da globalização e do mercado
no ensino superior. Este movimento implica a alteração de pressupostos organizacionais
e de gestão, bem como o desenvolvimento de novas capacidades humanas e a
reorientação de recursos materiais, financeiros, tecnológicos e de informação, gerando
debates à volta do ensino superior, das suas políticas, governação e gestão. Embora esta
discussão seja desenvolvida em contextos e perspetivas multifacetadas, um dos aspetos
marcantes que merece um destaque particular diz respeito à mudança relacional entre o
Estado e as IES ou seja, “(...) mais especificamente as alterações das medidas
governamentais que conduzem às mudanças no relacionamento” (Maassen, 2003: 31)
entre estas duas entidades. Este mesmo autor chama a atenção que no contexto referido,
qualquer discussão sobre as mudanças nas estruturas de gestão institucional do ensino
superior deve ter em conta que são os governos, aos vários veis, que se
responsabilizam pelos quadros regulatórios que influenciam o desempenho das IES e a
gestão das suas atividades. Esta perspetiva, em nosso entender, poderá continuar a ser
válida nos sistemas de ensino superior em que o Estado, mesmo mantendo a função
reguladora, não pretenda outorgar-se o modelo de controlo sobre as IES. Aliás, as
tendências atuais conduzem cada vez mais a uma ação supervisora do Estado sobre as
IES. Neste modelo, igualmente designado de controlo externo, as IES detêm uma ampla
autonomia em diferentes áreas (Han & Xu, 2019).
Outro dos fatores importantes parece ser a mudança na forma de regulação dirigida aos
profissionais, o que se traduz na alteração das tradicionais políticas e práticas de gestão
de recursos humanos. Aliás, estes princípios ganham respaldo no trabalho de Ekman et
al (2018). Este estudo estabelece que no quadro das reformas e da afirmação da
autonomia das IES, estas assumem as responsabilidades principais na gestão e
governação do conjunto das suas atividades, com destaque para as financeiras e dos
recursos humanos (Marques, 2012), não obstante o poder regulatório do Estado.
1.2. A redefinição do papel do Estado e o surgimento da Nova Gestão Pública
As transformações na estrutura do Estado, no sentido de substituir cada vez mais as
formas clássicas de intervenção pela regulação e orientação, a diversificação das formas
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tradicionais de ação pública e, em geral, as mudanças nas formas de governação,
impuseram mudanças estruturais nos modos de atuar da administração. Waring (2017)
refere-se a estas mudanças como a desconstrução de muitos dos instrumentos e
esquemas organizativos que sustentavam a administração estatal tradicional, conduzindo
à discussão, sempre atual, em torno das funções do Estado e dos meios para as realizar.
Para além dos pressupostos acima enunciados, e antes da abordagem de aspetos
específicos, a contextualização e a compreensão do surgimento da Nova Gestão Pública
(NGP) passa por uma análise das diferentes formas de gestão na administração pública
que emergiram ao longo da história da modernidade. Na descrição cronológica que a
seguir apresentamos, exemplificam-se algumas circunstâncias particulares dos países
africanos, nos quais se inclui Moçambique, por conta, em grande medida, da sua história
recente ligada ao colonialismo. Assim, de acordo com Omar (2005), a Administração
Pública Patrimonialista designa o período imperial ou de dominação colonial. Neste
quadro, também se incluem franjas de formas de patrimonialismo (neo-patrimonialismo)
resultantes da organização social local. Fundamentalmente, neste tipo de administração,
o Estado funciona como extensão do poder soberano dos Reis e Senhores, os direitos são
concedidos de acordo com critérios pessoais e os cargos tidos como “prendas”. Neste
caso, a Res Publica é igual a Res Principis.
A “Administração Pública Burocrática” caracteriza-se pela instauração de um poder
racional-legal, fundado basicamente na ideia da carreira e da profissionalização, no
formalismo e impessoalidade e no conceito de hierarquia funcional. Neste modelo, os
controlos administrativos são efetuados a priori constituindo a garantia do poder do
Estado e transformando-se na sua própria razão de ser. “A este modelo corresponde uma
administração que baseia o seu relacionamento com os cidadãos no formalismo, com
base em rotinas e procedimentos estandardizados” (Rocha, 2002: 37).
As bases da autoridade deste modelo, fundados nos princípios teóricos de Max Weber
(e.g. Braun et al, 2015), são sufragadas através da obediência dos seguidores. As
características fundamentais da burocracia weberiana, como sejam a regulamentação, a
estabilidade e a continuidade baseadas na autoridade formal, na impessoalidade do
cumprimento das normas e no profissionalismo dos cargos, constituem elementos que,
embora postos em causa pelos modelos substitutos mais atuais, subsistem como temas
centrais de discussão sobre a organização da administração blica. Em nosso entender,
este conjunto de instrumentos reguladores continuam a ser úteis na modernidade pois
constituem fatores de influência e elementos integrantes do Estado quer nos países
desenvolvidos quer, por maioria de razão, nos países em desenvolvimento.
É nesta esteira, e também como resultado da crise da teoria administrativa, que surge o
modelo gerencialista ou managerialista, assente numa orientação gestionária dos
desígnios públicos, visando uma maior eficiência e eficácia dos serviços. Este modelo,
que se inspira e tende a aproximar-se da gestão empresarial, realça a necessidade e a
importância do estudo e da combinação entre as políticas públicas e o public
management. Referindo-se ao modelo, Rocha (2002), defende a necessidade de
descentralizar e desconcentrar competências. O modelo destaca, igualmente, a
diferenciação entre a política e a administração. À política caberia traçar as orientações,
a serem cumpridas pela administração, num quadro regulamentado pelos princípios da
gestão privada.
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A “Administração Pública Gerencial” é considerada por alguns a gestão blica por
excelência. O modelo preconiza o controlo a posteriori dos resultados. Baseia-se, como
acima referimos, na eficiência de estruturas organizacionais flexíveis e horizontalizadas
e, pelo menos em termos retóricos, numa aproximação ao cidadão. Advoga-se, por outro
lado, a necessidade de descentralizar a tomada de decisões fazendo uso de uma
linguagem pró-ativa e inovadora. Este modelo, que configura basilarmente a Nova
Gestão Pública (NGP) pressupõe uma vertente de cariz neoliberal. Carapeto & Fonseca
(2005) consideram que o que se valoriza é a lógica do mercado.
1.3. O vínculo e a importância do managerialismo no Ensino Superior
Revertendo o conjunto de considerações acima destacadas, as assunções e as práticas
da NGP estenderam-se, igualmente, ao campo da governação e da gestão do ensino
superior. As alterações que emergiram m sido caracterizadas pela passagem de um
modelo caracterizado por um apertado controle e regulação do Estado relativamente ao
ensino superior para um modelo, menos restritivo, de supervisão (Dopson et al, 2019;
Santiago et al, 2006). Estas novas formas de regulação estatal dos sistemas de ensino
superior é resultado, em grande medida, do processo de globalização (Seixas, 2001).
O crescimento do número de estudantes, pressões políticas, a ascensão da economia do
conhecimento, entre outras razões, têm colocado a governação e a gestão das
Instituições do Ensino Superior (IES) na agenda das reformas educacionais dos países
desenvolvidos e em desenvolvimento. Este movimento emergiu, principalmente, a partir
dos anos 1980, altura em que se começaram a fazer referências explícitas aos gestores
das IES. A legitimação dos princípios e dos modelos managerialistas, particularmente a
NGP nos sistemas de ensino superior dos diversos países resultou, também, das
tendências internacionais tidas como inevitáveis e recomendadas por agências
supranacionais como a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico
(OCDE) e o Banco Mundial (BM). Deste modo, é relevante o papel das organizações
internacionais na difusão de um modelo de ensino superior transnacional que veicula e
acentua as tendências da lógica do mercado nos sistemas de ensino superior (Seixas,
2001).
Estas pressões externas a que o sistema tem vindo a ser submetido são, de acordo com
Santiago et al (2005), resultantes da confluência de restrições financeiras devidas, em
parte, ao desmantelamento dos dispositivos do Estado providência a que nos referimos
mas, também, das expectativas e da procura social e, ainda, da relativização do capital
simbólico da IES e das exigências da nova economia (novas qualificações, competências
e perfis). As mesmas convergem para uma relação entre o Estado e o ensino superior
repensada à luz da gestão, tendo como objetivo a orientação das IES para o mercado.
Neste contexto, a introdução de mecanismos de autonomia financeira constitui um dos
seus motes principais (David, 2008).
Outros fatores substantivos, presentes na intenção das narrativas managerialistas no
ensino superior, encontram sustentação em dois tipos de argumentos, que constituem
um dos pilares sobre os quais esta intenção procura legitimar-se. Por um lado, está
disseminada a crença que o sistema de ensino superior e as suas instituições não se
auto-reformam tão rapidamente quanto as mudanças que ocorrem no ambiente
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envolvente; por outro lado, a governação colegial é conotada com práticas e estruturas
académicas tradicionais, alinhadas com os interesses corporativos (Santiago & Carvalho,
2004). Este posicionamento serve de suporte à retórica sobre a irracionalidade e a
ineficiência da colegialidade apoiada no exercício do poder profissional pelos académicos.
De facto, o managerialismo combina premissas políticas, institucionais e organizacionais
com princípios racionais que, aparentemente, parecem não estar bem organizados, mas
nos quais é possível detetar alguma coerência em redor das noções de mercado,
competição, escolha individual, responsabilidade e eficiência (Santiago et al, 2005). Estes
autores consideram que, neste contexto, existe o sentimento de que o managerialismo
influencia o ensino superior a diferentes níveis, em particular ao nível das estratégias de
reorganização do sistema; da gestão e governação das instituições, incluindo as suas
culturas institucionais e o comportamento individual dos seus profissionais. Estes dois
níveis influenciam a conceptualização da missão das instituições e também os seus
objetivos finais, os quais desempenham um importante papel de mediação entre as
intenções políticas e as práticas institucionais concretas. A perceção dos diversos agentes
sobre as finalidades e objetivos do ensino superior constitui, de facto, o quadro orientador
do processo decisório e, nesse sentido, influencia as estratégias e as políticas das
instituições (Akanji et al, 2020).
Para além de se configurar como um instrumento político e gestionário de pressão sobre
as IES, o managerialismo em geral e a NGP em particular encontram, igualmente,
respaldo no próprio interior da academia pois “(...) emergem processos de acomodação
(…) que criam algumas condições facilitadoras para a aceitação das pressões e da sua
naturalização nos e pelos atores académicos” (Santiago et al, 2005: 35). As razões
apontadas pelos autores para que tal aconteça são diversas. Umas ligam-se às próprias
dinâmicas de crescimento e desenvolvimento do ensino superior; outras são inerentes
às dificuldades das estruturas e formas tradicionais de governo das IES em lidarem com
as pressões do exterior. Por outro lado, esta aceitação e materialização, radica,
igualmente, na disseminação e fragmentação do conhecimento científico e tecnológico,
assim como nas transformações das representações dos atores académicos a propósito
das finalidades e das formas de organização do ensino superior (Kozyrev et al, 2019).
No entanto, a questão da influência da NGP no métier da IES não colhe consenso e
consubstancia-se em dois principais posicionamentos distintos. Segundo David (2008),
os defensores da NGP proclamam as vantagens de modelos que estimulam a
competitividade e a eficiência das IES regulados pelo mercado, sob supervisão e com
intervenções pontuais do Estado. Tal teria em vista o aumento da qualidade do ensino,
da investigação, da transferência de tecnologia e da relevância dos serviços prestados à
comunidade. Por seu lado, os opositores a estes modelos alegam a redução da
democracia interna na vida das IES, a excessiva subordinação das IES à lógica da
rentabilidade financeira, a desvalorização e a falta de liberdade de investigação, incluindo
o risco de excessivo controlo institucional sobre o ensino e a investigação para fins de
comercialização.
Esta última posição, sobretudo no que respeita ao que muitos académicos tendem a
referir como “bons e velhos tempos”, nos quais as decisões na Academia eram tomadas
numa atmosfera colegial, sem sérias interferências externas, são tidas pelos defensores
do managerialismo como nostálgicas e idealistas. Por outro lado, examinando a natureza
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das reformas gestionárias no ensino superior, é possível destacar o sentimento geral de
que a vida académica “já não é a mesma coisa”. Muitas mudanças têm vindo a ocorrer.
Entre as que é possível recensear destacamos que o próprio impacto da massificação do
ensino superior tem vindo a alterar o reconhecimento social dos sistemas de ensino
superior retirando-lhes, por isso, crédito.
Para ilustrar o posicionamento dos que se opõem ao managerialismo, Maassen (2003)
retrata algumas posições comuns entre os académicos. Estes consideram que as IES,
quando sustentadas pelo modelo colegial, apresentam-se em vantagem, ocupando um
patamar académico superior. Criticam a corrente managerialista por ser conduzida mais
por razões económicas do que por razões académicas. Enfatizam o seu posicionamento
postulando que as IES não são “fábricas de sapatos” não podendo, pois, ser geridas como
se de “fábricas de sapatos” se tratasse.
Segundo Readings (2003), a maioria dos que abordam a problemática da IES optam por
uma de duas posições: ou exortações nostálgicas nas quais se defende um regresso aos
ideais humboldtianos de uma comunidade e funcionamento social modulares; ou
exigências tecnocráticas que advogam uma IES a acolher de braços abertos a sua
identidade empresarial, tornando-se mais produtiva e mais eficiente.
Podemos, pois, afirmar que a dificuldade ou a impossibilidade de compatibilizar a
IES empresarial”, inspirada por uma cultura de mercado, com a ideia do ensino e
investigação, entendidas como bens públicos, parece ser o quebra-cabeças fundamental
dos novos paradigmas de governação das IES e da sua relação com a sociedade. Como
consequência destas posições, uma pergunta relevante e inevitável surge. O quê e quem
domina atualmente os sistemas de ensino superior e em particular as suas instituições?
Quem esteja familiarizado com a complexidade da problemática do ensino superior
admitinão ser fácil formular uma resposta segura a esta questão. Numa abordagem
peculiar, Readings (2003) considera que não é necessária nenhuma identidade nova para
a IES, enaltecendo que temos é que reconhecer que a perda de referencial da função da
IES abre um espaço em que podemos pensar de forma diferente as noções de
comunidade e de comunicação. Assim, considera-se que, mesmo sendo difícil o desafio
da presente conjuntura, não se exige a construção de uma instituição melhor, a produção
de um outro modelo de eficiência, de um outro projeto unificado e unificador. O que se
exige, com inteligência, é um tipo de pensamento que não procure emprestar ao trabalho
desenvolvido na IES uma função ideológica unificada (Barnnett, 2000), procurando-se,
também, encontrar uma nova linguagem em que a IES possa reivindicar o seu papel
enquanto locus do ensino superior.
Cruzando esta discussão com a globalização, também ela mercantil, e na mesma linha
de pensamento, podemos afirmar que no quadro de uma economia global não se pode
recorrer à IES para fornecer um modelo de comunidade. No mesmo sentido, o apelo à
IES como modelo de comunidade não responde à pergunta sobre a função social da
mesma. Em alternativa, propõe-se que a IES seja um lugar onde se tenta pensar o laço
social sem recorrer a uma ideia unificadora, seja a da perspetiva cultural, seja a do
Estado. Readings (2003) defende que o futuro da IES pós-histórica parece estar
relacionado com o pensamento da comunidade, que abandona a identidade expressiva
ou o consenso transnacional enquanto meios para atingir uma unidade.
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A alternativa que temos vindo a apresentar, para além de constituir uma opção
sustentada por princípios diferentes da NGP, parece estabelecer o abandono gradual do
princípio da ligação entre a IES e a identidade nacional que dominou o referencial da IES
nos últimos três séculos, particularmente na Europa, embora possa ser referenciada
diferentemente nos países em desenvolvimento.
1.4. O criticismo relativamente ao managerialismo e à Nova Gestão Pública
Quanto à sua aplicação no ensino superior, muitas questões mantêm-se em aberto. No
entanto, Santiago et al (2005), retratando o exemplo do que aconteceu em Portugal,
sustentam que até 2005 a intromissão do managerialismo e do mercado no ensino
superior não foi totalmente bem-sucedida, não ocorrendo mudanças tão profundas como
faria supor a força com que a ideologia managerialista se procurou introduzir no ensino
superior. Esta argumentação é sustentada por algumas evidências que continuam a
perdurar e a marcar a vida académica. De facto, o modo de funcionamento colegial
manteve alguns dos seus mecanismos; os gestores académicos continuam a valorizar
mais os seus papéis profissionais que os papéis de gestão; a investigação básica
continuou a resistir (com dificuldade) ao empreendedorismo; a ideologia “vocacionalista”
não submergiu totalmente à educação e à formação; e a maioria dos académicos parece
continuar a resistir às novas linguagens e culturas da gestão e da economia (Santiago et
al, 2005).
Porém, os autores reconhecem que a inexistência da ligação entre o ensino superior e a
economia e a crítica ao funcionamento colegial tinham tido eco nas medidas políticas de
estruturação do ensino superior: a institucionalização dos sistemas de avaliação e de
acreditação conseguiu materializar os critérios economicistas e de empregabilidade; o
financiamento do ensino superior sofreu restrições e mudanças de regras, incitando-se o
autofinanciamento; a competição interinstitucional é promovida na crença de que
constitui um instrumento para atingir uma maior eficiência e eficácia; a retórica da
globalização e da economia/sociedade do conhecimento tem conseguido estimular a ideia
da relação unívoca entre o conhecimento e a competitividade das nações (Santiago et al,
2005).
A influência que a NGP exerce sobre o setor blico, particularmente sobre o sistema de
ensino superior, é suscetível de trazer algumas vantagens em resposta às expectativas
e à procura social e até como resposta às diversas dimensões da crise da IES. Porém, a
sua análise não pode ser orientada para uma visão unidirecional e determinista. As
contradições da NGP são, como vimos, evidentes, bem como são evidentes as
contradições advindas do endeusamento do mercado, da noção da sua infalibilidade e do
caráter mítico e ideal da gestão privada.
O debate atual sobre a IES realça a contradição entre a autonomia institucional e a
pressão exercida para submetê-la a critérios de natureza empresarial (Aithal & Kumar,
2019). Este fenómeno parece acentuar a crise institucional da IES e a consequente
alteração paradigmática, nomeadamente o afastamento do ensino superior do Estado-
Nação e do Estado-Providência. Deste modo, é marginalizada a cultura humanista a favor
dos interesses do mercado, promovendo o capitalismo académico virado para um regime
liberal de aprendizagem. Estes fatores, apelando a princípios de eficiência, facilitam a
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mercantilização do ensino superior, a aceleração do movimento de globalização e o
surgimento de modelos managerialistas. Pode-se, pois, concluir que a influência das
forças do mercado, conjugadas com a falta de financiamento e a internacionalização do
ensino superior poderão ter contribuído para a crise identitária da IES. Esta realidade
parece ter conduzido a uma alteração nas formas de regulação do ensino superior pelo
Estado, mas não necessariamente ao fim do seu controlo estratégico (Santiago &
Carvalho, 2004).
Num mundo cada vez mais globalizado, os sistemas de ensino superior são conduzidos
a desempenhar um papel fundamental na produção e difusão do conhecimento
contribuindo para a elevação da cidadania, cultura, ciência e inovação nas sociedades
onde se encontram inseridas.
Aos processos de difusão global têm surgido, em contraposição, modelos de
recontextualização que procuram refletir as realidades nacionais ou locais de cada país.
Para fugir à ordem uniformista da globalização o ensino superior procura uma lógica
institucional de prestação de serviço público, na qual a estrutura organizacional facilita a
integração harmoniosa do ensino e da investigação. Procura-se estabelecer políticas para
o ensino superior que possibilitem a criação de capital humano, de capital social e de
capital cultural capazes de lidar de forma crítica com a globalização. Este posicionamento
implica a redefinição da missão e do papel da IES perante as novas tendências mundiais
e os desafios da sociedade do conhecimento.
Embora a ideologia managerialista não tenha sido completamente bem-sucedida,
mantendo-se muitas questões em aberto, reconhece-se que a lógica da racionalidade
económica de mercado e gestionária tem hegemonizado a política de reconfiguração dos
sistemas e das IES (Deem et al, 2007).
Podemos, pois, concluir que a influência, na IES, do managerialismo em geral e da NGP
em particular, parece não colher consenso. Enquanto alguns argumentos insistem na
defesa do modelo pela possibilidade que confere de estimular a competitividade e
eficiência das IES, outros criticam-no pela excessiva dependência do mercado, pela
gestão privada e pela diminuição da democracia interna, para além de outros fatores
acima mencionados.
2. Estudo empírico: a gestão das instituições de Ensino Superior em
Moçambique
2.1. Enquadramento metodológico
A opção metodológica tomada para o nosso estudo empírico foi uma abordagem
qualitativa por considerarmos que a mesma viabilizaria melhor a possibilidade de
interpretar e de analisar os sentimentos e as motivações dos atores envolvidos no
fenómeno do estudo. Assim, foi determinada uma amostra probabilística e aleatória em
que cada membro da população estudada tinha a mesma probabilidade de ser
selecionado para integrar a referida amostra. Por outras palavras, as possibilidades de
escolha não foram pré-determinadas e poderiam recair sobre qualquer um dos atores.
Sendo este o determinante principal da constituição da amostra, procedeu-se ainda a
uma estratificação da mesma de modo a incluir universidades e institutos superiores,
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instituições públicas e instituições privadas, e a distribuição geográfica das mesmas
instituições. Deste modo, e tomando em consideração os objetivos do estudo, a técnica
de análise de dados escolhida, a dimensão da revisão bibliográfica e, ainda, os recursos
e o tempo destinado ao estudo, foi determinada uma amostra de 9 IES representando
18,4% da população constituída por 49 IES (de acordo com os dados do Ministério da
Ciência e Tecnologia, Ensino Superior e Técnico-Profissional de Moçambique).
Para realização das entrevistas, foram inicialmente escolhidos dois guiões utilizados para
entrevistas piloto (um para dirigentes e docentes das IES e outro para estudantes). Da
análise efetuada na fase-piloto, concluiu-se que o nível de respostas não justificava uma
diferenciação, optando-se por estabelecer apenas um guião universal para as entrevistas.
Uma vez a recolha de dados concluída, foi criada a seguinte grelha de análise a partir da
qual se efetuou a discussão e a análise dos dados:
Temas:
1.1.1. Órgãos Académicos Tradicionais
Fundamentação dos Princípios da Colegialidade
1.1.2. Sistema e Processos Managerialistas
Identificação das ferramentas e factores associados
ao managerialismo
1.1.3. Outros Sistemas e Modelos
Caracterização da opção tomada
Temas:
1.2.1. Modalidades para o Enquadramento
Organizacional e na Gestão
Verificação dos factores conducentes à integração
1.2.2. Inexistência de pressupostos para a integração
nos processos organizacionais e de gestão
Identificação das razoes que conduzem à não
participação
Temas:
1.3.1. Melhor opção para a estrutura organizacional
Caracterização do modelo mais adequado
1.3.2. Estrutura pedagógica e de ensino
Identificação do modelo mais eficiente
Temas:
2.1.1. Contribuição para a Sustentabilidade da
Instituição
Cursos e Programas Relevantes
2.1.2. Níveis apropriados de qualidade no processo de
ensino e de investigação
Definição de padrões e de indicadores de qualidade
adequados.
Temas:
2.2.1. Enquadramento dos graus de licenciatura,
mestrado e doutoramento (LMD) no sistema de ES.
Organização e gestão das IES face ao sistema LMD
2.2.2. Modelo ideal para a estrutura dos graus no
sistema de ES
Adequação do sistema de graus às necessidades e
interesses do público e dos níveis de desenvolvimento
Temas: Número insuficiente de docentes a tempo
inteiro (ou número excessivo de docentes a tempo
parcial)
Implicações na eficiência e eficácia da gestão
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A caracterização dos processos de gestão nas Instituições de Ensino Superior em Moçambique.
A colegialidade, o managerialismo e outros fatores conjugados
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3.1.1. Constrangimentos do Estado e outras Entidades
no Financiamento das IES
Formas Inovadoras de Financiamento das IES
3.1.2. O papel da sociedade da família e dos cidadãos
no financiamento do ES
Caracterização das modalidades a serem adoptadas
por cada um dos segmentos.
3.2.1. Responsabilidades Fiscais das IES
(regulamentação da gestão financeira das IES)
Avaliação da carga fiscal estabelecida para as IES
(verificação de um quadro regulatório específico)
3.2.2. Remuneração dos Docentes
Tabelas remuneratórias e carreiras docentes
3.2.3. Resultados Financeiros
Estabelecimentos de princípios e regras de distribuição
financeira
Fonte: Elaboração Própria
2.2. Caracterização da gestão das IES
No que diz respeito à caracterização dos modelos de gestão das IES, centramos a nossa
discussão basicamente em duas dimensões. Uma deles reflete o domínio das estruturas
académicas tradicionais sustentados pelos princípios e fundamentos da colegialidade
possivelmente alinhada com os interesses corporativos. A outra comporta um sistema
constituído por um conjunto de ferramentas e processos de gestão que visam a eficiência
e a medição do desempenho das instituições e dos seus profissionais, baseados nos
sistemas e processos managerialistas.
A argumentação dos entrevistados do nosso estudo parece identificar-se claramente com
o modelo tradicional e colegial nas IES com um acento particular na democraticidade do
sistema cujos contornos iremos abordar de seguida. Porém, nem todos os interlocutores
apresentam o mesmo ponto de vista sobre a problemática que temos vindo a discutir.
Parte dos pressupostos que enquadram o discurso dos entrevistados são sustentados
pelas práticas da gestão privada que decorrem, por um lado, da economia, da
globalização e das políticas de privatização e, por outro lado, da separação do
financiamento público da prestação de serviços (Santiago et al, 2005; Zavale, 2018).
Este conjunto de questões, que podem ser enquadradas na lógica da NGP, parece não
constituir, mesmo assim, a opção única dos entrevistados acima citados. Aliás, alguns
dos princípios da NGP destacam-se pelas suas contradições internas. Um dos exemplos
mais elucidativos é o paradoxo existente entre o princípio da descentralização e o reforço
do poder político e estratégico do topo, visando uma autoridade fortemente centralizada
que assegure a racionalidade das decisões e dos resultados (Williams, 2000; Meek,
2003).
De facto, o discurso parece expressar o desejo de compatibilizar, num certo sentido, a
IES empresarial sustentada pela cultura do mercado com a ideia do ensino e
investigação como bens públicos. Este entrelaçamento de lógicas constitui o problema
fundamental dos novos paradigmas defendidos para a e gestão das IES, bem como a sua
relação com a sociedade (Readings, 2003). Portanto, os atores expressam um conjunto
de posições híbridas que articulam a lógica tradicional com a lógica managerialista e de
mercado. No fundo, o que emerge do discurso é um modelo suficientemente flexível para
permitir o aproveitamento das oportunidades do mercado a favor das IES, capitalizando
a produção do conhecimento. Esta lógica abriria espaço, inclusivamente, para a
participação das empresas e de outros setores da sociedade nos órgãos de governação
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das IES, sendo essa participação, igualmente, uma janela através da qual se pode avaliar
o desempenho e a relevância das ações formativas nas IES.
A argumentação dos entrevistados parece, pois, refletir influências do modelo
managerialista mas evidenciando a necessidade de manutenção dos princípios e dos
valores tradicionais da vida académica. O que parece emergir da posição dos
entrevistados é uma forma de pensamento que procura refletir um modelo que, mesmo
sendo eficiente, não se aproxima de uma ideologia unificada da IES (Barnnet, 2000).
As narrativas dos diversos entrevistados considerados no presente ponto indicam uma
linha de orientação para a gestão das IES alinhada com os princípios tradicionais da vida
académica sustentadas pela colegialidade e pela democraticidade. Verifica-se, pois, uma
notória resistência dos profissionais do ensino superior às lógicas influenciadas pelos
valores utilitários e pelo managerialismo. No entanto, não deixaram de existir
posicionamentos, embora minoritários, a favor de um modelo de governação e gestão
híbrido e flexível no qual se procura conciliar a ideia de ensino e investigação como um
bem blico, articulada com uma maior eficiência e eficácia dos processos, características
do sistema managerialista.
2.3. Participação dos docentes, estudantes e CTA nos processos de gestão e
governação
Nesta categoria procura-se avaliar as modalidades de participação, especificamente dos
agentes internos (docentes, estudantes e corpo técnico e administrativo) na gestão das
IES e quais as modalidades seguidas para o seu enquadramento organizacional. Ademais,
tendo as escolhas dos atores, descritas no ponto anterior, recaído, em grande medida,
sobre o modelo colegial e democrático de gestão da IES, o mesmo só fará sentido se
houver uma adequada participação dos seus membros. Um processo no qual os
interesses legítimos dos diversos sectores ou de diferentes grupos possam influenciar a
tomada de decisões, aos diferentes níveis, e ao mesmo tempo se sintam atores do seu
próprio crescimento e desenvolvimento (Morais & Graça, 2014).
Parece-nos, no entanto, que no caso do nosso estudo e pelo que é espelhado pelos atores
entrevistados, apesar de existir, em alguns casos, uma vontade genuína de participação,
a mesma não se torna efetiva devido a problemas de operacionalização.
Para além dos problemas de funcionamento há quem advogue, igualmente, lacunas no
processo de enquadramento organizacional e de gestão.
Este posicionamento sugere a priori falhas de liderança e de planeamento face ao modelo
de gestão que é defendido e aparentemente perseguido (Watson, 2012; Thornton et al,
2020). Significa, igualmente, que se regista um certo amadorismo gerencial,
suscitando um processo de tomada de decisões com base em situações emergentes,
revelador da falta de estratégias programadas e de um processo de planeamento
adequado (Meyer & Mangolim, 2006).
A análise às entrevistas não traz, igualmente, evidências sobre a participação efetiva dos
diferentes sectores das IES. Revela, apenas, o desejo do ator para que cada uma das
partes possa, com a sua opinião, participar no processo de tomada de decisão.
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Podemos, pois, concluir que existe, no geral, um deficit de participação dos diversos
grupos constituintes da comunidade universitária e de outras IES. Esta circunstância não
permite uma participação efetiva no processo de tomada de decisão e na gestão dessas
mesmas instituições para além das falhas de carácter democrático que se registam
(Luescher-Mamashela & Mugume, 2014; Zavale et al, 2017). Apesar desta situação
geral, mesmo assim pode-se considerar que em alguns casos existe uma reveladora
participação dos docentes devido, sobretudo, à sua preparação profissional que conduz
a um certo ascendente relativamente a outros grupos da comunidade académica.
2.4. Modelos de estrutura organizacional das IES
O que se pretende discutir nesta categoria diz respeito aos modelos de organização das
IES, incidindo particularmente nas estruturas de gestão pedagógica que mais se
coadunam com a realidade das IES em Moçambique segundo a leitura dos atores
entrevistados. Concretamente, pretende-se verificar se a opção é pelo modelo europeu
continental que segue uma lógica profissional, tradicionalmente mais utilizado em
Moçambique, cujo núcleo é a faculdade ou se, por outro lado, existem outras opções que
possam justificar diferentes escolhas, nomeadamente o modelo inglês organizado em
departamentos de carácter científico.
A maior parte dos atores entrevistados não tiveram dúvidas relativamente ao seu
posicionamento, transmitindo-nos uma resposta sustentada numa estrutura
conservadora, seguindo o modelo organizacional mais comum nas IES em Moçambique.
Ou seja, o modelo vertical de carácter profissional faculdades, departamentos, cursos,
admitindo a existências de escolas para unidades especializadas, e centros para unidades
de pesquisa ou de serviços. Aliás, a diferenciação entre escolas e faculdades é, muitas
vezes, apenas uma questão semântica, pois como afirma Costa (2001: 153) o modelo
europeu continental é, tradicionalmente, o da organização em escolas, nomeadamente
designadas por faculdades”.
Na discussão sobre as escolhas da Estrutura Organizacional das IES foi possível constatar
que a maioria dos posicionamentos recaiu sobre o modelo tradicional mais utilizado em
Moçambique cujo núcleo central é a faculdade o modelo europeu continental. Foi
possível, no entanto, encontrar posições divergentes. Uma que não concretiza o seu
posicionamento mas indica que a estrutura deve estar condicionada ao tipo de IES
(universidade, politécnico, instituto superior, etc.). Outra, que é claramente contrária à
maioria das opções, advogando um modelo mais horizontal e flexível sustentado pelos
departamentos científicos o modelo inglês. Em qualquer das circunstâncias, concluiu-
se que a escolha da estrutura em si não é suficiente para estabelecer o impacto a ser
produzido nas IES. É necessário ter em conta um conjunto de elementos, fatores e
determinantes, incluindo a cultura organizacional, pelo seu poder influenciador na
conceção da estrutura e, igualmente, pelos impactos e condicionantes produzidos no
funcionamento das organizações em estudo, no caso, as IES.
2.5. Enquadramento dos graus académicos no sistema de Ensino Superior
em Moçambique
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A estrutura e os níveis estabelecidos para os diferentes graus académicos que vigoram
no sistema de ensino superior em Moçambique exerce uma determinada influência na
gestão e organização das IES. Deste modo, torna-se importante discutir o modelo de
organização dos graus no sistema de ensino superior em Moçambique, os diversos
posicionamentos sobre a problemática e a sua adequação às necessidades e à realidade
do país. Importa destacar que a Lei do Ensino Superior em Moçambique Lei 27/2009,
de 29 de Setembro, estabelece no seu Artigo 22 (Estruturação do ensino superior) que
existem três ciclos de formação 1º, e que correspondem, respetivamente, aos
graus de Licenciado, Mestre e Doutor. Esta estrutura, a que abreviadamente designamos
por LMD, parece estar em linha com os desígnios dos acordos europeus de Bolonha sobre
a matéria. Este assunto tem suscitado, no entanto, debate e pontos de vista divergentes
na opinião pública moçambicana. No caso do nosso estudo, não encontrámos,
igualmente, posições consensuais, o que constitui, aliás, um testemunho sobre as
dinâmicas que se operam à volta da arquitetura dos graus do ensino superior em
Moçambique.
Entre os nossos entrevistados, obtivemos pronunciamentos bastante assertivos e a favor
do sistema LMD. No seu conjunto, podem-se considerar maioritários relativamente aos
restantes posicionamentos.
As ideias formuladas pelos atores acima citados parecem seguir a lógica das reformas
dos países europeus. Este facto não é de estranhar pois, muitas das reformas dos
sistemas de ensino superior em África (Moçambique incluído), tendem a seguir os
modelos historicamente herdados dos países colonizadores. O caso presente é
demonstrativo da ideia que as reformas nas universidades e em outras IES têm sido no
sentido de aderirem ao “Processo de Bolonha” (Sall & Ndajaye, 2007). O carácter
universal da ciência, da tecnologia e do saber em geral são as razões formuladas para
defender o alinhamento com “Bolonha” (Kuphane, 2009). Por outro lado, pode-se
considerar a aceitação do sistema LMD como uma necessidade de se obter uma certa
harmonização (que não se deve confundir com uniformização), uma maior transparência
dos processos e, ainda, a construção de uma imagem de qualidade que permita à IES
ter melhores condições de competição internacional (Costa, 2001).
Consideramos que a possibilidade de reintroduzir o bacharelato, eventualmente na forma
de formação especializada ou vocacional e, igualmente, a reintrodução do grau de
diploma de Pós-Graduação, podem constituir vantagens competitivas no sistema e nas
IES em Moçambique. Sobre esta última possibilidade são destacados os MBA que, de
acordo com Costa (2001), constituem formações de prestígio em vários países,
normalmente com a duração de um ano e maioritariamente frequentados por gestores
profissionais que abdicam da dissertação, preferindo o diploma de pós-graduação findo
o 1º ano de estudos. As propostas de alteração veiculadas pelos atores do nosso estudo
sintetizam a necessidade de procurar introduzir nos modelos em discussão
especificidades de acordo com as lógicas nacionais e locais, contrapondo os processos de
difusão global cujos modelos educativos tendem a ser uniformizadores (Schriewer,
1996).
2.6. A qualidade das IES e os processos de avaliação interna e externa
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No âmbito das atividades das IES, os mecanismos de avaliação, para além de outros
propósitos, são utilizados para testar os níveis de qualidade através, normalmente, de
padrões e indicadores apropriados. Para que os objetivos deste processo sejam atingidos
é necessário levar a cabo um conjunto de ações nos diferentes sectores que compõem a
estrutura das IES, com particular ênfase na oferta de programas de ensino e nas
atividades de investigação. Este conjunto de realizações constitui objeto de avaliação,
quer interna (autoavaliação), quer externa através de diferentes entidades. No que
respeita à avaliação interna, as preocupações fundamentais das IES parecem situar-se
em convencer o público que, em circunstâncias muitas vezes adversas, o ensino oferecido
corresponde à melhor qualidade possível. A principal questão que se coloca para atingir
este objetivo prende-se, no nosso entender, com a forma de assegurar a adaptação do
ensino a um ambiente de mudança permanente (Parvin, 2019).
É neste contexto que os atores do nosso estudo emitiram os seus pronunciamentos, com
perspetivas diferentes, mas todas manifestando uma preocupação central com a
qualidade a medida em que um produto ou um serviço fiável faz o que deve ser feito,
o que se destina a fazer (Morais & Graça, 2014). Estes autores consideram que a outra
componente do nosso estudo - a avaliação - embora seja um conceito multifacetado,
pode ser visto como a apreciação sistemática de um projeto, programa ou política quanto
à sua conceção, execução e resultados. Estes dois fatores constituem vetores
fundamentais no sucesso e na gestão das IES.
Uma parte dos entrevistados reconhece os processos de avaliação quer internos quer
externos como mecanismos importantes, válidos e participativos para o controlo e
garantia da qualidade das IES.
Dois outros entrevistados apresentam posições antagónicas. A análise das suas posições
conduz-nos a discutir a multidimensionalidade da visão e a falta de consenso sobre o
conceito de qualidade na educação, em geral, e no ensino superior, em particular.
Face às divergências acima citadas, não é de estranhar que o nosso último interlocutor
da temática da qualidade e avaliação apresente um posicionamento completamente
singular e diferente dos demais.
Este entrevistado, para além dos aspetos sobre qualidade e avaliação abordados,
inclina-se para uma avaliação externa realizada por agências internacionais
independentes. Outro fator, peculiar, centra-se na relação da qualidade do ensino
superior com a deficiente formação nos subsistemas que o alimentam, ou seja, no ensino
secundário e no ensino técnico-profissional.
Existe por parte dos atores do ensino superior uma evidente preocupação pela melhoria
dos processos educativos e de funcionamento das IES na procura de se elevar os padrões
de qualidade, não obstante os diversos pontos de vista sobre o conceito. Todos
defendem, igualmente, a efetivação de processos de avaliação quer internos, quer
externos, visando aferir a qualidade das IES através da utilização de mecanismos
relevantes. No âmbito da avaliação externa, enquanto a maioria dos entrevistados coloca
a responsabilidade em agências nacionais do Estado, alguns dos interlocutores defendem
não somente a utilização de padrões internacionais, mas também a intervenção de
agências internacionais de avaliação que trariam maior credibilidade ao sistema. Outro
dos pontos de destaque no estudo refere-se à expansão do ensino superior sem pôr em
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causa a qualidade, que é defendida por alguns atores e, ainda, a influência exercida pelos
constrangimentos registados no ensino secundário que se refletem na qualidade do
ensino superior.
2.7. O número insuficiente e as qualificações dos docentes a tempo integral
implicações no funcionamento das IES
A grande maioria das IES em Moçambique, com destaque para as instituições privadas,
não possui um corpo docente constituído por docentes a tempo integral com as
qualificações e em número suficiente para garantir o ensino, a investigação e as funções
de gestão académica e outras desejáveis para o funcionamento normal dessas
instituições. Nesta perspetiva, o Estado moçambicano estabeleceu um quadro regulador
(Artigo 7 do Regulamento de Licenciamento e Funcionamento das Instituições de Ensino
Superior Decreto 48/2010 de 11 de Novembro) que procura garantir, de acordo
com o grau de exigência ou do tipo de formação superior, docentes qualificados para a
prossecução dos objetivos estabelecidos pelas respetivas IES. Neste quadro é
estabelecido o número mínimo de docentes a tempo integral (1/3 para as Universidades
e Academias Classe A, dos quais metade devem ser Doutores e 1/4 para as restantes
IES Classes B, C, D e E, dos quais metade devem possuir pelo menos o grau de Mestre)
e ainda, no mesmo quadro, estabelece-se que dez anos após a abertura de qualquer IES,
30% dos seus docentes devem possuir o grau de Doutor ou de Mestre embora a
proporção entre os mesmos não esteja estabelecida. Não obstante estas medidas
regulamentares, o estudo efetuado com os diversos atores parece confirmar a asserção
acima indicada sobre as dificuldades existentes na composição e qualificação dos
docentes na maioria das IES moçambicanas.
Um dos entrevistados refere-se aos efeitos negativos provocados pelo número
insuficiente de docentes a tempo integral. Porém, outro dos entrevistados defende que,
mesmo existindo docentes a tempo integral, os mesmos parecem não cumprir com as
suas obrigações na formação, investigação e gestão das IES.
Outro dos entrevistados parece confirmar que o principal problema surge não somente
pelo maior ou menor número de docentes a tempo integral, mas, sobretudo, pela criação
do ambiente e das condições de trabalho necessárias a um bom desempenho e, também,
pelo cumprimento escrupuloso das responsabilidades dos docentes.
Outros participantes do nosso estudo confirmam, por um lado, a perniciosidade do
número insuficiente dos docentes a tempo inteiro e, por outro lado, a assunção do não
alcance dos objetivos formativos, de investigação e de gestão.
É unânime que a não existência de um número suficiente de docentes a tempo integral
repercute-se no funcionamento das IES em Moçambique, quer na componente
pedagógica, quer na dimensão gestionária. Deste modo, as IES deverão realizar um
grande esforço no recrutamento de docentes qualificados e, ao mesmo tempo, na
formação destes e de outros, para que se cumpram as exigências da legislação vigente
quanto ao número e quanto às qualificações. Para além do conhecimento científico de
cada uma das áreas de atividade, os docentes deverão ser orientados para o
conhecimento pedagógico e didático, para que as suas aulas sigam uma metodologia
adequada à formação dos estudantes. Mesmo que as IES tenham os docentes
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qualificados e em número suficiente, é necessário ter em conta um conjunto de fatores
conjugados que garantam a eficiência e a eficácia da sua atuação bem como bons
resultados académicos. Este conjunto de fatores influenciadores passam por: tomar em
consideração as políticas públicas nacionais para o sector; estabelecer um correto
relacionamento institucional; possuir uma relação de proximidade com os estudantes;
entender os ditames da sociedade envolvente e relacionar-se com a mesma; conhecer e
utilizar positivamente o seu eu, profissional e pessoal e, ainda, possuir a noção das
influências resultantes da época contemporânea em que vivemos, nomeadamente as
referências da globalização e da internacionalização, para além de outras dimensões.
2.8. Gestão financeira das IES em Moçambique: modalidades de
financiamento
Uma das dimensões fundamentais no funcionamento das IES é a sua gestão financeira
(Chyrva et al, 2020). Diferentes problemáticas podem ser equacionadas neste ínterim,
designadamente os constrangimentos do Estado no financiamento às IES (referimo-nos,
em grande medida, às públicas), as formas inovadoras que podem ser implementadas
através de diferentes modalidades de financiamento, nomeadamente pelas famílias, pela
sociedade, pelos cidadãos e pelo mercado e, ainda, a diminuição dos encargos fiscais
através de legislação apropriada. Tendo em conta a inter-relação entre as diferentes
componentes da gestão financeira que constituem objeto da nossa análise, optámos por
abordá-los de uma forma global no presente ponto.
Um dos entrevistados, apesar de concordar basicamente com a linha do
autofinanciamento, sugere um maior apoio do Estado na cobrança de taxas destinadas a
financiar o ensino superior. Mesmo podendo afirmar que o financiamento do Estado
continua a ser, direta ou indiretamente, preponderante em Moçambique (para as IES
públicas, embora pequenas parcelas possam financiar indiretamente as IES privadas),
importa realçar os fatores que contribuíram para a mudança de paradigma reduzindo,
tendencialmente, a comparticipação do Estado.
Para além dos esforços próprios das IES, vejamos o que nos dizem os entrevistados deste
estudo quanto à participação das famílias, do mercado e dos cidadãos nos esforços de
financiamento do ensino superior. Obviamente que em muitos casos existe uma
interpenetração entre o que a sociedade pretende realizar e os propósitos das próprias
instituições.
Um dos nossos entrevistados defende, para além de outras propostas, uma maior
participação do Estado nos negócios da Educação em geral e no ensino superior em
particular. A fundamentação do nosso entrevistado para justificar uma maior participação
do Estado é sustentada pelo modelo de Estado-providência que atribui à Educação um
papel fundamental no desenvolvimento económico e social, bem como na consolidação
da identidade nacional (Cotovio, 2004). A implementação deste modelo na realidade
atual do país parece-nos extremamente difícil. Não obstante ser ainda pertinente o
contributo da IES para a identidade política nacional num quadro coerente de Estado-
nação, em nosso entender a aplicação de mecanismos de welfare state na atual
conjuntura financeira do país não nos parece realista, sobretudo considerando o efeito
combinado das vidas ocultas com e da Covid-19. Esta aspiração parece ser possível
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através de avultados recursos próprios ou por intermédio de uma generosa ajuda dos
parceiros internacionais. Nem uma nem outra alternativa parecem ser viáveis no atual
contexto do país. Aliás, nas últimas décadas, tanto nos países desenvolvidos quanto nos
países em vias de desenvolvimento, verifica-se uma tendência de redução dos
financiamentos públicos às IES (Cerdeira, 2008), pior ainda quando fatores
extraordinários reforçam os efeitos negativos.
Os nossos interlocutores defendem, na generalidade, uma política de alívio fiscal do
Estado para com as IES, embora alguns deles estabeleçam limites ao âmbito de aplicação
e à proporção das reduções a serem concedidas. Esta possibilidade é, igualmente,
referida por Reis & Reis (2008) que no quadro de uma política de gestão do ensino
superior ao encontro do mercado defendem formas de financiamento que aliviem a
despesa blica e a carga fiscal. Temos para nós que a redução da carga fiscal é benéfica
em certas circunstâncias especiais, nomeadamente no quadro do investimento,
sobretudo inicial, aproveitando o quadro legislativo existente. Não nos parece exequível,
na situação atual da economia moçambicana, que o Estado conceda vantagens fiscais
sobre as remunerações dos docentes ou sobre os resultados dos exercícios económicos,
como alguns atores advogam, nomeadamente devido aos impactos orçamentais da
Covid-19.
A gestão financeira constitui um dos vetores principais da gestão das IES. A sua
importância advém da influência que exerce nas atividades dessas instituições e no facto
de abranger diferentes atores, nomeadamente o Estado, os estudantes, as famílias, o
mercado e a sociedade em geral. O financiamento das IES realiza-se num ambiente de
recursos escassos e de grandes dificuldades financeiras do Estado moçambicano que
desde 2015 vive grandes dificuldades. Deste modo, mesmo admitindo a continuidade do
papel proeminente do Estado no quadro da sua responsabilidade social e da necessidade
de expansão do sistema, os atores em estudo e os vários autores consultados defendem
uma diversificação das fontes de financiamento que resultam numa maior partilha de
custos (cost sharing). Assim, é requerida a contribuição dos estudantes, pagando total
ou parcialmente as respetivas propinas através de recursos próprios, de empréstimos
bancários ou do acesso a bolsas de estudo públicas ou privadas. O papel do mercado e
da sociedade em geral são igualmente relevantes através do financiamento aos
estudantes ou da contratação de serviços às IES. Aliás, este último segmento parece
constituir uma importante fonte de receitas a ser alargada e a estender-se a outros
domínios como sejam a investigação e as atividades formativas de carácter específico.
Ainda que de forma indireta, a redução da carga fiscal em determinadas circunstâncias
constitui uma forma de aliviar as despesas das IES, contribuindo para a obtenção de
melhores resultados financeiros.
Conclusão
O aparente conservadorismo verificado no posicionamento das principais dimensões
estudadas não significa que não tenha havido críticas contundentes e propostas ousadas.
Assim, a constatação da não participação efetiva da comunidade académica na gestão
das instituições de ensino superior põe em causa as escolhas recaídas no modelo colegial
e democrático. A elevação dos padrões de qualidade, tidos como fundamentais na atual
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conjuntura do ensino superior em Moçambique, deve ser monitorizada através da
autoavaliação e da avaliação externa, conduzida por agências nacionais, segundo a
maioria das opiniões. No entanto, quem propugne agências internacionais para o
efeito, de modo a incrementar a credibilidade do processo. Outro aspeto que coloca em
causa a garantia da qualidade é a insuficiente existência de docentes a tempo integral.
Porém, não basta apenas o recrutamento de docentes para preencher as diretrizes legais.
Sustenta-se a necessidade de formação científica e pedagógica, para além do
conhecimento e apropriação do ambiente envolvente por parte dos docentes. No que
toca à questão estrutural, a Faculdade mantém-se como a escolha nuclear embora uma
opinião minoritária defenda a organização em departamentos científicos. quanto aos
ciclos de estudo, sem por em causa o fundamental da estrutura LMD Licenciatura,
Mestrado e Doutoramento, são apresentadas algumas alterações pontuais no ciclo
reintrodução do bacharelato para formações especializadas e no ciclo reintrodução
do diploma de pós-graduação como um grau e a equalização entre mestrados académicos
e profissionalizantes. A problemática do financiamento para o ensino superior foi objeto
de um debate aprofundado que concluiu sobre a necessidade de o Estado continuar a
manter um papel importante. Não obstante, a atual conjuntura económico-financeira
caracterizada pelo efeito conjugado das dívidas ocultas e da Covid-19 exige a
participação dos estudantes, das famílias, do mercado e da sociedade em geral, de modo
a existir uma maior partilha de custos (cost sharing), desenvolvendo um novo paradigma
baseado numa diversificação das fontes de financiamento para as instituições de ensino
superior.
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